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Os Lusíadas (1572)
DIVISÃO DA OBRA
NARRAÇÃO
ESTRUTURA NARRATIVA
ECLETISMO RELIGIOSO
Episódios Principais
Diversos são os episódios célebres de Os Lusíadas que merecem um olhar mais
atento. Um deles é o da ilha dos Amores, (Canto IX, estrofes 68 a 95) em que a
"Máquina do Mundo", com suas inúmeras profecias, é apresentada aos portugueses.
Nessa passagem do final do poema o plano mítico – dos deuses – e o histórico –
dos homens – encontram-se: os portugueses são elevados simbolicamente à
condição de deuses, pois só aos últimos é permitido contemplar a “Máquina do
Mundo”. Foi o episódio da ilha dos Amores que inspirou o poeta brasileiro Carlos
Drummond de Andrade a compor seu poema "A Máquina do Mundo".
Outro é o do Gigante Adamastor, (Canto V, estrofes 37 a 60), representação
figurada do Cabo da Boa Esperança, que simboliza os perigos e tormentas
enfrentados pelos navegadores lusitanos no caminho da Índia. Adamastor é o
próprio Cabo, que foi transformado em rocha pelo deus Peleu, como vingança por
ter seduzido sua esposa, a ninfa Tétis. Esse episódio foi recriado por Fernando
Pessoa (1888-1935) no poema "O Mostrengo" do livro Mensagem (1934):
O MOSTRENGO
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
O Amor, somente ele, foi quem causou a morte de Inês, como se ela fosse uma
inimiga. Dizem que o Amor feroz, cruel, não se satisfaz com as lágrimas, com a
tristeza, mas exige, como um deus severo e despótico, banhar seus altares (“aras”)
em sangue humano: requer sacrifícios humanos.
A palavra "pérfido", na obra, geralmente se refere aos Mouros inimigos. Nesse
verso, parece indicar que Inês foi morta com a mesma crueldade que se usava contra
eles.
… decide matar Inês, para que o filho seja libertado do seu amor. O pai acredita
que só o sangue da morte apagará o fogo do amor. Que fúria foi essa que fez com
que a espada cortante que afrontara o poder dos Mouros fosse levantada contra uma
frágil e indefesa mulher?
“Se já vimos que até os animais selvagens, cujos instintos são cruéis, e as aves de
rapina têm piedade com as crianças, como demostraram as histórias da mãe de Nino
e a dos fundadores de Roma…”
Semíramis, rainha da Assíria e mãe de Nino, a abandonara num monte. Nino foi
alimentada por aves de rapina. Rômulo e Remo, fundadores de Roma, foram
abandonados quando infantes e amamentados por uma loba.
Sendo assim, ele, o rei, que tinha o rosto e o coração humanos (se é que é
humano matar uma mulher só porque esta ama um homem que a conquistou),
poderia ao menos ter respeito e consideração às crianças, ainda que não se
importasse com a triste morte da mãe. Inês suplica, então, que o rei se compadeça
dela e das crianças, já que não queria perdoá-la ou absolvê-la de uma culpa, um
crime, que não tinha cometido.
Que ele a colocasse entre as feras, onde poderia encontrar a piedade que não
achara entre os homens. Ali, por amor daquele por quem morria ou sofria, criaria os
filhos, que era recordações do pai e seriam consolação da mãe.
Assim como Pirro se prepara com a espada (“ferro”) para matar Policena, por
ordem do fantasma de Aquiles, e ela - mansa e serenamente -, movendo os olhos
para a mãe, enlouquecida de dor, oferece-se ao sacrifício…
Aquiles, herói da guerra de Tróia, era invulnerável por ter sido submergido, logo
ao nascer, na água da lagoa Estígia (Lagoa da Morte). Personagem da Ilíada de
Homero, morreu durante a guerra de Tróia, quando foi atingido por uma seta no
calcanhar, o único ponto vulnerável do seu corpo. Pirro, filho de Aquiles, teria sido
aconselhado pelo fantasma (“sombra”) do pai a matar Policena, noiva do herói
morto. Matou-a quando esta se encontrava sobre o túmulo de Aquiles.
Naquele dia, o sol deveria ter-se escondido, como fizera quando Tiestes comeu
os próprios filhos em um banquete servido por Atreu, para não ver o terrível crime.
A última palavra de Inês - o nome de Pedro, o príncipe - ecoou longa e
repetidamente através da região.
Camões iguala a crueldade da morte de Inês à da história de Atreu e Tiestes.
Tiestes era filho de Pélops e irmão de Atreu. Seduziu a esposa do irmão. Atreu deu a
comer a Tiestes os filhos que nasceram daquela união.
Como uma flor colhida precocemente pelas mãos travessas (“lascivas”) de uma
menina para colocá-la numa grinalda (“capela”), assim está Inês, sem perfume e sem
cor. Morta, pálida, com as faces (“do rosto as rosas”) secas, murchas, sem rubor. O
padrão de beleza feminino era uma combinação de branco na testa, colo, etc.
(“branca e viva cor” ) e vermelho (“viva cor”) nas “rosas” do rosto.
Uma mãe fala ao filho, lamentando-se de que ele, que iria ampará-la e cuidar dela
na velhice, a está abandonando para servir de alimento aos peixes. O lamento das
mulheres nessa e na estrofe seguinte é plenamente justificado: a frota de Vasco da
Gama deixou o cais do Restelo com 170 homens, dos quais apenas 55 retornariam
vivos a Portugal.
Já que é assim, não estão ali perto os Mouros (“o Ismaelita”), com quem sempre
terá guerras de sobra (muitos combates)? Não seguem eles a lei maldita dos árabes
(refere-se ao Corão – lei islâmica, criada por Maomé, profeta de Alá), enquanto você
guerreia (“pelejas”) pela lei de Cristo? Se luta para enriquecer (“terras e riqueza mais
desejas”), os mouros tem muitas cidades e terra; eles são guerreiros valentes (“por
armas esforçado”), se o que deseja é ser glorificado, elogiado pelas vitórias na
guerra.
Ismaelita é a designação dada aos descendentes de Ismael, filho de Abraão e da
escrava Agar. Os ismaelitas viviam numa confederação de tribos no deserto da
Arábia e deram origem aos árabes.
Descuida do inimigo próximo para buscar outro distante, por quem o reino iria
se despovoar, se enfraquecer e se perder. Procura o perigo impreciso e
desconhecido, para que a fama o celebre e elogie chamando-o, em grande
quantidade (“larga cópia”), de senhor da Índia, Pérsia, Arábia e Etiópia.
O objeto a quem se dirige o Velho vai mudando no decorrer do discurso.
Primeiro é um sentimento descrito como “glória de mandar” etc; depois é a
“geração daquele insano”, isto é, o gênero humano; então é alguém que procura a
guerra na Índia (provavelmente Vasco da Gama e os navegantes) e, finalmente, o
título de “senhor da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia” que identifica o próprio rei
de Portugal.
O Velho amaldiçoa o homem que fez o primeiro barco (“pôs velas nas ondas”),
como merecedor do inferno (“dino da eterna pena do profundo”), se houver justiça
como a que ele acredita. Que nunca sejam feitos um alto conceito, nem música
(“cítara sonora”) ou poesia (“vivo engenho”) que eternize sua memória por este
feito (“Te dê por isso fama nem memória”), mas que, com o inventor do primeiro
barco, morram sua fama, sua reputação (“seu nome”) e sua glória.
Afirma que o fogo que o filho de Jápeto trouxe do céu e deu aos homens, esse
fogo o mundo acendeu em armas, em mortes, em desonras. Foi um grande erro
(“engano”) dar o fogo à humanidade. Teria sido melhor a nós e causado menos
dano (prejuízo) ao mundo se a estátua feita por Prometeu não tivesse o fogo do
desejo que a movera.
O filho de Jápeto era Prometeu, o titã que roubou o fogo aos deuses e o deu aos
homens. Prometeu trouxe o fogo do Olimpo escondido em uma estátua humana.
Foi condenado a ficar preso num rochedo enquanto uma águia lhe comia as
entranhas.
Se não fosse esse fogo do desejo, o jovem miserável e digno de pena não teria
ousado guiar o carro do pai, nem o grande arquiteto e seu filho teriam se arriscado a
voar (“cometera o ar vazio”). Um deu nome ao mar e o outro deu fama ao rio.
Camões se refere a Faeton ou Faetonte, filho de Apolo, o deus Sol, que foi
imprudente e caiu com o carro do pai no rio Eridano e Dédalo, arquiteto do
labirinto, que, com cera e penas, construiu asas para si e para seu filho Ícaro que,
descuidado, voou rumo ao sol e acabou caindo no mar.
Nenhum empreendimento nobre ou perverso, por qualquer modo realizado
(“Por fogo, ferro, água, calma e frio”), o gênero humano (“humana geração”) não
tenta realizar (“deixa intentado”). É um destino miserável e uma estranha obrigação
(ou um estado, um modo de ser esquisito).
O ANTICLÍMAX
A fala do Velho destrói ponto por ponto e mina por dentro o fim orgânico dos Lusíadas, que é
cantar a façanha do Capitão, o nome de Aviz, a nobreza guerreira e a máquina mercantil lusitana
envolvida no projeto. (…)
A viagem e todo o desígnio que ela enfeixa aparecem como um desastre para a sociedade
portuguesa: o campo despovoado, a pobreza envergonhada ou mendiga, os homens válidos dispersos
ou mortos, e, por toda parte, adultérios e orfandades. “Ao cheiro desta canela / o reino se
despovoa”, já dissera Sá de Miranda.
A mudança radical de perspectiva (que dos olhos do Capitão passa para os do Velho do
Restelo) dá a medida da força espiritual de um Camões ideológico e contra-ideológico, contraditório e
vivo. (…)
No largar da aventura marítima e colonizadora o seu maior escritor orgânico se faria uma
consciência perplexa: “Mísera sorte! Estranha condição!”
MAR PORTUGUÊS
Fernando Pessoa
in Mensagem (1934)
Um homem do Renascimento
Pouco se sabe com segurança sobre a vida de Luís Vaz de Camões. É provável
que tenha nascido por volta de 1525, talvez em Lisboa. Deve ter tido uma educação
esmerada, apesar de pertencer à camada menos abastada da corte portuguesa.
Supõe-se que tenha estudado no Convento de Santa Cruz, no qual trabalhava Dom
Bento de Camões, seu tio. Lutando contra os mouros, na investida portuguesa em
Ceuta, em 1549, perde a vista direita, razão pela qual será sempre representado
futuramente com um tapa-olho. Preso durante o ano de 1552 por se envolver em
brigas, embarca para o Oriente no ano seguinte em serviço militar. Vivendo na
miséria em Goa e Moçambique durante 16 anos, chega a ter o seu Auto de
Filodemo representado na Índia e, graças ao auxílio financeiro de amigos, regressa a
Lisboa em 1569. Data desse período de dura peregrinação pelas colônias
ultramarinas portuguesas a imagem de Camões que os românticos haveriam de
perpetuar: a do poeta miserável, exilado e saudoso de sua terra, sofrendo
humilhações no cotidiano e escrevendo os mais sublimes versos como vingança. A
conhecida história de seu relacionamento com Dinamene, companheira chinesa do
poeta, reforça essa imagem. Navegando pelo rio Mecon, na Indochina, o casal
sofreria um naufrágio. Diz a lenda que Camões teria conseguido salvar a si e aos
manuscritos dos Lusíadas, enquanto a infeliz Dinamene morria afogada. Camões
dedicaria à amada morta vários de seus poemas líricos, procurando elevá-la às
mesmas alturas da Laura de Petrarca ou da Beatriz de Dante. Retornando a Portugal,
consegue publicar, em 1572, a sua obra-prima, Os Lusíadas, e passa a viver de uma
modesta pensão oferecida por Dom Sebastião, a quem dedicara seu poema épico.
Morre em 1580, mesmo ano em que Portugal perdia sua autonomia política, caindo
sob o domínio da temível Espanha. Em carta a Dom Francisco de Almeida, o poeta
sintetiza este momento: "...acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à
minha Pátria que não me contentei em morrer nela, mas com ela".