Você está na página 1de 26

ARTIGOS

SOCIEDADE E ESPAÇO NO BRASIL (AS FASES DA


FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA: HEGEMONIAS E
CONFLITOS )

SOCIETY AND SPACE IN BRAZIL

Ruy Moreira1

Cinco são as fases da formação espacial brasileira, balizando


as formas de relação sociedade-espaç o no Brasil no tempo: a dos
vetores fundacionais; a dos ciclos de assentamento; a da redivisão
territorial industrial do trabalho; a da privatização da gestão e
desintegração espacial do projeto nacional; e a da articulação das
sociabilidades e as tendências de uma formação espacial complexa.
São fases marcadas por um contraponto entre modelos comunitários,
engendrados espontaneamente, e o modelo de sociedade dominante,
num conflitamento que tensiona a formação espacial brasileira por
dentro em caráter reiterado e permanente.
Se no longo do tempo este contraponto foi mantido à s
ocultas pelo modo de regulação de espaç o instituído pela face
hegemónica, emerge hoje à evidenciação da consciência social,
liberado pela reestruturação por que passa a formação espacial
brasileira como resultado da entrada do modo de produção
capitalista, seu nexo estruturador, no rumo duma forma de

1
Professor dos Cursos de Gradua çã o e P ó s - Gradua çã o (Mestrado e Doutorado )
em Geografia da Universidade Federal Fluminense.

7
RUY MOREIRA

.
organização e regulação espacial nova Evidenciação revelada
.
na surgência dos seus novos sujeitos Quais as raí zes hist óricas e
as formas de tendência dessa realidade nova que a formação
espacial brasileira aos poucos revela?

OS VETORES FUNDACIONAIS

A formação espacial inicial do Brasil tem origens na ação


de dois vetores da formaçã o do territ ório: o bandeirantismo
e a expansão do gado. Caminhando em sentidos contr ários,
no século XVIII estes dois vetores v ão encontrar - se no planalto
central e assim cristalizar a matriz do arranjo da formação
espacial que hoje conhecemos.
O bandeirantismo tem foco de irradiação em São Vicente
e avanç a rumo a quatro direções: o litoral sul, seguindo pelo
costeamento; o sudoeste, rumo ao territ ório das missões
jesuí ticas; o oeste e noroeste, rumo aos territ ó rios das
comunidades indí genas do planalto central e da Amazônia; e o
nordeste, rumo aos territórios quilombolas rebelados contra os
centros canavieiros da zona da mata nordestina. S ão incursões
apresadoras e de repressão, em cujos rastros os bandeirantes
vão deixando manchas de cultivos e núcleos de futuras cidades
que pontuar ão a base logística da sociedade em formação.
Todavia, a inspiração real é a descoberta de minas de
ouro e prata, intento perseguido tenaz e permanentemente, com
o destino de cumprir na Colónia a polí tica do metalismo que
norteia todo o empreendimento colonial de Espanha e Portugal
neste momento. Daí o bandeirantismo perdurar por todo o correr
dos séculos XVI ao XVIII, culminando com a descoberta das minas
de ouro e diamantes no planalto central -mineiro, quando ent ão
cessa. Em cada ponto para o qual se dirige, combina ent ão o
apresamento de índios e a busca da descoberta do eldorado.
Estimulado pela demanda interna de trabalho escravo, que

8
.
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, S ÃO PAULO, n° 83, p 7 - 31, 2005

aumenta na Colónia com o sucesso e a expans ão da economia


açucareira dos engenhos, o apresamento e venda de í ndios como
escravos é o que motiva os bandeirantes em todos os seus
movimentos de incursão pelo hinterland , não respeitando o
marco legal do Tratado deTordesilhas, pelo qual o domínio colonial
portuguê s pouco vai além da faixa estreita do litoral do Atlântico
(MONTEIRO, 1995; MOOG, 1966 ), acumulando com o tempo uma
experiência de guerra, a quem recorre a classe plantacionista da
zona da mata em diferentes momentos.
Neste propósito, as incursões bandeirantes avanç am rumo
ao litoral sul, onde suas tropas v ão disputar hegemonias de
território e de apresamento indí gena com as tropas espanholas,
que aí também agem, em nome da pertenç a dessas terras à
.
Espanha segundo o Tratado de Tordesilhas Indo para além do
limite da região de Laguna, no litoral de Santa Catarina, o
movimento bandeirante alarga os dom í nios da Col ó nia
portuguesa, ao tempo que garante a mercadoria escrava que o
motiva. É mais rico de possibilidades, todavia, o apresamento
nas missões jesuí ticas, que reúnem numerosa população de índios
guaranis, aldeados, desde 1610, em terras do atual Paraguai,
Argentina e Rio Grande do Sul. Uma sequência de conflitos
atravessa a hist ória das relações de bandeirantes e a região
missioneira, que leva, por fim, à dissolução e dispersão das
comunidades no século XVIII, em 1768, quando são extintas. Mas
também são grandes atrativos as aldeias espalhadas pela imensidão
dos sert ões do Centro- Oeste e da Amazônia, focos preferidos da
ação de apresamento para muitas tropas de bandeirantes por
seu menor poder de resist ência e coincidir com a possibilidade
de descoberta de metais preciosos, unindo apresamento e
descoberta num só movimento (HOLANDA, 1976 e 1986) Fogem .
a este escopo, por ém, as incursões dos bandeirantes à região do
.
Nordeste aç ucareiro (PUNTONI, 2002) Seguidamente derrotados
em campos de batalha pelos negros escravos organizados nos
quilombos, de que Palmares ficou como grande símbolo, a elite

9
*

RUY MOREIRA

aç ucareira dos engenhos da Zona da Mata convoca os serviç os


do capit ão - de - guerra Domingos Jorge Velho, esgar ç ando - se uma
série de confrontos que culmina com a morte de Zumbi em 1695
e a derrota dos palmarinos, encerrando um per íodo de revoltas
de escravos no Nordeste que dura desde 1597 .
Os quilombos e as missões jesuí ticas são contrapontos ao
modelo de sociedade que Portugal institui na Colónia, as missões
jesuí ticas desde seus começ os de implantação e os quilombos
quando o modelo já é uma forma de sociedade consolidada .
S ão, ambas, modelos comunit á rios de sociedade que se
contrapõem ao modelo escravista que se implanta na América
.
Portuguesa (CARNEIRO, 1966; e LUGON, 1968) Dado essa estrutura
e organização por isso mesmo resistem longamente à s investidas
de sua extinção, Palmares durando 98 anos (1597 - 1695 ) e as
missões 158 anos (1610- 1768), só desaparecendo no correr da
segunda fase da formação espacial brasileira, quase ao mesmo
.
tempo e pelas mesmas mãos Mas esta é uma fase pontilhada
também de inúmeras rebeliões indígenas, algumas com estruturas
de organização que lembram as missões e os quilombos, como a
Confederação dos Tamoios, entre 1554 e 1567, no litoral do Estado
do Rio de Janeiro (QUINTILIANO, s / d) e a revolta de Ajuricaba,
entre 1723 e 1727, na Amazônia (BRUNO, 1961 ) .
As trilhas do gado seguem em sentido contrário ao vetor
.
bandeirante Seu ponto de origem é a região açucareira da Zona
da Mata, com ponto de refer ê ncia em Pernambuco, de onde, na
forma de ondas, a pecuária bovina avanç a rumo aos limites
ocidentais do sert ão nordestino no Piauí e Cear á, na direção
oeste, e aos limites do planalto central, através da calha do rio
.
S ã o Francisco, na direção sul Tal como no caminho dos
bandeirantes, uma diversidade de pontos de parada vai dando
origem a manchas de cultivos e de vilas de onde ir ão brotando
os centros de refer ência da ocupação e formação do territ ório .
Neste mister, o movimento bandeirante e o movimento de
expansão do gado forç am o deslocamento das fronteiras formais do

10
.
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, n° 83, p 7 - 31, 2005

Tratado deTordesilhas, empurrando os limites legais crescentemente


para os confins do hinterland , forjando o domínio que o Tratado
de Madrid, de 1730, irá consagrar como o novo recorte de fronteira
das colónias de Portugal e Espanha, praticamente riscando o desenho
do território brasileiro de hoje (PEREGALLI, 1997).

OS CICLOS DE ASSENTAMENTO

O desenho combinado das trilhas bandeirante e pastoril


traç a os grandes riscos de linha da tela em cujos interstícios o
pincel discreto da história se incumbir á de desenhar em grandes
manchas de tinta as paisagens com que a sociedade brasileira
.
inscrever á o seu espaç o As grandes paisagens, que a discrição
da hist ória paciente e incansavelmente desde ent ã o vai
desenhando, são os frutos de nossa evolução em seis grandes
ciclos de espaç o - tempo: pau- brasil, cana - de- açúcar, mineração,
gado, borracha e caf é (NORMANO, 1975 [1938]; DIEGUES, 1960 ) .
Ponto essencial desse processo, esse plano geral de linhas
e cores das paisagens é o plano - guia de ocupação efetiva, o
roteiro dos assentamentos que os ciclos vão aqui e ali plantando
.
no espaç o As trilhas dos bandeirantes e do gado, ora dos rios e
ora dos interflúvios - para o gado também as grandes superfícies
planas do planalto, onde avanç a como uma mancha de óleo -,
orientam a pontuação dos assentamentos da população e das
atividades económicas, no correr dos ciclos. Os vales dos rios
merecem o privilégio .
Primeiro momento dos ciclos da ocupação do territ ório,
o ciclo do pau - brasil inicia a hist ória da formaçã o espacial
brasileira. Vigora no correr dos séculos XVI e XVII e tem por
domínio de abrangência a estreita faixa da franja costeira da
mata atlântica, do Rio Grande do Norte ao norte do Rio de
Janeiro. A extraçã o do pau - brasil, cuja madeira, de seiva
vermelha, ser á enviada à Europa para a produção de corante,

11
RUY MOREIRA

dá origem à s primeiras áreas de ocupação da Colónia. Instaladas


como feitorias, essas áreas fundam a toponímia e antecipam a
depredação do meio ambiente como polí tica colonial, deixando
atrá s de si terra arrasada como heranç a para a história das
relações da sociedade com o seu espaç o no Brasil.
Entretanto, é com o ciclo da cana - de - açúcar que começ a
efetivamente o processo da ocupação e formação espacial da
Colónia. Sua área de localização privilegiada é a zona da mata
nordestina, onde se instala em 1532, com o tempo se multiplicando
por novas áreas da mata atlântica, particularmente no norte do
Estado do Rio de Janeiro e em São Vicente, o pólo de irradiação
do bandeirantismo, em São Paulo. O ciclo da cana institui a
sociedade agr á ria como modelo de sociedade no Brasil,
diferentemente da polí tica de ocupação espanhola, que, por
encontrar de imediato as minas de ouro e prata que
representavam a ambição colonial das metr ópoles, institui como
modelo uma sociedade mineradora e urbana nas terras da
espanoamérica. O car áter agr ário e mercantil substanciar á o
conteúdo social da formação espacial brasileira desde o começ o,
num contraste com a essência mineiro - urbana da formação
espacial da América hispânica.
No s é culo XVIII, finalmente encontrado o ouro e os
diamantes que desde o iní cio o projeto colonial intentara, a
formação espacial colonial experimenta uma ligeira mas
substantiva mudanç a. Inicia - se o ciclo da mineração, que transfere
o centro de gravidade da ocupação do litoral para o interior,
instalando - o nas áreas ricas de mineração que se multiplicam
pelos planaltos central e mineiro, e troca o caráter agrário pelo
mineiro - urbano da formação colonial, encerrando a fase do
bandeirantismo e de expansão do gado. Esse deslocamento de
conteúdo e localização do centro de gravidade dura apenas at é
o final do século, quando se encerra o ciclo, restando a cultura
de uma vida urbana que doravante ter á efeitos profundos e de
alta importância nas relações da Colónia.

12
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, n° 83, p. 7 - 31, 2005

O encerramento precoce do ciclo da mineração - dura


menos de um século - devolve o centro de referê ncia da vida de
volta aos núcleos aç ucareiros do litoral, ao tempo que inicia nas
antigas áreas mineiras o ciclo do gado. O ciclo do gado é a
culminância das ondas de deslocamento de rebanhos provenientes
de duas áreas extremas da Colónia: o sertão do Nordeste e os
campos do Sul, atraí dos para o planalto central - mineiro pela
demanda de alimentos criada pelo ciclo da mineração. É dos
centros aç ucareiros que sai inicialmente o rebanho nordestino
que, subindo o vale do São Francisco, chega e se espalha pelas
áreas de vegetação de cerrado, em busca dos mercados formados
pelos núcleos urbanos da mineração. Aí, se encontra com o
rebanho sulino vindo da região do pampa, atraí do pela mesma
demanda. Estes deslocamentos, um vindo do Nordeste e outro
do Sul, colmatam e povoam no seu caminho a enorme diversidade
de sertões que forma o ent ão hinterland , desde o pampa, ao
cerrado e à caatinga, de modo que, centrado no planalto central-
mineiro, o ciclo do gado ter á por real abrangê ncia toda a
imensidão do sertão brasileiro formado pelas áreas de vegetação
campestre do pampa, do planalto central e do planalto nordestino,
numa faixa quase contí nua e alongada do hinterland no sentido da
latitude. E com isso sedimenta e consolida como espaço o território
da Colónia estabelecido pelo Tratado de Madrid de 1730 .
O final do s é culo XVIII é fase tamb é m do ciclo da
borracha, que vai ocorrer na regi ã o de florestas do vale
.
do Amazonas At é este final de s é culo, e em paralelo aos
ciclos do pau - brasil, da cana e dos metais preciosos, vige
no Norte o ciclo das drogas do sert ã o . A instituiçã o de
aldeamentos indí genas, pelo trabalho de acultura çã o dos
jesuí tas, instaura a atividade do extrativismo como modo
de vida dominante ao longo de todo o vale . Este ciclo se
esgota nos finais do s é culo XVIII, quando é substituí do pelo
da extra çã o da borracha, o novo ciclo reorganizando a
economia regional como um todo. O ciclo da borracha cria

13
RUY MOREIRA

um novo modo de vida, atraindo imigrantes do sert ã o


nordestino, assolados pelas secas do final do século, alterando
as relações existentes e formatando a relaçã o de exploraçã o
da floresta em função do novo empreendimento.
O café, o último dos ciclos, domina o século XIX e as
primeiras décadas do século XX, com epicentro no planalto de
S ão Paulo. Instaurado inicialmente nas matas dos maciç os
interiores da cidade do Rio de Janeiro, dai se expande para se
instalar nas áreas florestadas da serra do Mar e do vale do Paraíba,
nos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, para,
por fim, chegar ao planalto paulista, quando ent ão atinge seu
clímax. O ciclo do caf é sustenta e faz inúmeras transições, da
colónia para a independência, da escravidão para o capitalismo
e da monarquia para a república, assim antecipando o momento
instaurador da grande transformação que ocorrer á na formação
espacial brasileira com o advento da industrializaçã o e
urbanização do agora país.
Essa sequência de ciclos implanta pois o formato de ocupação
e assentamento económico e demográ fico da formação espacial
brasileira. E cria o padrão do arranjo espacial que irá vigorar até
meados do século XX, em que a lavoura ocupa as áreas de floresta
e a pecuária as de vegetação aberta, num arranjo diferenciado
em três grandes faixas de sentido latitudinal, dispostas no sentido
do litoral para o norte amazônico: a de lavouras e ocupações urbanas
da região de mata atlântica, disposta ao longo e em paralelo ao
litoral; a de pecuária das áreas dos sertões, dispostas em faixa
latitudinal quase contínua da caatinga nordestina ao pampa
riograndense, com a imensidão do sertão dos cerrados no meio; e
a do extrativismo vegetal da Amazônia, fechando o mapa no sentido
do extremo oeste-norte. A ocupação demográfica reproduz essa
ocupação sócio- econômica em três grandes faixas, também variando
do atlântico ao vale do Amazonas, com maior densidade na faixa
atlântica e intensidade sucessivamente menor até minguar e mostrar -
se rala na faixa extrativista do extremo norte.

14
1

.
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, S Ã O PAULO, n° 83, p 7 - 31, 2005

É nesse longo período dos ciclos que se implanta o modelo


de sociedade brasileira como uma sociedade concentradora e
excludente, levantando uma sequê ncia de movimentos
insurrecionais, voltados para o propósito de experimentar um
modelo comunit ário de sociedade, em contraposição ao modelo
escravista, latifundiário e monocultor dominante: o modelo dos
quilombos, localizado em vários lugares, com núcleo maior nas
áreas montanhosas do agreste alagoano - pernambucano, entre
1597 e 1695 ( CARNEIRO, 1966; e REIS e GOMES, 1996), no período
do ciclo da cana; o modelo dos cabanos, entre 1835 e 1840,
localizado na Amazônia ( ROCQUE, 1984; e Dl PAOLO, 1985 ), no
período de transição do ciclo das drogas para o ciclo da borracha;
e o modelo de Canudos, entre 1893 e 1897, localizado no sert ão
norte da Bahia, na transição da monarquia para a república
( CUNHA, 1995 [1901]; e MONIZ, 1978), além do modelo do
Contestado, entre 1912 e 1916, localizado no oeste de Santa
Catarina ( GALLO, 1999; e DERENGOSKI, 2000), em pleno perí odo
do ciclo cafeeiro. Todos reprimidos e dissolvidos pelo sistema
dominante, à semelhanç a da experiência comunitária das missões
jesuí ticas, na fase do ciclo do bandeirantismo.
De um modo geral, são experiências de constituição de um
outro modelo de sociedade que vicejam na fímbria da instituição
do modelo hegemónico da formação espacial brasileira e por isso
mesmo se multiplicam, principalmente, na transição do regime
escravista para o capitalista, que domina o transcorrer do século
XIX. A estrutura binomial latifúndio-minifúndio, existente desde o
tempo colonial, e que se institui como base organizativa do período
da transição, período que se estende dos anos 1850 aos anos 1950,
por cem anos, e assemelhar -se-ía a uma fase de acumulação primitiva
no Brasil, parece vir no sentido de neutralizá- las e arrefec ê -las.

15
RUY MOREIRA

A DIVISÃO TERRITORIAL INDUSTRIAL DO TRABALHO

O século XX encontra a matriz da formaçã o espacial


brasileira fundamentalmente completada e consolidada em seu
processo de constituição territorial e cartogr á fica. E ser á essa
matriz a base de que o Estado nacional, doravante o regulador
do desenvolvimento, partir á para esgotar e ultrapassar a fase
dos ciclos, no rumo da industrializa çã o. Caracteriza - a a
diferenciação de áreas, seja por sua arrumação em faixas e seja
pela arrumação nas diferentes regiões originadas ciclo a ciclo. A
diferenciação regional, em particular, ter á fundamental
importância para o desenvolvimento da indústria, dado o car áter
de uma divisão territorial de trabalho em que ela é transformada
pelo Estado, com o fim de dela extrair as divisas de exportação
necessárias ao desenvolvimento industrial .
Distinguem - se a fase pr é e a fase industrial da formação
.
espacial brasileira agora em construção A década de 1950 é o
marco temporal de passagem.
A industrialização tem seu fomento na passagem do modelo
de economia "para fora” para o de uma economia "para dentro”
(TAVARES, 1972) . Até os anos 50 a indústria utiliza em seu crescimento
a economia de produção regional para fora, legada dos ciclos
coloniais, crescendo com o consumo de suas divisas, que usa para
financiar a formação do capital inicial das indústrias, na forma da
.
importação de mat érias- primas e equipamentos Após os anos 50,
encontra - se já desenvolvida e centrando a formação espacial
brasileira, no âmbito de uma organização espacial por ela
inteiramente produzida e transformada, e obediente à sua lógica
intrínseca de mercado. Oliveira designa transformação de "uma
economia regional nacionalmente organizada ”, a da formação
espacial herdada do período dos ciclos de espaç o - tempo, para
uma "economia nacional, regionalmente organizada ”, nome da
formação espacial do presente, a essa passagem referenciada
no antes e depois dos anos 50 ( OLIVEIRA, 1984, 1987 e 1988).

16
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, n° 83, p. 7- 31, 2005

A lei do desenvolvimento desigual e combinado passa


ent ão a reger a nova formação, progressivamente desigualando
e invertendo a forma das relações espaciais até ent ão existente.
O campo passa o comando para a cidade, as regiões passam o
comando para o Sudeste e as indústrias regionais passam o
comando para a concentração em São Paulo, assim se reorientando
a regulação e o ordenamento espacial no interior da formação .
Essa metamorfose, acontecida na formação espacial brasileira
já dentro de sua fase industrial, segue, todavia, dois distintos
.
momentos Primeiramente, a industrialização arranca e ultrapassa
nessa arrancada a economia regional herdada da matriz dos ciclos,
a seguir dissolvendo - a, ao atingir o seu auge, para reorganizar o
espaç o numa nova divisão de trabalho de tipo avanç ado Isto .
significa dois distintos momentos de divisão territorial do trabalho
industrial: aquele da conversão pura e simples que responder á
por sua arrancada e aquele seguinte da redivisão que ir á
caracterizar a organização espacial do seu auge. A primeira divisão
territorial do trabalho faz a dissolução da fase da formação espacial
onde o campo comanda ainda a cidade, as indústrias são ainda de
bens de consumo e por isso encontram-se instaladas em praticamente
todas regiões (coladas em suas respectivas economias agr árias), e a
concentração industrial em São Paulo não é um traço distintivo
ainda. A segunda divisão territorial do trabalho é a da consolidação
do arranjo do campo comandado pela cidade e da indústria e do
espaço nacional comandado por São Paulo (MOREIRA, 2004).
Uma ampla base de infraestrutura para tanto deve ser
instalada, que traga os meios de transporte, de comunicação e de
transmissão de energia, organizados numa vasta rede de circulação,
visando a que tudo convirja para a instauração do comando da cidade
sobre o campo e da indústria paulista sobre o espaço nacional total.
No geral, a rede que a urbano - industrialização promove é
a mesma das trilhas do bandeirantismo e da expansão do gado,
por é m orientada agora para outra direção de rela ções e
propósito, com impacto em geral negativo para os núcleos iniciais

17
RUY MOREIRA

de assentamento e suas localizações. Ali por onde passa o eixo


modernizante da urbano - industrialização, os velhos n úcleos de
assentamento são encarados como de efeito inercial, n ã o raro a
industrialização dissolvendo - os, desalojando seus habitantes ou
mesmo extinguindo seus espaç os.
De modo que esse é um período dominado por grandes conflitos,
não mais do tipo dos confrontamentos de modelos comunitário -
latifundiário do passado, mas aqueles advindos dos reordenamentos,
tendo lugar conflitos de ordem rural, urbana e regional.
Nos conflitos rurais opõem - se grandes proprietários e
camponeses ao redor da questão da reforma agr ária. A forte
concentraçã o da propriedade rural herdada do per í odo colonial,
e que atravessa sem mudanç a as transforma ções fundamentais
do século XIX - a independência, a aboliçã o da escravatura e a
república - agora é questionada por um campesinato que começ a
a ser expulso do campo por conta das mudanç as com que a
agropecuária responde à s demandas urbanas e da industrialização,
reagindo o campesinato com a press ã o pela partilha e
redistribuição mais equânime da propriedade rural, que equilibre
as relaçõ es no campo e modernize socialmente as relações
agr á rias. O apoio dos segmentos sociais da cidade que vêem um
rebatimento positivo da reivindicaçã o dos camponeses no seu
modo de vida urbano - caso dos trabalhadores, com sua pauta
de emprego, salários e moradia - e no alargamento do mercado
- caso dos industriais, preocupados com os limites do mercado

interno para seus produtos -, nacionaliza o movimento do


campesinato por reforma agr á ria e faz dele uma bandeira de
confrontos das mais fortes.
Nos conflitos urbanos opõem - se capital e trabalho, com
pano de fundo no mundo da ind ú stria, numa pauta de
reivindica ções do operariado em que predomina o pleito
igualmente de mudan ç a estrutural: reforma urbana, que
redistribua a terra e garanta o direito à moradia na cidade;
redistribuição da renda, que reduza a desigualdade da riqueza;

18
.
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, S ÃO PAULO, n° 83, p 7 - 31 , 2005

e estabilidade no emprego e ampliação da seguridade social,


que estabeleç a um modo de vida mais apropriado Demandas .
que o patronato industrial ambiguamente v ê como pressã o
contra o capital e ao mesmo tempo favor ável, na medida que
fortale ç a o mercado sem o qual o desenvolvimento da
economia fica obstaculizado. S ão pontos que se somam à
.
grande reivindicaçã o da reforma agr ária Todos pleitos que
remetem a uma radical reformulação dos privilégios da formação
espacial passada e antepostos à forma çã o do presente ,
considerado o interesse da urbanização e da indústria.
Nos conflitos inter - regionais, por fim, pontuam as
dissonâncias entre as velhas oligarquias rurais regionais e as novas
nascidas da urbano - industrialização, acentuada pela passagem
da velha para a nova divis ã o inter - regional do trabalho,
ressaltando em particular o contraste que ent ão se estabelece
entre Sudeste e Nordeste .
Todos esses conflitos expressam a passagem de uma formação
para outra e a necessidade de sedimentar- se a regulação correspondente .
A forte concentração da economia industrial no pólo paulista, a
subordinação das atividades regionais à performance económica da
indústria concentrada em São Paulo, a canalização e transferência de
meios de uma região para outra e a disparidade do desenvolvimento
entre o campo e a cidade, são todos conflitos referidos à forma de
regulação espacial, conflitos que ocorrem praticamente nas linhas de
clivagem dos recortes territoriais que demarcam a relação cidade-
campo, região- região e cidade-espaço. E são as polí ticas territoriais do
Estado, via ação superestrutural e políticas de infra-estrutura, que regulam
esses conflitos, canalizando- lhes as energias para a integração e
desenvolvimento da formação espacial no seu todo.

19
RUY MOREIRA

A PRIVAI IZA ÇÃ O DA GEST Ã O DO ESPA Ç O E


DESINTEGRAÇÃO DO PROJETO NACIIONA!

A resposta desses confrontos n ão vem, no entanto, pelo


viés das reformas, mas de uma reordenação espacial, que orienta
o desenvolvimento na linha de uma modernização conservadora.
Estratégia de ação que usa da rearrumação do espaç o no lugar
da transformação estrutural da sociedade demandada pelos
movimentos pr ó- reformas de base do período da industrialização,
a modernização conservadora afeta e altera de modo ainda mais
radical o mapa dos assentamentos, introduzindo na formação
espacial brasileira um perí odo de desarrumação demogr á fica e
sócio - ambiental anteriormente nunca vistos (GUSMÃO, 1990).
É a reestruturação do espaç o brasileiro (MOREIRA, 2003 ).
De que a década de 1970 é o marco temporal.
Três eixos seguem esta reestruturação: a modernização da
agricultura, a redistribuição territorial da indú stria e a
despatrimonialização-desestatização que privatiza a gestão do espaço.
A reestrutura çã o come ç a pela moderniza çã o da
agropecuária, que tem na expansão da sojicultura para as áreas
do cerrado o seu carro - chefe. Esta expansão, todavia, é anterior
aos anos 70, relacionando - se à migraçã o de pequenos produtores
das regiões de colonização alemã e italiana do Sul para a calha
do rio Paraná, buscando reassentar - se no noroeste do Rio Grande
do Sul, oeste de Santa Catarina e oeste do Paraná, afetados em
suas propriedades pelo desenvolvimento da agricultura gaúcha,
motivada pela industrialização de São Paulo, e pela acentuada
fragmentação da propriedade relacionada à s seguidas transmissões
de heranç as. Premidos por essas dificuldades, esses pequenos
produtores empreendem um movimento de migração, que nos
anos 60- 70 chega ao Mato Grosso, e que os governos militares
aproveitam para orientar no sentido da polí tica de colonização da
fronteira amazônica. É o Estado que est á por tr ás da geração de
uma técnica agronómica de uso dos solos dos cerrados pela EMBRAPA,

20
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, S ÃO PAULO, n° 83, p. 7- 31 , 2005

que estimula o movimento migratório e abre esta área para a


implementação agrícola em grande escala. E, ainda, da estratégia
de desenvolvimento do setor de indústria para a agricultura, que
leva a mecanização da agricultura a acelerar - se em toda a região.
Em poucas décadas, a soja toma conta do cerrado.
A polí tica dos grandes projetos, estrat é gia de
desconcentração industrial, coincide com essa fase de aceleração
da modernização agrícola. Consiste essa polí tica em transferir
para o arco de periferia do paí s as ind ú strias de bens
intermediários, implementando - as na forma de grandes pólos
mínero - industriais, muitos dos quais vão instalar - se nas áreas da
fronteira agrícola, a exemplo do pólo Grande Caraj á s, um enorme
centro mí nero - florestal - sider úrgico instalado na proví ncia
ferrí fera de Caraj á s, no Sudeste do Par á, voltado para a produção
de lingotes de ferro para exportação, apoiado em alto consumo
de lenha extraí da da floresta amazônica. O suporte dessa
implementa çã o combinada de moderniza çã o agrí cola e
desconcentração industrial é uma polí tica de ampliação para as
áreas do Centro - Oeste e da Amazônia da implantação de meios
de transporte, comunicação e transmissão de energia elétrica
que vinha sendo implementada no Sudeste desde os anos 50 - 60 .
Um número crescente de grandes usinas hidrelé tricas, torres de
transmissão de energia e longos eixos de transporte por rodovias
cobre e integra em rede essas áreas aos centros de comando do
Sudeste, articulando e unificando todo o território nacional com
.
referência nesses centros Aorigem da desconcentração industrial
é, entretanto, a deseconomia de aglomeração, que afeta a
concentração urbana e industrial da grande S ão Paulo nos anos
70, provocada pelo acúmulo de um conjunto de conflitos - dos
conflitos do trabalho aos conflitos ambientais que pressiona
pela desconcentração da indústria, que irá ocorrer, em São Paulo,
via iriteriorização, e em ní vel nacional, pela polí tica dos pólos.
Nas décadas de 80 - 90 o espa ç o brasileiro assim se
redesenha e se descomprime. As atividades agrí colas, pecuárias

21
RUY MOREIRA

e industriais estão agora rriais disseminadas. A rede de transporte,


comunicação e linhas de transmissão de energia mais difundidas .
E, como efeito, a população, as cidades e as trocas comerciais
amplamente redistribuí das por todo o territ ório.
Assim, a matriz segundo a qual a formação espacial brasileira
.
até então se organizara ganha novo formato Já não mais são as
faixas de sentido litoral-interior e as regiões oriundas dos ciclos as
.
formas da diferenciação de áreas As paisagens se dissolvem e se
misturam: a lavoura passa a ser feita nas áreas de vegetação
.
campestre e o gado nas antigas áreas de matas E a forma de
regulação desfaz - se, num movimento institucional de desmonte e
remonte, com duas principais consequências: 1) a desarrumação
socioambiental do paí s em ampla escala; e 2) o desalojamento,
expulsão e desterritorialização da população dos velhos nichos de
assentamen to. Ambos com ocorrência no campo e na cidade .
Os efeitos socioambientais são conhecidos (MOREIRA,
.
2003b) Peguemos três exemplos. A combinação de modernização
monoagrícola, grandes usinas hidrelé tricas e grandes pólos de
produção mí nero - industrial, validada como polí tica territorial
para todo o paí s, nacionaliza o problema ambiental antes
concentrado nas grandes regiões industriais do Sudeste. A
propagação da soja pelo topo dos chapadões do planalto central
sobre a base da mecanização e consumação de á gua para
irriga çã o tirada dos len çó is subterr â neos a grandes
profundidades e em grande escala, esgota as reservas hí dricas,
submete os solos a intensos desgastes, assoreia e altera a rede
de drenagem, desorganizando o ecossistema do cerrado E, .
por fim, a opção pelo transporte rodovi ário, destinado a
favorecer o escoamento dos gr ã os e da madeira, intensamente
explorada junto à ocupa çã o predat ória do cerrado e da
floresta, refor ç a a desarrumação socioambiental que j á vem
na esteira da ocupação rodovi ária do Centro e do Norte desde
a abertura da Belé m - Brasí lia, ainda na década de 60 ( VALVERDE
e DIAS, 1967; e VALVERDE, 1979 ) .

22
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, S ÃO PAULO, n° 83 , p. 7 - 31 , 2005

Bem como sã o conhecidos os efeitos sociais. Nas á reas


rurais, o melhor exemplo é o desalojamento dos assentamentos
onde as populaçõ es se localizavam desde os pontos de trilhas do
bandeirantismo e da expansão do gado, com seus embriões de
vilas e comunidades rurais localizadas no fundo dos vales dos rios,
pelos lagos de barragem das usinas. Os lagos inundam as áreas
justamente desses antigos assentamentos, expulsam as comunidades
indígenas e camponesas de seus lugares históricos e forç am - nas a
ter de reinventar seus modos de vida em ambientes totalmente
distintos aos seus, multiplicando a população dos camponeses sem -
terra, indígenas, barrageiros e desempregados do campo. Nas áreas
urbanas, os desalojados são os trabalhadores despedidos de suas
ocupações e empregos pela chamada flexibilização do trabalho,
dividindo a população trabalhadora urbana em população do trabalho
formal e informal quase simetricamente, num volume de
trabalhadores informais até então desconhecido na realidade social
brasileira (KRAYCHETE, 2000) .
Essa combina çã o de efeitos no campo e na cidade
desterritorializa e torna flutuante grande massa de
populaçã o, que no campo vai alimentar a press ã o dos sem -
terra por novos assentamentos e na cidade a press ã o por
empregos urbanos para onde migra em levas sucessivas .
Uma popula çã o flutuante para a qual reinventar os modos
de vida torna - se urna imperiosa necessidade .
Há, assim, um movimento de ( des ) regulação em marcha,
e que a polí tica de privatização das empresas estatais dos anos
80- 90 transforma na instituição da gestão privada do territ ório.
Responsável pelas empresas atuantes nos ramos estrat égicos da
infra - estrutura e de bens intermediários, chaves no comando da
economia, a exemplo das empresas estatais organizadoras e
gestoras do pólos mí nero - industriais implantados no correr dos
anos 80- 90, a privatização dessas empresas privatiza a gestão
das suas respectivas áreas. Quando somados seus espaç os aos da
cultura da soja, centrados no poder das grandes propriedades, a

23
RUY MOREIRA

escala da privatização da gest ão do espaç o se torna um fato de


abrangência nacional. O poder dessas empresas fatia o controle
do territ ório, desvincula sua administração do Estado, define
por sua ló gica de mercado a ló gica da regulação do espaç o, e,
por essa via, dissocia a formação espacial brasileira do projeto
nacional que até determinara o seu conteúdo.

A ARTICULAÇÃO DAS SOCIABILIDADES E AS TENDÊNCIAS


DE UMA FORMAÇÃO ESPACIAL COMPLEXA

A privatização da gest ão do território desmonta a forma


hist órica de regulação do espaç o até então associada à açã o
pública do Estado e institui como nova forma uma combinação
privado - pública e setorial - global de gest ão, em que a face
privada e setorial se expressa na intervenção simbió tica das
empresas e das Agências de Regulação e a face pública e global
na intervenção paralela do Estado e dessas mesmas Agências.
As Agências Reguladoras sã o o dado novo do esquema
de gest ão da formação espacial brasileira. Criadas uma para
cada setor chave da economia ( as primeiras das quais foram a
ANP, a ANATEL, a ANEELe a ANTT, reguladoras, respectivamente,
do setor do petr óleo, das telecomunicaçõ es, da energia
elé trica e dos transportes terrestres, os setores estrat é gicos
da regulação do espaç o), fazem elas um arremedo de gest ão
público - privado com o Estado .
Assim, uma vez que o planejamento global com que o Estado
intervinha desde os anos 40 - 50 é substituído pela ação fragmentada
por setores, a ação passando a ser levada por esta combinação de
público -privado com conveniente aparência de sociedade civil, o
Estado recua para a função de gest ão e levantamento dos recursos
financeiros, em parceria com o capital privado (estratégia das PPPs
- Parcerias Público- Privadas), deixando para as Agências a função
da execução e fiscalização das políticas territoriais, num mix de

24
p

.
BOLETIM PÀULISTÁ DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, n° 83, p 7- 31, 2005

representações ao qual cabe por hipótese a tarefa de pensar e


gerir o todo da nova formação espacial assim criada .
Todo um momento se abre nessa conjuminação de nova
regra de regulação e flutuação em escala crescente de uma
população desalojada dos assentamentos de onde tirava uma
estabilidade relativa de modo de vida. De um lado, um
mecanismo novo de regulação que só assegura estabilidade para
o capital em sua busca de novos nichos de lucro. De outro, um
quadro de institucionalidade do qual parte em restrição crescente
.
da sociedade compartilha S ão os dois modos como o novo
formato da formação espacial brasileira chega aos seus diferentes
segmentos de população. Como num momento novo, essa
( des) regulação entra na vida do capital tal qual um bicho voraz
que sacode suas teias, oferecendo - lhe o espaç o - tempo de
reorganização institucional de suas estruturas. Assim, descarta as
componentes que pesam nos seus custos, realinha os vetores de
sua polí tica e traç a o momento novo de sua cartografia. Mas
como num processo de brecha, todavia, solta ela as amarras que
prendiam a criatividade do trabalho, liberando as energias da
gestão popular para a emergência de formas espont âneas de
auto - regulação, dando asas ao desenvolvimento de formas
coletivas e individuais de organização da produção e de vida
antes amortecidas ou presas no âmbito da regulação antiga, de
capacidade de intervenção insuspeitadas .
Tudo indica tratar - se de uma nova fase de contraponto,
cujos personagens são melhor exemplificados, de um lado, com
os complexos agro -industriais ( ARAÚJO, WEDEKIN e PINAZZA, s /
d; PINAZZA e ARAÚJO, 1993; LOPES, 1996; e BELIK, 2001), que
são a nova face dos monopólios, e, de outro lado, com as formas
urbanas de economia popular ( REIJNTJES, HAVERKORT e WATERS -
BAYER ( orgs), 1999; KREYCHETE, LARA e COSTA ( orgs. ), 2000;
GAIGER, 2004; e PACHECO, 2004), a face das experiências
.
comunit árias que reemergem Contraponto que encaminha a
formação espacial brasileira rumo ao formato de um complexo

25
RUY MOREIRA

de sociabilidades, em que, de modo claramente explí cito,


coexistem a sociabilidade capitalista e as formas de sociabilidade
não- capitalista, num quadro indicativo da entrada da formação
espacial brasileira num momento de perfil societ ário ainda incerto,
mas que sugere a possibilidade de caminhos e sujeitos novos de sua
organização (MOREIRA, 2.005 ). Sã o novos o paradigma do trabalho
e da polí tica, novos em face da regulação do espaç o.
O complexo agro- industrial é sem dúvida a express ão mais
evidente do novo rumo da organização da formação espacial
brasileira pelo lado das classes hegem ónicas. É uma economia
indicativa da organização da sociedade e do espaç o segundo
padrões de regulação marcados pela ausência da divisão territorial
do trabalho, de um lado, e do Estado, de outro lado, ilustrando
o desaparecimento justamente das estruturas reguladoras das
ações e dos ordenamentos do recente passado. E, assim, a forma
que melhor encarna os efeitos da nova base material trazida à
organização da produção e do trabalho no modo de produçã o
capitalista pela era técnica da terceira revolução industrial, cujo
epicentro s ão a microeletrônica e a engenharia genética, e seu
acontecimento num momento de hegemonia do capital de
car á ter eminentemente rentista, tal como previsto por Bukarin
em sua teoria da economia mundial capitalista nos começ os do
século XX ( BUKARIN, s / d). Para além da fusão da agricultura e da
indústria, no complexo agro - industrial fundem - se, numa única
estrutura de produção e trabalho, os setores da agricultura, das
indústrias, dos serviç os e da pesquisa - tecnologia, eliminando as
separações setoriais ( em setores prim ário, secund ário, terci ário
e quatern ário ) e espaciais ( em cidade e campo; e cidade e
região), e introduzindo um novo modo de organização espacial
das sociedades, novo porque sem as separações que segmentavam
territorialmente as formações espaciais capitalistas. Ent ã o, as
segmentações territoriais forrnarn - se, agora, no plano da relaçã o
entre os corpos globais das empresas, nã o mais entre os setores
de especialização da economia, todos os setores juntando - se,

26
.
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, S ÃO PAULO, n° 83, p 7 - 31, 2005

fundidos, numa só empresa e numa mesma estrutura em rede de


espaç o. 0 equivalente na "ponta urbana ” do complexo agro -
industrial é o complexo empresarial que junta a produtora, a
revendedora e a financiadora como um só domí nio de empresa,
socializando o modelo de realização do valor do ramo das
montadoras de automóveis para todos os ramos de indú stria, e
levando esta a se estruturar nesse molde em que produção, venda
e financiamento se ligam numa só unidade corporativa,
eliminando as fronteiras e demarcações que separavam esses
elos numa geografia segmentada de gest ão e do trabalho, e
entregando a gestão do negócio inteiramente ao capital rentista,
representado na agência de financiamento do grupo. Daí dizer -
se que o espa ç o tornou - se uma rede de redes. Um nome
apropriado para o espaç o dos complexos.
Assim também, a economia em comum é a expressão mais
evidente do lado popular. Daí a liberação, tanto no campo quanto
na cidade, das formas de sociabilidade at é ent ão ocultadas nos
velhos nichos de assentamento. No campo, elas aparecem na
evidenciação dos conhecimentos populares há séculos centrados
na rela ção de biodiversidade, e, nas cidades, sob o termo
genérico de trabalho informal. E, daí, a multiplicação, na cidade
e no campo, das formas de economia popular, ora designadas de
economia dos setores populares e ora de economia solidária
( KREYCHETE, 2000; E CORAGGIO, 2000 ), que despontam da
reestruturaçã o capitalista, e cuja natureza é o antigo modo de
produção mercantil simples ( SINGER, 2000), supostamente extinto
na hist ória. São formas de produção e trabalho que tomam por
bra ç o de apoio, nessa reemerg ê ncia e caminhada para
consolidação, movimentos sociais organizados como o MSI
( FERNANDES, 2000) e a CUT ( NETO e GIANNOTI, 1993 ), estes dois
particularmente, para estabelecer seu confronto com a sociedade
modelada nos complexos (SOUZA, CUNHA e DAKUZAKU, 2003).

27
RUY MOREIRA

CONCLUSÃO

Ao fazer desaparecer as divisõ es que distinguiam e


separavam cidade e campo, regiã o e regiã o, e cidade e regiã o,
e justificavam a necessidade da regulação que as unificasse por
baixo do Estado, ou, dizendo de outro modo, ao dissolver a
fronteira das relações cidade e campo, região - região e cidade -
região, superando a divisão territorial do trabalho criada pela
indústria nos anos 50 - 60 para ser o padr ão de organização espacial
da formação capitalista, naquilo que a nova base material do
capitalismo lhe traz de apoio, a regulação privada do espaç o
abre para virem à tona sujeitos novos e formas novas dos antigos
sujeitos da hist ória, e essas emergências trazem um modo novo
de contraponto e embaralham a formação espacial brasileira.

BIBLIOGRAFIA

ARAÚ JO, Ney Bittencourt, WEDEKIN, Ivan e PINAZZA, Luiz


Antonio. s / d . Complexo Agroindustrial . O " agribusiness ”
brasileiro . S ão Paulo / Rio de Janeiro: Suma Económica
BELIK, Walter. 2001. Muito Al ém da Porteira. Mudanç as nas
formas de coordenação da cadeia agroalimentar no Brasil .
Campinas: UNICAMP / IE
BRUNO, Ernani Silva. 1961. Hist ória do Brasil Geral e Regional .
Amaz ô nia - volume I . São Paulo: Editora Cultrix
BIJKARIN, N. s / d [1913 ] . O Imperialismo e a Economia Mundial .
Aná lise económica . Rio de Janeiro: Editora Melso
CARNEIRO, Edson. 1966. O Quilombo dos Palmares. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira
CORAGGIO, José Luí s. 2000. Da economia dos setores populares
à economia do trabalho. In KRAYCHETE, Gabriel, IARA, Francisco
.
e COSTA, Beatriz ( orgs.) Economia dos Setores Populares : entre
a realidade e a utopia . Rio de Janeiro: Editora Vozes.

28
.
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, S ÃO PAULO, n° 83, p 7- 31, 2005

CUNHA, Euclides. 1995 [1901]. Os Sert ões. Campanha de Canudos .


Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves
DERENGOSKI, Paulo Ramos. 2000. Guerra no Contestado .
Florianópolis: Editora Insular
Dl PAOLO, Pasquale. 1985. Cabanagem . A revolução popular na
Amazônia. Belém: Conselho Estadual da Cultura do Par á
FERNANDES, Bernardo Manç ano. 2000. A formação do MST no
Brasil . Rio de Janeiro: Editora Vozes
GAIGER, Luiz Inácio. 2004. Sentidos e Experi ências da Economia
Solidária no Brasil . Porto Alegre: Editora da UFRGS/ Rede Unitrabalho
GALLO, Ivone Cecília D’Ávila. 1999. O Contestado. O sonho do
mil é nio igualit ário . Campinas: Editora da UNICAMP
GUSMÃO, Rivaldo Pinto (Coord). 1990. Diagnóstico Brasil : a ocupação
do territ ório e o meio ambiente . Rio de Janeiro: IBGE
HOLANDA, Sérgio Buarque. 1976. Monções . São Paulo: Editora
Alfa - Ômega.
.1986. O Extremo - Oeste . São Paulo:
Editora Brasiliense
KRAYCHETE, Gabriel. 2000. Economia dos setores populares: entre
a realidade e a utopia. In KRAYCHETE, Gabriel, LARA, Francisco
e COSTA, Beatriz ( orgs.) . Economia dos Setores Populares : entre
a realidade e a utopia. Rio de Janeiro: Editora Vozes.
KRAYCHETE, Gabriel, LARA, Francisco e COSTA, Beatriz (orgs.).
2000. Economia dos Setores Populares : entre a realidade e a
utopia . Rio de Janeiro: Editora Vozes
LOPES, Mauro de Rezende. 1966. Agricultura Pol í tica. Hist ória
.
dos grupos de interesse na agricultura Brasília: EMBRAPA / SPI
LUGON, C. 1968. A República Comunista Crist ã dos Guaranis .
Rio de Janeiro: Paz e Terra
MONIZ, Edmundo. 1978. A Guerra Social de Canudos . Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira
MONTEIRO, John Manuel. 1995 . Negro da Terra. í ndios e
bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia
das Letras

29
RUY MOREIRA

MOOG, Vianna. 1966. Bandeirantes e Pioneiros . Rio de Janeiro:


Editora Civilização Brasileira
MOREIRA, Ruy. 2005. Sociabilidade e Espaç o . As formas de
organização geogr áfica das sociedades na era da terceira revolução
industrial - um estudo de tendências . São Paulo: X EGAL
. 2004. A nova divisão territorial do trabalho e as
tendências de configuração do espaç o brasileiro. In LIMONAD,
Ester ( org.), Brasil Século XXI , por uma nova regionalização?
Agentes , Processos e escalas . Niter ói: PPGEO - UFF / NERET / Max
Limonad
. 2003 a. Os quatro modelos de espaço- tempo e a
reestruturação espacial brasileira. In MOREIRA, Ruy ( org. ) A
Reestruturação Industrial e Espacial do Estado do Rio de Janeiro .
Niter ói: PPPEG - UFF / NERET /GECEL
. 2003b. Modelo Industrial e meio ambiente no
espaç o brasileiro. In GEOgraphia , ano V, número 9. Niterói:
PPGEO - UFF
NETO, Sebastião L. e GIANNOTI, Vito ( orgs.). 1993. Para Onde
Vai a CUT? S ão Paulo: Scritta Editorial
OLIVEIRA, Francisco. 1984. Mudanç a na divisão inter -regional do
trabalho no Brasil. In A Economia da Dependência Perfeita. 4a
edição (1a edição: 1977) Rio de Janeiro: Editora Graal
. 1987. Elegia para uma Re( li )gi ão. Sudene ,
Nordeste, Planejamento e Conflitos de Classes . 5 a edição (1a
edição: 1977) Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra
. 1988. A Economia Brasileira: Cr í tica à razão
dualista . 6 a edição (1 a edição: 1972 ). Rio de Janeiro: Editora
Vozes
PACHECO, Tânia. 2004. Sustentabilidade , Meio Ambiente e
Democracia no III FSM : visões e concepções . Rio de Janeiro:
FASE / BSD / FBOMS
PINAZZA, Luiz Antonio e ARAÚ JO, Ney Bittencourt . 1993.
Agricultura na Virada do Século XX . Visão de agribusiness . São
Paulo: Editora Globo / Abag

30
'

BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, S ÃO PAULO, n° 83, p. 7- 31, 2005

PEREGALLI, Enrique. 1997. Como o Brasil Ficou Assim? São Paulo:


Global Editora
PUNTONI, Pedro. 2002. A Guerra dos Bárbaros . Povos ind í genas
e a colonização do sert ão do Nordeste do Brasil - 1650- 1720.
São Paulo: Editora Hucitec
QUINTILIANO, Aylton. s / d. A Guerra dos Tamoios . Rio de Janeiro:
Reper
REIJNTJES, Coen, HAVERKORT, Bertus e WATERS - BAYER, Ann. 1999.
Agricultura para o Futuro . Uma introdução à agricultura
sustent ável e baixo uso de insumos externos . Rio de Janeiro /
Leusden- Holanda: AS - PTA / ILEIA
REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos. 1996. Liberdade
por um Fio . Hist ó ria dos quilombos no Brasil . Sã o Paulo:
Companhia das Letras
ROCQUEA, Carlos. 1984. Cabanagem. Epopé ia de um povo .
Belém: Imprensa Oficial
SINGER, Paul. 2000. Economia dos setores populares: propostas
e desafios. In KRAYCHETE, Gabriel, LARA, Francisco e COSTA,
Beatriz ( orgs.). ( org), Economia dos Setores Populares : entre
a realidade e a utopia. Rio de Janeiro: Editora Vozes.
SOUZA, Andr é Ricardo, CUNHA, Gabriela Cavalcanti e DAKUZAKU,
Regina Yoneko. 2003. Uma Outra Economia é Poss í vel . Paul Singer
e a economia solidária . São Paulo: Editora Contexto
TAVARES, Maria da Conceiçã o. 1972 . Da Substitui çã o de
Importações ao capitalismo Financeiro. Ensaios sobre a economia
brasileira . Rio de Janeiro: Zahar Editores
VALVERDE, Orlando e DIAS, Catharina Vergulino. 1967. A Rodovia
Bel ém- Bras í lia - estudo de geografia regional . Rio de Janeiro:
IBGE
.
( coord). 1979 A Organização do Espaço na
Faixa da Transamazônica . Rio de Janeiro: IBGE.

31

Você também pode gostar