Você está na página 1de 4

Lê o seguinte poema, da Mensagem, e responde às questões.

O mostrengo

O mostrengo que está no fim do mar


Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
5 E disse, «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo,
«El-Rei D. João Segundo!»

10 «De quem são as velas onde me roço?


De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
15 Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse,
«El-Rei D. João Segundo!»

Três vezes do leme as mãos ergueu,


20 Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de temer três vezes,
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
25 E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral
Martins), Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 52-53.
.
1. Caracteriza a figura do «mostrengo», justificando com elementos do texto.

O «mostrengo» é caracterizado como um ser «imundo e grosso». Indiretamente, caracterizam-no as suas


ações: realiza movimentos circulares intimidatórios e sitiantes à volta da nau («À roda da nau voou três
vezes, / Voou três vezes a chiar», vv. 3-4), e profere palavras ameaçadoras: diz morar em locais
remotos, «cavernas» que ninguém conhece, de «tetos negros do fim do mundo» (v. 7), e escorre «os
medos do mar sem fundo» (v. 16), o que sugere que é um ser horrendo e ameaçador.

2. Atenta, agora, na figura do «homem do leme».

2.1. Demonstra que as suas reações ao discurso do «mostrengo» evoluem em sentido


crescente.
Às interpelações do «mostrengo», nas duas primeiras estrofes, o «homem do leme» começa por
responder assustado – «tremendo», «tremeu» –, intimidado pelo tom aterrador das suas palavras e
pelo ambiente sinistro que o circunda, reagindo apenas com uma frase que invoca a autoridade de
que foi investido: «El-Rei D. João Segundo!» Porém, à terceira vez, parece tomar consciência de que
não é apenas ele, «homem do leme», que ali está, assume-se como símbolo de um «Povo», como
um herói coletivo que tem, naquele momento, uma missão patriótica a cumprir, a defesa da
tripulação e da vontade de uma nação. O «homem do leme» responde, por fim, ao «mostrengo»,
desta feita em seis versos, mobilizando energias, com a convicção e força da determinação de um
herói. Há, ainda, uma clara gradação ascendente nas atitudes do «homem do leme» que nos
permite adivinhar uma evolução que contraria as do «mostrengo» que acaba neutralizado.

3. Explica a simbologia de ambas as figuras: o «mostrengo» e o «homem do leme».

O «mostrengo» simboliza os medos dos navegadores que enfrentam o desconhecido e os perigos do mar; o
«homem do leme» é a figura do herói mítico, símbolo de um Povo, passando de herói individual a
coletivo, com uma missão a cumprir.

4. Esclarece o valor simbólico do número três ao longo de todo o poema.

Começando pela forma, o poema é constituído por três estrofes de nove versos (o 9 é um múltiplo de 3).
Em termos de conteúdo, quer o «mostrengo» quer o «homem do leme» falam três vezes, o primeiro «voou
três vezes» e «rodou três vezes» à volta da nau, e o segundo «tremeu» três vezes. («Três vezes do leme as
mãos ergueu / Três vezes ao leme as reprendeu».) Não há, de facto, qualquer acaso na presença do
número três, sete vezes repetido ao longo do poema. Das várias explorações possíveis à simbologia do
número três, destacamos a do sinónimo de perfeição, da unidade divina, de totalidade a que nada mais
pode ser adicionado.

5. Indica dois recursos presentes no poema, explicitando o respetivo valor expressivo.

Destacam-se, como recursos expressivos, a anáfora, em toda a estrutura do poema, bem como nas falas
das personagens, convergindo para a ideia central de que o povo português é capaz de vencer os seus
medos, os seus monstros, com uma determinação de «homem do leme». A metáfora «que me ata ao
leme» (v. 26), por exemplo, a salientar a firmeza do homem do leme e, consequentemente, a contribuir
para a construção da imagem de um herói épico e coletivo.
Lê o seguinte poema da Mensagem, de Fernando Pessoa:
O desejado

Onde quer que, entre sombras e dizeres,


Jazas1, remoto2, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!

5 Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,


Mas já no auge da suprema prova,
A alma penitente do teu povo
À Eucaristia Nova.

Mestre da Paz, ergue teu gládio3 ungido4,


10 Excalibur5 do Fim, em jeito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Gral6!
Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral
Martins), Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 74.
.
Jazas: estejas morto, estejas sepultado.
2
Remoto: que sucedeu há muito tempo; que está muito distanciado, afastado, longínquo.
3
Gládio: antiga espada curta, robusta.
4
Ungido: que recebeu unção (aplicação dos óleos santos) para sagrar ou conferir uma graça.
5
Excalibur: espada lendária do rei Artur, com propriedades extraordinárias, que simboliza a legítima soberania da Grã-Bretanha.
6
Santo Gral: representa, ao mesmo tempo, Cristo morto pelos homens, o cálice da Última Ceia (a graça divina concedida por
Cristo aos seus discípulos) e o cálice da missa que contém o sangue real do Salvador. A demanda do Gral simboliza a aventura
espiritual e a plenitude interior, a única que pode abrir a porta de Jerusalém celestial onde resplandece o cálice divino.
Nota: a palavra é Graal, mas por questões de métrica poética o autor escreve Gral no poema.

1. O sujeito poético dirige-se, logo na primeira estrofe, a um interlocutor que não surge
identificado, mas que é possível reconhecê-lo a partir de algumas referências textuais.
1.1 Comprova a veracidade da afirmação, justificando o pedido feito pelo sujeito poético,
na primeira estrofe.
D. Sebastião, o «desejado» (título do poema), é o interlocutor do sujeito poético, pelas claras alusões ao
mito sebastianista: o rei desaparecido encontra-se num lugar desconhecido, «remoto», «entre sombras»,
mas nunca foi esquecido por um povo (o mito: «dizeres») que crê no seu regresso e, por isso, «sente -te
sonhado» pelo povo que anseia pelo seu regresso. Por isso, o sujeito poético pede-lhe para deixar de ser
um espectro («fundo de não-seres»), «o ser que houve», e que cumpra o seu «novo fado», enquanto ser
«que há».

2. Indica a situação do povo português que legitima o desejo de mudança manifestado pelo
eu.

O eu considera ser o momento para ocorrer uma mudança, perante o estado de profundo sofrimento e de
desolação do povo português («alma penitente do teu povo»).

3. Estabelece uma relação entre as apóstrofes presentes no poema e a metáfora final,


considerando os apelos do sujeito poético ao seu interlocutor.

As apóstrofes caracterizam D. Sebastião: é comparado a Galaaz em nobreza e carácter, distinguindo-se deste


por ter uma pátria concreta, Portugal («Galaaz com pátria»), e é apontado como «Mestre da Paz», como
cavaleiro da Paz, da fraternidade universal. Assim, o sujeito poético reforça os apelos dirigidos a D. Sebastião:
«erguer de novo» a alma dos portugueses, através de um ato de paz, para um novo Portugal, desta vez
espiritual («Eucaristia Nova»). O seu «gládio ungido», a «Excalibur do Fim», simboliza a paz infinita do último
Império, o Império do fim, ao iluminar o «mundo dividido», revelando o «Santo Gral», isto é, o mito
sebastianista traz a luz do conhecimento e da união a um mundo obscuro e dividido, traz consigo a Paz
universal.

4. Identifica no poema três aspetos da linguagem da Mensagem, documentando-os com um


exemplo significativo.

Aspetos da linguagem e do estilo – a inversão da ordem habitual das palavras nas frases: «Onde quer que,
entre sombras e dizeres, / Jazas, remoto» (vv. 1-2), «Que sua Luz ao mundo dividido / Revele o Santo Gral!»

(vv. 11-12); uso de adjetivos com características abrangentes: «remoto» (v. 2) e «ungido» (v. 9); utilização
de nomes conceituais: «alma» (v. 7), «Eucaristia» (v. 8), «Paz» (v. 9), «Fim» (v. 10),…; repetição do verbo
erguer: «ergue-te» (v. 3), «erguer» (v. 5) e «ergue» (v. 9);…

5. Procede à análise da composição poética quanto à estrutura estrófica, métrica e rimática.

O poema é composto por três quadras, com versos decassilábicos («On/de/ quer/ que, en/tre/ som/bras/
e/ di/ze/res»), à exceção do último verso de cada estrofe que é hexassilábico («Pa/ra/ teu/ no/vo/ fa/do»).
A rima é cruzada ao longo de todo o poema.

Você também pode gostar