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TRÊS (RE)LEITURAS DA MÁQUINA DO MUNDO

Fernando Santos

— camões ao bravo gama todo-audácia


a máquina do mundo fez abrir —
não desdenhou o nauta dessa graça

e seguiu deleitoso a descobrir


o que não pode ver a vã ciência
dos ínfimos mortais: por um zefir

pôs-se a descortinar na transparência


o ptolomaico engenho de onze esferas
que na terra tem centro e pertinência

— quem rodeia este centro e o circunsfera


é deus mas o que é deus ninguém o entende:
a fé inspira o bardo e ele assevera

que a tanto a mente do homem não se estende:


enquanto ao gama essa lição ensina
da fé que ao arco tênsil curva e tende

gratificado o capitão fascina-se

Haroldo de Campos, A máquina do mundo repensada, 2000

A treva mais estrita já pousara


sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,


enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade, A máquina do mundo, 1951

Localizado no final de Os Lusíadas, especificamente entre as estrofes 75 e 142 do


canto X, o episódio da máquina do mundo trata da revelação da “máquina do mundo” por
Tétis a Vasco da Gama. O sistema da “máquina do mundo”, inspirado no modelo ptolomaico,
é poetizado por Camões e veio a inspirar uma série de poetas, dentre eles, dois célebres em
suas reescrituras: Carlos Drummond de Andrade e Haroldo de Campos.
Nas estrofes 76 e 80, podemos ler dois momentos decisivos deste episódio: na
primeira, o momento em que Tétis convida Vasco da Gama a acompanhá-la na subida de um
monte, onde ocorrerá a revelação da máquina do mundo; na segunda, a revelação
propriamente dita, versificada magistralmente.
Matos, pedregulhos, cosmos

Faz-te mercê, barão, a Sapiência


Suprema de cos olhos corporais
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu com os mais.
Assim lhe diz, e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.
(canto x, 76)

O aspecto estruturante da estrofe é o recorrente em toda a epopeia: versos


decassílabos. O primeiro verso “Faz-te mercê, barão, a Sapiência” rima com o terceiro “Veres
o que não pode a vã ciência” e o quinto “Segue-me firme e forte, com prudência”, através do
esquema A/B/A/B/A/B/C/C. O segundo “Suprema de cos olhos corporais” rima com o quarto
“Dos errados e míseros mortais” e o sexto “Por este monte espesso, tu com os mais”. O
sétimo e o oitavo rimam entre si “Assim lhe diz, e o guia por um mato” “Árduo, difícil, duro a
humano trato”. Trata-se do Dolce stil nuovo, da oitava rima, inspiração que Camões recupera
dos poetas florentinos, principalmente de Dante Aligheri.
Nesta estrofe, como observa Hansen (2005), “a experiência de Vasco tem a forma de
visão física” e “o mato alegoriza a vida sensível” (HANSEN, 2005, p. 184), essas
características revelam uma corporeidade da vida sensível que “vai ficando para trás com o
esforço firme e forte da escalada do alto do monte” (Ibidem, p. 184). É significativo notar
como esta estrofe se situa no plano geral de Os Lusíadas, a transitoriedade do sensível ao
divino, o entrelaçamento da mitologia greco-romana em questões históricas, são traços
marcantes da epopeia camoniana.
Colocando os poemas de Drummond e Haroldo ao lado do de Camões, podemos notar
a materialidade sensível aqui presente na estrofe 76 e suas reverberações na leitura de ambos
os poetas; seja na potente descrição de uma estrada de Minas “pedregosa” ou numa
cosmopoética das palavras, o mundo sensível reaparece por outras vias tão criativas quanto as
de Os Lusíadas.

Revelação e périplos distintos

Vês aqui a grande máquina do mundo,


Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
(canto x, 80)

Novamente, versos decassílabos. O primeiro “Vês aqui a grande máquina do mundo”


com o terceiro “Assim foi do saber, alto e profundo” e o quinto “Quem cerca em derredor este
rotundo”. O segundo “Etérea e elemental, que fabricada” com o quarto “Que é sem princípio e
meta limitada” e o sexto “Globo e sua superfície tão limada”. E o sétimo e oitavo entre si: “É
Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende” e “Que a tanto o engenho humano não se
estende”.
Segundo Hansen (2005) “a máquina do mundo é o universo fabricado artificiosamente
pelo engenho de Deus” e também “uma síntese do mundo poético de Camões” (Ibidem, p.
185). De fato, o episódio da máquina do mundo sintetiza a epopeia camoniana. Nas estrofes
seguintes, os ditos e feitos de Portugal são revistos pelo olhar de Vasco da Gama através da
descrição da deusa, pois trata-se “de legitimar a política do reino com a lei eterna da
Providência divina” (Ibidem, p. 188). Ademais, na estrofe é definido de que maneira a
máquina do mundo é composta: etérea e elemental, a terra no centro do universo e Deus que
cerca tudo. Essas propriedades, que serão apresentadas através da descrição majestosa do
poeta, revelam a forte presença de modelos arcaicos – o ptolomaico – de interpretação da
natureza, bem como um pensamento platônico incontornável (Ibidem, p. 185-186).
As (re)leituras de Drummond e Haroldo revelam um contato diferente com a máquina
do mundo, mas que não deixam de sinalizar a influência de Camões. No poema
drummondiano, a abertura da máquina do mundo é rejeitada pelo poeta: “baixei os olhos,
incurioso, lasso / desdenhando colher a coisa oferta / que se abria gratuita a meu engenho”, e
continua sua caminhada pela estrada pedregosa de Minas. Todavia, a grandiloquência e o
enigma de tal sistema são evidenciados em outros versos do poema, apontando uma conexão
com a visão de Camões. Na releitura de Haroldo, o contato com a máquina do mundo é
entrelaçado com outras influências: a da Divina Comédia de Dante, do poema de Drummond
e dos livros de física moderna. O poeta constrói seu poema-jornada em três partes. A primeira,
que se inicia fazendo clara alusão ao poema dantesco: “quisera como dante em via estreita /
extraviar-me no meio da floresta / entre a gaia pantera e a loba à espreita”, traça um périplo
entre múltiplos contatos com o sistema da máquina do mundo, e que se denomina “ciclo
ptolomaico”. Na segunda parte, entramos no universo da física moderna, da cosmologia, do
bing bang, onde até Mallarmé e seu lance de dados são invocados. Por fim, a terceira parte
entrecruza as outras duas, mostrando a contumácia do enigma: “no fim do fim o que há? o que
futura? / no ante-início do início e o ilumina?”.

Por que ler Camões?

A persistência da poesia de Camões é notada no decorrer dos séculos. Sua obra-prima


Os Lusíadas, de 1572, foi e é motivo de debruçamentos impetuosos até os dias atuais. Persiste
como marco da fundação de Portugal, como emblema da epopeia moderna, como meditação
sobre o mundo. Propicia ao leitor uma visão e ensinamento da engenhosidade de sua
construção, na análise perspicaz de Hansen (2005),

O ato da invenção poética de Camões fornece ao destinatário e ao leitor os preceitos


evidenciadores da construção do artifício, por isso lhes fornece também os meios de
dissolver a ilusão do efeito que congela a experiência poética na forma rígida de um
fantasma. (HANSEN, 2005, p. 162)

É possível elencar uma infinidade de motivos para ser ler Camões. Para encerrar,
talvez possamos recorrer a um dos motivos que Ítalo Calvino apontou para se ler os clássicos:
“Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança
dos antigos talismãs” (CALVINO, 2007, p. 13). Posto isto, é possível dizer que as obras de
Camões seriam como antigos talismãs que persistem entre os milênios? Julgo que sim.
Referências bibliográficas

ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1999.

CAMPOS, Haroldo de. A máquina do mundo repensada. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial,
2004.

HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (Org.). Poetas que
pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 157-197.

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