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A V ida S ecreta
de D. S ebastiao
hifenização

proibir quebra na hifenização


Sónia Louro

ficha técnica

bio do autor

excerto no final

manifesto bang?


Índice

8 Agradecimentos
11 o livro do rei
17 Capítulo I — 1554 – O Ano do Nascimento
30 Capítulo II — 1555 – O Ano dos Primeiros Passos
32 Capítulo III — 1556 – O Ano da Armadura
34 Capítulo IV — 1557 – O Ano da Morte do Rei
52 Capítulo V — 1558 – O Ano do Aio
55 Capítulo VI — 1559 – O Ano da Inocência
56 Capítulo VII — 1560 – O Ano do Mestre
58 Capítulo VIII — 1561 – O Ano da Chacotada D’el-rei
60 Capítulo IX — 1562 – O Ano da Renúncia
64 Capítulo X — 1563 – O Ano das Damas
67 Capítulo XI — 1564 – O Ano da Iniciação
76 Capítulo XII — 1565 – O Ano da Caça e do Caçador
84 Capítulo XIII — 1566 – O Ano do Afastamento
97 Capítulo XIV — 1567 – O Ano das Modas
99 Capítulo XV — 1568 – O Ano da Coroação
109 Capítulo XVI — 1569 – O Ano da Peste
126 Capítulo XVII — 1570 – O Ano da Espada
138 Capítulo XVIII — 1571 – O Ano do Poeta ou
das Batalhas Perdidas da Minha Avó
153 Capítulo XIX — 1572 – O Ano da Armada Destroçada
169 Capítulo XX — 1573 – O Ano da Jornada ao Alentejo
e ao Algarve
179 Capítulo XXI — 1574 – O Ano das Culpas que Não
se Expiam
199 Capítulo XXII — 1575 – O Ano das Provas Perpétuas
206 Capítulo XXIII — 1576 – O Ano do Fim do Último Câmara


Índice
(continuação)

214 Capítulo XXIV — 1577 – O Ano do Cometa e


dos Preparativos para a Guerra
220 Capítulo XXV — 1578 – O Ano da Guerra
265 o livro do peregrino
267 Capítulo I — Alcácer-Quibir, o reencontro
275 Capítulo II — Arzila, o encoberto
281 Capítulo III — Atlântico, o regresso
286 Capítulo IV — Sagres, o desembarque
306 Capítulo V — Pérsia e Etiópia, anos de guerras e anos de paz
321 Capítulo VI — Gruta, o eremita
329 Capítulo VII — Veneza, os portugueses
373 Capítulo VIII — Florença, o traidor
382 Capítulo IX — Nápoles, o vice-rei
394 Capítulo X — França, a saudade
407 Capítulo XI — Marrocos, a volta a casa
423 Capítulo XII — Portugal, a tentativa
436 Capítulo XIII — Portugal, o rei
445 Em jeito de Epílogo
446 Nota final
449 bibliografia
453 Anexos
463 biografia


Ao Manuel e ao Pedro,
dois amigos com nomes de reis e alma nobre.


Agradecimentos

A elaboração de uma obra literária, ou qualquer outra, tem inevitavelmente


um ponto em que raia a obsessão. Esta não foi diferente. Por isso quero
agradecer à Carina Amorim e à Sónia Rodrigues que estiveram comigo
neste processo e ajudaram de alguma forma a tornar menos difuso o ca‑
minho trilhado para encontrar D. Sebastião, por todo o apoio dado para
que num dado momento ele pudesse sair definitivamente das brumas da
obcecação e tornar‑se naquilo que é hoje. Quero também dirigir um agra‑
decimento ao Pedro Mateus pelo seu valioso contributo, nomeadamente na
leitura atenta da obra e consequentes observações para a sua melhoria.


Uma é a espada
Dois os gumes são
Assim como as direcções:
uma de glória, uma de vida desgraçada!

Duas são as dinastias de nobreza


e as figuras de realeza
Uma vai desembainhar
E a sorte da outra traçar.

Ambas mouros matarão


Elevadas as almas na adição
Só uma fará a liquidação.

O primeiro escolhe a sorte


O segundo se quer saldar
Mas quando a espada carregar
O fado ficará até à morte.


10
O L ivro do R ei

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É um dedilhar melancólico, as notas arrumadas em acordes tristes,
fúnebres e por isso premonitórios que ainda ouço por vezes de noi‑
te. Não são os gritos dos meus soldados, que estes já se confundem
com os de outros homens de outras batalhas. Estávamos algures entre Ca‑
les e Tânger, no dia 7 de Julho de 1578. O vento era próspero, permitindo
que os navios seguissem muito chegados de velas desfraldadas. De longe
pareciam uma cidade flutuante... Os sobreviventes recuperados da Atlân‑
tida. Não, éramos apenas os perdidos, mas ainda não o sabíamos, pois as
trombetas, pífaros e tambores que tocavam de toda a parte toldavam‑nos os
pensamentos, assim como o ar quente e pesado. De proa apontada para a
costa da Berbéria, a cadência das ondas repetitiva ameaçava quebrar o bom
humor dos homens assaltados pela monotonia. Pensei em pedir ao meu
músico, Domingos Madeira, que cantasse para animar a tripulação e, se da
boca das crianças sai sempre a verdade, da dos poetas também, mas num e
noutro caso nunca reconhecemos a voz do profeta. Se não, atentai na moda
que o meu músico me cantou quando lho pedi:
– “Ayer era rey de España, hoy no lo soy de una villa; ayer villas y castillos,
hoy ninguno poseía: ayer tenía criados y gente que me servía, hoy no tengo ni una al-
mena que pueda decir que es mía. Desdichada fue la hora, desdichado fue aquel día
en que nací y heredé la tan grande señoría, pues lo había de perder todo junto y en
un día! Oh muerte!, por qué no vienes y llevas esta alma mía de aqueste cuerpo
mezquino, pues se te agradecería?”
E ainda dedilhado nos gemidos tristes de uma guitarra, que pior
agouro poderia eu querer? E acaso haveis reparado que era em Castelhano
que ele cantava?
Não haveria profeta capaz de me demover se nem mesmo a Deus
eu dera atenção com todos os sinais que Ele me enviara. “Ayer era rey de
España, hoy no lo soy de una villa”, cantava‑me Domingos Madeira, e até po-
deria ter sido: “Hoy soy rey de Portugal, y in un mes no lo serié de una villa”. E o
efeito em mim teria sido o mesmo: nenhum.


Música de uma lenda sobre D. Rodrigo, o último rei dos Godos, segundo o frade
Bernardo da Cruz, Chronica D’el‑Rei D. Sebastião, Vol. II, Cap. LXXV, p. 112, terá
sido esta canção que o músico do rei cantou quando solicitado para tal.

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O que chamaríeis a um homem que, apesar de todos os conselhos, todas
as vozes contra, todos os indícios desfavoráveis, permanece na sua ideia?
Teimoso? Voluntarioso? Mimado, por certo? Louco? Com certeza. E afinal
não morreu louca a minha bisavó ganhando para a posteridade esse cog‑
nome: Joana, a Louca? O meu primo D. Carlos também morrera insano. A
loucura estar‑me‑ia no sangue, pensareis. Estais correcto, mas não mais do
que no vosso, pois nunca tivésteis vós um sonho que quisésseis perseguir
para além de tudo? Por certo. Dir‑me‑eis que eu era rei, que deveria ter
pensado no meu reino primeiro. Tendes razão. Mas antes de ser rei, nasci
constituído pela mesma essência que compõe o vosso corpo, a mesma ma‑
téria frágil e quebradiça que ergue o nosso esqueleto e a idêntica substância
etérea que o faz caminhar: os sonhos.
Mas porquê fixar‑me nos meus familiares loucos, se os tenho bra‑
vos também: Carlos V de Espanha, Maximiliano I de Áustria, Filipe, o Atre‑
vido, João, Sem Medo, Carlos, o Temerário. E que maravilhosos cognomes
lhes deram! Os inteligentes: D. João II, o Príncipe Perfeito, e D. Manuel, o
Venturoso. E ainda os tenho santos: Humberto III, o Santo Saboiano e Luís
IX de França, São Luís. Que herança mais dignificante me corria nas veias e
fazia o meu sangue revolver‑se de puro orgulho. Quantos mais homens no
mundo, de ontem, de hoje ou de quando quiserdes, tiveram tanto somató‑
rio de glórias dentro de si? Só eu!... Pensando melhor, o meu primo Carlos
de Espanha também, mas esse era louco.
Os meus erros, infelizmente, serão mais notados do que os vossos,
e no entanto, disponho do mesmo conhecimento do futuro que vós, a mes‑
ma incerteza perante o mundo que vós. Nasci homem como vós. Enfim, eu
e vós somos iguais, mas ainda assim esperáveis mais de mim. Eu também!
Não julgueis que quero deste modo que me desculpeis. As culpas
que carrego, o peso que sinto nos ombros é grande, mas só meu. Culpas
que ninguém conhece, que vos contarei e ainda assim ireis duvidar. Não vos
censuro, a alma humana é mesmo assim.
Como escreveu Camões, o poeta, e por isso, como vimos também,
profeta, porque um e outro se confundem, já que na rima daqueles nascem
inesperadas verdades:
“E lá vos têm lugar, no fim da idade,
No Templo da suprema eternidade.”
Ele estava certo, obviamente que na altura pensei que seria por mo‑
tivos diferentes. Muitas culpas me atribuíram, mais me hão‑de dar ao longo
dos tempos, sempre... Mas foram elas que me deram um lugar eterno na
suprema eternidade. Nada mais do que culpas. Culpas na minha consciên‑
cia e culpas na memória eterna de um povo. É por elas que me conhecem.
São elas que me sustentam.

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Culpais‑me do domínio espanhol, não vos tiro a razão, mas pelo
menos atrasei‑o por mais de vinte anos. Achais pouco? Eu também. Mas
ainda assim dai‑me esse valor, por favor. Sem mim o domínio espanhol era
certo, comigo foi‑o também, mas eu dei‑vos esperança para além da minha
vida. Achais pouco de novo? Eu também. Queria ter‑vos dado o mundo,
mas é a esperança que sustenta um povo.
“Desdichada fue la hora, desdichado fue aquel dia en que nací”, cantava
Domingos. Então comecemos por aí, pelo dia em que tudo se começou a
perder, o dia em que a independência de um reino repousava intranquila
nos gritos de uma parturiente, o dia em que nasci.

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Capítulo I
1554 – O Ano do Nascimento

A meio da tarde do dia 19 de Janeiro de 1554, a minha mãe come‑


çou a sentir as primeiras dores e todo o Paço se abalou, apesar de
saber que ainda era trabalho para demorar.
– Virgem Maria, Mãe de Deus, Santificada sois vós entre as mu‑
lheres, Santificado o fruto do vosso ventre Jesus, Rogai por nós pecadores,
agora e na hora da nossa morte. Ámen. Virgem Maria, mãe de Jesus, mãe
de todas as mães e de todos os filhos, Vós que geraste sem mácula, que co‑
nheceis a dor imensa de conceber um filho e perdê‑lo, Vós que sois mãe, so‑
bre todas as outras, ajudai‑me! Ajudai‑me a manter esta criança que trago
dentro de mim! Permiti que este filho vingue! Permiti semelhante milagre
e prometo entregá‑lo a Vós, para o serviço e glória do Altíssimo!
No desespero maior da sua dor era este o pedido da minha mãe,
não só porque iria dar à luz em breve e temia pela vida do seu filho, mas
também porque, apesar de nada lhe ter sido dito, já se adivinhava viúva.
Desde o dia em que o meu pai a recebeu como mulher em Almeirim, ela
sabia que algo de aziago aconteceria a um deles. Os noivos não o chegaram
a ver, mas diz‑se que em Lisboa, desde o primeiro dia em que começaram
as festas dos desposórios até ao último, foi visto no céu, por cima da Sé, uma
imagem de fogo em forma de sepultura meio aberta. Em Almeirim, quan‑
do se recebeu a novidade, todos acharam aquele um mau sinal e, tendo em
conta a ocasião em que aparecia, os festejos de casamento do príncipe her‑
deiro, isso só poderia querer dizer, no entender de muitos, o breve tempo
que aquele enlace duraria, acabando em morte, por isso a sepultura como
a imagem mostrava. O meu pai não terá dado a menor importância ao avi‑
so, enlevado nos encantos do amor, e a minha mãe fingiu o mesmo, mas
agora que as dores a acometiam e que todos os medos se conjugavam, ela
já não se conseguia enganar. Era verdade que sempre tentara afastar esses
pensamentos, mas era‑lhe óbvio que algo acontecera ao príncipe, pois para
o manter afastado dela, só a morte, nada menos do que isso. Assim, aquela


Manoel de Menezes, Chronica do Muito e Alto, e Muito Esclarecido Príncipe D. Se‑
bastião Decimo Sexto Rey de Portugal, Parte I, Cap. VII, p. 27.

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era a primeira e última hipótese de dar um herdeiro à coroa Portuguesa e,
se algo acontecesse, todas as culpas recairiam sobre si, pois o príncipe, mes‑
mo doente, dera o seu melhor, depositando a semente real no seu ventre.
A minha mãe era jovem e estava petrificada, temia o trabalho de
parto, mas sobretudo o que viria depois. Não se esperava dela apenas que
a criança nascesse perfeita de saúde, mas acima de tudo exigia‑se que fos‑
se um varão. Portanto, aterrada pelos pensamentos de dar à luz um bebé
morto, ou uma menina, o que seria igualmente mau, e sentindo‑se como
uma estrangeira em Portugal, apesar de estar no Paço há mais de um ano
e ser a consorte do príncipe herdeiro, a minha mãe abriu o seu coração à
compaixão de uma outra mulher, Àquela a quem tinha sido permitido ge‑
rar o menino Deus. Uma mulher capaz de desempenhar semelhante tarefa
poderia com certeza cumprir uma menor: fazer com que esta criança fosse
um homem!
Se para as parturientes em geral o intervalo entre cólicas é bem‑vin‑
do, para a minha mãe era ainda mais doloroso, porque só uma dor física
forte faz esquecer um sofrimento fundo, uma promessa de perda. Não era
só a visão do ataúde por cima da Sé que atormentava a minha mãe. Se fosse
só isso, disse vezes sem conta a minha avó para justificar a partida da minha
mãe.
A minha mãe viveu os últimos meses de gravidez atormentada por
visões. Oh, já vos oiço dizer que ela também deveria ser demente, esta Joana
neta, tão insana quanto a sua avó Joana, justamente a Louca. Os mais in‑
dulgentes dirão que essas visões seriam fruto da ansiedade da aproximação
do termo da gravidez. Pois calem‑se, injustos e complacentes, que estais
todos enganados! A minha mãe não foi a única a tê‑las. Às vésperas de dar
à luz, a princesa era levada para a varanda de forma a distrair‑se e a fazer
algum exercício e, estando sentada na companhia de algumas damas, vi‑
ram sair pela varanda do rei, na direcção do forte, muitos homens vestidos
à mourisca, gritando e segurando tochas acesas. A princípio, as damas e a
princesa julgaram que aquele fora algum exercício que se mandara fazer de
propósito. Quando no Paço ninguém percebeu do que falavam, o temor
apoderou‑se delas. Poucos dias depois, na mesma varanda, elas voltaram a
ver a mesma multidão. E a minha mãe ainda tornou a ver estes mouros na
sua antecâmara. Ao perceber que eram fantasmas, pela forma como entra‑
vam e saíam do seu aposento, assustou‑se e caiu desmaiada no regaço de
uma das damas. A partir daí, a minha mãe passou o resto da gravidez sem‑
pre atormentada. Em certas noites sentia que lhe apagavam as luzes do seu
quarto sem lá estar ninguém que o pudesse ter feito. Mesmo quando dor‑
mia, não encontrava descanso, pois em sonho voltava a ver aquelas figuras
mouriscas, acabando por acordar em sobressalto de um sono que, pela sua

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condição, se queria tranquilo. No entanto, a ausência do meu pai em todas
essas noites era o que mais a magoava.
Talvez achais que tendes finalmente razão de acusardes de louca a
minha mãe; apesar de a multidão de mouros ter sido vista por mais pessoas,
as luzes que se apagavam e os sonhos repetitivos com essa gente eram só
dela. Então dizei‑me, por favor, terá todo o Paço enlouquecido? Toda a gen‑
te andava apavorada e confusa pois em muitas noites foram ouvidos sobre o
Palácio de Lisboa estrondos de guerra, ais e suspiros. Estariam a ser vítimas
de uma alucinação colectiva?
Percebeis agora todo o temor, toda a tensão que a minha mãe acu‑
mulava? A sua dor era igual à de tantas outras mulheres prestes a dar à luz,
mas o seu pânico inimaginável. Por vezes, chego a sentir uma certa pena
dela, mas passa‑me rapidamente, confesso‑vos.

À meia‑noite, já do dia 20, as dores despontaram com mais acometimento


e, nos vários mosteiros, repetiam‑se preces em tudo semelhantes às que a
minha mãe rezava desde a tarde. O sino grande da Sé começou a tocar, a
minha mãe lembrava‑se de o escutar, era o sinal que o arcebispo tinha orde‑
nado para que, ao ouvi‑lo, a qualquer hora do dia ou da noite, as gentes do
clero e do povo ali acudissem. Assim fez toda a cidade, apesar do avançado
da hora, pois o relógio dava as duas da manhã, e nessa altura todo o povo
que se tinha amontoado perto da Sé partiu em procissão para a igreja de
São Domingos.
Caía uma chuva miúda há horas, as sotainas, as becas ou as simples
capas, conforme a posição do seu detentor, tornavam‑se mais escuras e pe‑
sadas pela água que ensopavam. O meu nascimento era um desígnio na‑
cional. Por isso, não havia distinção de classes nessa noite. As poças de água
negra cresciam nas ruas e eram atravessadas pela senhora de véu escuro e
botim de feltro e a mulher de pele queimada e de pés descalços. Elas eram
iguais nessa noite: eram ambas mães. A cada nova badalada do sino da Sé,
anunciador das dores da minha mãe, as parturientes que o foram um dia
reviviam com ela o seu sofrimento. Cada vez que o badalo atingia o corpo
do sino, o delas estremecia, enquanto o da minha mãe excruciava de dor
sem precisar de compasso. E a procissão seguia...
O coro de preces das pessoas rivalizava com o toque dos sinos. Ain‑
da que se quisesse, era impossível dormir em Lisboa nessa noite. Os homens
e as mulheres desfiavam o rosário e caminhavam com o coração temeroso
pela notícia que tardava, como se fosse seu o filho que ia nascer. Era‑o de
facto. Quem o podia duvidar? Era o infante de Portugal, mas não um qual-

Ibidem, pp. 27-28.

19
quer, que este país já vira nascer muitos outros, mas nenhum tão aguarda‑
do, pois neste repousava a continuação da independência do reino.
O vento gelado vindo do rio tornava‑se ainda mais frio ao trespas‑
sar as roupas encharcadas, fazendo enregelar os ossos, mas não a vontade,
e por isso as pessoas continuavam. Por vezes, levantavam o rosto do chão,
olhavam para o lado e, das janelas e dos oratórios, velas bentas acendiam as
ruas, aquecendo o espírito.
Nesta procissão, que atravessava a noite que parecia sem fim, viria
o dia de São Sebastião. Por isso, além do clero, do povo e até de alguma fi‑
dalguia, seguia sob um pálio de cor escarlate e com estrelas de ouro o braço
deste santo, a relíquia que fora roubada durante o saque de Roma no tempo
do Papa Clemente VII, e que o meu avô materno, Carlos V, oferecera ao
meu avô paterno, D. João III. Este santo, que já nos salvara da peste, com
certeza podia livrar‑nos dos castelhanos, pensavam os seguidores da pro‑
cissão, repetiam‑no continuamente em pensamento os magotes de pessoas
que se amontoavam no Terreiro do Paço.
À entrada da rua dos Escudeiros, pressentia‑se o fim da procissão,
mas o infante ainda não nascera. Estavam enregelados, cansados, mas sem
qualquer vontade de dormir. A maioria dos que participaram na procissão
seguiu para o palácio, talvez lá alguém já tivesse assomado à janela e dado
alguma notícia. Era impossível romper no Terreiro do Paço. À ladainha dos
presentes somou‑se à dos que chegavam, resultando num uníssono mono‑
córdico, subindo até aos aposentos do rei, que aguardava impaciente.

– Juro perante Deus, e o diabo, se preciso for...


– Calai‑vos homem, não faleis em diabo nesta hora, ainda para
mais que fosteis vós que instituísteis a Santa Inquisição, se eles vos ouvem
falar assim... a jurar para o demo. – Atalhou a rainha, minha avó, abanando
a cabeça desaprovadoramente.
– Calai‑vos vós, mulher! – Ordenou o rei, levantando furioso a mão
no ar e deixando‑a ali ficar por instantes. – Não vos esqueceis, – continuou,
baixando a mão, – que o meu irmão é o Inquisidor geral! Além disso, o que
eu queria dizer era que jurava, perante fossem que forças, que se não me
sai daquele quarto um grito de varão, reúno todo o meu exército, nem que
para isso seja necessário depauperar os contingentes destacados em África
e no Brasil, tenha de chamar para as minhas forças todos os homens e os
rapazes do reino, mas encabeço esse exército de dimensões nunca antes
vistas, invado o império do vosso irmão a uma velocidade a que ninguém
me poderá deter, e vou eu próprio à vossa casa...
– Essa já não é a minha casa... – Interrompeu a rainha.
– É verdade, desculpai‑me, nunca o foi, não é? Vivesteis toda a vos‑

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sa vida enclausurada na fortaleza de Tordesilhas, pagando por uma pena
que não era a vossa! – Atirou‑lhe o meu avô sem dó.
A minha avó não conseguiu responder de imediato. Ela não era
dada a choros, e quando me contou esta história, não me disse que chorara,
mas eu podia apostar que este comentário do meu avô fizera embargar a
sua voz. Ela ignorou a observação e apenas lhe respondeu:
– Já não é a minha casa porque eu sou a rainha de Portugal!
O rei fitou‑a por uns instantes, com olhos coléricos, a parecer que‑
rerem saltar das órbitas: – A vossa irmã também era a rainha de Portugal!
– Mas como a sua fúria ainda não se suavizara, acrescentou: – Não é a vossa
casa porque nunca morasteis com eles.
Disse‑vos que os olhos do meu avô eram coléricos? Como bem sa‑
beis, eu não estava lá, apenas vos conto o que um dia a minha avó me con‑
tou, mas ela desviava sempre o olhar nesta parte, julgo que por saber que
mentia. Talvez não mentisse totalmente... Com certeza existiria cólera nos
seus olhos, ódio, mas bem sabeis que estes são o reverso da mesma moeda
de um outro sentimento. Sabeis qual, não sabeis? É que mesmo eu, que
pouco entendo de amor, sei que assim é.
Essa rainha de Portugal, de que os meus avós falavam, era D. Le‑
onor, o amor do meu avô, mas não era a minha avó. Logo, algo não batia
certo e, se acrescentarmos que ela era a irmã da minha avó e a viúva de D.
Manuel I, o meu bisavô, portanto pai do meu avô, parece‑me que tudo se
complica... E, de facto, assim foi. D. Leonor era a noiva prometida do meu
avô mas, durante as conversações para o acerto do seu casamento, o meu
bisavô apaixonou‑se por ela mal viu o seu retrato. D. Manuel I era o rei ven‑
turoso, tinha o ouro e o poder para o que quisesse... e isso incluía guardar
para si a noiva do seu filho. Assim fez.
Inicialmente, o que doeu ao meu avô foi sobretudo o seu orgulho
(o seu pai mandara dizer na corte espanhola que ele era tonto). Perder a
noiva era uma coisa, mas ofender o seu ego era outra. Meses depois, quan‑
do o meu avô foi buscar ao Barreiro a madrasta, percebeu que o seu pai
lhe melindrara muito mais do que o seu ego, ferira de morte o seu coração.
Ao ver D. Leonor, também o meu avô caiu de amores, e ela percebeu que
fora enganada, mas já nada adiantava. Era agora a rainha de Portugal. Que
podiam fazer? Fugir? Esperar pela morte de D. Manuel I?
Não fugiram. E quando D. Manuel morreu, também não casaram.
Após a morte de seu pai, quando o meu avô recebeu o ceptro, existia uma
corrente de opinião a quem agradaria o casamento deste com a sua ma‑
drasta que, afinal, até já fora sua noiva. Mas o seu despeito era grande e
pareceu‑lhe na altura maior do que o seu amor e por isso recusou, dizen‑
do:

21
– Não me sofre o ânimo haver de chamar esposa a quem dera o
nome de mãe!
O certo é que D. Leonor acabou por voltar para Espanha, viúva e
sem o que lhe era mais precioso: a sua filha! Esta era uma infanta de Portu‑
gal, não podia abandonar o reino. Portanto D. Leonor não levou a filha, mas
o meu avô também não ficou com os seus filhos, vendo‑os morrer todos.

– Vós a expulsasteis! – Respondeu a minha avó.


– Ela é que quis ir e parai de me interromper! Como eu estava a
dizer, vou eu próprio à vossa casa arrancar dos ombros a cabeça de bruxa da
vossa irmã e, já que falais na Inquisição, ainda trago os seus restos mortais
para cá, para lhes entregar, para que eles façam dela uma bela fogueira!
A morte sucessiva dos infantes de Portugal inculcara na cabeça do
meu avô que isso só poderia ser o resultado de uma maldição que D. Le‑
onor lhe lançara, como retaliação por ela não ter levado a sua filha. Pois
como justificais que, de dez filhos que o meu avô teve, nenhum lhe sobre‑
vivesse?
– E acabais com o reino de Portugal!
– Se não sair um grito de macho daquele quarto, o reino de Portu‑
gal já terá acabado, com o vosso irmão a reger o que sobrar dele e a vossa
irmã ao seu lado, de traços risonhos e abraçada à sua filha! Se tiver de ser
assim, o reino de Portugal entregue aos espanhóis por bruxedos da vossa
irmã, eu ainda lá vou e faço uns estragos valentes e ninguém me condenará
por isso...
– Descansai! Não anunciou D. Afonso Henriques a vinda de um
príncipe? De um herdeiro ao trono? – Acabou por dizer a rainha para pôr
termo à discussão.
Diz‑se que umas noites antes desta, em Santa‑Cruz de Coimbra,
D. Afonso Henriques saíra do seu túmulo, armado de cota, braçais, elmo
e montante e falara a um frade, anunciando‑lhe a boa nova do meu nas‑
cimento. A boa nova? D. Afonso Henriques poderia ser assim tão cíni‑
co? Eu seria o décimo sexto rei de Portugal, ele sabia muito bem o que
isso significava, Deus dera‑se ao trabalho de lhe explicar. Eu só o soube
mais tarde, quando já não fazia diferença nenhuma, por isso aguardai pela
hora certa de saberdes, que por enquanto é demasiado prematuro para
vós também.


Frei Luís de Sousa, Anais de D. João III, Vol. I, Cap. XII, p. 74.

Manoel de Menezes, Chronica do Muito e Alto, e Muito Esclarecido Príncipe D. Se‑
bastião Decimo Sexto Rey de Portugal, Parte I, Cap. VII, p. 29.

22
Às oito e um quarto da manhã, um choro, o meu, cortou a palavra ao
meu avô. As preces que vinham da rua continuaram, mas brevemente se
calaram. Um silêncio sepulcral invadiu este reino e o outro, o do meu avô
de Castela, que também se moderara para ouvir a novidade que a parteira
trazia:
– É um homem!
O meu avô respirou fundo, aliviado pela notícia:
– Quando Deus fecha uma porta, abre sempre uma janela...
As lágrimas da minha avó, D. Catarina, escorriam‑lhe copiosa‑
mente pela face, apanhada num turbilhão de emoções, a morte do filho
há alguns dias apenas e o nascimento do neto, o varão que todos ansia‑
vam. Já não tinha a certeza se chorava de alegria se de tristeza, as lágrimas
baralhavam‑se, formando uma torrente única. Habituara‑se à ideia de que
cada nascimento significava uma morte iminente, por isso as suas lágrimas
já não tinham distinção. A partir do momento que nascemos, não temos a
morte como destino certo? A partir do momento que amamos, não corre‑
mos todos o risco de perder? É certo, mas ela corria esse risco mais do que
toda a gente, as suas perdas falavam por si.
– Alguém que vá à janela e anuncie ao povo que o tão desejado
infante nasceu! – Gritou o meu avô. – O desejado infante nasceu! – Repe‑
tiu medindo cada palavra, como que para verificar que não tinha errado
nenhuma.
Um dos pajens avançou de imediato, queria ser ele o portador da
tão esperada notícia. Abriu a janela, e o vento frio que de imediato entrou
no aposento feriu‑lhe as faces que se encontravam molhadas pelas lágrimas
de felicidade que não paravam de lhe escorrer. Avançou decidido para a
varanda, o dia já tinha nascido, mas ele nem se dera conta. O aglomerado
de gente que se apinhava na praça comoveu‑o e as palavras faltaram‑lhe.
Retrocedeu, pois não seria capaz de falar sem que a voz se embargasse. O
povo aguardava ansioso. As preces estavam suspensas, assim como qual‑
quer outra actividade humana, pois a janela abrira‑se e eles esperavam por
uma notícia. Quando viram o pajem retirar‑se sem nada dizer, um gemido
uníssono varreu a praça. O pior ocorreu‑lhes. Pouco depois um outro cria‑
do assomou, e este gritou de imediato:
– Já nasceu! A nossa princesa acaba de dar à luz um filho varão!
O gemido foi substituído por vivas, as pessoas abraçavam quem
estivesse ao seu lado, ainda que este fosse um desconhecido. Se algum rosto
não estava lavado em lágrimas, era porque a pessoa em questão se encon-


Queiroz Velloso, D. Sebastião 1554‑1578, a hora provável do nascimento do prínci‑
pe situa‑se entre as oito e as nove horas da manhã, p. 16.

23
trava desfalecida pela emoção. Muitos benzeram‑se, agradecendo ao Pai, ao
Filho e ao Espírito Santo. Ámen.
– Viva o rei! Viva o infante! – Gritavam em vozes alegres mas lacri‑
mosas.
A noite sonâmbula acabara quando todas as noites acabam, de
manhã. E as mesmas vozes que há pouco encetavam ladainhas e preces,
tornaram‑se a ouvir, mas agora cantavam um Te Deum laudamus. Deus seja
louvado, mas não só... Neste dia de S. Sebastião tinha de haver dedo dele
também, e deveriam ter razão pois o seu braço andara toda a noite à chu‑
va.
No palácio, o rei e a rainha apressaram‑se a visitar‑me, o seu neto
recém‑nascido. O meu avô irrompeu pelo quarto a passos largos e nada ze‑
losos pelo meu descanso e o da minha mãe que já dormia, extenuada pelo
longo trabalho de parto. Eu ainda choramingava, D. João III retirou‑me
violentamente das mãos da minha ama que me limpava e levantou‑me no
ar, verificando se eram bagos gordos e roxos que eu tinha entre as pernas
ou se apenas uma rachadura. Sorriu aprovadoramente, desviando o olhar
para a minha avó não fazendo tenções de esconder a sua felicidade. Voltou
a fixar o seu olhar em mim, examinando‑me mais a preceito.
– Hum... – Ruminou antes de continuar, unindo‑me as palmas das
mãos. – Tem a mão direita maior do que a esquerda e o ombro do mesmo
lado mais alto do que o outro. – Concluiu, já sem o sorriso de há pouco.
– Com o crescimento disfarça. – Tentou a minha avó consolá‑lo.
– Ou acentua‑se. – Parou por instantes para me amiudar mais a
fundo. – Não faz mal, dir‑se‑á que é um sinal de Deus para distinguir os
grandes!
– É‑o com certeza! – Concordou a minha avó com um sorriso
magnânimo.
O meu choro parou nesse instante.
– Que nome terá? – Perguntou D. Catarina, caminhando já para
fora do quarto e olhando para a minha mãe adormecida.
– Sebastião! – Respondeu o rei.
– Sebastião? – Interrogou D. Catarina. – Mas esse não é o nome de
nenhum rei!
– Dei nomes de reis e infantes aos meus filhos, nomes que carre‑
gavam os feitos de outros homens e mulheres, julgando que lhes trariam
bons augúrios, e eles morreram. Todos! Darei ao meu neto um nome que
nenhum outro rei carregou, para que ele possa escrever a sua própria histó‑
ria. Um nome limpo, sem heranças e sem sortes. Um nome só dele. Além
disso, é nome de santo e hoje é o seu dia, isso deverá significar alguma coisa,
não?

24
– Que ele o protegerá?
– Assim o espero, que o santo Sebastião apadrinhe o meu neto e
o proteja. Das coisas dos homens podem os homens proteger‑se, mas das
coisas do outro mundo pode não haver quem valha. Dar‑lhe‑ia o nome de
Deus, mas este é inominável, ou de Jesus, mas se o próprio Pai deixou mor‑
rer o Filho, o que faria com o meu neto?
– Não blasfemeis! – Pediu a rainha já no corredor.
– Porquê? Que tenho eu mais a perder? Perdi dez filhos, o meu
coração já está cansado. – Respondeu D. João III, estacando de repente,
como se esse órgão estivesse de facto tão cansado que já nem lhe permitisse
bombear o sangue com pressão suficiente para que ele pudesse dar mais
um passo.
– Tem graça, – começou D. Catarina, esboçando um sorriso ténue
e parando ela também na sua frente, – julguei que não tivésseis coração...
– Os dois olharam‑se em silêncio, depois ela continuou: – E se o tendes,
ainda podeis perder o que vos é mais precioso.
– E acaso sabeis vós o que me é mais precioso?
– O reino de Portugal! – Respondeu como se de uma estocada final
se tratasse.
– Enganai‑vos! – Retorquiu D. João com um sorriso, que num ou‑
tro contexto poderia ser vitorioso. – O que me era mais precioso já perdi
há muito.
A minha avó semicerrou os olhos, com um ar de fera que avalia a
sua presa e se apronta para atacar, mas nada disse. Continuaram a cami‑
nhar juntos até ao fundo do corredor, separando‑se aí, para cada um seguir
para o seu aposento.
A alegria da minha mãe não tinha a intensidade da de outras mães
ao darem à luz o seu primogénito. As suas preces tinham sido atendidas,
ela concebera um varão, esperava que isso diminuísse a animosidade que
sentiam por ela ser castelhana, pois agora, mais do que ser mãe do futuro
rei, ela era a mãe do salvador do reino. Portanto, por tudo isto, seria de es‑
perar, mais do que apenas alegria da sua parte, que ela estivesse exultante.
O meu avô estava. Ela não. O meu nascimento dissipara‑lhe certos temores,
mas adensara‑lhe outros, pois eu já nascera há três dias e o meu pai ainda
não a visitara. O seu coração, os seus pressentimentos, diziam‑lhe que ele
já falecera. E a visão do ataúde por cima da Sé? Já teria chegado a hora de
se concretizar?
Apesar de as negociações do casamento se terem iniciado logo aos
seus cinco anos, sem que, é claro, um ou outro pudesse opinar sobre o as‑
sunto, os meus pais amavam‑se. Poderia já ter findado o seu idílio? Tão
cedo? Afinal, eram noivos desde sempre, mas estavam casados havia tão

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pouco tempo. No entanto, a minha mãe não encontrava indícios reais de
que o meu pai tivesse morrido, pois nem os meus avós nem a criadagem
que a serviam vestiam roupas de luto ou demonstravam tristeza. Falavam
pouco, é certo, e mudavam de assunto quando ela perguntava pelo prín‑
cipe, isso fazia‑a desconfiar. Mas o meu avô, que deveria ser aquele com
um semblante mais carregado se o filho tivesse finado, imaginava ela, não
mostrava sinais de dor, o que fazia, de novo, a minha mãe pensar que tudo
não passaria de imaginação sua, e que, quando menos esperasse, o meu pai
entraria pela porta do seu quarto e enchê‑la‑ia de beijos e de elogios pelo
infante recém‑nascido. Assim os pensamentos da minha mãe sobre o que
realmente se passava oscilaram durante mais cinco dias, entre indícios que
ela julgava mostrarem‑lhe claramente que algo de errado sucedera e com‑
portamentos que a reconfortavam.
Nas ruas, as festas sucediam‑se, contou‑me uma vez a minha avó,
e decorreram durante sete dias, não só em Lisboa como em todo o reino,
cada um querendo rivalizar com a alegria do outro, como se a sua fosse
a maior, a mais válida. Esta espécie de insanidade não era hegemonia do
povo, alastrara a todas as classes. A nobreza fora buscar aos seus cofres to‑
dos os seus adornos preciosos e cada nobre queria competir com o outro,
ultrapassando‑o na sumptuosidade dos festins oferecidos. A Igreja organi‑
zava infindáveis procissões, missas votivas e do Espírito Santo e autos‑de‑fé
de centenas de cristãos‑novos, suspeitos de continuarem a ser judeus ou
mouros velhos. Tudo pelo Desejado.

No dia 28 de Janeiro, o meu avô mandou chamar à capela do Paço alguns


fidalgos e o meu tio cardeal, D. Henrique, para celebrar o meu baptizado. D.
Joana de Eça, a camareira‑mor, segurava‑me ao colo enquanto eu chorava
estridentemente e a minha mãe esquadrinhava com o olhar, inquieta, todos
os recantos, procurando o meu pai. A minha avó, que além de sua sogra era
também sua tia, contou‑me mais tarde que, ainda ali, a minha mãe conti‑
nuava a guardar dentro de si uma réstia de esperança, pois há muita gente
que só com um corpo acredita numa morte.
No altar, além da minha mãe, estavam junto a mim os meus avós
e a minha tia‑avó, D. Maria, filha de D. Leonor. O meu tio cardeal fez um
sermão sobre a vida de São Sebastião, de como ele, mesmo após ter o seu
corpo atravessado por sete lanças, não morreu, apesar daquilo que se pen‑
sava. O olhar da minha mãe alumiou‑se nessa parte, estaria ele a querer di‑
zer‑lhe alguma coisa com estas palavras? O seu sermão continuou, de como
os desígnios de Deus eram muitas vezes misteriosos e nem tudo aquilo que
nos parece ser o é de verdade, por mais que as evidências apontem nesse
sentido.

26
– Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo... – começou o meu
tio cardeal fazendo o sinal da cruz na minha testa à medida que falava, e
terminou despejando a água benta sobre a minha cabeça.
A minha mãe não conseguiu disfarçar um esgar no seu rosto, pois
achava que a sua posição lhe dava alguns direitos sobre mim, nomeada‑
mente na escolha do meu nome, para a qual não tinha, como diz o povo,
sido tida nem achada. Ela estava por isso contrariada, pois não seria este
o nome que escolheria, preferiria talvez Carlos ou Filipe. Além disso, os
corações dos presentes não estavam em festa, apesar da ocasião, e essa ten‑
ção era crescente no ar. Parecia que todos tinham uma informação que ela
desconhecia.
Depois da cerimónia do meu baptismo, comunicaram finalmente à
minha mãe a morte do meu pai.
– O príncipe morreu. – Disse‑lhe o meu avô sem qualquer frase
introdutória, sem nenhuma palavra de consolo. – O infante D. João Manuel
morreu. – Repetiu secamente, para que não restassem dúvidas após dias de
incertezas.
A encenação acabara, sendo de imediato notório nos rostos dos
presentes a transfiguração dos seus traços. A minha mãe deixou‑se cair
num banco da capela, branca, sentindo as mesmas náuseas e vertigens das
primeiras semanas em que me esperava. Ficou ali sozinha, a verter pelos
seus olhos azuis as lágrimas adiadas por vinte e seis dias. O mesmo adia‑
mento sofrera o povo, pois só a partir daquele momento se principiaram as
demonstrações públicas de nojo. Os meus avós, assim como a criadagem
vestiram definitivamente as suas vestes de luto. Nos vinte e seis dias que de‑
correram até àquele momento, antes de entrarem nos aposentos da minha
mãe, toda a gente era obrigada a trocar as roupas negras pelas que usariam
habitualmente.
O meu pai já fora sepultado no Real Convento de Belém há vários
dias, por isso a minha mãe teve de se despedir dele sem um corpo para abra‑
çar, e sem o ver era‑lhe difícil imaginar que ele já não estivesse neste mundo.
Era uma luta interior entre a razão e o coração, e o comportamento ao qual
ela assistira nos últimos dias não contribuíra em nada para a resolver. Ela
não levou a mal que lhe tivessem escondido o sucedido até ao meu nasci‑
mento, pois tinha consciência que isso poderia de facto ter posto em causa o
parto, mas sentia terem demorado mais oito dias para lhe darem a notícia.
Por essa altura, chegou‑me a dizer a minha avó, quando já tinha
idade para a entender, tudo preocupava o meu avô. Ele bem tinha razões


“Quando a visitavam, nunca vestiam trajes de luto, e o mesmo faziam as damas e
criados que a serviam (...)”, Queiroz Velloso, D. Sebastião 1554‑1578, p. 15.

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para isso, pois se não é natural um pai sobreviver a um filho, ele sobrevivera
a dez. Porque não sobreviveria aos netos, em especial a mim, que era o que
lhe interessava? O outro, o meu primo D. Carlos, era filho da minha tia,
também ela já desaparecida, e de Filipe II de Espanha, por isso não interes‑
sava ao meu avô, pois não era ele que continuaria a Dinastia de Avis.
Um dos assuntos que preocupava o meu avô era, se ele não me so‑
brevivesse conforme esperava, como saber se a minha vida seria boa? Ape‑
sar de a astrologia judiciária ser proibida pela Santa Madre Igreja – pois se
o destino de um homem está escrito nas estrelas, como poderia ele gozar
do livre arbítrio que Deus gentilmente lhe ofertara? –, o meu avô contratou
um astrólogo, Fernão de Maldonado, para me fazer um horóscopo. Por
esta altura, ele já não deveria acreditar tanto na doutrina do livre arbítrio e
na boa vontade de Deus, já que apenas tristezas e mortes se lhe depararam
no caminho. Por isso, se não houver estrelas e outras coisas a comandar o
destino, que mais lhe restava? A inconsolável certeza de que estamos sós e
desamparadamente entregues ao acaso? A indefinição do futuro, que é a
nossa única certeza, o meu avô já não a podia suportar. Pois se de uma for‑
ma geral é lícito esperarmos do amanhã todo o tipo de coisas, boas e más, o
meu avô já só aguardava as últimas, como uma fatalidade da qual não tinha
como fugir, apenas esperar. Já pouco lhe deveria importar o que a Igreja Ro‑
mana, ou até Deus pensassem dele. O meu avô já não conseguia viver desta
forma, e se um astrólogo lhe podia dar uma resposta atempada e trazer com
isso algum alento, então que Maldonado fizesse o seu trabalho.
Segundo Maldonado, o Sol, Marte e Mercúrio na décima segunda
casa indicavam que a minha criação seria difícil e trabalhosa. O meu avô
sentiu um repuxar no peito, não eram aquelas as previsões que ele queria
ouvir. Mas devido à posição de Vénus e Júpiter e à sua relação com Saturno,
ser‑me‑ia possível sobreviver aos problemas que eu teria na primeira infân‑
cia. O rei respirou de alívio, começando por dar por bem empregue o pa‑
gamento que faria ao astrólogo. Mercúrio na décima segunda casa e a Lua
na sexta far‑me‑iam persistente na perseguição dos meus objectivos e uma
pessoa justa. Qualidades de um bom rei, murmurava rejubilante D. João III.
A influência de Saturno sobre Mercúrio dar‑me‑ia sabedoria. Bom, muito


A astrologia judiciária pretende estabelecer relações entre a configuração e a posi‑
ção dos planetas e o destino de indivíduos ou de povos.

Este horóscopo está na Biblioteca Nacional de Lisboa, Res., Códice 8920, fl. 39 verso
a 41verso, mas o investigador americano Harold B. Johnson escreveu um artigo: “A
Horoscope Cast upon the Birth of King Sebastian of Portugal (1554‑1578)” (2001),
que pode ser consultado em: http://people.virginia.edu/~hbj8n/horoscope.pdf, onde
o horóscopo se encontra transcrito.

28
bom dizia o meu avô enquanto esfregava as mãos. Mas, por outro lado, a
posição de Saturno, colocado no ascendente da primeira casa, far‑me‑ia
falso e frequentemente voltaria com a minha palavra atrás. O rei abanava a
cabeça, mas acabou por concordar que esses também poderiam ser atribu‑
tos de um bom soberano. A posição de Vénus era vantajosa, prometia‑me
uma boa memória, paciência e amor às letras. O meu avô sorria comedi‑
damente... E também me faria muito dado aos prazeres com as mulheres.
O seu sorriso abriu‑se por completo, não conseguindo reter em silêncio
os seus pensamentos e batendo com a palma da mão na coxa, em sinal de
vitória, exclamou:
– Bom! Temos rei, temos homem! A descendência da casa de Avis
está assegurada! O Filipe e o seu filho que vão cantar para outro terreiro!
A mesma influência de Vénus far‑me‑ia gostar de roupas, música,
cheiros e cavalos. À excepção dos cavalos, o meu avô achou estes gostos um
pouco efeminados. A Lua, estando com uma estrela no meio do coração de
leão, prometia‑me grande autoridade e poder para mandar. O meu tempe‑
ramento far‑me‑ia por vezes muito alegre, outras muito melancólico. Eu
seria de aparência muito morena. Eram óbvios os meus fios de cabelo loiros
e a brancura da minha pele, por isso o meu avô torceu o nariz temendo
que as outras previsões estivessem tão certas quanto esta. Ele recuperou a
esperança com a lembrança de que eu era ainda um bebé de dias e o tom da
minha pele, assim como a cor do meu cabelo alterar-se-iam, e por isso as
previsões poderiam estar certas. Assim o meu avô deu por bem empregue a
tença anual e vitalícia que este médico de Salamanca, versado na astrologia
judiciária e que viera para o reino na comitiva da minha mãe, receberia a
partir dali.

Todo o mês de Fevereiro e parte do de Março foram passados com nu‑


vens escuras por cima das nossas cabeças, chovendo a cântaros durante esse
tempo. A Baixa lisboeta inundou-se; as vendedoras e os pregões tiveram
de deslocar os seus negócios, e as fezes, que eram deitadas pelas janelas,
andavam a boiar pela cidade, tornando pestilento o ar que se respirava por
aquela altura na cidade. Não sei se houve quem acreditasse que o Sol não
voltaria a brilhar nos céus lisboetas e nos dos arredores, mas o certo é que
no quarto da minha mãe os raios do astro não tornaram a entrar. Desde as
cerimónias fúnebres do meu pai, ela permanecia recolhida nos seus apo‑
sentos, com os cortinados completamente corridos o dia inteiro. Não cui‑
dava de mim, aliás, nem me via. Por isso, quando chegou uma missiva do
meu tio espanhol, D. Filipe, pedindo‑lhe que ela o substituísse nos negócios
do reino enquanto ele se ausentava para Inglaterra, para tomar nova esposa,
ela não demorou a decidir‑se.

29
A 15 de Maio já o Sol tinha voltado ao reino, mas não aos aposentos
da minha mãe, onde a luz continuava impenetrável. Após terem passado
quatro meses sobre o meu nascimento, retirada nos seus aposentos e quase
sempre na cama, quando chegou a hora de partir, ela não hesitou. Levan‑
tou‑se da cama, que fora também o seu féretro nos últimos tempos, pois pa‑
recia que lá se queria enterrar em vida, com uma energia que há muito não
lhe conheciam. Correu ela própria os cortinados, não esperando que uma
criada o viesse fazer por si, deixando que o Sol inundasse aquela divisão,
e levou a mão aos olhos por momentos, pois tanta luminosidade feria‑os
após tanto tempo de escuridão. Vestiu, com a ajuda de uma dama, aquele
que achou ser o seu melhor conjunto, enquanto as criadas arrumavam em
malas os seus vestidos e o restante enxoval que trouxera de Castela. Não es‑
perou que as moças acabassem o seu trabalho, tal era a ansiedade que sentia
para partir para junto dos únicos que ela considerava seus. Aparentemente
eu não era um deles, pois não tornei a vê‑la.

Capítulo II
1555 – O Ano dos Primeiros Passos

U m filho perdido é uma parte de nós que morre, mas com todos os
filhos mortos, não resta nada de mim.
Apesar da minha excelente memória, não me lembro des‑
tas palavras que o meu avô repetia incansavelmente, como se de cada vez
fosse a primeira, como se ninguém nunca as tivesse ouvido. Foi a minha avó
que me repetiu esta frase na minha juventude incontáveis vezes, querendo
ilustrar‑me o estado catatónico do meu avô. Por isso, é fácil para mim, ape‑
sar do meu ano de vida na altura, repetir, sem medo de errar, cada palavra.
A sentença do meu avô revelava bem o que ia no seu âmago e este início de
ano em nada lhe aliviava as suas feridas, pelo contrário, assinalava a efemé‑
ride do falecimento do seu filho, o último. A minha avó tentava encobrir as

30
palavras do meu avô empurrando debaixo dos seus dedos compridos, de
forma violenta, os cabos dos espelhos e das escovas, a caixa de pó‑de‑arroz
e outros produtos de beleza, fingindo desviá‑los na procura de algo. Não
me lembro nunca de ter visto mulher mais elegante, mas trajava sempre
com a mesma cor, o negro. E metia medo, pelo menos a mim, pelo menos
ao princípio...
– Meu menino loiro. – Dizia‑me o meu avô, pegando‑me nos seus
braços e colocando‑me no seu colo; ele também apenas se vestia de negro,
mas na sua voz de tom magoado havia ainda algo de doce que eu percebia
quando ele falava para mim. – Sois aquele que sobrou, nunca nada vos po‑
derá ser negado. Sois grande!
– Largai o infante! – Gritava a minha avó sempre que via o rei nes‑
tes gestos de ternura. – Largai‑o! – Repetia, tirando‑me bruscamente dos
seus braços. – Olhai, vede o que fizesteis! – Continuava a gritar, agora com
as faces ruborizadas pela cólera, de um encarnado intenso, realçado pelo
negro dos seus vestidos e das suas olheiras fundas. – Por causa de vós en‑
tornei o pó‑de‑arroz! – Ainda me segurava no ar e, lembrando‑se disso,
colocou‑me rapidamente no chão. – Ainda o estragais, com tantas festas!
Não parais de lhe repetir que ele será grande; como quereis que o seja se o
mantendes agarrado na barra do vosso manto?
O meu avô mantinha‑se calado, limitava‑se a abanar a mão, como
que dizendo que o que ela falava não interessava. Este homem que eu co‑
nheci era bem diferente daquele que mais tarde viria descrito nos livros de
História. O povo costuma dizer que os desgostos não matam mas moem,
pois o meu avô já estava tão moído que era como se já estivesse morto, pelo
menos nos seus últimos anos de vida.
A atmosfera do palácio, naquela altura, era de desespero. Este esta‑
va entranhado até à argamassa que unia as pedras das paredes. Talvez por
isso as telas dos reis anteriores que enfeitavam as paredes tivessem todas
um ar tão sério e triste. O meu pai fora uma brisa fresca num dia quente
de Verão, mas esmorecera. Eu era um raio de luz num dia cinzento de In‑
verno, por isso muitos olhavam para mim como se eu estivesse destinado
a finar depressa. Mesmo o meu avô só começou a pegar‑me ao colo após
eu ter completado o meu primeiro aniversário. O primeiro ano de vida de
uma criança é considerado por muitos o mais perigoso, o meu avô sabia‑o
por experiência própria. Ele perdera antes de completarem os doze meses
vários filhos, vários reis que nunca chegaram a ser, vários destinos que não
foram cumpridos. D. João III não ousava apegar‑se a mim, julgo que tinha
medo. Um coração partido desenvolve estas defesas. Mas eu vencera este
primeiro desafio, vencera a morte que todos achavam espreitar‑me, pois
nem com o leite materno eu fora alimentado.

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A 20 de Janeiro, quando o dia ainda mal despontara, o meu avô
entrou no quarto onde eu dormia, apanhando a minha ama D. Inês despre‑
venida, pegou‑me ao colo e abraçou‑me com sofreguidão como se aquilo
fosse a única coisa para a qual ele tivesse vivido nos últimos 365 dias.
Poucos dias após ter ganho o primeiro abraço do meu avô, cami‑
nhei na sua direcção, por vezes apoiado nalguns móveis. Aqueles foram os
meus primeiros passos e ele não os viu porque estava de novo naquele lugar
a que só ele tinha acesso.

Capítulo III
1556 – O Ano da Armadura

P or esta altura, já a minha avó tomara a seu encargo os negócios do


Estado, e enquanto ela vivia em toda a plenitude o seu cargo, o seu
irmão, Carlos V, reformava‑se do seu de imperador. Ao acordar, a
rainha seguia para o escritório, onde na maior parte das vezes já Pedro de
Alcáçova Carneiro, o desembargador do reino, a esperava com os assuntos
mais urgentes. A seguir ao almoço, em vez da sesta que muitos fidalgos
gostavam de fazer, ela ia lavar e arranjar os seus longos cabelos, já não tão
negros quanto ela gostaria para condizer com as suas roupas. Após as lon‑
gas horas que isso lhe levava, tornava às governanças do reino.
O meu avô ficava sentado numa poltrona, sempre a mesma, que
ele trouxera para junto da janela para poder observar o Tejo. Só a mim era
permitido entrar naquela sala, onde ele permanecia quieto, vendo o mun‑
do sem sair do mesmo lugar. O seu estado de espírito era diametralmente
oposto ao da rainha.
– Isto é porque ele sabe muito bem que é sua a maior parte, se não
toda a culpa, de se ver nesta idade sem filhos! – Dizia a minha avó, sem
qualquer alteração na voz.
Segundo o que a própria D. Catarina me disse um dia, ela chegou

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a agradecer, nas cartas que mandava ao seu irmão Carlos V, o marido que
este lhe arranjara, mas isso deveria ter sido antes de ela perceber como o
meu avô a via. Ele olhava para D. Catarina com piedade, não dela, mas de
si próprio. Aquela era a única mulher da casa de Áustria que ele podia ter,
mas não era a que ele desejava. A minha avó era uma espécie de prémio
de consolação do meu avô, talvez um pouco menos até, assim ela o sentia.
Logo, se não podia amá‑lo, que mais lhe restava senão culpá‑lo? E odiá‑lo
por vezes... Afinal, era sobre o meu avô que a irmã da minha avó lançara a
maldição: “Se não posso ter comigo a minha filha, nunca ficareis com os vossos!”
Dizem que quando uma praga é dita de uma forma muito sentida, pega,
mas se for lançada por uma mãe, é irrevogável. O que D. Leonor desconhe‑
cia era que seria sobre os seus próprios sobrinhos que estava a lançar esta
maldição, pois naquela altura ela não tinha como saber que o seu enteado
se casaria com a sua irmã. Aliás, ele até já tinha um filho bastardo, como
saber então que os outros seriam do seu sangue? E se soubesse, seria assim
tão grande a diferença? Deixemos as hipocrisias e as convenções sociais de
lado. A minha avó foi criada longe de todos os seus irmãos, enclausurada
quase à nascença na fortaleza de Tordesilhas10 juntamente com a sua mãe.
Portanto, que amor fraternal lhe poderia ter a sua irmã?

A minha avó deveria ser, por aquela altura, a pessoa do reino mais bem
informada sobre Portugal e o mundo, enquanto o meu avô era o único que
conhecia os lugares por onde a sua mente andava. No entanto, a senhora D.
Catarina, tão conhecedora dos negócios do reino, ignorava o dia do meu
aniversário. Mas no mundo por onde o meu avô vagueava, no seu calendá‑
rio estava marcado o dia dos meus anos.
– Anda cá meu menino loiro... – Disse o meu avô, pegando‑me ao
colo e falando‑me com uma candura na voz, que, como já disse, não voltei
a encontrar em ninguém, pelo menos sincera.
D. João III colocou‑me no chão e levou‑me, segurando‑me pela mão,
aos seus aposentos. Era a primeira vez que eu entrava no seu quarto. Ao
centro, uma cama grande de dossel, fazia a divisão parecer mais pequena
do que era na realidade. O meu avô apontou noutra direcção, o que desviou
de imediato a minha atenção para esse lado do quarto.
– Vede! – Entabulou, esticando o braço na direcção para onde que‑
ria que eu olhasse.

10
A mãe de D. Catarina, D. Joana, isolou‑se na fortaleza de Tordesilhas por sua livre
vontade após a morte do seu marido. Nessa altura, D. Catarina era uma bebé de me‑
ses e seguiu com a mãe, vivendo toda a sua vida, até ao momento de desposar D. João
III, ela também na fortaleza de Tordesilhas, afastada dos restantes familiares.

33
A minha ama tinha vindo connosco, e ela contou‑me que a minha
primeira reacção foi de contracção. O meu avô apontava para uma arma‑
dura montada de pé no seu quarto, o que, com a minha idade, me deveria
ter parecido um homem estranho ou um monstro.
– Vede, meu menino loiro, – teimava o meu avô em chamar‑me ape‑
sar de, naquela altura, os meus caracóis já serem mais alaranjados do que
loiros, – este é o traje de guerra de um rei antes de vós. Eis o vosso presente
de aniversário, – informou‑me, baixando o braço e virando agora o seu
olhar para mim. – Esta armadura pertenceu a D. João II, hoje é vossa, pois
mais ninguém depois dele e antes de vós foi digna de a usar. Mas vós sois o
Desejado e a vós nenhuma grandeza, nenhuma honra vos será negada. Sois
um presente de Deus!
Ao relembrar todos estes episódios, enterrados tão fundo na minha
memória que me seria de todo impossível reconstituí‑los, não fosse D. Inês
contar-mos, creio perceber agora por onde andava o espírito do meu avô
naqueles dias que ele passava sentado na sua poltrona, virada para o Tejo,
de olhar mergulhado nas suas águas, aproveitando a boleia de uma onda
para se transportar para outro mundo. Um mundo onde eu era um cam‑
peão de guerra, senhor de exércitos, rei absoluto de impérios. Creio portan‑
to que também deve ter sido naquele momento que a onda me levou com
ele e me fez perceber que o brilho da armadura não era só reflexo da luz do
Sol mas também a reflexão da minha luz interior e que eu era D. Sebastião,
o Desejado, a quem nada era negado.

Capítulo IV
1557 – O Ano da Morte do Rei

P erdi o meu pai antes de nascer, perdi a minha mãe pouco depois,
mas as minhas perdas não ficariam por aí.
Muitas vezes o meu avô agarrou‑me ao colo e apertou‑me
contra si. Todos, mesmo a rainha, olhavam‑no incrédulos. Ele nunca abra‑

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çara o meu pai ou os meus tios. Encostava a sua face na minha cabeça,
depois os lábios nos meus cabelos e dizia baixinho:
– Sois o que sobreviveu... mas até quando...
Depois foi alterando o seu discurso:
– Sois o especial. Deus tem grandes planos para vós, basta olhar‑vos
para sabermos. E eu e vós sabemo‑lo, não é, meu pequeno infante loiro?
– Perguntava‑me esperando uma resposta minha.
Aprendi a acenar‑lhe com a cabeça no momento em que a ento‑
ação na sua voz se alterava e o rosto dele parecia ganhar vida, mas não o
suficiente para que a morte não começasse a rondá‑lo também a ele. A sua
melancolia11 aumentou e tomou conta dele, tornou‑se uma sombra pálida
do homem que fora. A sua alma já o tinha abandonado, apenas o seu corpo
ainda teimava em vaguear pelos corredores do palácio. Deixara de compa‑
recer na capela do Paço para ouvir a missa e abandonara definitivamente
os negócios de Estado, deixando‑os entregues à minha avó. As suas últimas
semanas de vida, passou‑as numa espécie de transe, pouca gente o viu, não
dando importância a nada, a não ser talvez a mim. O pequeno fio de paci‑
ência que lhe restava era‑me exclusivamente dedicado. Os últimos dias de
vida do meu avô foram talvez os melhores da minha. Nunca mais consegui
sentir a candura que ele me dedicava. Após a sua morte, nunca mais percebi
se era a mim que queriam agradar ou se ao rei que eu já era, cheio de von‑
tades. Aqueles foram os únicos momentos em que não era eu o rei. Era ele.
Sentindo as forças da morte a puxá‑lo cada vez com mais ímpeto, o
meu avô teve um instante de lucidez, em que a sua melancolia se quebrou
por momentos e chamou a rainha:
– Morrerei em breve, – começou respirando fundo, ganhando alen‑
to para o que teria de dizer a seguir. – Sebastião tem apenas três anos, é
muito novo, precisa de alguém que seja regente por ele...
– Por enquanto... – Acrescentou D. Catarina.
– Sim, por enquanto. Será a vós que eu quero que a regência seja
entregue até ele ter idade suficiente para reinar. – D. Catarina aquiesceu e D.
João III continuou. – Sois portuguesa agora, não olvideis disso, nunca! Sois
rainha de Portugal, isso deverá ser suficiente para esquecerdes de quem sois
irmã e tia. Os interesses de Castela não passam pelos do reino de Portugal e
é vossa obrigação de rainha regente protegê‑los.
– O meu irmão era casado com a vossa irmã e, se ele tivesse morri‑
do antes dela, deveria ela também esquecer o seu nascimento? Deixá‑la‑ia
esquecer?

11
“Alguns meses antes do ataque apopléctico que o matou, começara D. João III a
padecer de malencolia”, Queiroz Velloso, D. Sebastião 1554‑1578, p. 35.

35
– Eu faria o que o Carlos fará. Vós deveis fazer o que uma rainha de
Portugal faria! As crianças que carregasteis no vosso ventre eram os infan‑
tes de Portugal, não de Castela, isso contará para alguma coisa.
– Os infantes morreram.
– Eles vivem agora através de Sebastião... e ele é especial.
– Já começásteis a pôr essas coisas na cabeça dele e ele acredita em
tudo o que dizeis... – D. Catarina fez uma pausa antes de prosseguir. – Sa‑
beis que não preciseis de me pedir nada disso, eu defenderei o que é melhor
para o nosso neto. Não preciseis de me lembrar que de nove filhos só me
sobrou um neto! Dois...
– Mas este é o que conta! – Contrapôs D. João III, segurando com
força o pulso da minha avó.
– Sim, este é o que conta... – Confirmou D. Catarina disfarçando
mal a discordância. – Tendes de pôr o que me dizeis em testamento!
Mas o meu avô já não estava ali, só o corpo. A lucidez voltara a
abandoná‑lo, pelo menos em parte.
– Não a deixeis ver a filha! – Ordenou o meu avô, com os olhos re‑
pletos de uma fúria que há muito a minha avó tinha deixado de ver neles.
– Fazei o testamento. – Respondeu‑lhe ela apenas.
– Não a deixeis entrar nunca em Portugal, nem autorizeis a saída da
infanta D. Maria para Castela. Se ela apanha lá a filha, nunca mais a deixa
voltar. E assim ela terá ganho...
– Escrevei o testamento. – Insistia a minha avó, mas já não era de
fúria que os olhos do rei estavam repletos, pareceu‑lhe ver laivos de loucu‑
ra.
– Tirou‑me todos os filhos, o que é que ela esperava que eu fizesse?
Que lhe entregasse a filha de bandeja? Que a fosse lá levar com um cortejo
real? – Remoía o rei.
– O testamento... – Dizia a rainha, segurando a mão do rei, na ten‑
tativa de lhe chamar à atenção. – Imploro‑vos! – Continuou, segurando o
queixo barbudo do meu avô e desviando‑o para si.
– Ainda esperavam que eu a casasse? Que casasse D. Maria? Todos
julgam que não o fiz com medo de desfalcar o erário público para pagar o
seu dote... Nós sabemos que não é assim, não sabemos? – A rainha aquies‑
ceu. – Tirou‑me os filhos, roubou‑me a possibilidade de ter netos e ela ain‑
da achava que tinha o direito de ter os dela?
– Tendes o Sebastião!
– Tenho? Até quando?
– Até sempre! Este é para sempre, porque a este, – explicava a rai‑
nha abanando a cabeça, – não ides sobreviver.
A opinião do meu avô oscilava entre dois extremos em relação ao

36
meu futuro, dependendo do tipo de melancolia que sofria: se apenas sauda‑
des dos filhos que partiram, ele achava que eu tinha vindo para ficar e que
estaria destinado a grandes feitos, se ódio pela sua madrasta e aí ele ficava
convicto de que eu morreria em breve.
– Posso não ter vencido, mas ela também não venceu...
A minha avó viu o rei levar a mão à cabeça, depois ao peito. As‑
sustou‑se pois ele calara‑se, a sua cor que por aquela altura já era clara em‑
palidecera mais. D. João III tremia, os seus olhos piscavam, os seus gestos
cessaram e as palavras também. Tinha a boca torcida e a língua presa. A rai‑
nha mandou chamar o confessor do rei e o físico‑mor. Aos criados ordenou
que fossem às igrejas da cidade pedir que se rezasse pelo rei e que saíssem à
rua procissões rogativas. Até a minha avó rezava, ela sabia que ele nunca a
amara, pelo menos não como à sua irmã, mas fora o pai dos seus filhos e...
Mas não era só isso, ela sabia‑o. Não queria admiti‑lo nem a si própria, tal
como não o admitiria a mim ao contar‑me os acontecimentos dessa noite
anos depois, mas ela amava‑o. Ela que desdenhava desse sentimento quase
tanto quanto eu, pois vira a sua irmã ser coroada com o amor que deveria
ser seu, e pior, vira a sua mãe enlouquecer de amor pelo seu pai e viver a
maior parte da sua vida enclausurada numa torre, por amor, por loucura
portanto.
O rei ainda queria falar, mas a sua língua entaramelava‑se. Ele ir‑
ritou‑se e gesticulou furioso, eram os ânimos da morte! O meu avô perdeu
a fala definitivamente e caiu em coma. Alguém trouxe um espelho e colo‑
cou‑o junto da boca do rei que já julgavam morto. A humidade do seu bafo
expandiu‑se na superfície do espelho. Estava apenas moribundo. O meu tio
cardeal ministrou‑lhe a extrema‑unção. Um a um, a maioria dos presentes
foi saindo, apenas a minha avó e o meu tio ficaram junto do meu avô e,
mesmo em coma, ela desconfiou que o marido ainda remoía os seus ódios e
amores por D. Leonor. Naquela altura não interessava qual dos sentimentos
levava a melhor, D. Catarina era a perdedora, e os últimos pensamentos do
marido eram para uma mulher que não ela.
De madrugada, o corpo do meu avô deu o derradeiro sinal de si.
Estremeceu para morrer em seguida. A minha avó aproximou‑se do seu
marido e fechou‑lhe os olhos. Ele acabava de morrer fulminado por uma
apoplexia, pelo menos assim disseram os médicos. Mas eu acho que não,
morreu fulminado por uma mulher, por D. Leonor. Eram assim as mulhe‑
res desta família, o seu amor matava. E não dizem que a sua mãe, a minha
bisavó, teria envenenado o seu marido?
Lembro‑me de nessa altura acordar a meio da noite, sobressaltado
pela balbúrdia, assustado pelas vozes que se amontoavam nos corredores,
vozes inquietas e embargadas. Recordo‑me perfeitamente daquela noite,

37
não precisando que D. Inês ou a minha avó me avive nem um momento
da mesma. Acordei sozinho no meu quarto, estava escuro, a Luz da lua
provocava sombras estranhas nas paredes, por um lado; por outro, os gritos
que me chegavam, vindos do lado dos aposentos do rei, não eram menos
assustadores. Percebi que o meu avô tinha morrido e sabia que ela, D. Leo‑
nor, tinha tido uma boa participação nisso.
No dia seguinte à sua morte, no sábado, às cinco da tarde em pon‑
to, o corpo do meu avô seguiu em cortejo fúnebre para o mosteiro dos
Jerónimos, vestido como Mestre que era da Ordem de Cristo. Segui na
carruagem real, sentado entre a minha avó e o meu tio, irmão do meu avô,
o cardeal D. Henrique. Eu passaria assim uma boa parte da minha vida,
entre um e outro. Aquela tarde era só o princípio. Guardei sempre comigo
a imagem da multidão que se espalhava nas ruas, desde o Paço da Ribeira
até Belém, de roupas escuras, mais do que o que era habitual, os seus rostos
também apagados. Eu seguia com o olhar o féretro do meu avô que se des‑
locava sobre andas. A imagem parecia‑me difusa, derretia‑se por entre as
chamas das velas que o circundavam, assim como a representação que eu
guardava dele. A partir dali viveria das recordações dos outros. Os gritos,
os choros, mas sobretudo as ladainhas, orações dos mortos, aceleravam
esse processo.

O rei tinha morrido e não deixara nenhum testamento a explicitar a sua


vontade. A rainha conhecia‑a, mas como comunicá‑la aos outros sem que
achassem que ela queria aproveitar‑se da situação para ficar com a regência
do reino? Nessa mesma noite, subiu ao Paço o secretário de Estado, Pedro
de Alcáçova Carneiro, para se reunir com o meu tio‑avô, o cardeal D. Hen‑
rique que, regressado do funeral do irmão, por aqui ficou aguardando esta
reunião, e, é claro, a minha avó. O primeiro, o secretário de Estado, era da
mais absoluta confiança da minha avó, o segundo, o cardeal, era necessário
para que a encenação que a rainha preparava resultasse.
Quando os dois entraram na sala de reuniões, a rainha já os espe‑
rava, sentada na cabeceira da mesa, no lugar que fora do rei, de semblante
majestoso, inabalável da sua autoridade, como se tivesse sido sempre seu
aquele lugar. É verdade que o rei sempre a pusera a par dos negócios do
governo e fora mesmo ela que nos últimos meses os tomara em mão, sem
descurar os interesses de Portugal. Mas antes o rei estava vivo. Como se‑
ria com ele morto? A rainha apontou‑lhes os seus lugares na mesa, eles
sentaram‑se sem nada dizer, olhando para ela, e esperando que iniciasse o
seu discurso.
– Sabeis porque vos chamei, não sabeis?
Ambos abanaram a cabeça em sinal de concordância.

38
– O rei morreu! Viva o rei! Mas o nosso rei só tem três anos, o que
nos deixa numa situação complicada.
Os seus dois interlocutores, embora não estivessem a olhar um para
o outro, assentiram com a cabeça em simultâneo, guardando para si, por
enquanto, as suas palavras.
– É preciso um regente para o reino, visto a tenra idade de D. Sebas‑
tião. Sabeis que o rei morreu sem deixar testamento, mas ele comunicou‑me
a sua vontade antes de partir.
– Que fôsseis vós a regente, calculo. – Atalhou o cardeal D. Henri‑
que, não disfarçando uma ponta de ironia.
O secretário‑geral mantinha‑se calado, tornando o seu olhar de
novo para a rainha.
– Folgo em saber que tão bem conhecíeis o vosso irmão. – Come‑
çou D. Catarina, esforçando‑se para a sua voz sair o mais naturalmente
possível, escondendo a ironia que lhe trespassava as palavras. – De facto,
foi essa a vontade que o rei me comunicou e também que eu cuidasse da
educação de D. Sebastião.
Pedro de Alcáçova Carneiro virava‑se agora para o lado do cardeal.
– Muito bem, que pretendeis de nós? – Perguntou secamente o car‑
deal, inclinando‑se para à frente.
– O vosso apoio.
– E se nós não o dermos?
A cabeça do secretário‑geral parecia um cata‑vento, girando ora
para um lado ora para outro.
– E se vós, Cardeal D. Henrique, não o derdes, quereis dizer, pois
com o apoio de Pedro de Alcáçova sei que posso contar.
Eram agora as cabeças da rainha e do cardeal a virarem‑se para o
secretário e a deste a experimentar uma imobilidade desconhecida desde
que entrara naquela sala.
– Bem sabeis que podeis contar sempre com o meu apoio. – Afir‑
mou o secretário, baixando ao de leve a cabeça em sinal de deferência.
O cardeal sabia que aquele não seria o único apoiante dela, e ele
também teria os seus, mas aquela não era a altura de ir contra o desejo da
rainha, ou do rei, a julgar pelas suas palavras. Este era o momento de ceder,
mas talvez desse os seus frutos no futuro. Após aturadas discussões do que
seria melhor para o reino, com o que o povo concordaria e o que lhes traria
a eles mais proveitos, os três concordaram em forjar um documento com as
últimas vontades de D. João III.
No domingo de manhã, foram convocados para o Paço, pela rai‑
nha, o cardeal D. Henrique, que não chegara a sair de lá desde a noite ante‑
rior, D. Duarte, filho do infante com o mesmo nome, D. António, os duques

39
de Bragança e de Aveiro, o conde de Vimioso e o barão de Alvito, os vedores
da Fazenda, o arcebispo de Lisboa e o regedor da casa da Suplicação e, cla‑
ro, o secretário de Estado, Pedro de Alcáçova Carneiro. Quando todos já
estavam reunidos, começou a encenação. O secretário‑geral afirmou que o
rei não deixara testamento, mas que, no entanto, tinha em seu poder docu‑
mentos escritos por ele próprio e pelo chanceler‑mor, Dr. Gaspar de Carva‑
lho. Eles continham o desejo do monarca falecido e, por isso, deveriam ser
tomados como uma verdadeira declaração testamentária, pois representa‑
vam as últimas vontades do rei: confiar à rainha a educação de D. Sebastião
e a regência do reino. Houve um compasso de espera, o tempo de mandar
chamar o chanceler‑mor para que este comparecesse ao Paço e confirmasse
as declarações do secretário de Estado, o que ele assim fez. Uma vez que os
presentes acreditaram na veracidade do documento, ou assim fizeram crer,
e votaram a favor da entrega da regência do reino à minha avó, foram então
convidados os vereadores da Câmara Municipal de Lisboa a darem o seu
voto. Estes votaram favoravelmente, mas lembraram que o senado deveria
ser reunido para se conhecer a vontade do povo.
Desde essa altura, enquanto ainda se desconhecia quem seria o re‑
gente ou quem seria meu tutor, já todos faziam vénias à minha passagem
e se apressavam em satisfazer todas as minhas vontades. Isso divertia‑me e
fazia‑me pensar que de facto o meu avô tinha razão: eu era especial.
No dia seguinte de manhã, a reunião continuou na câmara, mas
desta vez com a assistência também do juiz do povo, dos procuradores da
cidade e dos procuradores dos mesteres; a concordância não foi fácil e mui‑
to menos serena.
– Como podeis vós achardes que a regência do reino de Portugal
pode ser entregue a uma castelhana, tia e sogra de Filipe II? – Perguntou o
juiz do povo, não disfarçando a indignação que sentia por tal proposta.
– Por certo esqueceis que já há vários meses a administração do
reino é feita por mim! – Contrapôs a rainha, esforçando‑se por manter um
tom de voz sereno e grave, para aumentar a sua aparência de autoridade.
– E já nessa altura eu era tia e sogra de Filipe II, como bem lembrais, mas já
não era castelhana, pois deveis ter esquecido que, desde o meu casamento,
desde que sou rainha de Portugal, sou tão portuguesa como qualquer outra
de nascimento.
O juiz nada acrescentou e a rainha acabou por ser aprovada para
regente e minha tutora.
De tarde, iniciou‑se outra reunião. Esta, ao contrário das outras,
já de carácter oficial. A Pedro de Alcáçova Carneiro foi pedido que lesse
os documentos que transcreviam as últimas vontades do rei, uma vez que
tinham sido escritos por aquele.

40
O secretário de Estado levantou‑se e avançou para o meio da sala,
colocando‑se em frente aos presentes. Pôs o monóculo no olho direito va‑
garosamente, para aumentar a solenidade do acto, desdobrou as folhas de
papel que trazia consigo, limpou a voz, levantou o olhar para os presentes
antes de começar e depois mergulhou a cara nos documentos, talvez para
que não notassem que mentia.
– Eu, D. João III, Rei de Portugal e dos Algarves d’Aquém e
d’Além‑Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Co‑
mércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, por mão do digníssimo secretário
de Estado, senhor Pedro de Alcáçova Carneiro... – Leu levantando a voz
nestas últimas palavras e continuou num tom mais moderado até ao fim,
dando ao conhecimento dos presentes que era de vontade do rei que D.
Catarina fosse a tutora do neto e que a regência do reino lhe fosse entregue
até ele completar vinte anos.
Acabada a leitura, Pedro de Alcáçova Carneiro dobrou os docu‑
mentos, pousou‑os sobre a mesa e colocou a sua mão direita sobre os San‑
tos Evangelhos, que já ali se encontravam para o efeito e jurou sobre eles
que aquela que acabara de ler era a derradeira vontade d’el‑rei e Senhor D.
João III.
– Não me atrevo a tomar sozinha os trabalhos de tão grande carga,
– começou a rainha, espantando os presentes com o início do seu discurso.
– Porém, reconhecendo a grande confiança que o rei e Senhor D. João III
depositava em mim e por ser essa a sua derradeira vontade, e por ser meu
grande gosto satisfazer a sua, e cumprir, até à morte, o que por Sua Alteza
Real me foi ordenado, eu aceito tal missão, mas contando que o senhor
cardeal infante D. Henrique aceite partilhar este fardo comigo em todos os
assuntos apontados pelo Senhor meu marido, el‑rei de Portugal.
Antes que os presentes conseguissem assimilar tudo o que lhes fora
dito até aqui pela rainha, Pedro de Alcáçova Carneiro resolveu intervir:
– É meu dever acrescentar, uma vez que fui o escrevente das der‑
radeiras vontades de nosso rei e Senhor que, por tudo o que dele ouvi,
compreendi ser seu o desejo de que o seu irmão, o cardeal D. Henrique,
também ajudasse a senhora rainha na causa da governança do reino e na
educação do neto.
As atenções viravam‑se agora para o cardeal, mesmo antes de este
responder à questão que lhe colocavam. O cardeal D. Henrique esperou um
pouco antes de se pronunciar, para dar a ilusão que ponderava no que aca‑
bava de ouvir e que preparava uma resposta. O silêncio instalou‑se e, antes
que este se tornasse incómodo, o cardeal começou a falar, dando em tudo a
aparência de surpresa nas palavras que acabava de ouvir.
– Pois se minha Alteza assim mo ordena, e sendo este serviço tam‑

41
bém vindo de Deus, será também meu, sentindo‑me muito feliz por nesta
tarefa a poder ajudar. – Respondeu o cardeal, destacando‑se dos outros,
avançando na direcção da rainha e beijando‑lhe a mão.
Imitando o cardeal, todos os presentes, um a um, se deslocaram
até à rainha, beijaram‑lhe a mão e comunicaram que aprovavam a vontade
que o mui digníssimo Senhor rei D. João III declarara. Ali estava a minha
avó, se não na posição que sempre desejara, pelo menos numa que muito
lhe agradava, olhando de cima para os seus vassalos, cada um por sua vez
colocando um joelho no chão para lhe beijar a mão. Ali estava ela, com
cinquenta anos, de pele quase tão clara quanto na sua juventude, com um
certo viço até, apesar de ter sido mãe por nove vezes e por igual número
ter perdido os seus filhos, acabada de enviuvar, mas altaneira diante dos
seus vassalos, como árvore que nenhum vendaval derruba. Ali estava ela,
D. Catarina de Portugal, que já fora de Áustria, com toda a herança dos
Hasburgos a saltar‑lhe pelos poros, sentada no trono de Portugal.

Apesar da minha tenra idade, julgo que nunca esquecerei a imagem que se
oferecia aos meus olhos de criança, assim como porventura não a esquece‑
rão os presentes, o dia em que fui aclamado rei. O mês de Junho ia apenas a
meio, mas o calor que se sentia no palácio era enorme, apesar de a maioria
das suas janelas estarem abertas. Os ilustres convidados para o acto solene
da minha aclamação como rei começaram a acorrer ao palácio à uma da
tarde. Uma hora depois, entrava eu na sala do trono repleta de gente levado
por D. Lopo de Almeida, um pajem da companhia da rainha. Apesar da
numerosa presença, à minha entrada o burburinho que eu ouvia ainda nos
corredores morreu. Eles mal respiravam para não quebrarem o silêncio que
se pretendia ser sepulcral, mas o ressoar dos saltos dos meus botins nos
mosaicos quebravam‑no a intervalos constantes.
Eu tinha de me deslocar de forma delicada e com passos de dimen‑
são igual e as botas não me ajudavam em nada. Eu vestia de cetim branco e
os botões eram de ouro, levava na cabeça uma gorra também branca com
duas plumas da mesma cor. Dos ombros caía‑me a Opa Real, igualmente
de cetim e a sua cauda era levada pelo filho primogénito do duque de Avei‑
ro. Caminhei até ao trono com os olhos postos neste, pois eu tinha sido
instruído a permanecer com o olhar impenetrável, a não deixar que ele se
desviasse para o lado, distraído por um ou outro fidalgo.
Ao chegar junto do trono, suspirei de alívio; conseguira atravessar
a sala sem tropeçar. No entanto, ainda havia um outro obstáculo, também
difícil de transpor: sentar‑me no trono sem ajuda de ninguém. Para meu jú‑
bilo tinha sido colocado junto dele, especialmente para o efeito, um degrau
de madeira. A altura das botas dificultava o meu equilíbrio, mas de novo

42
tinha de levar a cabo os meus movimentos com graciosidade. A minha avó,
que se sentou ao meu lado esquerdo, mas só depois de mim e por isso ob‑
servava com atenção os meus passos, não conteve um sorriso. Percebi que
me aprovava.
Apesar de rei, ainda tinham consciência de que eu era um menino.
Por isso, de um lado colocaram, para me entreter, uma aia e do outro a mi‑
nha ama. Na minha mão foi‑me colocado um pequeno ceptro de ouro que
a aia me ajudava a segurar.
Na cabeça da minha avó já lhe assentava a coroa, faltava na minha.
Afinal era para isso que ali estávamos. O bispo aproximou‑se de mim, se‑
gurando no ar com as duas mãos a coroa do rei, a minha, e depositou‑a
sobre a minha cabeça. A sensação mais viva de que eu me recordo desse dia
foi justamente o peso que a mesma exercia sobre o crânio e a impressão do
pescoço parecer afundar‑se entre os ombros.

Castela, noviciado de Simancas

Não havia ruído no convento. As grossas paredes de pedra não deixavam


chegar aos ouvidos dos que o habitavam os ruídos da rua. Se não fosse pelas
janelas, o silvar agreste das árvores – pois para o chilrear dos pintarroxos
ainda era cedo – não chegaria aos ouvidos dos monges e dos padres. E se
assim fosse, quando estes acordassem do seu sono ou das suas meditações,
poderiam iludir‑se e acreditar que tinham sido transportados para uma di‑
mensão diferente, talvez já para junto do Criador.
O padre Francisco de Borja levantou ligeiramente a cabeça da es‑
teira. Colchão e almofada não os tinha. Olhou na direcção do pequeno
orifício rectangular que lhe servia de janela. Estava escuro, mas já não era
de noite. A escuridão começava a ser penetrada pela luminosidade. Sorriu,
pois passara a noite sem pregar olho e finalmente alvorecia. Olhou para as
camas dos seus companheiros de cela, os padres Dionísio Vásquez e Fran‑
cisco de Bustamante ainda dormiam. Apenas o silvar ruidoso das árvores
continuava a atrapalhar o silêncio do mosteiro. Deveria estar um vendaval
lá fora, pensou. Levantou‑se, tentando deixar o mosteiro continuar silen‑
cioso. Os seus olhos estavam habituados à escuridão e, apesar de ténue, a
luminosidade vinda do exterior permitia‑lhe adivinhar os contornos das
paredes. Calçou as sandálias e caminhou até ao corredor. Das poucas vezes
que conseguira conciliar o sono nesta noite, acordara sempre com a lem‑
brança do imperador. Na realidade ele já não o era, uma vez que dividira o
seu império e o distribuíra pelo irmão e pelo filho, mas uma pessoa habi‑

43
tua‑se aos títulos e como chamar agora D. Carlos V, senão por imperador?
O padre já ia nas escadas. Levava na mão uma vela, pois, como ali não havia
janelas, não chegava lá qualquer luminosidade. Em contrapartida, também
não se ouvia o vento. Um bater furioso, vindo do andar de baixo, da porta‑
da principal, surpreendeu‑o. Assustou‑se e deixou cair sobre os dedos um
pedaço de cera ardente. Praguejou, mas imediatamente se benzeu e pediu
perdão ao Senhor pelas suas más palavras. De novo, as batidas fortes tor‑
naram a quebrar o silêncio do mosteiro. O padre Borja apressou‑se, mas
não o suficiente para que o visitante não se sentisse no direito de voltar a
esmurrar a porta. De cima, começavam a chegar ruídos diversos. Vários
padres e monges deveriam ter sido despertados. Quando já estava quase ao
alcance da porta, as pancadas voltaram a troar. Dali eram ensurdecedoras.
As dobradiças tremiam nos seus encaixes.
– Quem vem lá? – Gritou o padre.
– Mensageiros do rei!
– Mas o rei não está em Castela!
– Trazemos mensagem de quem o substitui, da princesa D. Joana
de Portugal!12
O padre Borja espreitou‑os pelo postigo. Tinham de facto aspecto
de soldados reais, por isso resolveu‑se a abrir‑lhes a porta.
– Senhor, – principiou um deles, procurando a mão do abade para
a beijar e pedir‑lhe a bênção, – deixai‑nos entrar que passámos a noite na
estrada para vos alcançar o mais rapidamente possível.
– Felizmente, galopávamos a favor do vento. Se não, com esta ven‑
tania toda, ainda aqui não teríamos chegado! – Acrescentou outro.
– Pois entrai meus filhos! – Entalhou, dando‑se conta que estava a
ser um péssimo anfitrião e ainda um pior cristão, deixando aqueles viajan‑
tes na rua à mercê dos elementos.
Os quatro homens estavam com mau aspecto, cansados, molhados
e trementes, pois tinham apanhado chuva pelo caminho. O padre Borja e
os seus irmãos acenderam‑lhes a lareira e trouxeram‑lhes de comer. Um
dos soldados, o que estava incumbido das conversas, a meio da refeição
sobressaltou‑se; esquecera‑se de entregar a carta que trazia. O envelope
encontrava‑se lacrado com o selo real. O padre Borja aceitou a missiva e
afastou‑se para a ler com maior privacidade. Era efectivamente uma men‑
sagem de D. Joana de Portugal, mas transmitia a vontade do seu pai, D.
Carlos V. Este convocava ao mosteiro de São Justo, com a maior brevidade,

12
D. Joana, mesmo depois da morte do príncipe D. João Manuel, continuou ofi‑
cialmente a ser designada por princesa de Portugal, Queiroz Velloso, D. Sebastião
1554‑1578, p. 27.

44
o abade para um encontro, não revelando no entanto o seu motivo. Era‑lhe
permitido fazer‑se acompanhar por outros dois frades. Ele assim fez, esco‑
lhendo os padres Dionísio Vásquez e Francisco de Bustamante, os mesmos
que dividiam a cela consigo.
O porta‑voz dos emissários reais, notando que os seus companhei‑
ros já tinham acabado de comer e que o padre Borja também terminara de
ler a carta da princesa, atreveu‑se a interromper os pensamentos nos quais
o abade já estava absorto. Limpou a voz antes de começar a falar para des‑
pertar a atenção do seu interlocutor.
– Padre, tem de partir o quanto antes, talvez o melhor seja vir con‑
nosco. Desta forma estará protegido de algum eventual salteador que vos
apareça ao caminho.
O padre Borja inclinou a cabeça num gesto ambíguo, e o emissário
não se atreveu a perguntar‑lhe o que significava. Ficaria por ali mais um
pouco e já descobriria. Apesar de os seus gestos parecerem lentos, rapida‑
mente os três padres se aprontaram para a jornada.

Os viajantes seguiram para oeste, para a Extremadura. Passaram Jarandilla


e subiram a serra de Tormantos; dirigiam‑se para o local escolhido por D.
Carlos para passar o resto dos seus dias, aparentemente afastado dos negó‑
cios de Estado. Mas, se assim era, porque se fazia todo este secretismo em
torno desta jornada, interrogava‑se por vezes o padre Borja.
Os viandantes prosseguiam por veredas que se abriam estreitas por
entre os densos castanheiros e carvalhos. O caminho era ascendente e difícil
para se fazer a cavalo, tornando a progressão lenta. O padre Borja sentia‑se
ansioso, pois a amizade que nutria por D. Carlos V fazia‑o desejar satisfa‑
zer o seu pedido o mais rapidamente possível. Apesar de a responsabilida‑
de do vagaroso avanço ser apenas devido à agressividade dos elementos,
atormentava‑o a ideia de que o ex‑imperador pudesse atribuir a demora a
alguma má vontade sua.
Finalmente chegaram ao eremitério de Nossa Senhora, cuja auste‑
ridade era dilatada pelo afastamento do local. O padre Borja teve de ceder
à vontade da maioria e fazer uma paragem por ali. Só nesse momento per‑
cebeu o quanto já tinham viajado. Essa percepção súbita depressa se desva‑
neceu e logo o padre ordenou que se retomasse a jornada.
Após tantas léguas de carvalhos e castanheiros, o vislumbre de uma
outra espécie de árvore trazia consigo a proximidade do dever cumprido.
Uma nogueira de tronco volumoso assinalava a entrada do mosteiro de São
Justo, a actual morada do ex‑imperador. O padre Borja contornou a árvore,
dando entrada no pomar de figueiras e laranjeiras do mosteiro. Os seus
passos mantinham‑se dinâmicos apesar dos rigores da viagem. A sua leal‑

45
dade para com D. Carlos V faziam‑no ignorar o cansaço. Quando alcançou
as margens do pequeno lago, os seus companheiros já tinham ficado para
trás. A noção de que não eram eles que eram aguardados retirava‑lhes o
dinamismo que sobrava no padre Borja. Junto ao jardim, que dava para a
porta dos aposentos privados de D. Carlos V, esperava‑o o mordomo que
o acompanhou ao quarto do imperador. O luto das paredes não deixava de
impressionar o padre, que há pouco atravessara o jardim luxuriante mesmo
à entrada destes aposentos que mais se assemelhavam a um féretro. Das pa‑
redes escuras dependuravam‑se, em intervalos constantes, quadros. Num
deles reconheceu a imagem de D. Isabel, a falecida esposa de D. Carlos.
O mordomo abriu a porta de um quarto e estendeu o braço ao pa‑
dre Borja, incitando‑o a entrar. Mal o fez, a figura do imperador apare‑
ceu‑lhe grave, mas afectuosa, na sua frente. Após os cumprimentos iniciais,
o ex‑imperador comunicou finalmente os seus propósitos ao padre Borja.
– Talvez já tenha chegado ao vosso conhecimento que o rei D. João
III de Portugal faleceu. – O imperador fez uma pausa nesse instante, espe‑
rando uma resposta do ex‑duque de Gandia. Este abanou negativamente a
cabeça. – O seu neto foi aclamado rei, o meu neto, o príncipe D. Sebastião,
filho da minha filha Joana. Mas eu tenho outro neto, ou seja, o falecido
rei D. João, meu cunhado, tinha outro neto, D. Carlos, filho do meu filho
Filipe.
– Sim, de acordo. Mas onde quereis chegar? O infante D. Carlos
pode ser o filho varão do seu filho, mas o príncipe Sebastião é o primogé‑
nito de D. João Manuel.
– De acordo! – Assentiu de pronto o imperador. – Mas o infante D.
Sebastião é jovem, muito jovem. O seu pai morreu aos dezassete anos, os
seus tios e tias muito antes disso. À excepção da minha nora, os outros não
ultrapassaram os seis anos de idade.
– Sim, é facto. – Respondeu o padre Borja, sem saber exactamente
o que dizer.
– Não estais a perceber onde quero chegar, pois não? – Percebendo
um esgar no rosto do seu interlocutor que confirmava o que dizia, con‑
tinuou. – O meu neto Sebastião é muito jovem, está em boa idade para
morrer!
– Não quereis dizer o contrário? – Perguntou o padre entre o incré‑
dulo e o assustado.
– Não! – Contestou o imperador. – Não percebeis? Os seus antece‑
dentes familiares enterram‑no praticamente em vida!
– Mas não são eles os mesmos do vosso outro neto? – Deixou o
padre Borja escapar, arrependendo‑se mesmo antes de acabar a frase. – En‑
fim, os tios do príncipe Carlos são os mesmos dos do infante Sebastião.

46
– Acrescentou, pois, uma vez que o pior já fora dito, mais valia acabar logo
o seu pensamento.
– Ó meu caro amigo, não sabeis como estais enganado!
– Elucidai‑me por favor!
– Éreis mais perspicaz quando éreis duque. – Disse, deixando es‑
capar um sorriso malicioso. – Não vedes que no meu neto Sebastião é a
semente do pai que está envenenada? No caso do Carlos é apenas o ventre
da mãe e bem sabeis que a semente do meu filho é tão sã quanto a minha,
basta olhardes para D. Filipe! E a semente de um homem vale mais do que o
ventre de uma mulher! Não tenho dúvidas de que Sebastião morrerá muito
antes de Carlos e, se isso de facto acontecer, eu quero assegurar o trono de
Portugal para o meu neto que, sendo um legítimo descendente de D. João
III, tem todo o direito a ele! Além disso, ainda realizamos o sonho do bisavô
dos infantes: “dois reinos, uma coroa”, mas na cabeça de D. Carlos!
Vendo a estupefacção no rosto do seu interlocutor, o imperador
resolveu acrescentar:
– Mas não me interpreteis mal, eu não desejo a morte do meu
neto!
– Por Deus, claro que não, nem semelhante coisa me passou pela
cabeça.
Nos pensamentos do padre Borja já se perfilavam os traços da
missão que o imperador lhe incumbiria. Momentos mais tarde já ele ti‑
nha acesso a todos os meandros do plano. O padre deveria ir a Portugal,
de preferência com os seus companheiros monges, com a missão oficial
de apresentar as condolências de Carlos V à sua irmã, D. Catarina, mas as
suas verdadeiras intenções seriam obviamente outras. Deveria informar‑se
de como seria estabelecida a sucessão portuguesa, persuadindo a rainha a
reconhecer o direito de sucessão do infante D. Carlos, seu outro neto, caso
viesse a suceder algo a D. Sebastião, e a publicar a pragmática que o reco‑
nhecia. Era também sua incumbência perceber se a rainha recebera qual‑
quer proposta do embaixador francês para o enlace de uma filha do rei de
França com o príncipe Sebastião, a qual deveria de imediato ser recusada,
lembrando a D. Catarina as vantagens do casamento do seu neto com uma
princesa da Boémia. E havia ainda mais um pedido a fazer a D. Catarina:
que activasse a saída da infanta D. Maria para Castela, onde D. Leonor a
esperava impaciente.
As actuais vestes de padre, no antigo duque de Gandia e futuro
santo Francisco de Borja, eram o disfarce perfeito para o papel de espião
que ele iria desempenhar, pois como jesuíta podia discretamente atravessar
a fronteira, conseguir uma audiência com a regente, medir a pulsação da
nação e fazer chegar todas as informações ao retirado imperador.

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Foi num ardente dia de Agosto que o santo homem Francisco entrou como
espião em Portugal, atravessando a fronteira pelo Alentejo. Mas uma grave
doença obrigou‑o a demorar‑se em Évora. Em Setembro, restabelecido o
suficiente para viajar, chegou finalmente à Aldeia Galega, de onde embar‑
cou para Lisboa, descendo no Paço de Xabregas e dali passando à casa pro‑
fessa de São Roque. Pois que melhor lugar que uma casa de Deus para um
futuro santo conspirar?
Para a rainha regente de Portugal era muito claro o direito de suces‑
são do seu neto D. Carlos, caso D. Sebastião viesse a falecer. Para os portu‑
gueses essa claridade era turva. Por isso e apesar de redigida, a pragmática
nunca foi editada.
– D. Carlos, vosso irmão, tem mais um pedido para vós.
– Dizei‑mo, por favor, terei todo o gosto em satisfazer o pedido do
meu irmão... se estiver ao meu alcance.
– Estará, por certo. É bem mais fácil do que a pragmática e con‑
seguísteis pelo menos que fosse redigida. Sabeis que é do gosto da vossa
irmã rever a sua filha, a qual foi obrigada a cá deixar por ordem do vosso
marido. E é do gosto do vosso irmão que a vontade de D. Leonor seja
atendida.
D. Catarina sentiu um calor invadir‑lhe o rosto. Aquela podia ser a
vontade dos seus irmãos, mas não era a sua. Nunca seria.
– D. Leonor não foi obrigada a deixar cá a filha por ordem do meu
marido. Essa era uma alínea do contrato matrimonial. Bem sabeis que os
infantes portugueses ficam em Portugal! Creio que o mesmo acontece
com os de Castela.
O jesuíta sentiu naquele momento que tocara num ponto me‑
lindroso para D. Catarina, mais do que o possível falecimento do seu
neto.
– Sim, é certo. – Resolveu concordar, sem mais apelos. – Mas a si‑
tuação mudou, o vosso marido morreu e vós sois a regente. Ela é vossa
irmã! Será que vós, que perdesteis todos os vossos filhos, não vos condói o
facto de D. Leonor nunca ter podido ver a sua filha, como se ela também
estivesse morta?
Sem saber, o padre estava a tocar numa dor de D. Catarina. Afinal
era àquela sua irmã que o seu marido tão veementemente atribuía a cul‑
pa das mortes dos infantes e ela concordava com ele. Não, não se condoía
com a dor da sua irmã. Na realidade, até a achava pequena. A sua era pelo
menos nove vezes maior. Teve vontade de dizer ao padre, mas conteve‑se e
respondeu‑lhe apenas:
– Quanto a isso, nada posso fazer.
– Como nada podeis fazer? – Perguntava atónito o padre Borja, que

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se habituara à prestabilidade com que a rainha de Portugal atendera o outro
pedido do seu irmão e mais difícil do que este. Apenas a má vontade de ter
de pagar o dote de 400.000 dobras de ouro de D. Maria, que se encontrava
estipulado desde o contrato matrimonial de D. Manuel e D. Leonor, ocorria
ao padre como razão para aquela recusa. D. Catarina, desconfiando das
suspeitas do padre, lembrou‑se de umas das últimas palavras do marido:
“Todos julgam que eu não o fiz com medo de desfalcar o erário público para pagar
o seu dote. Nós sabemos que não é assim, não sabemos?”, agora apenas ela sabia
que não era assim. Ela e com certeza a sua irmã.
De sucesso de Portugal, o santo homem acabou por levar apenas
a concordância da rainha em não aceitar casamentos para o seu neto com
a Casa Real Francesa e a sua boa vontade em aceder às vontades do seu
irmão.

Durante trinta e quatro anos, D. João III segurou com mão de ferro o bra‑
ço de D. Maria para que esta não visitasse a mãe. Os seus motivos eram
sobejamente conhecidos por D. Catarina e até aceites, mas o marido mor‑
rera e a influência do seu irmão era maior. Agora tornara‑se apenas num
assunto de irmãos: o pedido de D. Carlos V, que D. Catarina não se iludia
tratar‑se de uma ordem para, por sua vez, satisfazer o desejo da sua irmã D.
Leonor, e havia ainda a rainha viúva da Hungria, D. Maria de Áustria, sua
outra irmã, cujas simpatias recaíam para que a sobrinha visitasse a mãe.
Era ela sozinha contra o clã da Casa de Áustria, e agora não tinha o marido
com o qual se desculpar junto dos irmãos. É difícil manter uma posição
quando todos os oponentes são os irmãos; dá a sensação que se é o traidor
da família. Por outro lado, a quem é que se deve mais lealdade, à família
de onde se vem ou àquela que se faz? Ela perdera nove filhos. Será que os
irmãos apenas conseguiam perceber os interesses de D. Leonor? Era óbvio
que D. Leonor era culpada de tal fatalidade, pelo menos no coração de D.
Catarina. Foi nessa altura que ela sentiu, pela primeira vez e genuinamente,
a falta do marido, não para lidar com os assuntos de Estado, mas para po‑
der fazer frente aos seus irmãos. Se havia algo na vida pelo qual os corações
de D. Catarina e D. João III batiam em uníssono, era no desejo de nunca
deixar D. Maria de Portugal reencontrar‑se com a mãe. D. João III fazia‑lhe
falta; ele impediria esse reencontro sem qualquer pejo de laços sanguíneos
que o contivesse, e D. Catarina aproveitaria a sombra do marido para se
escusar com a família. O rei fazia falta à rainha porque ela percebeu que o
reencontro entre mãe e filha seria inevitável. D. Catarina não tinha meios
de impedi‑lo, mesmo com a pouca vontade da própria sobrinha.
D. Maria de Portugal crescera órfã de pai e mãe – um porque mor‑
rera de facto, a outra porque a fizera sentir‑se assim – e com um débil amor

49
fraternal por parte dos filhos de D. Manuel. No entanto, ela não se iludia.
Sabia que não podia esperar muito mais da sua família de Castela. Se a que‑
riam de facto, porque mandara o imperador D. Carlos cancelar as adianta‑
das negociações para o matrimónio com o seu filho D. Filipe? O casamento
de D. Maria com o herdeiro castelhano tê‑la‑ia tirado de imediato de Portu‑
gal, catapultando‑a sem mais apelos nem agravos para os braços da sua fa‑
mília espanhola. No entanto, o imperador D. Carlos preferira a ascendência
da rainha Maria Tudor de Inglaterra, para noiva do filho. Por isso, que não
lhe viessem agora com histórias de encantar sobre o amor que para lá do
reino lhe devotavam. Amor por amor, ficaria em Portugal, onde pelo me‑
nos pelos seus súbditos era genuinamente amada. Há trinta e quatro anos,
quando a mãe se preparava para partir, a cidade de Lisboa opôs‑se a que D.
Leonor levasse a infanta de Portugal para Castela. Agora andava de novo
alvoraçada com a perspectiva de que isso acontecesse.
– Pois se a mãe a quer ver e a infanta assim o desejar, que se encon‑
trem numa qualquer povoação da raia!
– Mas que volte logo para o reino, que nada de bom lhe poderá
advir de passar a Castela.
Era este género de frases que se ouviam nas tabernas de Lisboa,
onde cada súbdito julgava poder controlar por sua vontade as decisões dos
seus soberanos... De facto, assim acabou por ser! D. Maria partiu para se
encontrar com a mãe, mas numa povoação da fronteira e, mesmo antes
disso, prestou um juramento solene de que regressaria.

A infanta de Portugal, como tantas vezes a tinham chamado nesta última


semana, provavelmente para não a fazer esquecer a sua verdadeira origem,
partiu em Dezembro para Badajoz, acompanhada por uma extensa comi‑
tiva de fidalgos e damas. Na realidade, não lhe interessava assim tanto co‑
nhecer a mãe. Parecia ser hábito naquela família as mães abandonarem os
seus filhos, pois D. Joana, sobrinha da sua mãe, também abandonara o seu
filho, D. Sebastião.
À entrada de Badajoz, uma ostensiva carruagem real esperava no
caminho pela passagem da comitiva portuguesa. D. Leonor acompanhada
pela sua irmã D. Maria de Áustria, não contendo mais a expectativa da es‑
pera, decidira vir ter com os portugueses. A infanta portuguesa percebeu
que não poderia adiar por mais tempo aquele reencontro, assim como as
intenções da mãe. Apesar dos pedidos dos fidalgos e das damas, D. Maria
desceu da sua carruagem, caminhou e entrou sozinha na da mãe, fechando
de imediato a porta atrás de si para que o tão ansiado reencontro fosse feito
longe de olhares alheios.
As duas mulheres de Áustria olhavam mudas para D. Maria en‑

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quanto a carruagem retomava a sua marcha, e aquela devolvia‑lhes o
olhar. Havia um desconforto entre si. D. Leonor imaginara muitas vezes
aquele dia, mas a sua imaginação criara uma filha mais calorosa do que
aquela que via sentada na sua frente. Lembrou‑se inevitavelmente do dia
em que a sua posição era inversa: era ela a filha diante de uma mãe que
desconhecia e não via há mais de uma década. Tinha na altura dezanove
anos e também não fora calorosa para a mãe. Do que se queixava ela en‑
tão? Se o tempo tem memória e os nossos gestos se pagam, estes estavam
a saldar‑se agora.
De frente para as duas mulheres, D. Maria reconheceu de imediato
qual delas seria a sua mãe, não porque lhe guardasse qualquer recordação
dos vinte e três meses que vivera com ela, mas pelos retratos dela no Paço.
A medo, D. Leonor decidiu quebrar o gelo, arriscando um abraço, mas os
braços que a envolveram eram o próprio gelo.
– Este é o dia por que vivi nestes últimos trinta e quatro anos. – Co‑
meçou D. Leonor, tentando que a aproximação com a sua filha resultasse.
Depois tentou uma frase com mais impacto. – Tudo na minha vida, fi‑lo
para que os meus passos me conduzissem a este momento.
– Bastava que os vossos passos não vos tivessem levado de Portugal
para que não tivésseis tido de esperar trinta e quatro anos!
Trinta e quatro anos, tantos dias de tristeza, muitas noites de insó‑
nia, incontáveis horas de choro e, num minuto, numa única frase, a reve‑
lação que tudo isso era nada. D. Leonor fechou os olhos. Não choraria. A
sua filha estava perdida para sempre e não havia nada que pudesse fazer ou
dizer que alterasse isso. Era definitivo.
Mas D. Maria ainda não tinha acabado.
– A vossa mãe viveu encarcerada numa torre a maior parte da sua
vida, isso foi o que a impediu de voltar a ver‑vos. E a vós, o que vos impe‑
diu?
D. Leonor baixou o rosto. O tempo tinha de facto memória. Ela es‑
tava a pagar agora a indiferença com que encarou a mãe naquela tarde dis‑
tante e sombria de Tordesilhas. Depois, o rosto do seu enteado, D. João III,
assomou‑se‑lhe na ideia e havia uma razão para isso: a certeza inabalável de
que foram precisos trinta e quatro anos para saber que ele era o vitorioso,
apesar dos seus dez filhos mortos.

51
Capítulo V
1558 – O Ano do Aio

E m Fevereiro chegou ao palácio a notícia de que D. Leonor morrera.


O seu nome era malquisto para nós, embora ninguém o admitisse.
Eu ainda me lembrava da noite em que o meu avô falecera e de
como achei que esta senhora estava relacionada com isso. Resta o consolo,
se ele servir para alguém, que poucas semanas após ter recebido a visita da
filha em Badajoz, D. Leonor faleceu de uma febre maligna quando regres‑
sava desse encontro. O facto de ter ido encontrar a morte em Talaveruela,
uma terriola longe dos seus, tendo como única companhia a sua irmã, não
comoveu a minha avó.
Não era de ânimo leve que a rainha me contava este episódio. Vá‑
rios anos volvidos e a sua lembrança ainda fazia a voz de D. Catarina, a
mulher dos vestidos negros e semblante que parecia inabalável, enrouque‑
cer e tornar‑se mais lenta, como se mastigasse algo que ainda lhe custava
engolir.
– Senti a morte dela. Não como se sente a morte de uma irmã, mas
como um alívio. Agora que falecera, talvez morresse com ela a maldição
que lançara sobre a nossa família. Se ela não morrera antes que todos os
meus filhos finassem, pelo menos partiu deixando‑me vivos dois netos.
– A minha avó limpou a voz, fazendo‑a perder o seu tom rouco, retomou
o fôlego e continuou:
– Sabeis, ela não roubou apenas a vida dos meus filhos. O amor
do meu marido sempre foi dela, nunca meu. Julgueis que a melancolia
dele, nos últimos meses da sua vida, quando o víeis na sua poltrona a
olhar o rio, se devia apenas ao desaparecimento dos infantes? Que jul‑
gáveis vós que ele via no Tejo? Não era nas águas que o seu pensamento
se perdia, era no ancoradouro! O mesmo ancoradouro que viu chegar
aquela que deveria ter sido a sua noiva, e apenas alguns anos depois par‑
tir o maior ódio da sua vida. Uma e outra eram só uma: o seu amor. Eu
era apenas...
A minha avó dirigiu‑me um olhar recriminador, sempre lhe caíra
mal o afecto que o meu avô me votava, como se aquele também fosse im‑
peditivo do meu avô a amar. Baixou os olhos por uns momentos. Quando

52
tornou a levantá‑los na minha direcção, estavam frios e vazios, como lhe
era costume e, num tom que seria de confidência se não fosse D. Catarina
a fazê‑lo, concluiu:
– Eu era apenas a irmã dela, a melhor aproximação que ele con‑
seguiu de D. Leonor.
Isto foi o que a minha avó me contou muito mais tarde, mas eu
ainda guardo uma recordação desse dia. D. Catarina percorria incansa‑
velmente os seus aposentos de ponta a ponta, esbracejando, ruminando
frases que mal entendia, numa agitação frenética, como se dialogasse
com alguém, por certo com o meu avô. Lembro‑me de uma das suas ru‑
minações, não por ter sido pronunciada com melhor dicção do que as
outras, mas porque, pelas vezes que a repetiu, pude reconstituí‑la pedaço
a pedaço:
– Se ao menos tivéssemos sabido que bastava ver a filha por uns
instantes e voltar a tirar‑lha para que ela morresse, já o teríamos feito e
talvez assim algum dos nossos filhos ainda vivesse. – Ouvi‑a durante o
dia em que recebeu a notícia, todo o seguinte e pelo menos boa parte
do outro, pois desde que o meu avô morrera, eu vivia fechado nos apo‑
sentos da minha avó, tendo apenas como companhia a minha ama. D.
Catarina parecia querer guardar‑me para algum desígnio do seu irmão
Carlos V, mas este também não duraria muito mais. O imperador veio
a falecer em Setembro, volvidos que estavam sete meses sobre a morte
da sua irmã D. Leonor, que, dizem, era a sua preferida. Em Outubro
desapareceu D. Maria, a outra irmã, a antiga rainha da Hungria. Na rea‑
lidade, D. Leonor, D. Maria, D. Carlos e até D. Isabel, mas esta já morrera
há muito, formavam o núcleo duro da casa de Áustria, pois eles foram
criados juntos na Flandres, enquanto a minha avó vivia na penumbra
da torre de Tordesilhas com a sua mãe. Algo dentro dela sempre a fizera
sentir‑se excluída da Casa de Áustria. Havia uma cumplicidade entre os
seus irmãos que não lhe pertencia. Em oito meses desaparecia quase por
completo o clã da Casa de Áustria, os mesmos com quem a minha avó se
opusera pela visita de D. Maria de Portugal à mãe e para quem tivera de
ceder. Mais uma prova para D. Catarina de que ela estava fora dos laços
que os uniam. De alguma forma sentia‑se agora vingada: ela cedera a
eles, eles à morte.
– Um dia é da caça, outro do caçador. – Deixou escapar a minha
avó certa vez.

D. Inês penteava‑me pacientemente os caracóis, com desvelo para me sol‑


tar os fios de cabelo emaranhados sem me magoar, com a mesma devo‑
ção de uma mãe. A minha avó proibira‑me de gritar quando os dentes do

53
pente se prendessem num nó de cabelo, pois esse tipo de manifestação era
típico de meninas, achava ela, e eu obedecia sem grande dificuldade, pois
o cuidado da minha ama era tal que raramente me causava dor ao pentear.
Quando acabou, levou‑me pela mão até à biblioteca, onde me tinham dito
que alguém me esperava. Ao empurrar a maçaneta da porta, esta abriu‑se
para trás revelando‑me de imediato um vulto de homem. Ele estava de
costas, era alto e, a mim que ainda era pequeno, maior me pareceu. Os bra‑
ços dobravam‑se atrás das costas, mas o tronco era completamente direi‑
to, como se tivesse engolido um fuso. A idade não lhe trouxera nenhuma
marreca, apenas lhe esbranquiçara o cabelo. Mesmo dali pareceu‑me forte
e firme, desdenhando da sua idade. Ele virou‑se, colocando‑se de fren‑
te para mim. O seu rosto ostentava barbas e sobrancelhas fartas e alvas.
Apesar de traços graves, como um nariz adunco, olhos e maçãs do rosto
encovados, onde a velhice sugara qualquer indício de gordura, provocava
simpatia. Esta advinha dos seus olhos largos e negros, que pareciam trans‑
parentes pela sinceridade que suscitavam. Transpareciam toda a integri‑
dade e honra de um velho soldado fiel ao seu Senhor, o que, bem feitas as
contas, agora era eu. Mas havia mais: um largo sorriso, com a ausência de
alguns dentes, preenchia todo o conjunto. Era o meu aio, D. Aleixo de Me‑
nezes. Soltei a mão de D. Inês; sabia que a partir de agora passaria grande
parte do meu tempo com ele.
D. Aleixo dividia o seu tempo comigo, ora a fazer fantochadas e a
inventar brincadeiras, ora a contar‑me os seus feitos em África e na Índia.
Sentava‑me na poltrona do meu avô, que se encontrava agora colocada
contra o Tejo, prestando‑lhe atenção. Brincávamos às guerras com espa‑
das de papel – eu ganhava sempre – e depois sentava‑me a ouvir histórias
de lutas de verdade. D. Aleixo diria mais tarde que eu era uma criança
muito sossegada, mas não era exactamente isso: as suas histórias tinham
em mim um fascínio que nem mesmo ele percebia. Sentado na poltrona,
de olhos extremamente abertos, como se assim não pudessem escapar
pormenores das narrações porque eu vê‑los‑ia fugirem, mantinha‑me
imóvel, e apenas o movimento das pálpebras denunciava que eu conti‑
nuava vivo.

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Capítulo VI
1559 – O Ano da Inocência

A princípio eu era quase recluso nos aposentos da minha avó, mas


receber D. Aleixo como aio despertou‑me para uma realidade
que eu desconhecia. Nos aposentos da rainha apenas via a minha
avó, a minha ama e uma dezena de camareiras. Desconfiava que existia um
mundo para lá da janela de onde o meu avô costumava olhar o Tejo, mas
não fazia ideia que podia ser tão vasto. D. Aleixo foi o primeiro a falar‑me
dos Reinos dos Algarves de além‑mar, dos quais eu também era rei, mas
sem perceber exactamente o alcance exacto desta palavra, apesar de saber
que era isso que obrigava todos, mesmo a minha avó, a fazerem‑me uma
vénia ao verem‑me. Com ele descobri que a palavra rei ia muito para além
disso. As histórias do meu aio não inflamavam apenas a minha imaginação
ou enchiam‑me de admiração por aqueles reis valorosos, havia mais algu‑
ma coisa... Ele disse‑me que eu era o Desejado.
– Muitos antigos colegas de armas dirão que não faço mais com
Vossa Senhoria do que o papel de uma ama. O papel de uma mulher. O
triste papel de uma mulher reservado como recompensa por uma vida de
pelejas ao serviço do rei. – Começou D. Aleixo por me dizer um dia, com os
olhos húmidos e convicto que eu não alcançava o significado das suas pala‑
vras. Talvez, naquela altura, de facto não, mas guardei‑as comigo até ao dia
em que as iria perceber. – Para um velho homem de armas, não pode haver
nada de mais nobre do que morrer pela defesa da pátria, isso é verdade, não
o posso negar aos meus antigos companheiros. Pelos menos assim era antes
de Vossa Alteza ter nascido. O vosso nascimento personifica todas as lutas
que não tivemos de travar para não perder a nossa nacionalidade. Enquanto
lutava para nascer, não o fazia só por si, mas também por nós. É o Deseja‑
do, e isso, por mais anos que passem, por mais reis que nasçam, por mais
dinastias que morram, nunca será olvidado. Poder servir‑vos, poder contri‑
buir para a vossa educação é mais do que uma honra, é um desígnio. Mas
acautelai‑vos Senhor, pois o desígnio não é só meu, o vosso é maior ainda.
Depois, com as covas do rosto acentuadas pelo seu sorriso, ajo‑
elhou‑se, colocando‑se de gatas a meus pés para que eu subisse para as
suas costas e fingisse que montava um corcel. Manejando do alto da minha

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montada a minha espada de papel contra o inimigo imaginário, era o meu
cavalo que me guiava.
Apesar de a decisão sobre os assuntos do reino e da minha edu‑
cação recaírem oficialmente sobre a minha avó, muitas das suas decisões
precisavam de ser tomadas com a opinião do meu tio. Ele era um ho‑
mem muito forte para se ter como inimigo. As decisões que dissessem
directamente respeito à minha educação só eram aprovadas com a con‑
cordância plena do meu tio. Neste assunto, não havia volta a dar. Ambos
concordavam que eu tinha alcançado uma idade em que era necessário
receber os ensinamentos de um mestre, para aprender a ler e a escrever, e
também História, Filosofia e Gramática. Chegarem a este ponto de acor‑
do foi fácil, encontrarem um mestre em que os dois concordassem foi o
cabo dos trabalhos. Não era apenas a educação que os preocupava, mas
sobretudo quem ganhava a corrida sobre a ascendência sobre mim. A
minha avó escolhera dois frades castelhanos, o meu tio concordava que
fossem religiosos mas obviamente portugueses. Apoiado pelas cortes, a
escolha do meu tio prevaleceu e o padre Luís Gonçalves da Câmara foi o
escolhido.

Capítulo VII
1560 – O Ano do Mestre

A pós o assentimento da minha avó na escolha do mestre, ele foi


mandado buscar a Roma, onde se encontrava a serviço do mun‑
do e de Deus, para passar a servir a Este e a mim. O mestre trou‑
xera consigo outro, o padre Amador Rebelo. Ambos só chegaram bem
depois de eu ter entrado nos meus seis anos.
O meu aio foi buscar‑me aos meus aposentos e levou‑me pela mão
até à biblioteca, onde havia dois anos eu o conhecera. As momices de D.
Aleixo tinham acabado, sabia que me esperavam dias de trabalho. Os mes‑

56
tres, dois homens ainda novos, pelos menos mais do que o meu aio, pois
não revi neles os traços de pele amarrotada, nem os poucos fios de cabe‑
los meticulosamente puxados para cima e para o lado para tapar a calva,
cumprimentaram‑me e pediram‑me que me sentasse. O mestre Luís era
um homem feio, cego de um olho e gago. Mas estas primeiras impressões
esqueci‑as depressa, pois acabaram por não ser as que me impressionaram
mais, e sim a sua voz forte, profunda e cativante.
Sentei‑me no aparador, onde já estavam colocados o tinteiro e as
folhas de papel, uma ampulheta para marcar a hora e um outro objecto de
marfim, de forma circular, com furos simétricos na superfície e um cabo,
que soube mais tarde chamar‑se palmatória.
As minhas lições começariam de imediato, e os mestres senta‑
ram‑se à minha frente, cada um no seu tamborete. D. Aleixo não se re‑
tirou, apenas se afastou para a outra extremidade do cómodo, com um
sorriso tímido, com a mesma emoção de um pai, que leva o filho para o
seu primeiro dia de aulas. Foi com uma certa aflição que observei D. Aleixo
afastar‑se. Virei‑me para a frente; mordia o lábio inferior, cruzava os pés e
cerrava os punhos.
O mestre Luís Gonçalves virou a ampulheta, fazendo com que a
areia, antes em descanso, se escapasse para o vidro de baixo. Fui‑me des‑
contraindo aos poucos, à medida que os mestres me explicavam o que pre‑
tendiam de mim, o que me ensinariam nos próximos meses e que metas
esperavam que eu alcançasse em determinado tempo. Toda a areia da am‑
pulheta tinha escorrido do compartimento superior para o inferior. Uma
hora passara. A lição acabara por ora, à tarde haveria mais.
A partir daquela manhã, cinco vezes por semana, duas por dia, uma
hora cada, religiosamente marcada pela ampulheta, eu iria até à biblioteca
receber os ensinamentos que os mestres me reservavam. Em menos de um
ano, eu lia e escrevia correctamente.
Além de aprender a ler e a escrever, também era instruído na dou‑
trina católica.
– Para que quer um homem ler e escrever, se não for para conhecer
a palavra de Deus? – Costumava‑me dizer o mestre Luís, não tanto como
uma pergunta, mas para me lembrar as minhas obrigações com o Altís‑
simo. – Um homem que recebe a graça de aprender a ler, deve retribuí‑la
lendo a Bíblia e, se possível, decorando‑a.

No fim deste ano a minha avó ameaçava deixar a regência, ela que tanto
lutara para a conseguir. Poderia isto ser de facto? Dizia‑se cansada dos
trabalhos do reino e apenas desejar o repouso. Queria, no entanto, con‑
tinuar a trabalhar, dizia ela, mas para a salvação da sua alma. Aparente‑

57
mente já tinha tudo planeado: iria isolar‑se no convento da Esperança em
Lisboa, onde tencionava passar os últimos anos da sua vida. Os herdei‑
ros da casa de Hasburgo tinham esta mania: enterrarem‑se em vida em
mosteiros para adiantar, nalguns anos, o repouso eterno e, do sarcófago,
continuarem a interferir nos destinos do reino... Também apreciavam a
manipulação, pois, tal como a minha avó deveria ter calculado, os Estados
não concordaram com o abandono do seu cargo de regente e, assim, a sua
autoridade saiu reforçada junto do meu tio cardeal. A verdade é que ela
nunca se abandonou ao degredo em nenhum convento, nem neste mo‑
mento, em que “contrariada” mas para o sossego da monarquia resolveu
ficar na governança do reino, nem quando a sua regência de facto termi‑
nou, nem mesmo quando tornou a ameaçar isolar‑se. É verdade que ela
gostava de contemplar, mas para melhor saber agir. A vida contemplativa
não estava no seu ânimo.

Capítulo VIII
1561 – O Ano da Chacotada D’el‑rei

E voluí rapidamente nos estudos das letras e foi necessário chamar


um outro mestre, Pedro Nunes, para me iniciar na matemática.
Para conseguir fazer tudo a que me tinha proposto – receber as duas
lições diárias, ler os livros de História da biblioteca e assistir todos os dias a
uma missa em honra de Nossa Senhora –, tomara o hábito de me levantar
cedo e foi por essa altura que perdi o de esperar pelos meus camareiros para
me vestirem. Tomara consciência das formas do meu corpo: o ombro, a
mão, a perna e o pé direitos maiores do que os do lado esquerdo, o tronco
curvado por mais que eu fizesse força para o endireitar, um sinal pardo e ca‑
beludo na omoplata esquerda e um negro na direita. Todos estes atributos
me desgostavam e faziam‑me sentir uma enorme vergonha de poder ser
visto sem roupa. A partir do momento em que comecei a levantar‑me antes

58
dos outros, e percebi que podia e conseguia vestir‑me sozinho, nunca mais
deixei que me vissem despido.13
Numa das vezes que D. Aleixo me levava pela mão para a biblio‑
teca, para receber mais uma lição, um ruído de vozes chamou a minha
atenção. Aproximei‑me do gradado da varanda que dava para o pátio;
cinco crianças, mais ou menos da minha idade, brincavam lá em baixo.
Corriam, pulavam, empurravam‑se, caíam, riam e levantavam‑se.
– Quem são estas crianças? – Perguntei avidamente.
– São as outras crianças do Paço.
– As outras crianças? – As outras para além de mim, seria isso que
ele quereria dizer? – Mas quem são? Nunca as vi.
– São os filhos dos fidalgos do Paço, a chacotada d’el‑rei14... – Dei‑
xou escapar, mas sem que eu lhe desse particular atenção. Os meus pensa‑
mentos estavam noutro sítio...
Normalmente, ia ansioso para a lição, mas hoje, perante aqueles
miúdos, todas as minhas certezas se abalavam. Observara‑os fascinado, os
seus movimentos leves, os seus passos soltos, os seus sorrisos fáceis. Eles
eram felizes, e livres... pelo menos assim me pareciam dali de cima.
– A chacotada d’el‑rei, dizeis, mas o que isso significa? – Perguntei
quando a neblina de pensamentos que toldavam o meu raciocínio se dissi‑
pou.
Notei um certo embaraço em D. Aleixo como se tivesse já falado
de mais, depois lá adiantou:
– Chamam‑se assim porque... – O meu aio hesitava em respon‑
der‑me. – Servem para vos divertir.
– Para me divertir? – Devolvi perplexo.
Como podiam servir para me divertir se apenas eles é que se
riam?

13
“(...) sem consentir que criado algum seu, por familiar que fosse, lhe visse os pés,
e ele (D. Sebastião) por sua mão ordinariamente tirava as sevilhas e meias calças.” in
Fr. Bernardo da Cruz, Chronica D’el‑Rei D. Sebastião, p. 94.
14
Assim eram chamados os jovens fidalgos que frequentavam o Paço por servirem
para divertirem D. Sebastião, Pe. José Pereira Baião, Portugal Cuidadoso e Lastimado
com a Vida e Perda do Senhor Rey Dom Sebastião, Livro Primeiro, Cap. XX, p. 88.

59
Capítulo IX
1562 – O Ano da Renúncia

P or vezes o meu aio e os meus mestres levavam‑me ao Colégio de


Santo Antão para que eu visse a representação de alguma peça. Fre‑
quentemente os fidalgos e os seus filhos seguiam nessa comitiva.
Os jesuítas tinham sempre atenções especiais comigo e esta vez não seria
diferente. A peça era uma tragicomédia de Gil Vicente, mas esta acabou
por se atrasar. Então, no meio da tarde, fez‑se um intervalo e os padres
levaram‑me a passear no pátio. Zelando sempre pela minha boa disposi‑
ção, tinham pedido a um criado do colégio que acendesse o lume na rua
e assasse umas castanhas. Eu adorava a iguaria e, sabendo disso, prepa‑
ram‑me aquela pequena surpresa para me alegrar. As crianças fidalgas,
a chacotada do rei como lhes chamavam, seguiam atrás de mim. Talvez
pela minha presença, iam calados e com gestos comedidos, mas tudo se
alterou quando ouviram o estalar do sal nas cascas das castanhas. O ruído
e o aroma transformaram‑nos num ápice e, por certo, esqueceram‑se da
minha presença, absorvidos pela iminência de comerem o acepipe. Corre‑
ram para o fogareiro como esfaimados, assediando o criado com pedidos
contínuos de castanhas. Estaquei ainda longe do assador, admirando a sua
folia. Aqueles não eram gestos que se esperavam de jovens fidalgos, mas
eram os que lhes saíam espontaneamente, algo que eu não me permitia
fazer. Fiquei por ali, incapaz de me juntar a eles, mas sorvendo e invejando
cada movimento.
Só quando o apetite dos meninos fidalgos acabou e eles se afasta‑
ram do assador, é que me permiti aproximar.15 Os meus gestos eram con‑
trolados por mim e indirectamente pelos outros. Era por saber que os olhos
de todos, assim como as suas avaliações estavam em mim, que eu media
os meus movimentos. Quanto mais o fazia, mais parecia que isso agradava
a todos de uma forma geral. Era prova de circunspecção, diziam uns, de
precocidade, falavam outros, de maturidade, acrescentavam ainda, de que

15
O episódio das castanhas é relatado em Pe. Amador Rebelo, Relação da Vida d’Elrey
D. Sebastião, p. 31, para demonstrar a precocidade da circunspecção de D. Sebas‑
tião.

60
seria um bom rei, concordavam todos. Mas era apenas porque eu temia ser
o que me apetecia.
De volta para o interior do Colégio, ainda antes de a peça recome‑
çar, olhei para o lado onde sabia estarem os cinco miúdos. Eles também
olhavam para mim. Os seus cinco pares de olhos fixavam‑me, observando
os meus gestos e comentando aos ouvidos uns dos outros coisas que eu só
podia imaginar serem acerca do seu rei. Sentia‑me como um animal em
exposição, como uma cabeça de veado embalsamada pendurada na parede,
em que se avalia se terá dado luta ao caçador ou não.
Num momento, por certo de distracção, em que o meu mestre e o
meu aio se afastaram de mim, vi os miúdos voltarem a cochichar entre si,
até que um deles se levantou empurrado pelos outros e caminhou na minha
direcção. Ele parou na minha frente. Antes de dizer o que quer que fosse,
espreitou por cima do meu ombro, talvez para verificar se alguém se apro‑
ximava. Depois, fazendo‑me uma vénia, apresentou‑se:
– Sou o Cristóvão de Távora, filho de Lourenço Pires de Távora.
Fiz‑lhe sinal na mão para que se erguesse, depois, e como que se
esquecendo que eu era o rei, aproximou‑se de mim e, colocando‑se a meu
lado, começou a apontar para os seus amigos e a dizer‑me os seus nomes.
– Aquele ali, o mais pequeno, é o Luís da Silva. – Começou, arre‑
pendendo‑se de colocar o braço por cima do meu ombro. Mas não deixan‑
do que isso o embaraçasse, continuou. – O do lado é o Jorge de Lencastre,
aquele mais gordinho é o Diogo de Menezes e o da ponta é o Francisco de
Portugal. – Foi‑me contando à medida que os apontava com o dedo indi‑
cador espetado.
Eu estava dividido entre manter a minha postura de rei, grave, dis‑
tante e impenetrável, ou abandonar‑me àquela descontracção pueril. Eu
também queria experimentar aquela liberdade que eles tinham, mas não
lhes era permitido sequer tocarem‑me.

No princípio de Março, Mazagão, uma das nossas praças‑fortes em África,


encontrava‑se cercada pelos mouros. Um poderoso exército chefiado por
Mulei Mohamede, um jovem de vinte anos, filho primogénito do xerife rei‑
nante, fechava o cerco por terra daquela praça. O governador de Mazagão,
Rui de Sousa, enviou uma caravela para Portugal pedindo socorro. O Al‑
garve foi a primeira região a receber a notícia. De toda esta província, num
ímpeto de patriotismo, acudiram à praça Africana, antes mesmo do auxí‑
lio oficial, reforços voluntários. Muitos fidalgos armaram caravelas às suas
custas, enquanto os marinheiros de Lagos, Faro e Tavira enviaram quarenta
homens pagos pela sua Confraria. Este entusiasmo patriótico não era um
exclusivo do Algarve. Em Lisboa, nobres, mercadores e artífices partiam

61
para Mazagão ou juntavam esforços financeiros para subsidiarem a partida
de homens. Todo o país queria partir para lá, desde velhos octogenários
cheios de genica a moços imberbes com sangue na guelra. O povo estava
unido em torno da defesa de Mazagão, tornando‑se um desígnio nacional.
O orgulho pátrio sentia‑se no ar. Mal abria a janela do meu quarto,
e fechando os olhos, inspirava‑o a plenos pulmões. O meu peito dilatava,
não só pelo aumento do seu volume, mas também pela certeza de ter inala‑
do essa coisa que andava no ar e que fazia o nosso sangue alvoraçar‑se nas
veias: o amor incondicional à pátria, que por vezes parece‑nos arrefecido,
mas que se assome de dentro das nossas entranhas para saltar cá para fora
como fera ferida pronta a defender‑se até à morte.
Tal era o orgulho ferido dos portugueses, tantos queriam partir, que
a minha avó se viu obrigada a proibir tantas partidas. Nada resignados com
a decisão da rainha, muita gente embarcou ocultamente, inconformada por
não poder dar o seu contributo, forçando o corregedor a ir buscá‑los aos
navios prontos para embarcar para Mazagão.
A mim, pelo meu lado, aprisionado na minha condição de criança,
nada mais me restava se não inflamar a minha imaginação, através das nar‑
rativas que o meu velho aio me contava desde tenra idade acerca dos seus fei‑
tos, e dos portugueses em geral, em África e na Índia, e transpunha‑os para
o que estaria a acontecer em Mazagão. Talvez ainda pudesse fazer mais, uma
declaração que pusesse em evidência a manifestação da minha vontade.
Acabada a lição da tarde, pelo menos o compartimento superior
da ampulheta já se esvaziara completamente, o marquês de Vila Real, D.
Miguel de Menezes, entrou na sala para me cumprimentar. O meu mes‑
tre, para que aquele visse o meu bom desenvolvimento escolar, passou‑me
uma folha com uns modelos de letras para que eu os copiasse. Achei que
era aquele o momento adequado para deixar ali a minha opinião, a decla‑
ração escrita da minha vontade. Por isso, ao invés de simplesmente fazer o
traslado do que me indicavam, mas utilizando à mesma a minha melhor
caligrafia, escrevi: “Em sendo grande, hei‑de ir conquistar a África.”16
Estendi a folha ao marquês, o qual, apercebendo‑se estar nela mui‑
to mais do que me tinham determinado e não sabendo ele que apesar da
minha idade tinha dificuldades em ser submisso, não conseguiu disfarçar
nos seus traços a surpresa do que lera.

16
Este episódio do exercício de caligrafia e o que o Marquês de Vila Real respondeu
está referido em Pe. José Pereira Baião, Portugal Cuidadoso e Lastimado com a Vida
e Perda do Senhor Rey Dom Sebastião, Livro Primeiro, Cap. XXI, p. 90, mas Queiroz
Velloso, D. Sebastião 1554‑1578, diz não saber se terá sido cópia ou redacção espon‑
tânea, p. 94.

62
– A letra boa está. – Começou por observar o marquês, pois afinal
aquele era um exercício de caligrafia, mas sentindo a premência de acres‑
centar algo mais, concluiu: – Mas o que nela se diz não será sendo eu vivo,
sem Vossa Alteza nos deixar seis ou sete filhos machos.
Para que era todo aquele disparate de machos descendentes, pensei
de imediato, quando o importante era conquistar África. Além disso, não
tencionava lá morrer e seis ou sete varões valiam tanto quanto um, bem o
deveriam saber pela experiência do meu avô.
Vi no rosto do meu aio, quando pôde ler o que eu escrevera, a satis‑
fação de um professor que, no fim da sua vida, percebe que conseguiu in‑
culcar no seu discípulo tudo aquilo a que se tinha proposto. O meu mestre,
apesar de feições menos definidas, estava satisfeito também, tanto assim era
que os dois, a partir daquele dia, nunca perderam a oportunidade de mos‑
trar a todos quanto me visitavam aquele manuscrito.

Sessenta e cinco dias durou o cerco de Mazagão e os nossos defenderam‑se


intrepidamente. A minha avó chegou a pedir auxílio ao seu sobrinho, D.
Filipe II. Este não o negou, mas nunca o enviou. No fim de Abril, quando o
Mouro ganhou coragem para assaltar a fortaleza, até as mulheres, tanto ido‑
sas quanto jovens, trabalharam para a sua defesa, não só incitando os nos‑
sos com palavras e chegando‑lhes as munições, como arremessando pedras
contra o infiel. Meses mais tarde, quando tive conhecimento do sucedido,
tenho de confessar, a minha impressão sobre as mulheres melhorou.
Quando, por fim, em Maio o Mouro resolveu retirar‑se, ele contava
com mais de vinte e cinco mil mortos, e nós... bem, nós pouco mais de cem.
O ar de Lisboa continuava impregnado de patriotismo, a nossa velha glória,
os nossos antigos feitos, ainda viviam!
No entanto, nem tudo eram rosas nesta governança da minha avó.
Ganháramos sim, e disso bem ela podia duplamente se alegrar, pois se já
assim os lençóis nos quais estava metida não eram bons, o que seria se ti‑
véssemos sido derrotados? O primeiro pedido de ajuda do governador de
Mazagão demorara de mais a ser atendido, a rainha achara o pedido em
armas e mantimentos excessivo. No entanto a sua camareira‑mor, D. Joana
de Eça, era instalada luxuosamente no convento da Esperança. A minha
avó tinha conhecimento que a censuravam, que a queriam substituir e, no
seu íntimo, certamente sabia que não agira como se esperaria dela em favor
do reino. Para não dar parte fraca, esperou que a censura que lhe dirigiam
afrouxasse e, por fim, abdicou da regência do reino a favor do meu tio, do
português, é claro. O outro, o castelhano, bem sentiu a troca. Agora já não
haveria favoritismos para Espanha.

63
Capítulo X
1563 – O Ano das Damas

A exaltação patriótica que os feitos de Mazagão tinham suscitado


estava para durar e as Cortes, que tinham começado a reunir
no ano anterior, ainda tomavam as suas resoluções. A recon‑
quista das praças africanas abandonadas pelo meu avô era uma delas,
mas não só. O carácter bélico, mais ou menos adormecido nos últimos
anos no povo português, sofria agora de insónias. E é sabido que a falta
de sono leva a resoluções disparatadas e obsessivas: “Que os Estudos de
Coimbra se desfação por serem prejudiciaes ao Reyno, e a renda se appli‑
que para a guerra, e quem quizer aprender vá a Salamanca, ou a Pariz, e
não haverá tanto letrado sobejo, nem tantas demandas.”17
Daqui a cinco anos eu tomaria as rédeas da governação do rei‑
no, portanto, quando eu completasse os meus catorze anos, e não aos
vinte como inicialmente estava estipulado, esta foi outra das resolu‑
ções da corte. Logo, a universidade não era o meu caminho. Mas eu
tivera o privilégio de ter recebido como mestre o homem mais douto
do reino, quiçá do mundo, pensava eu. Mas como fariam os outros,
perguntava‑me, os menos venturosos, se se desfizessem os Estudos de
Coimbra?

O meu mestre encantava‑me. Parecia‑me ser conhecedor de todas as


coisas acima e abaixo do céu e, por isso, eu esforçava‑me por sorver
tudo aquilo que ele e os outros mestres me ensinavam. Se não pudesse
ser como ele, então pelo menos que eu satisfizesse as suas expectativas
como professor. Sei que por vezes ele olhava para mim, não como os
outros mestres, de relance ou brevemente, não, ele fixava‑me. Parecia
indagar‑me com os olhos, trespassar‑me as roupas e até as carnes e che‑
gar dentro de mim, àquele lugar que não deixamos ninguém entrar, so‑
bretudo eu.

17
Capítulo 24º das Resoluções das Cortes de 1562‑1563.

64
Um dia retribuí‑lhe esse olhar. Queria poder atravessá‑lo também,
descobrir o que ia nele, o que ele via quando me olhava. Como era o olho
que a pala escondia, queria saber a minha curiosidade pueril. Após ter pas‑
sado por cima da sua ordinária batina castanha-escura, do seu cabelo do
mesmo tom e cuidadosamente penteado, veio o seu sorriso e a sua voz. Foi
por aí que eu entrei nele. A sua voz era grave, doce e forte, parecia escon‑
der um homem mais pujante do que a sua gaguez supunha e simultanea‑
mente menos bruto do que a sua aparência cria. Nos meus nove anos tudo
o que ele dizia era uma novidade. Eu ia aos poucos descobrindo o mundo
que, por tantos anos, julguei ser apenas os aposentos da minha avó. Mas
não só existia muito mais, como o padre Luís conhecia pelo seu pé parte
dos lugares dos quais falava.
Acreditamos nas pessoas que nos estão próximas e que, por sa‑
berem muito, cremos conhecerem tudo. Por isso eu confiava na minha
avó, até ter conhecido o mestre Luís. Nessa altura, comecei a perceber o
quão isolado a rainha me mantivera, tão alheio do mundo. E as minhas
desconfianças em relação às suas boas intenções iniciaram a sua germi‑
nação. Pelo modo e o motivo como o meu avô deixara a sua nostalgia
sepultá‑lo em vida, instilara‑se em mim a desconfiança pelas mulheres.
O comportamento da minha mãe confirmava as minhas cismas e, por
isso, a minha avó era a última das mulheres em quem eu ainda confiava,
até perceber pela boca do meu mestre que os limites do mundo, para
além de irem para lá das paredes dos quartos da rainha, ainda tinham
sido distendidos pelos portugueses e em grande parte durante o reinado
do meu bisavô. Por isso, um misto de galvanização pelos feitos do meu
povo e uma mágoa por me sentir enganado enredava‑me.
Por aquela altura, eu já não dormia nos aposentos da minha avó.
Mas, por sua insistência, eu fazia as refeições com ela. Normalmente o
meu aio também me acompanhava nesse momento. Durante as refeições
a minha avó aproveitava para me perguntar sobre o meu dia, as minhas
aulas e repreendia‑me se fosse necessário. Segundo os seus critérios, era‑o
quase sempre.
Ela vivia rodeada de damas que a ajudavam a passar o tempo.
Agora que ela cedera o seu lugar de regente, voltara a ocupar‑se mais
com os vestidos, as sedas e o cabelo. A minha avó, apesar da idade, con‑
tinuava bonita, mas a sua austeridade natural, a par com as roupas de
cor negra que invariavelmente envergava, concorriam para desviar a
atenção dessa sua qualidade e enfatizavam os seus traços intimidativos.

Eu comungava no oratório do Paço todos os oito dias. Foi numa dessas


alturas que o padre Luís da Câmara, que além de meu mestre era também

65
meu confessor,18 aproveitando este momento mais privado, me indagou
acerca dos encontros com a minha avó nos seus aposentos.
– Não ides ao quarto da vossa avó, por amor das Damas que são
uma donas sinfainas que fazem perder os homens.19 – Aconselhou‑me ele
com os olhos esbugalhados, como se acabasse de me salvar de um grande
pecado.
Obviamente acreditei nele. Era o meu mestre, um padre e o meu
confessor. Como não confiar no homem que tudo sabe e que é servidor
Daquele que tudo pode? Além disso, ia de encontro à minha natural des‑
confiança pelas mulheres.
A partir daí, comecei a restringir as minhas visitas aos aposentos
da minha avó o máximo que conseguia. Não podia deixar de tomar as re‑
feições com ela, uma vez que era uma imposição sua e eu não tinha idade
para a contestar, mas podia encurtá‑las e não fazer mais nenhuma visita
para além destas. Podia fazer ainda mais: não lhes dar qualquer confian‑
ça e manter um rosto fechado em prova disso. As damas, principalmente
D. Leonor Coutinho e D. Francisca de Aragão, rapidamente notaram
o meu comportamento, o meu maior afastamento e indagaram‑me do
motivo.
– Real Senhoria, porque vos mantendes afastado da convivência
com a vossa avó?
Respondi‑lhes, repetindo palavra por palavra o que o meu mestre
me dissera, e o fosso existente entre ele e a minha avó, se não começou aí,
com certeza cresceu inexoravelmente nesse momento, para nunca mais se
colmatar.

18
Alguns historiadores indicam o padre Luís Gonçalves da Câmara apenas como
mestre de D. Sebastião, mas um especialista americano na Companhia de Jesus em
Portugal, Dauril Alden, afirma que aquele teria sido nomeado mestre e confessor do
rei em 1560 in The Making of an Enterprise, The Society of Jesus in Portugal, its Em‑
pire and Beyond, 1540‑1750, p. 82. O Pe. José Pereira Baião, em Portugal Cuidadoso
e Lastimado com a Vida e Perda do Senhor Rey Dom Sebastião, Liv. I, Cap. XXI, p.
92 e o Fr. Bernardo da Cruz, Chronica D’el‑Rei D. Sebastião, Liv. I, p. 25, também
apontam o padre Luís Gonçalves da Câmara como tendo ocupado esses dois cargos
em simultâneo.
19
Conde de Sabugosa, Donas de tempos idos, p. 201.

66
Capítulo XI
1564 – O Ano da Iniciação

T inha dez anos, mas parecia mais velho, pelo menos era o que to‑
dos me diziam. Era difícil perceber quando acabava a verdade e
começava a lisonja. Era fácil acreditar que uma e outra tinham os
seus limites onde mais me convinha. Era mais alto do que o Cristóvão de
Távora, apesar de este ser mais velho. Portanto talvez ainda estivessem nos
domínios da verdade quando me elogiavam o tamanho. Era também mais
circunspecto do que eles.
As minhas pernas estavam de facto mais longas. Notava‑o a cada
volta para Almeirim, pois os estribos da minha sela ficavam‑me sempre
curtos, tendo de os ajustar de todas as vezes. Os meus braços estavam tam‑
bém mais musculados, conferindo‑me forças às quais ninguém me igua‑
lava. Eu conseguia menear uma lança de reste que certos homens não po‑
diam sequer levantar.20 Era um cavaleiro destro, conhecia todos os jogos de
cavalaria, justas, torneios, canas, escaramuças e todo o género de caça de
monte e voltaria.21 Era mais forte do que todos da minha idade e do que a
maioria dos mais velhos do que eu, ou pelos menos assim me faziam crer.
Mas, de novo, acho que esta afirmação pertence ao domínio da verdade,
pois eu notava dificuldade por parte dos jovens nobres que comigo se cru‑
zavam em conseguirem acompanhar‑me.

O meu mestre Luís Gonçalves foi autorizado pela rainha a permanecer no


Paço durante todo o dia. Uma vez que eu recebia dele uma lição de manhã
e outra de tarde, para evitar as constantes deslocações a que o padre Luís
Gonçalves estava sujeito entre o Colégio de Santo Antão e o Paço, e como
ele sofria por vezes de achaques, a rainha acedeu à sua permanência no pa‑

20
“Foi El‑Rei muito exercitado nas forças corporaes, e fez vantagem a todos os man‑
cebos fidalgos de seu tempo em todos os exercícios; porque para além de ser destro
nas armas, o era muito mais na desenvoltura dos membros, em tornear, jogar a pélla
e saltar.”, Frade Bernardo da Cruz, Chronica D’el‑Rei D. Sebastião, Vol. 2, Cap. LXXIII,
p. 107.
21
Frade Manoel dos Santos, História Sebástica, Livro I, Cap. XVI, pp. 104-105.

67
lácio.22 Foi‑lhe dado um quarto não muito longe dos meus aposentos. Ele
ficou satisfeito. Eu, por meu turno, estava excitadíssimo. A perspectiva de o
ter a qualquer hora do dia ou da noite ao meu alcance, para poder ouvi‑lo
contar as vidas dos santos e dos mártires, deixava‑me delirante.
Após uma semana no palácio, no fim da minha primeira confissão
depois da sua mudança para lá, estando eu ainda ajoelhado na sua frente,
pedindo‑lhe pela absolvição dos meus pecados, o mestre Luís enterrando a
sua mão nos meus cabelos disse‑me:
– A partir de agora podeis visitar‑me à noite. – A sua voz estava
excessivamente baixa e rouca. – Podeis ir sozinho, não precisais de inco‑
modar o vosso aio. Ele já está velho, deixai‑o dormir. – Concluiu com uma
respiração profunda e ruidosa.
Levantei o meu olhar na sua direcção, notei um certo transtorno no
seu rosto, mas apenas lhe perguntei:
– Qual é a minha penitência?
Pareceu‑me que ele saía de uma espécie de transe e respondeu‑me
a custo o número de Ave‑marias e Pais‑nossos que eu teria de rezar. Le‑
vantei‑me e fui para a frente do altar, onde me tornei a ajoelhar para cum‑
prir a penitência. Com as palmas das mãos unidas e os olhos fechados, não
eram apenas as minhas orações que preenchiam os meus pensamentos. O
convite do meu mestre não me saía da cabeça, pois as duas horas que eu
passava com ele, repartidas pela manhã e pela tarde, eram exclusivamente
para o aprendizado das disciplinas de Gramática, História e Filosofia, mas
eu queria aprender mais. E sabia que o padre Luís me podia ensinar mais.
Mas, apesar de este seu convite ir ao encontro dos meus desejos, algo nele
me assustava. Espreitei de esguelha para ele, que se mantinha no mesmo
lugar, mas agora totalmente recostado nas costas da sua cadeira, de pernas
esticadas e abertas, de olhar fixo em mim.
Comecei a reparar, quando passava para os meus aposentos acom‑
panhado do meu aio, que a porta do quarto do padre Luís se encontrava
sempre entreaberta.
22
Segundo o Pe. Amador Rebelo, Relação da Vida d’Elrey D. Sebastião, uma vez que
o padre Luís Gonçalves tinha de se deslocar a pé duas vezes por dia do Colégio de
Santo Antão até ao Paço e por ser de “fraca compleição e enfermo”, veio a adoe‑
cer. Tendo tido conhecimento disto, a rainha pediu aos Superiores do padre que
o deixassem fazer as refeições no Paço e que ele se deslocasse numa cavalgadura,
p. 37. O padre Luís Gonçalves nunca morou no Paço com o príncipe. Esta é uma
liberdade literária, uma vez que aquele passava muito tempo com D. Sebastião en‑
quanto mestre e confessor e seguia com a corte quando esta se deslocava para Almei‑
rim e para Sintra.

68
Uma noite, quando já estava deitado e o silêncio preenchia o pa‑
lácio, resolvi aceitar o convite que o padre me fizera dias antes. A porta do
quarto dele estava encostada, tal como em todas as outras noites, por isso
entrei sem bater, o que depois me embaraçou.
– Sabia que viríeis! – Disse‑me, numa espécie de saudação assim
que me viu. Depois, alterando a sua voz para um tom extremamente me‑
lífluo, continuou: – Enfim, não sabia o dia, ou melhor, a noite, mas tinha a
certeza que acabaríeis por vir. Não conseguiríeis resistir à vossa curiosida‑
de.
Eu permanecia na entrada do quarto mas, por qualquer motivo,
sentira necessidade de fechar a porta atrás de mim. Ele dizia que me espera‑
va, estava sentado à sua secretária, mas já se encontrava, tal como eu, de ca‑
misa de noite. Dali, de camisola de dormir branca e com a pala a tapar‑lhe
o olho cego, tinha um aspecto grotesco.
Vários livros empilhavam‑se na sua secretária, formando verdadei‑
ras torres de um lado e do outro do móvel, tais que, quando ele se inclinava
para escrever algo no qual fingia ter um interesse absoluto, desaparecia por
trás delas. Aproximei‑me nervoso, espreitei por cima do seu ombro, eram
apenas rabiscos ilegíveis, e ele sorriu.
– Conseguis ler o que está aqui escrito?
Abanei a cabeça negativamente e julguei que ele não estivesse de
facto a escrever. Parecendo adivinhar os meus pensamentos, tornou a sorrir
e contou‑me que era o seu diário. Escrevia nele o que nem ao seu confessor
podia dizer e em código, para que nem Deus o soubesse.
– Todos necessitamos de um confessor, não é verdade? – Meneei a
cabeça em resposta. – Nem que seja o papel. – Concluiu.
O interesse pelos seus escritos cresceu em mim, não que eu qui‑
sesse conhecer os seus segredos, sendo o desafio de decifrar o código que
me atraía. Bem, no final de contas, talvez os seus segredos também. Apro‑
ximei‑me mais, dele e da secretária. O mestre desviou‑se ligeiramente e eu
deslizei colocando‑me entre ambos. Acabei por ficar numa posição muito
próxima dele, sentia o calor das suas pernas a passar por entre as nossas
finas camisas de dormir, mas mantive‑me interessado nos seus escritos.
– Escreveis este vosso diário desde quando? Desde que vos tornas‑
teis meu mestre?
O mestre Luís abanou a cabeça suavemente. Pareceu‑me que sor‑
ria. Eu continuava de costas para ele, praticamente entalado entre a secre‑
tária e os seus joelhos. Ele colocou a sua mão no meu ombro esquerdo e
fê‑la descer pelas minhas costas, na diagonal, até à minha coxa direita. O
calor da sua mão na minha perna trazia‑me uma sensação de reconforto.
Eu continuava fascinado pelo seu diário que eu não entendia.

69
– Eu já tinha vida antes de vos conhecer. Comecei a escrevê‑lo
– disse, apontando com a outra mão para o diário – em Teutão, quando
passava as noites nos calabouços junto dos prisioneiros. – A alusão àquela
lembrança fê‑lo retirar de repente a sua mão da minha coxa, como se as
duas em conjunto me pudessem conspurcar.
O sino da igreja de São Domingos badalou as duas da manhã. Des‑
viei‑me da secretária e disse‑lhe que tinha de me deitar.
– Mas ainda não fizesteis o que viesteis cá fazer.
– O que julgueis que cá vim fazer? – Perguntei em tom admoesta‑
tório, pois parecera‑me notar alguma insinuação nas suas palavras.
– Não desejais que vos conte a vida de um mártir? De S. Sebastião,
talvez?
Abanei a cabeça para reafirmar o meu não e saí sem mais demoras.
Retornei à minha cama e foi nessa precisa noite que me lembro de ter sofri‑
do a minha primeira insónia. Revivia mentalmente os gestos e as palavras
do mestre Luís, o conforto que ambos me traziam, o calor também, assim
como o prazer. Dividido entre os pensamentos do que vivera e a expectativa
do próximo encontro nocturno, as vagas de sono, que àquela hora deve‑
riam assolar‑me como tempestade em alto mar, morriam fracas na praia.
E tal como se encostasse uma concha marinha ao meu ouvido, um certo
zunido servia de música de fundo aos meus pensamentos, um murmurar
interior, que me dizia que tudo aquilo tinha um quê de errado.
Na noite seguinte trovejava, a chuva caía fortemente de encontro
às vidraças do meu quarto e o vento parecia sibilar no meu ouvido cha‑
mando‑me, como fera a encantar a sua presa. Não havia mais nada, nem
memórias de outras noites, nem zunidos marinhos, apenas uma fixação
imensa em voltar ao quarto do meu mestre. Não valia a pena continuar,
não alcançaria o sono enquanto não atravessasse o corredor até ao quarto
dele, mas talvez também não o conseguisse depois. Levantei‑me e saí do
meu aposento, levando comigo o velador. Ao passar junto das janelas, o
ruído do vento intensificava‑se e a trovoada parecia estar mesmo por cima
do palácio. Tive vontade de correr para o quarto do mestre Luís, mas o que
pensaria ele de mim ao ver‑me chegar ofegante e de coração acelerado, as‑
sustado pela tempestade?
De novo, fui encontrar a porta do quarto do padre entreaberta.
Desta vez não me detive; entrei rapidamente, pois por vezes tinha a sensa‑
ção de que o vento estava no corredor, fustigando‑me deliberadamente. Fui
encontrar o padre Luís novamente mergulhado entre os seus livros, entreti‑
do com o seu diário.
– Não fazeis outra cousa senão escrever nesse vosso diário? – Atirei
rapidamente antes que ele tivesse tempo de notar que eu estava trémulo.

70
Penso que não o consegui, mas ele não fez menção disso, limitando‑se a
responder à minha pergunta.
– Escrevo nele todas as noites, enquanto aguardo ansioso pela vos‑
sa chegada.
Aproximei‑me mais da secretária, para colocar o velador sobre a pilha
de livros, o único local disponível, mas como esta era muito alta, acabei por fa‑
zer com que o castiçal se inclinasse e a cera quente caísse sobre os meus dedos.
– Ai! – Deixei escapar inadvertido. Prontamente o meu mestre pe‑
gou‑me na mão e começou a sugar o meu indicador.
– Iniciar‑me‑eis um dia... no vosso código? – Perguntei‑lhe en‑
quanto ainda segurava na sua mão a minha.
– Por certo que vos iniciarei... – Respondeu‑me, puxando‑me para
si e sentando‑me ao seu colo, entre as suas pernas.
Senti‑me inicialmente desconfortável. Eu crescera muito neste úl‑
timo ano. Sentado no seu colo, os meus pés tocavam o chão. O mestre Luís
colocou o seu braço sobre as minhas costas e segurou‑me no ombro, com
um pouco mais de vigor do que seria necessário. Não me queixei, sendo
orgulhoso de mais e pretensioso da minha valentia para o fazer. Ele pu‑
xou‑me para si de modo que o meu corpo ficou colado ao seu, e apesar do
calor que emanava deste, o meu continuava trémulo.
– Tendes frio, meu menino loiro? – Perguntou‑me melodiosamen‑
te, como se cantasse.
Encarei o padre Luís nesse instante com um ar aturdido; o meu
sentimento naquela altura era ambíguo. Havia muitos anos que ninguém
me chamava assim, pois apenas o meu avô o fazia. Saberia ele disso? Por
outro lado, eu era rei, ele não me podia chamar de “seu menino”. Mas com o
pretexto de que pretendia aquecer‑me, reconfortar‑me, colocou a sua mão
livre sobre a minha perna e começou a friccioná‑la em movimentos circu‑
lares. Parei de tremer, acomodei‑me no seu tronco, encostei a minha cabeça
no seu ombro e fechei os olhos, ouvindo‑o contar a vida de São Francisco
Xavier. Sentia‑me aconchegado. Os movimentos circulares tornaram‑se as‑
cendentes, o seu polegar chegou a roçar a minha virilha e um pouco mais
depois. A um dado momento, a narração do meu mestre pareceu‑me to‑
mar as proporções de uma lengalenga, preenchendo a vida do mártir de
pormenores que eu nunca lera antes. Repetia acontecimentos sem respeito
pela sua ordem cronológica, como se apenas se lembrasse deles naquele
instante. A voz com que o fazia era monocórdica e depois terrivelmente
arrastada. Parou de falar. Levantei a cabeça do ombro do meu mestre; ele
acabara de fechar os olhos, mas reabriu‑os quase em simultâneo. A sua mão
escorregou lentamente até ficar fora do alcance da minha perna, a sua nar‑
ração recomeçou, e a sua voz continuava doce, mas era agora mais firme.

71
Foram noites e noites sem dormir, pelo menos até vencer o escrú‑
pulo que me impedia de ir ao encontro do meu mestre no seu quarto. De‑
pois... Dai‑me um pouco de tempo, ainda é difícil falar disto. Os meus olhos
cerram‑se de pura culpa. Mas e de arrependimento? Será? Enfim, depois
voltava como cachorro com o rabo entre as pernas e permanecia acordado
mais algumas horas. Por fim desmaiava de exaustão, por dias a fio sempre
iguais a este. Mas não vos iludis, porque o meu sono, esse estado benfazejo
de apartamento da realidade, durava alguns instantes apenas.
Vi‑me a temer a noite e a desejá‑la, a querer confessar‑me mais do
que o comum dos mortais precisaria, e eu precisava duplamente... Mas o
meu confessor era igualmente a fonte dos meus pecados. Portanto, o que
procurava eu no confessionário: a absolvição ou a perdição? E alguns cha‑
mavam‑me de beato... a verdade é que também o era.
Diariamente eu ouvia missa. Ao sábado conseguia assistir a duas.
Sempre que podia, servia de acólito ao padre celebrante, que a meu ver era
o mesmo que prestar um serviço a Deus, e nessa altura sentia‑me mais per‑
to Dele. Enlevava‑me no meu dever. Mas por vezes o meu olhar fugia para a
assistência e a triste verdade batia‑me com todo o seu fulgor ao vislumbrar,
no banco da frente, o padre Luís. Era ali que mais perto eu estava de estar
tão longe de Deus. Senti as lágrimas a quererem‑me aflorar, eu que tanto
repudiava este tipo de demonstração de emoção, que mais não era do que a
exposição pública das nossas fraquezas, quando ninguém precisa de saber
delas. Mas segurei as lágrimas, como segurava as caixas de areia molhada
em Almeirim, com toda a força dos meus músculos, e se estes levantavam
pedras, bem podiam suster algumas gotas de água. Finalmente comunguei
e deixei‑me estar ajoelhado a rezar diante do crucifixo, absolutamente en‑
volto nos meus pensamentos.
– O que tem Alteza?
Apesar de não precisar de me virar para ver quem era, pois reco‑
nhecia a voz do meu mestre, ousei olhá‑lo nos olhos.
– Pedia a Deus que, assim como a tantos Príncipes havia concedi‑
do vitórias, impérios e monarquias, me concedesse somente ser Seu Capi‑
tão.23
Eu não mentia, pois naquele momento, ajoelhado diante de Cristo,
mais do que uma obsessão, ou o desejo de todo um povo de reviver as gló‑
rias passadas, uma jornada a África seria uma oferenda a Deus, um meio
para expiar os meus pecados. Talvez achasse naquele momento a ideia ori‑
ginal, mas a verdade é que eu crescera num ambiente de guerra entre os
mouros, na necessidade de travar o avanço destes na nossa possessões. Esta

23
Pe. Amador Rebelo, Relação da Vida d’Elrey D. Sebastião, p. 44.

72
ideia apenas ia ao encontro daquilo que se esperava de mim, e as resoluções
das Cortes, reunidas no ano passado, deixavam‑no bem claro.

Nessa noite pensei trancar‑me à chave no quarto e atirá‑la pela janela,


mas como o justificaria ao meu tio e à minha avó de manhã? Como po‑
deria ter feito um pedido a Deus há um momento apenas e já me ver
atormentado pela ideia de juntar‑me ao meu mestre no seu quarto? De
que me valiam músculos de ferro, se não os podia comandar quando
mais o necessitava? Dali a pouco vi‑me, sem me lembrar dos passos que
fizera até lá, a empurrar a porta do quarto do meu mestre. Já não havia
livros a escondê‑lo, nem embaraços da minha parte. Avancei para ele, de
novo sem qualquer comando nos meus movimentos. Detive‑me a alguns
passos dele, como se ainda estivesse a tempo de recuar. Era o medo que
me atraía todas as noites para aqui. Mas não só. A escuridão, o silêncio
(que só pode ser obra do demo e, por isso, anjos tocam harpas no Céu
para o evitar), somado ao... desejo, forçavam os meus passos. Notando
que a hesitação enevoava o meu propósito, tão claro ainda há pouco, ele
avançou. Beijou‑me nos lábios. A extremidade da pala do seu olho cego
roçava na minha face e causava‑me prurido. Tentei levantar a mão para
coçar, mas o mestre agarrou‑a e colocou‑a junto do seu sexo. Depois fez
o mesmo com a sua. Acabei, aos poucos, por corresponder ao seu beijo, a
sua língua veio buscar a minha e rapidamente me esqueci dos seus dentes
encardidos.
Não sabia quanto tempo passara, nem exactamente o que fizéra‑
mos, enfim não conhecia o nome, mas sabia a essência. Mal saí do quarto
do mestre Luís, fui surpreendido pelo meu aio. Caminhava pelo corredor
às escuras, não trazendo consigo nenhum candelabro. Parecia um fantas‑
ma daqueles com que dizem que alguns castelos estão assombrados.
– Que fazeis levantado a esta hora, Alteza? – Perguntou‑me e per‑
correu os olhos por mim tentando indagar no meu corpo, na minha roupa,
no meu jeito (e estava tudo lá) o que as minhas palavras não lhe diriam. – E
por aqui, ainda por cima?
– Não conseguia dormir. – Respondi‑lhe, vendo o seu olhar de‑
ter‑se na mancha que tornava naquele lugar a camisa de noite mais escura.
Senti‑me tremer, receando que ele me perguntasse acerca daquela humida‑
de. Eu sei que ele a notou, mas nada me disse a respeito.
– Ide deitar‑vos, Alteza. – Disse‑me em voz baixa, tentando disfar‑
çar a ordem subjacente ao pedido.
Assim o fiz, sem acrescentar mais nada e tentando que fossem fir‑
mes os passos que me levavam de volta para o meu quarto. Fi‑lo com gran‑
de esforço, pois sentia dores que me dificultavam o andar, mas sabia que os

73
olhos do meu aio estavam postos em mim e já era suficiente que ele tivesse
visto a mancha.
De manhã o meu aio foi buscar‑me para a aula com o mestre Luís,
como de resto fazia desde que as minhas lições começaram. Ele apenas me
desejou um bom dia, não dizendo mais nada. Enfim, não fazendo alusão
à noite anterior, que era o que eu temia, pois agora, à luz da manhã, achei
que me seria mais difícil disfarçar. No entanto, o que descobri ser agora
mais complicado disfarçar, era o andar. As dores tinham aumentado, não
havendo forma de eu conseguir iludir o meu passo.
– Que tendes Alteza? – Perguntou‑me em tom mais de retórica do
que de verdadeira interrogação, provavelmente porque não esperava ouvir
a verdade.
– Caí ontem do cavalo. – Atirei para ver se me escapava.
– Vós caísteis de um cavalo? – Disse‑me, não tentando sequer dis‑
farçar o cepticismo da sua voz. – Vós que sempre que podeis passais mais
tempo sobre as patas de um cavalo do que sobre as vossas próprias pernas...
– Acaso vos esqueceis que temos um cavalo que está a ser desbastado
agora? – Respondi mal me lembrei deste escape. – Ou pior ainda, duvidais da
palavra do vosso rei? – Lancei, pois se eu, D. Sebastião, me colocasse naquele
momento numa posição sub‑reptícia, levantaria ainda maiores suspeitas.
D. Aleixo de Menezes nada me respondeu e continuou calado até
entrarmos na sala de aula. Ele e o mestre Luís cumprimentaram‑se normal‑
mente.
– Que tendes no andar, Alteza? – Perguntou‑me o mestre.
Vindo dele ressenti‑me da pergunta, mas alegrei‑me simultanea‑
mente, pois poderia despistar as desconfianças de D. Aleixo de Menezes.
– Caí ontem de um cavalo.
– Hum, sim. – Respondeu‑me com um ar pouco convencido.
– O cavalo ainda é novo, está a ser desbastado. – Acrescentei, dando
por mim a esforçar‑me mais por tentar convencê‑lo a ele, como se isso fosse
possível ou mesmo necessário, do que ao meu aio.
– Mas ontem não vos vi coxear. – Replicou‑me.
– Ontem não me haveis visto depois de eu montar a cavalo. – Per‑
cebi o que acabara de dizer tarde de mais, já tinha os olhos do meu aio
colocados em mim.
– Acaso fosteis montar de noite, Alteza? – Atalhou o meu aio.
Olhei para o meu mestre temendo que o meu olhar, mais do que as
minhas palavras, que já não me estavam a deixar ficar bem, me traísse. Este
percebeu que havia algo que D. Aleixo de Menezes sabia, que ele não sabia
que ele sabia...
– Só fui montar depois de vos ter encontrado no corredor.

74
– De noite? – Insistiu o meu aio.
– Bem vos disse que não conseguia dormir.
– Já nos demorámos de mais com esta conversa, iniciemos a aula.
– Interrompeu o mestre para ver se conseguia acabar com aquelas pergun‑
tas, mas não sem antes acrescentar: – Não deveis montar de noite... – Dei‑
xou escapar um sorriso que poderia ter vários significados, só eu sabia qual,
pelo menos assim o esperava.
Olhei de soslaio para o meu aio. Não queria enfrentá‑lo directa‑
mente, pois nesse confronto seria com certeza eu o perdedor, mas para meu
espanto ele pareceu‑me convencido.
Era função do meu aio acompanhar‑me para todo o lado, mas co‑
meçou a parecer‑me que ele redobrou os seus esforços nesse seu trabalho.
Noites a seguir a noites refiz vezes sem conta os passos do meu
quarto até ao do meu mestre. Parecia uma serpente encantada, daquelas
que numa dessas madrugadas em que repousava no colo do meu confes‑
sor, ele me contou existirem em África. Os mouros tocam uma flauta e as
serpentes mantêm‑se fascinadas de pé, de cabeça girando, olhando para os
seus amos. Eu era assim. Sentia‑me assim.
Este desejo incessante que me invadia as madrugadas foi quebrado
uma certa vez, não por minha vontade, mas por algo maior que eu, que o
meu desejo, que nem mesmo o encantamento da serpente podia vencer.
Eram dores agudas no meu testículo direito, que começaram depois a irra‑
diar para a virilha, mas ainda havia mais e pior... uma substância amarela e
fétida purgava do meu sexo.24
Amanheci melhor, os sintomas da noite tinham desaparecido. De
tarde, aquando da hora da confissão, contei, sentindo a pele do meu rosto
tornar‑se quente, o sucedido ao meu confessor. Após um longo silêncio no
qual manteve sempre os olhos fixos em mim, ordenou‑me que não contas‑
se nada a ninguém. Assim fiz.25
24
“Um fluxus seminis, alterado e corrupto (...)” in Queiroz Velloso, D. Sebastião
1554‑1578, p. 107.
25
A maioria dos historiadores situa o aparecimento dos primeiros sintomas da doen‑
ça de D. Sebastião pouco depois dos seus onze anos, ou seja em 1565. Mas segundo
Johnson, Harold B., Dois estudos polémicos, numa carta escrita pelo padre Luís da Câ‑
mara em 1566, ele diz ter tido conhecimento da doença dois anos antes, ou seja, 1564.
Como confessor do rei, ele estaria numa posição privilegiada para obter informações
que mais ninguém teria, mas porque foi a situação mantida secreta até ao dia em que,
pela severidade dos sintomas, estes não podiam mais ser escondidos?
Por outro lado, o Pe. Amador Rebelo, um dos mestres jesuítas do rei, colega do padre
Luís Gonçalves, escreveu a Relação da Vida d’Elrey D. Sebastião, após o desapareci‑
mento deste. Apesar de rica em pormenores acerca da vida do rei, não menciona a
doença de D. Sebastião. Pretenderia ele omiti‑la?

75
Capítulo XII
1565 – O Ano da Caça e do Caçador

D e oito em oito dias, eu confessava‑me. Os membros da família


real usualmente faziam‑no apenas uma vez por ano. Este meu
comportamento suscitava rumores e insinuações, mas eu gostava
da capela do palácio. Por outro lado, eu não podia ser acompanhado para
estes lugares, e além da noite no quarto do meu mestre, aquele era o único
lugar onde eu estaria a sós com ele. Além disso, eu tinha muito para con‑
fessar...
Era estranha a minha relação com o meu mestre. Eu amava‑o, mas
também sentia repulsa por ele. O padre Luís era agradável de se ouvir, a
sua voz morna e doce, a sua cultura humanista grande, a sua inteligência e
sagacidade incontornáveis. Eram estes os pontos da minha admiração. Por
tudo isto, e talvez por mais alguma coisa, eu sabia que ele me dominava os
pensamentos e as vontades. Se não, como se explicaria que me fosse to‑
talmente impossível não percorrer aquele maldito corredor que separava
o meu quarto do dele? Era como se a sua voz chamasse por mim e, en‑
quanto lutava para não a seguir, o meu pensamento só achasse refúgio em
reviver todas as noites que passara com ele. Então para quê adiá‑lo mais?
Atirava‑me para o seu quarto, para a sua cama (não para os seus braços),
como depois faria muitas vezes para o mar, lançando‑me nu e desvalido
para as ondas violentas. Chamavam‑me um prodígio de força, mas não as
tinha para lutar contra o padre Luís, contra mim...
Fora de Lisboa era mais fácil conviver com as insónias. Assim que
saía da cama, vestia‑me e descia até à cozinha, entalava duas fatias de car‑
ne assada no meio de broa recessa e ia para o estábulo. Na sala de arreios
empurrava o último pedaço de pão para dentro da boca, colocava a sela
sobre o braço esquerdo e no ombro direito pendurava as rédeas. Dava uma
palmada gentil na garupa do meu cavalo, empurrando‑o para o lado para
que eu pudesse passar e selá‑lo. Trazia‑o pela mão até ao pátio e, antes de
o montar, voltava a apertar‑lhe a cilha, que subia sempre pelo menos mais
um furo. Finalmente, prendia a besta e o machado nos arreios e embre‑
nhava‑me sozinho pelos matagais.
Era assim, se não fosse a voz do mestre a chamar por mim e a im‑

76
pedir o sono, era o sussurro do perigo a fazer‑me levantar. Entrava pela flo‑
resta e seguia na direcção do que seria o seu centro, para onde a ramagem
era mais densa. Muitas vezes o meu cavalo recusava‑se a continuar e tinha
de o incitar com um toque de esporas, ou mesmo afundá‑las na sua barriga
para o convencer. Mas desta vez encetara uma verdadeira luta com a minha
montada, que se opunha terminantemente a continuar apesar das minhas
esporeadas. Ela girava sobre as suas patas traseiras, colocando‑se na direc‑
ção oposta àquela que eu queria seguir. Por meu turno, puxava‑lhe a rédea
obrigando‑a a virar a cabeça e consequentemente o resto do corpo para o
lado pelo qual eu queria prosseguir. Mas mal lhe afrouxava um pouco as
rédeas para que caminhasse para a frente, tornava a inverter a sua direcção,
apesar dos meus esforços para que se mantivesse no sentido que eu lhe or‑
denava. Resolvi descer e prosseguir a pé, levando o meu cavalo pela mão.
Só aí percebi um odor forte no ar. Mal dei uns passos à frente compreendi
de imediato porque o animal teimava em não querer continuar. Um porco
selvagem estava a menos de quatro varas26 de nós. Sorri.
– Era só por isto que não querias continuar? – Perguntei em tom
zombeteiro ao meu cavalo.
Parei de caminhar; este porco era maior do que qualquer um que
já tivesse visto, e até aqui todos eles mortos. Àquela distância parecia‑me
pesar várias arrobas, quase parecia um urso. Tornei a sorrir, desta vez não
para o cavalo, mas para o animal, que já me tinha visto e parecia ranger os
dentes. Ergui o meu braço devagar na direcção da sela, e tacteei com a mão
buscando as armas. A primeira que encontrei foi a besta. Serviria, mas não
daria metade do gozo. Era o machado que eu pretendia, cá estava ele! Uma
luta corpo a corpo era mais interessante... e justa. Acabara de colocar a mão
sobre o cabo do machado quando o porco decidiu investir contra mim e
simultaneamente o cavalo fugiu. Felizmente, já apertara o machado com
força na minha mão e este salvou‑se da deserção da minha montada. Dei‑
xei‑me ficar no caminho do porco que galopava na minha direcção. Ergui o
machado no ar para lhe acertar na altura propícia. Mantive o sangue-frio; se
investisse cedo de mais falharia o alvo, desequilibrar‑me‑ia e logo de seguida
seria rechaçado pelo impacto do animal. Mais um pouco, mais um pouco,
repetia a mim mesmo para me convencer a não investir. Tarde de mais! O
animal acertara‑me e projectara‑me algumas varas. Consegui colocar‑me
de joelhos e sem tempo para pensar no momento exacto para acertar no
animal, vendo‑o correr na minha direcção, assim que este se colocou ao
alcance da lâmina, fi‑la cair com toda a força sobre a sua cabeça. Senti a

26
Antiga unidade de medida de comprimento equivalente a 1,10m.

77
lâmina entrar no focinho do animal até à madeira do cabo, escachando‑o
em dois, quase chegando ao pescoço. O porco caiu de imediato no chão, es‑
trebuchando com o cabo do machado a agitar‑se no ar. Ergui‑me e, quando
o animal deu o seu último espasmo, peguei no cabo da arma e, colocando
um pé sobre o seu corpo, puxei‑a de forma a desenterrá‑la da sua boca.
Já estava! Era só isto, nada mais. A luta preenchera‑me, mas depressa
chegara ao fim. Agora de novo o vazio, a solidão. Olhei para mim, a minha
camisa estava suja de sangue. Não era todo do porco, algum era meu. Levan‑
tei‑a, inspeccionando o meu corpo. Estava ferido nos ombros e no ventre. To‑
quei nas feridas. Doíam‑me quando lhes calcava; sorri satisfeito, finalmente
uma dor que doía mais do que aquela que eu carregava todos os dias.
Prendi o cabo do machado no cinto e peguei no animal, atirando‑o
para os meus ombros. A minha montada tinha fugido. Teria de voltar para
casa a pé, mas estava fora de questão deixar ali o meu troféu, a minha pri‑
meira peça de caça grossa.27
O meu cavalo esperava‑me na orla da floresta, com um aspecto
apatetado, entretendo‑se a tentar comer umas ervas que ficavam presas no
seu freio. Retirei o porco dos meus ombros, que me doíam, não pelo peso
que carregavam, mas pelos ferimentos que o cadáver do animal pisavam, e
coloquei‑o na garupa da minha montada, prendendo‑o à sela.
Era noite quando cheguei a casa. Muitos criados e pajens espera‑
vam‑me à porta. Entreguei de imediato o cavalo a um deles e disse a outro
que levasse o porco para a cozinha. As mulheres benzeram‑se ao verem o ta‑
manho do animal e adivinhando que eu o teria matado sozinho. Cambaleei
nos primeiros passos após descer do cavalo. Vários pajens instintivamente
acercaram‑se de mim, julgando que pudesse ser necessário segurarem‑me.
Fiz‑lhes sinal de que estava tudo bem e para que se afastassem. Passara o dia
todo sem comer, sentindo‑me em fraqueza. Os seus olhares reprovadores
eram o menos; a minha avó viera para Almeirim, e agora teria também de
ouvir o seu sermão.
Ao ver a minha camisa, outrora imaculadamente branca, comple‑
tamente encarnada, foi necessário aos pajens colocarem‑se de novo a pos‑
tos, na eventualidade de terem de segurar a rainha que parecia ir ter uma
síncope. Ela instigava‑me a tirar a camisa e a deixar que alguma empregada
ou um pajem me limpasse os ferimentos. Eu até poderia estar a morrer mas
nunca tiraria a minha camisa em frente aos empregados. Entretanto, o meu
27
“(...) e sendo então Elrey de 12 annos, matou o primeiro porco montes, ao 1º de
Fevereiro de 1565” in Joaquim Veríssimo Serrão, Documentos inéditos para a his-
tória do reinado de D. Sebastião, p. 125. No entanto, em 1565, D. Sebastião tinha
11 anos e não 12.

78
sangue pingava no chão e a minha avó continuava a teimar no impossível.
Até que, vendo que não me levaria a melhor assim, disse:
– Subi, que eu mesma vos limparei.
Sem lhe acrescentar mais nada, assim fiz e esperei‑a deitado na
cama, já sem camisa. Pouco depois ela chegou, carregando uma bacia com
água.
– O que obrigais uma rainha a fazer!
Permaneci calado, e ela começou a limpar‑me as feridas causadas
pelas presas do animal, parecendo‑me mais profundas agora do que na flo‑
resta.
– Tendes consciência de que aquilo que fizesteis hoje é uma teme‑
ridade? – Como continuei sem nada dizer, focando um ponto no dossel da
minha cama, ela continuou. – Julgai‑vos especial, mas não abuseis da sorte.
Todos nós temos uma certa quantidade que nos é atribuída à nascença. A
vós foi‑vos atribuída mais do que ao comum dos mortais, mas também ela
é finita. Se a usais em demasia em situações frívolas, correis o risco de ela
vos faltar quando vos for verdadeiramente necessária.
Eu continuava a fingir‑me mais interessado no tal ponto no dossel
do que nela, aparentando não estar a ouvir uma única palavra do que ela
me dizia.
– Ai! – Gritei.
A minha avó acabara de despejar álcool sobre as feridas. Não me
avisara de propósito para se vingar de eu a ter feito subir com a bacia nas
mãos, mas sobretudo por não lhe estar a prestar atenção. Ela sabia que fa‑
zer‑me dar parte fraca, enfurecer‑me‑ia. Continuei a fixar um ponto, mas
ela já não ouviria um pio da minha boca, mesmo que me enfiasse num
tonel de álcool. Mas também já não era preciso. A rainha estava sorridente,
como se tivesse conseguido um grande triunfo, como se ela própria tivesse
matado sozinha o porco selvagem.
Na manhã seguinte, inspeccionando as minhas feridas, foi com
grande surpresa que notei que estavam todas saradas. Podia voltar aos
meus exercícios de caça. Desta vez não fui sozinho, uma larga comitiva
acompanhava‑me. Mas ao fim de pouco tempo, ao apanhar a pista de um
porco‑montês, afastei‑me tanto dos outros que acabei por me perder e nun‑
ca encontrar o animal. Fiz rodar o meu cavalo sobre as suas patas traseiras,
mas não percebia por onde devia seguir para encontrar o caminho de Al‑
meirim. Estaquei o animal, perscrutando o silêncio, que me parecia ter‑se
abatido de repente, na tentativa de uma voz distante de algum fidalgo me
apontar a direcção. O ruído de guizos apagou o sossego, tornando‑se cada
vez mais intenso. Aproximavam‑se. Posteriormente, balidos fizeram‑me
voltar a cabeça na direcção certa. A aparição pouco depois de ovelhas, um

79
rafeiro alentejano e, por fim, o pastor, deram‑me essa certeza. Já não estaria
perdido por mais tempo, pensei.
– Viva!
O pastor estremeceu; não só se apercebera de mim apenas naquele
momento como se constrangera por me reconhecer. Enfim, pelas minhas
roupas percebera pelo menos que era um fidalgo, não sei se sabia que era
el‑rei. Foi ele quem me disse que eu estava distante de Almeirim e me apon‑
tou a direcção para encontrar o caminho de volta. Era já muito tarde e eu
tinha fome. Pedi‑lhe se tinha algo de comer que me pudesse dar.
– Não tenho mais do que um pedaço de pão negro e duro. Não
servirá para sua Mercê.
– Ora, reparti comigo.
O pão era talvez pior do que o ovelheiro o descreveu, mas eu estava
esfaimado e aquele pedaço soube‑me como nenhum outro. Agradeci‑lhe o
pão e as indicações, dei‑lhe um bom dinheiro por eles e tornei por onde o
rapaz me dissera.
Cheguei de noite a Almeirim; todos já me procuravam, mas foi o
padre Amador Rebelo que eu vi primeiro.
– Senhor, cuidávamos por si! – Disse‑me com voz embaraçada
o padre que, como todos os outros, andava à minha procura. – Por onde
tendes andado que nos mantendes desde cedo em rebuliço pela aflição da
vossa ausência?
– Andei com um pastor que partilhou comigo broa e nunca comi
nenhuma que melhor me soubesse.
E expliquei ao padre o estado lastimável do pão, ao que ele me res‑
pondeu:
– Por aí vê V. Alteza as necessidades de que os pobres padecem, que
nem têm um pedaço de pão que metam na boca.28
Esta resposta impressionou‑me. Eram de facto miseráveis os po‑
bres do meu reino.
Mal fui para a cama, adormeci de pronto, ainda anestesiado pela
pureza dos meus últimos dias. Acordei a meio da noite, desnorteado com
dores excruciantes na virilha e no escroto, sem saber quanto tempo passara
desde que me deitara. Virei a cabeça para a esquerda, procurando por entre
os cortinados das janelas alguma luz que me desse qualquer indicação. Pa‑
receu‑me que o breu era completo. Sentia‑me húmido, levantei as cobertas
e um odor nauseabundo avassalou‑me. Baixei‑as de imediato e deixei‑me
ficar na cama, de corpo completamente rendido ao sofrimento. A pouco e

28
O episódio do ovelheiro está descrito em Pe. Amador Rebelo, Relação da Vida
d’Elrey D. Sebastião, p. 70.

80
pouco, as dores foram refluindo. Talvez já fosse de madrugada quando me
senti cair no sono.
De manhã, fui acordado por uma das camareiras que entrou sem
cerimónia no meu quarto, pois pelos meus hábitos ela julgava que eu já não
estava lá. Atrapalhou‑se muito e tornou a sair. Levantei‑me de imediato,
apressei‑me a despir a camisa de noite e a escondê‑la, limpei‑me e vesti‑me.
Para não quebrar mais os meus hábitos, saí para as cavalariças, peguei num
cavalo e parti.
Dirigi‑me para a floresta a galope, e estaquei o cavalo de propósito.
Sentia calafrios. Desmontei e ainda assim entreguei‑me aos meus exercí‑
cios físicos. Depressa o mal‑estar da noite voltou. Coloquei o pé esquerdo
no estribo, mas as dores que senti ao fazer força na perna para içar o corpo
fizeram‑me desistir logo à primeira tentativa. Encontrava‑me longe de casa
para regressar a pé. Esforcei‑me por voltar a subir para o cavalo, ignorando
todos os sinais do meu corpo. Consegui, por fim, colocar‑me sobre a sela.
Apertei‑me o quanto pude contra a barriga do cavalo e incitei‑o ao galope.
À velocidade que seguíamos, em breve estaria em casa, mas pareceu‑me
uma eternidade o tempo que me separou desse momento, e por várias ve‑
zes me julguei desmaiar por não aguentar as dores. Um pajem acorreu para
segurar o cavalo, mas foi a mim que ele amparou. Mal tive os dois pés no
chão, houve quem fizesse menção de me levar apoiado para dentro, pois
por certo julgaram que as dores mudariam a minha personalidade. Não
havia maneira de me convencerem a andar apoiado em alguém!
Começou a ser mais difícil esconder os sintomas da doença que
me afectava e, à noite, os corrimentos amarelos e fétidos continuavam, ora
mais intensos, ora mais débeis. Fui visto por um médico. Este atribuiu a
causa da doença ao intenso frio que se fazia sentir nesse ano em Almeirim,
assim como aos violentos exercícios de caça a que eu me entregava, pois o
corrimento aumentava ou diminuía na proporcionalidade directa do meu
esforço. Antes assim, pois tendo em conta as partes onde eu sentia as dores
e o que delas saía, eu também já tinha feito o meu próprio diagnóstico: este
só podia ser um castigo do Altíssimo. Ainda para mais eu sabia que o padre
Luís tinha sintomas semelhantes aos meus, o que reforçava a minha teoria.
Este diagnóstico feito pelo médico era‑me, sem dúvida, mais favorável.
Por indicações do médico, a corte regressou a Lisboa. O meu com‑
portamento em Almeirim seria o causador daqueles sintomas, diziam. Não
senti melhoras na capital e nem as opiniões dos vários doutores chamados
a verem‑me eram unânimes.
As minhas insónias persistiam, agora mais do que nunca. Mas,
desde que os primeiros sintomas da doença me apareceram, eu deixara de
frequentar o quarto do meu mestre, pois as dores só me faziam crer que de‑

81
veriam ser o resultado de um flagelo divino, ainda mais porque os médicos
não se entendiam quanto às causas. Em fins de Julho comecei a sentir‑me
melhor e, por isso, voltei a confessar‑me mais amiúde.
A capela encontrava‑se silenciosa. O padre Luís trancou a porta
atrás de mim. A luz natural era ténue, mas a chama das velas proporcio‑
nava uma luminosidade amarelada ao lugar. Ajoelhei‑me, benzendo‑me
mal entrei na capela. O padre Luís também. Dei uns passos em frente na
direcção da figura de Jesus Cristo crucificado, todo Ele rodeado por imen‑
sas velas. Comecei a reparar no cheiro a cera que enchia o lugar. Ao lado, o
padre Luís colocava a faixa de cetim branco em volta do pescoço. Vi‑o de
olhos fechados a dizer umas orações. Fiz a minha mão deslizar pela ma‑
deira envernizada do altar. Fechei eu também os olhos, mas com força, de
modo que uma dezena de pequenas rugas os rodearam. Não sabia eu ao
que vinha? Porque estava então ali? O meu confessor sentou‑se no banco
que lhe era destinado para a confissão, com as palmas das mãos unidas e
encostadas à boca, os olhos suavemente cerrados e de lábios oscilantes. Tal‑
vez hoje fosse diferente. Ajoelhei‑me defronte do meu confessor. Não disse
nada. Pareceu‑me pateta. O que lhe poderia dizer que ele já não soubesse?
Ou melhor, o que lhe poderia dizer de verdadeiramente pecaminoso que
ele já não soubesse?
– Ó meu menino loiro, – começou ele quebrando o silêncio, – há
quanto tempo não estávamos assim...
Assim como? Sozinhos? Diante de Deus? Ou eu ajoelhado com a
cabeça mesmo defronte do seu baixo‑ventre, interroguei‑me.
– Ssss... – Soltou ele como uma cobra sibilante, ao mesmo tempo
que me afagava em movimentos enérgicos e circulares o pescoço e o em‑
purrava para a frente.

Abri a porta da capela. O padre Luís ainda ficaria lá mais algum tempo. A
luz entrou no local, fazendo parecer perniciosa a média luz de há pouco, e
uma lufada de ar fresco, que senti como uma chicotada na face, renovou a
atmosfera viciada. Quando me recompus e aventurei para fora dos limites
da capela, estremeci. O meu aio esperava‑me. O inusitado da sua presença
assustou‑me. Ele acompanhou‑me em silêncio, o que me fez temer pelo
pior. Saberia ele o que se passava?

Durante dias achei que tudo estava bem, mas ao dirigir‑me para os aposen‑
tos da rainha, estranhei a ausência do meu aio. Não lhe dei importância até
ao momento em que ia bater à porta da minha avó e a ouvi em histeria e à
voz de Aleixo de Menezes vinda do lado de lá.
– De inclinação real para costumes viciosos, ou inclinado natural‑

82
mente, por onde alguns abriram caminho ilícito à sua privança, esta será a
sétima e mais imediata causa para a perdição do reino.29 – Ele esperou um
pouco, talvez para deixar as palavras fazerem efeito na sua interlocutora.
Era necessário para o seu golpe de misericórdia. – O padre já conheceu a
natureza do rei, não tarda a apoderar‑se‑lhe do ânimo!30,31
Embora não estivesse a ser visto, tive vontade que um buraco se
abrisse na minha frente para que eu me enterrasse nele. Como poderia dali
em diante encarar a minha avó? Ouvia‑a chorar.
– Como soube? – Conseguiu a rainha pronunciar a custo.
Não ouvi o meu aio responder‑lhe nada. Talvez apenas meneasse
a cabeça naquele momento, informando‑lhe que não lhe daria essa infor‑
mação. Escutei uns passos, que reconheci como os da minha avó, depois
um silêncio. Achei que ela abraçava D. Aleixo de Menezes, procurando nos
seus braços algum conforto. A minha avó não era dada a demonstrações de
afecto. Se realmente abraçava o meu aio, eu só podia imaginar o tamanho
da dor que ela sentia naquele momento.
– Isso não interessa, suponho. – Aquiesceu a rainha, respirando
fundo e tentando deter as lágrimas. – Mas temo que também já se tenha
apoderado do seu ânimo! Temo que já seja tarde.
– Não! – Ripostou veemente o meu aio, e eu senti que a afastava de si.

29
Diogo Barbosa Machado, Memórias para a História del Rey D. Sebastião, Parte II,
Livro II, Cap. XXII, p. 617. Esta frase de D. Aleixo onde ele expressa a sua preocupa‑
ção por o padre Luís Gonçalves ocupar o cargo de mestre e confessor do rei, sofreu
arranjos para se tornar mais perceptível. A original é assim: “De inclinar o ânimo
Real, ou inclinado naturalmente lhe permitir costumes viciosos, que é a sétima, e
mais propínqua causa de sua perdição [o reino]; por onde alguns abriram caminho
ilícito à sua privança (...)”.
30
Antero de Figueiredo, D. Sebastião Rei de Portugal, p. 61.
31
O termo “natura” era utilizado pela Inquisição para designar os genitais masculinos,
em António Borges Coelho, Inquisição de Évora, 1533‑1668 in Harold B. Johnson,
Dois Estudos Polémicos, p. 67. Este último autor aproveita aquela frase de D. Aleixo
e este significado de natura para dar crédito à sua teoria do suposto abuso sexual do
rei, esquecendo‑se, no entanto, que a obra de Antero de Figueiredo é um romance
histórico. Apesar disso, o historiador espanhol Alfonso Danvila, em Filipe II y el Rey
Don Sebastián de Portugal, também cita essa obra apesar de ser, como já foi dito, um
romance histórico. Mas se D. Aleixo não tiver proferido exactamente esta frase em
Colectânea de documentos acerca de D. Sebastião, p. 175, é possível ler‑se, quando se
tentava dissuadir a rainha de partir para Castela pela utilidade que tinha para o reino,
o seguinte: “ Alegandolhe a obrigação que S. A. [D. Catarina] tinha ao amor de seus
vassalos cõ que sempre venerarão servirão e obedecerão o que a seu neto [D. Sebas‑
tião] q deixava entregue a seus errados intentos e terrível natureza (...)”

83
– Só é tarde se nos convencermos que assim é! – Ele falava agora como o
homem de guerra que fora. A sua voz alterara‑se como se vislumbrasse na
sua frente o campo de batalha e ele não era homem para se furtar à luta.
– Eu posso redobrar, triplicar, o que for, o meu desvelo, a minha atenção
por ele, eu posso...
– E o que é que isso adianta? – Retrucou a minha avó. – Não o pode
seguir para o confessionário, pois não?
– Não, de facto não. – Respondeu em voz baixa como um guerreiro
vencido. – Mas ainda sois a rainha! – Começou num tom ressuscitado. – Se
não posso seguir o príncipe para o confessionário, afastai o confessor do
seu cargo!
Desviei‑me da porta; a conversa deles não duraria muito mais e eu
já ouvira o suficiente.

Capítulo XIII
1566 – O Ano do Afastamento

H á dias que ouvia falar de um eremita que vivia para os lados da


Ribeira de Muge; morava numa gruta e alimentava‑se só de er‑
vas, contaram‑me. Não conseguia imaginar uma vida mais pobre,
despojada e próxima de Deus e, por isso, não mais deixei de pensar em
vê‑lo.
Levei dias inteiros e seguidos a falar neste velho. Uma manhã ao
sair de casa, sem qualquer tino nas pernas, estas ao invés de me levarem
como nas outras vezes para as cavalariças, conduziram‑me para a lezíria.
Cortei depois para a estrada e apanhei boleia numa carreta de bois. Pergun‑
tei ao carreteiro acerca do eremita e da localização da gruta.
– Siga por aqui e caminhe até encontrar um sobral. Corte para
norte e irá achar um ribeiro. Suba‑o e logo verá a gruta e o tal homem que
procura. – Informou‑me o carroceiro, ao mesmo tempo que abrandava

84
os seus bois. Estes não pararam por completo e tive de saltar em anda‑
mento.
Corri até encontrar o sobral ao invés de caminhar até lá como me
dissera o carreteiro. Virei para norte e subi o rio, aí já a passo. Devo ter
caminhado uma boa meia hora até avistar finalmente a gruta. Ergui a ca‑
beça. Apenas o correr apressado das águas era audível. Ali não chegava o
pigarrear de nenhuma ave, não que não as houvesse, o seu cantar é que era
abafado pelo ruído do rio. O arvoredo era menos cerrado e era composto
na sua maioria por pinheiros. Por isso, o ar tinha aquele odor desintoxican‑
te a caruma e, como o vento soprava gelado, o todo era revigorante. Um
trilho desenhava‑se na minha frente, era estreito, serpenteava os penedos,
espiralando‑os de forma ascendente. Deveria ir embocar com a entrada da
gruta, pensei.
A entrada da caverna não ficava muito acima do rio, apenas era tor‑
tuoso o caminho para lá chegar. De olhos pregados na abertura cravada no
meio da pedra, não me apercebi de mais nada. Por isso, ia colapsando de
susto quando, ao virar‑me para trás, um homem se afigurou. Ele era magro,
mais até do que isso, pois podiam‑se contar as suas costelas e as maçãs do
rosto de tão encovadas pareciam tocarem‑se no interior da boca, de estatura
aparentemente maior do que realmente era pela falta de carnes. Parecia velho,
de cabelos e barbas brancas, de rugas acentuadas na testa, mas de porte com‑
pletamente direito, sem qualquer curvatura nas costas como era frequente
em pessoas de idade avançada. Talvez os ossos mantivessem as suas parcas
carnes direitas, como um espeto segura as febras, pensei. Era o eremita.
– Que procurais por aqui? – Perguntou‑me o homem secamente.
– A vós, suponho.
– A mim? – Respondeu‑me em tom interrogativo, ao mesmo tem‑
po que coçava a cabeça deixando os seus cabelos espetados devido à sujida‑
de que os fazia segurarem‑se de pé.
– Sim, a vós. – Fiz propositadamente uma pausa para lhe aumentar
o interesse do que eu diria a seguir. – Não sois o eremita que vive à beira do
rio, que se alimenta apenas de ervas?
O velho meneou a cabeça num gesto ambíguo.
– Sois, não sois? – Insisti.
Notei que o homem ia fazer de novo o mesmo menear de cabeça,
mas pareceu arrepender‑se e por isso resolveu responder‑me:
– Talvez seja aquele que procurais, mas não quem encontrasteis.
Estávamos no mesmo. Não me respondera com um gesto dúbio,
porque preferira transportar essa ambiguidade para as palavras. Desviei o
olhar tentando ganhar algum tempo e responder‑lhe de uma forma que o
impressionasse, como ele fizera comigo.

85
– Encontramos nos outros apenas aquilo que desejamos encontrar.
– Desviei nesse instante o meu olhar de novo para o velho e concluí: – Por
isso vejo em vós o que vim procurar.
– Então talvez me tenhais encontrado. – Retorquiu, deixando esca‑
par sem querer um sorriso tão ténue que mal era perceptível.
O velho fez‑me sinal para que me sentasse. À primeira vista, pen‑
sei que me oferecia um assento no chão. Depois, vendo melhor, notei dois
grandes calhaus rolados no topo, dispostos em volta de restos de cinzas e
pedaços de madeira carbonizados, denunciando aquele que deveria ser o
lugar habitual da sua fogueira. Assenti. O velho entrou no interior da gruta
e tornou a sair pouco depois. Trazia um pequeno caldeirão na mão. Pou‑
sou‑o junto a mim e acendeu uma fogueira, pois já não faltava muito para a
noite cair e, com o esmorecimento do Sol, o frio aumentara. Tornou a pegar
na asa do caldeirão e desceu pelo trilho que levava até ao rio. As labaredas
cresciam timidamente.
Estiquei as pernas e senti as dores que me atormentavam por vezes
voltarem. Suores frios escorriam‑me em fio pela cara. Fechei os olhos ten‑
tando concentrar‑me, esforçando‑me por parecer bem quando o eremita
voltasse.
O velho inclinou o caldeirão sobre o rio e mergulhou a sua boca até
meio, de modo a que se enchesse de água. O eremita retornou pelo mes‑
mo caminho, com o ombro do lado que segurava a panela descaído pelo
peso. Eu fixava o velho que se aproximava para colocar o caldeirão ao lume;
ele desapareceu dentro da gruta, mas ressurgiu logo depois segurando nas
mãos um saco de couro. Sentou‑se no outro calhau ao meu lado e aguardou
calado. Não percebi o que ele esperava, mas também não quis interromper
o seu silêncio. Na realidade, nem me sentia capaz disso. As dores atormenta‑
vam‑me duplamente, pois para além do sofrimento físico, a luta interior que
eu travava para não o demonstrar, arrasava‑me. De repente, sem qualquer
aviso, o eremita levantou‑se finalmente, abriu os cordões da bolsa e despe‑
jou parte do seu conteúdo na sua mão. Folhas e ervas secas esvoaçaram,
depositando‑se na cova da sua palma. O ermitão abanou‑a levemente para
as espalhar e melhor avaliar a quantidade que acabara de despejar. Obser‑
vava‑o com atenção; parecia‑me estar a assistir a um ritual. Entretanto, as
dores pareceram ceder por uns instantes. O velho colocou as costas da mão
que acondicionava as ervas por cima do caldeirão e virou‑a, deixando cair
o seu conteúdo para a água no momento exacto em que esta começava a
borbulhar. Do manto que o embrulhava, o eremita retirou de uma das suas
dobras uma colher de pau, com a qual começou a agitar a mistura.
Levei a mão à barriga, pressionando‑a. Não que as minhas dores
estivessem ali, mas não era educado levar a mão mais abaixo.

86
– Só mais um pouco, já está quase. – Disse‑me como se me infor‑
masse de algo que eu deveria saber, mas mantendo‑se a agitar firmemente
o conteúdo do caldeirão e com o olhar colocado na mistura, como se isso
fosse crucial para o seu sucesso.
Hesitei, sem saber se deveria ficar calado ou perguntar‑lhe o que ele
queria dizer. O ermitão poupou‑me à decisão, continuando a falar.
– Este preparado de ervas vai fazer‑vos sentir melhor.
– Melhor? – Retorqui com o tom da minha voz a trair‑me.
– Sim, melhor. – Colocou uma entoação mais forte nesta última
palavra, e desviou nesse momento o olhar para mim e, parando de agitar
o preparado, despejou‑o para um púcaro. – Bebei e sentir‑vos‑eis melhor.
– Disse, estendendo‑me o copo, semicerrando os olhos e tornando a carre‑
gar na palavra melhor.
A cor do púcaro, negra, por com certeza muitas vezes ter sido aque‑
cido ao lume, contrastava com a alvura da pele do velho. Só agora reparara
que o eremita era tão claro, de um branco tão macio que quase parecia
transparente. Se a noite já não tivesse caído, estando o velho em pé ao sol,
seria capaz de apostar que os raios solares o poderiam atravessar. Notando
a minha hesitação em aceitar o copo que me estendia, o velho insistiu:
– Bebei, sentir‑vos‑eis muito melhor depois. Garanto‑vos.
– Porque teimais na palavra melhor? – Perguntei, acentuando tam‑
bém nesse vocábulo. – Acaso vos pareço doente? – Rematei, mal disfarçan‑
do um esgar de dor.
O velho sorriu‑me antes de responder e continuou a segurar pa‑
cientemente o púcaro na mão, ligeiramente trémula, mantendo‑a estendida
para mim.
– Estais apenas nervoso então? – Não precisei de responder. A mi‑
nha cara de perplexidade incentivou‑o a continuar. – Os espasmos mal dis‑
farçados, a mão no ventre... Ah! – Exclamou colocando o dedo indicador
na testa, como se ainda faltasse um elemento importante na sua enume‑
ração e ele se tentasse lembrar dele. – E os suores frios a escorrerem‑vos
em bica. – Completou, retirando o indicador da testa e apontando‑o para
mim. – Deveis ser muito nervoso. – Concluiu, abanando a cabeça afirmati‑
vamente como se concordasse com aquilo que dizia.
Antes que ele prosseguisse, arranquei‑lhe o púcaro da mão, agora
sim nervoso. Mal o líquido roçou os meus lábios, desviei instintivamente a
caneca da boca. O chá ainda estava demasiado quente.
– Tentai bebê‑lo o mais quente possível. Quanto mais quente, me‑
lhor vos fará.
Aproximei de novo a chávena à boca, mas sem deixar que a infusão
me tocasse os lábios, apenas apreciando o aroma que se desprendia dela em

87
conjunto com o fumo que subia em estreitas colunas. O odor era agradável.
Não o associei a nenhuma planta que eu conhecesse, mas parecia adocica‑
do. Soprei sobre a superfície, agitando‑a com pequenas ondas. Por fim, ga‑
nhei coragem e voltei a tentar beber a infusão. Afinal, apesar de agradável,
não era adocicada como eu suspeitara, possuindo um travo agridoce.
O eremita ficou a observar‑me por momentos, como que para se
certificar que de facto eu bebia a infusão que ele me preparara. Depois, en‑
trou na gruta e tornou a sair logo a seguir. Trazia na mão um prato com
aquilo que me pareciam ser raízes, com uma largura de dois dedos. Sen‑
tou‑se ao meu lado e começou a mastigá‑las.
– Vede este eremita, não se alimenta apenas de folhas como vos
contaram...
De vez em quando o velho lançava‑me olhares de esguelha, por
certo para se certificar que eu continuava a beber. Sorvi a infusão até à últi‑
ma gota.
– Daqui a nada deixareis de sentir dores. – Informou‑me quando
acabei o chá.
– Como sabíeis que eu estava doente? – Comecei, mas apenas obti‑
ve do eremita um encolher de ombros como resposta. – Fosteis buscar água
antes mesmo de eu me sentir mal.
O velho fez um gesto ambíguo com o braço no ar, meneou a cabeça
e torceu um pouco a boca, mas não me respondeu.
– Já vos sentis melhor, não é? – Soltou finalmente.
Assenti com a cabeça. Nenhuma beberagem dos senhores doutores
da corte ou de Madrid tivera efeitos tão rápidos e benévolos quanto esta.
Sentia as pálpebras a fecharem‑se e lutava afincadamente para me manter
alerta. Talvez para me despertar, o eremita abriu a sua mão no meu rosto
acariciando‑o. Estremeci.
– Não temeis. – Disse com voz dorida, pousando agora a mão no
meu ombro. – Carregas neles o que, ainda que dividido por três homens
adultos, seria peso a mais.
– Quem sois? Porque me dizeis essas coisas? – Perguntei com certa
aflição.
– Schh... – Sussurrou para me instilar calma, rematando com um
sorriso benevolente. – Não me isolei do mundo para me tornar mais parvo.
– Porque vos isolasteis do mundo? – Perguntei para desviar a aten‑
ção de mim.
Apenas obtive como resposta um sopro e mais um encolher de om‑
bros. Por fim lá deixou escapar:
– Acho que não sei ao certo... já me esqueci. E vós, porque me pro‑
curasteis?

88
– Já vos respondi a isso.
– Sim, mas o que vos encantou num velho que vive isolado numa
gruta, comendo ervas e bebendo água directamente do rio?
– Não é claro? – Comecei por dizer, abrindo os olhos como que
acentuando a minha admiração. Ele sorriu e eu senti que tinha de me jus‑
tificar mais. – Conseguis imaginar vida mais desprendida? Mais próxima
à de Jesus? – O eremita apenas encolheu os ombros em resposta, mas eu
continuei com as perguntas – E assim sendo, quantas vezes vos costumais
confessar?
O velho esbracejou, relutante em responder‑me:
– Isso não é coisa para me perguntardes.
Como eu sabia que este eremita tinha por costume não negar nada
que lhe fosse pedido por amor de Deus, voltei a tentar:
– Por amor de Deus, dizei‑me quantas vezes vos confessais.
– Eu confesso‑me todos os dias, mas não deveis perguntar essas
cousas.
– Mas que tendes vós para vos confessar a cada dia? – Perguntei‑lhe
ignorando por completo o seu conselho.
Vi o rosto do eremita mudar de cor, parecendo‑me colérico.
– Não sabeis que cada dia devemos fazer exame da nossa consciên‑
cia, e observar o que fazemos e em que faltámos?32
Baixei os olhos, sabia‑o perfeitamente. Mas não aguentaria colocar
todos os dias à prova a minha consciência. A vermelhidão do rosto do er‑
mitão dissipou‑se e disse‑me:
– Este chá não vos curará... – Recomeçou o eremita trazendo o as‑
sunto de novo para mim. – Aliviou‑vos, mas a dor voltará outro dia.
Baixei o olhar constrangido; aquele velho parecia saber de tudo. Ele
colocou os dedos indicador e anelar sob o meu queixo e exerceu uma leve
pressão nele, obrigando‑me a levantar o rosto.
– Sois rei! – Disse‑me como se me desse uma ordem. – Não vos
acocoreis à vergonha. Sobretudo não deixeis que seja vossa a vergonha de
outros.
As suas palavras, ao contrário do que penso que ele pretenderia, não
me trouxeram alívio à alma. Talvez até a atormentassem mais. Ali estava eu,
rei ou não, mais despido do que nunca, tão vulnerável como sempre.
– Por vezes penso que esta doença é um castigo Dele. – Confessei.
– Dele quem? – A ausência de uma resposta minha fê‑lo raciocinar.

32
Esta conversa de D. Sebastião com o eremita a respeito da confissão está descrita
em vários historiadores, p.e., Pe. Amador Rebelo, Relação da Vida d’Elrey D. Sebas‑
tião, p. 31, mas decorreu no Paço em Lisboa.

89
– Ah, Dele! De Deus, de Jesus, estou a ver. Oh! – Exclamou dando um estalo
com a língua. – Esquecei essas tonteiras! – Disse, fazendo um gesto com a mão
para que eu afastasse essa ideia. – Não é Dele que vêm os nossos castigos.
– Ah, não?
Um suave abano de cabeça foi a sua resposta. Inconscientemente
dei por mim a imitar o seu gesto. Mas porque me repreendia a mim mesmo
em silêncio? Notando com certeza o meu persistente embaraço e desalento
que não confessaria, o eremita informou‑me que estava na altura de beber
mais uma chávena de chá. A bebida era agradável, mas não tão boa que me
apetecesse repeti‑la.
– Como já vos disse, este chá não vos curará. – Começou, estenden‑
do‑me o púcaro. – Nem podia, não é? – Acrescentou com o que me pareceu
ser um tom de repreensão na sua retórica. Levantei o olhar da infusão e
encarei‑o. – Mesmo que eu descobrisse a fórmula certa, isso não eliminaria
a fonte de contaminação, pois não?
Não sei se ele pretendia de facto uma resposta minha, mas atre‑
vi‑me a dá‑la:
– Não percebo o que dizeis.
Ele esboçou um meio sorriso, mas não me contestou. Senti‑me
quase tão mal como se o tivesse feito. Por fim, informou‑me:
– Está na hora de irdes!
– Acaso me mandais embora?
Antes de me responder, o velho abanou a cabeça em sinal de repro‑
vação.
– Ambos sabemos que não. – Após uma breve pausa, continuou:
– Se eu vos deixasse, ficaríeis aqui para sempre, e de todos quantos aqui
já me apareceram, sois vós o único que não pode realmente fazê‑lo, mas
aquele que o teria feito de facto.
Levantei‑me, não disfarçando a minha contrariedade. Conhecen‑
do‑me eu, não deveria ser possível ela estar mais exposta do que estaria. Já
de costas para o eremita, ele atirou‑me:
– Procurai‑me um dia. Talvez já tenha a solução para o vosso mal.
Mantendo o meu passo, de costas voltadas, lancei‑lhe em tom de
revide:
– Não tornarei aqui! – Podia jurar que, apesar de silencioso, esbo‑
çara um sorriso.
– Eu também já não estarei aqui.
– Então para que quereis que eu volte cá? – Atirei‑lhe furioso, esta‑
cando e voltando‑me nesse momento para ele, de punhos cerrados como
se esperasse a qualquer momento iniciar uma briga.
– Disse para me procurardes, não para virdes aqui.

90
Refiz mais uma vez na companhia do meu aio o caminho até à sala de aula.
Entrei em primeiro. O padre Luís da Câmara esperava‑nos de pé. Olhei
para ele temendo esboçar um sorriso em resposta ao que ele me lançava,
pois sentia os olhos de D. Aleixo cravados nas minhas costas e tinha a estra‑
nha sensação que eles me poderiam atravessar e perceberem as alterações
mais subtis do meu rosto. Até os meus pensamentos eu reprimia na presen‑
ça do meu velho aio. Mesmo esses, temia que ele adivinhasse. Por isso senti
trair‑me quando, antes de o meu preceptor virar a ampulheta que marcava
a duração da minha aula, o vi passar as mãos por um livro que tinha na
sua frente, molhando com a língua a ponta do dedo indicador para me‑
lhor o folhear e levantando ligeiramente o olhar das páginas, encarando‑me
ao fazê‑lo. Senti a minha respiração acelerar e o ar faltar junto ao peito,
criando aí uma sensação que parecia dor, mas era prazer... As imagens que
chegavam até mim misturavam‑se com as da lembrança da noite passada.
Ele não fazia o dedo escorregar pela língua, como normalmente fazemos
quando o queremos humedecer, mas sim esta subir lânguida e ligeiramente
arqueada pelo indicador. A extremidade esquerda dos seus lábios, que era
a que pela sua posição me era dado ver, distendia‑se para cima, deixando
adivinhar um ténue sorriso de gozo por me ver assim. Teria ele enlouque‑
cido? Não era óbvio para todos o que ele estava a fazer, denunciando‑me e
entregando‑se aos olhares astutos do meu aio.
– Que tendes, Sua Alteza? – Inquiriu‑me D. Aleixo, que já se le‑
vantara do seu lugar e, com as duas mãos abertas sobre o tampo da minha
secretária, encarava‑me a curta distância, de mais para que eu não me sen‑
tisse ruborizar, e num tom que me indicava que aquela não era a primeira
vez que me colocava a questão, embora fosse a única que eu ouvira.
Que tendes, Sua Alteza? Repeti para mim. O que é que eu tenho?
Eu não tenho nada, eu não estou a fazer nada! Tive vontade de gritar, sentin‑
do‑me injustiçado.
– Que tendes, Sua Alteza? – Insistia D. Aleixo, desta vez levantando
as mãos do tampo e aumentando desta feita o espaço entre os nossos rostos.
Pareceu‑me que respirava melhor.
Detestava mentir, mas não sabia o que fazer. Olhei na direcção do
padre Luís, que estando agora de frente para mim, encontrava‑se nas costas
do meu aio, e procurei nele auxílio. Nada! Apenas um trejeito na boca, que
denunciava o gozo que aquela situação provocada por ele lhe despertava.
– Não me sinto bem. – Acabei por responder, não me ocorrendo
nada melhor, respirando fundo e fixando o meu olhar num nó da madeira
do soalho. Não estava a mentir totalmente. Reconfortei‑me, pois o mal‑es‑
tar que sentia era agora tão grande que já podia ser confundido com doen‑
ça.

91
O padre Luís levantou‑se e veio na minha direcção, colocando a
palma da sua mão aberta na minha testa.
– Está quente de facto. – Concluiu olhando para D. Aleixo.
O meu aio imitou o gesto do padre.
– Talvez. – Disse o meu aio franzindo a testa e inclinando a cabeça
para o lado como que para acentuar a dúvida. – Pode ser...
– Sinto‑me quente. – Acrescentei, não só para dar mais veracidade
à situação, mas porque de facto assim me sentia. Estremeci.
– Estais com calafrios também... – Reparou D. Aleixo.
– Levemo‑lo para o quarto! – Sugeriu o padre, num tom que não
disfarçava a ordem. Fez menção de pegar em mim para me ajudar a levan‑
tar.
– Eu levo‑o! – Devolveu de imediato o meu aio, numa voz firme
que não permitiria contradições e, ainda para acentuar a intenção, afastou
o braço do padre que já se estendia para mim.
Não sei se por de facto estar, ou se por acreditar que sim, sentia‑me
verdadeiramente mal, mas afastei‑os a ambos.
– Sou D. Sebastião de Portugal! Sou rei! – Disse‑o, pronunciando‑o
orgulhosamente. – Um rei não é carregado por outros, carrega‑se a si mes‑
mo. – Concluí levantando‑me.
Recolhi‑me aos meus aposentos, seguido de perto por D. Aleixo. O
suficiente para me impedir de cair ao chão se eu desfalecesse. A rainha foi
de imediato chamada e, apesar de eu querer a todo o custo evitá‑lo, foi na
cama que ela me veio encontrar. O facto era que eu piorara bastante. Ficara
doente de verdade e, de novo, não pude deixar de pensar que este achaque
só podia ser resultado de algum castigo divino galopante, pois eu começa‑
ra por fingir e de repente, após uma remissão da doença, como que para
punir a minha mentira, ela voltava pior do que nunca. Deus me perdoe,
disse benzendo‑me e deixando escapar em voz alta os meus pensamentos,
quando já me encontrava sozinho no quarto.
Os médicos chegaram ao entardecer, despertando‑me de uma mo‑
dorra à qual eu me tinha entregado entre pensamentos de culpa e de peca‑
dos que eu sabia ter. Sentei‑me na cama, após ter visto saírem goradas as
minhas tentativas de me levantar e receber os doutores de medicina de pé.
Eram oito. Eram todos os médicos do Paço. Vi‑os entrarem um a um no
meu quarto e tomarem o seu lugar em torno da minha cama, como se esse
lugar já estivesse marcado, como quem vai a um espectáculo e pela regu‑
laridade já tivesse o seu assento cativo. Havia quase um ano que eles eram
a assistência assídua deste espectáculo, mas simultaneamente participantes
destes bis.
Diziam que era grande para a idade, mas naquele momento sen‑

92
tia‑me pequeno de mais. Sentado na minha cama, era de baixo que via
os dezasseis olhos daquelas oito figuras exageradamente agigantadas dali,
pregarem‑se em mim comiserados. Eu, el‑rei de uma grande potência
como Portugal, descendente por linha varonil de D. Afonso Henriques, é
que deveria olhá‑los com comiseração. Não obstante, encarei‑os a todos,
desafiando‑os com o meu olhar a manterem o seu de piedade sobre o seu
rei. Nenhum o fez. Começaram com algum atarantamento a abrirem as
suas maletas, a tirarem os estetoscópios e a colocarem‑me as perguntas do
costume, conhecendo de antemão as suas respostas. Respondi‑lhes como
quem recita enfadado a tabuada e eles ouviram‑me aparentando o espanto
de quem ouve uma história pela primeira vez.
Eu já conhecia o procedimento que eles teriam a seguir, apesar de
todos se portarem como se em tudo existisse expectativa. E a expressão “a
noite ainda é uma criança” naquele caso para mim só significava que o meu
sofrimento ainda mal começara.
Invariavelmente, cada tratamento era baptizado com uma bebera‑
gem de endívias, da qual eu não sentia outro efeito senão o ardor na língua
e na garganta. Mas para quem já conhecia o resto, sabia que aquele era um
doce início.
Por fim, o fim. Nem a expectativa da aproximação do final do tra‑
tamento, que eu conhecia de cor, era um bálsamo. Apenas o fim. Quando
já ninguém me tocava. Quando nenhum olhar esperava isto ou aquilo de
mim. Quando finalmente ficava sozinho no meu quarto, parecia que o meu
corpo se dilatava. Todos os músculos se estiravam, como se se empurras‑
sem de encontro ao colchão. Sentia‑os pesados, como se fossem cair se me
levantasse, como se me prendessem à cama. Pudesse ao menos o sacrifício
do corpo purificar‑me a alma... e tudo teria valido a pena, mesmo a repe‑
tição deste tratamento durante seis outras longas noites, que eu sabia ser
tortura e os médicos só poderem estar a agir pela mão de Deus. Deixai‑a
trabalhar então.
No dia 10 do mês de Fevereiro todos os médicos do Paço se reuni‑
ram em conferência, visto eu não ter mostrado nenhuma melhoria, apesar
dos seus esforços. O meu tio cardeal e a rainha juntaram‑se‑lhes. Os douto‑
res discutiram largamente o que fazer, mas não encontraram unanimidade
de pareceres. Um deles lembrou‑se de ir às Universidades de Salamanca
ou de Alcalá de Henares, e mesmo a Madrid, para consultar os médicos
do meu tio Filipe. Mas nunca chegou a partir. Fizeram então uma votação,
que foi ganha de cinco contra três, na qual decidiram iniciar um tratamento
mais enérgico. Mais enérgico ainda? Seria a votação para as minhas melho‑
rias ou para o meu fim? Diziam que o rei era de ferro, e como poderia não
o ser e ainda resistir a tantos sangramentos?

93
O tratamento, isto é, os emplastros, as massagens e os sangramen‑
tos continuaram na mesma medida dos sintomas: os humilhantes e fre‑
quentes desmaios, as vexantes tonturas que me faziam parecer uma donzela
cheia de achaques e as imparáveis substâncias nauseabundas que eu expelia
e que só nessa altura percebi que não eram apanágio de todos os homens,
pois, apesar de semelhantes às que eu vira no padre Luís, e depois em mim,
e por isso me terem levado ao engano, os médicos explicaram‑me que um
homem saudável expele outro tipo de líquidos. Estes eram impuros, disse‑
ram‑me. Tal como eu, pensei. Concluí que esta doença, mais do que um
castigo, era um sinal com o qual Deus marcava os seus filhos pecaminosos,
para os reconhecer. E logo outro pensamento me afligiu: poderiam os mé‑
dicos também reconhecer essa marca? Saberiam eles qual era a causa que
originava estes sintomas? Eles talvez não, mas a minha avó e o meu aio com
certeza. O padre Luís, por vezes, também ficava doente. Sofria de dores ex‑
cruciantes e, embora na verdade elas pudessem ter qualquer origem, de‑
pressa aqueles somariam dois e dois. Não eram só as dores da doença nem
os rigores dos tratamentos, que uns e outros pareciam não mais passarem
desta vez, que me estavam a matar aos poucos, mas sim a reprovação. Tal‑
vez a repugnância também e os juízos que eu imaginava em cada olhar, por
trás de cada porta fechada, em todos os concílios médicos e nas entrelinhas
de tudo o que me diziam. Se eu não saísse daquela cama, enlouqueceria.
Por outro lado, se não visse o padre Luís, também. Esse anseio, por ir contra
aquilo que lucidamente eu desejava, igualmente me punha a cabeça doida.
E havia ainda uma outra questão que me corroía por dentro, sobretudo
porque não podia colocá‑la a ninguém: porque não me visitara ainda o pa‑
dre Luís?

Diz o povo que muita gente morre ao rebentar e ao cair da folha. Também
se espalha ser sábio esse mesmo povo. Mas não serão suspeitos os elogios
próprios? Pois foi no rebentar da folha que senti uma nova remissão da
doença e no fim de Abril saí finalmente da cama. Por essa altura, chegava
a Lisboa o Dr. Almazán, o médico da minha mãe. Mas como em muitas
coisas da princesa Joana, aparecia tarde, pois já me apanhou de pé. Aliás,
no dorso de um cavalo. Essa era a maior das minhas saudades. Soube‑o
quando, em vez de me dirigir ao confessionário, as minhas pernas me leva‑
ram para as cavalariças. Escolhi um baio jovem – começara a ser desbasta‑
do quando caí de cama – de crinas amarelas-alaranjadas, compridas, mas
ralas, de aspecto frágil, pernas delgadas, pescoço fino. Coloquei a mão por
entre as crinas, acariciando‑lhe o pescoço, e ele virou‑se para mim, dilatan‑
do as narinas. Selei‑o e saí a passo na direcção da igreja, onde atirei umas

94
moedas, para os pobres.33 Eles agradeceram gritando vivas ao rei. Imaginei
que tivessem sentido a minha falta, pelo menos a da minha esmola, o que
já era alguma coisa.

Assim que voltei para o palácio, era esperado por D. Aleixo, que me acom‑
panhou até aos meus aposentos. Troquei de roupa apressado. Já tinha, mal
ou bem, montado a cavalo. Faltava‑me fazer a outra coisa da qual sentira
falta enquanto estivera doente. Mal passei a porta do meu quarto e lá estava
ele, D. Aleixo, à minha espera para me acompanhar para onde quer que eu
fosse.

Os meus passos conduziram‑me ansioso pelo corredor do Paço. O ressoar


das minhas botas ritmava‑se no mesmo compasso do bater do meu cora‑
ção: acelerado. O sorriso indestrutível no meu rosto era o espelho da alegria
que a expectativa do reencontro a sós me suscitava. Olhei de soslaio para D.
Aleixo, que mais parecia um cão de fila. Acompanhava todos os meus pas‑
sos, ou melhor, seguia‑os. Tive medo que as minhas expressões me traís‑
sem, mas foram as dele que me surpreenderam. Esboçava um meio sorriso,
interrompido por vezes por um trejeito na boca, com certeza para conter
uma expressão de satisfação que teimava em intermitir no seu rosto. O seu
olhar encontrou o meu. Assustei‑me como um ladrão apanhado em fla‑
grante. Desviei instintivamente os meus olhos para o chão, tentando focar
as junções de argamassa das pedras e alinhar por elas os meus pensamen‑
tos. Neste processo, podia jurar que senti os olhos do meu aio colocados em
mim e, apesar de continuar silencioso, ouvi o seu sorriso abrir‑se em largos
traços. Talvez D. Aleixo tivesse recebido alguma boa notícia e essa fosse a
razão daquela alegria mal disfarçada. O meu olhar permanecia no chão, até
que a contínua passagem das pedras debaixo dos meus pés desaguou na
madeira da porta fechada da capela do Paço. Parei, assim como o meu aio.
Levantei os olhos até à altura da maçaneta, o cobre brilhava, como se o ti‑
vessem limpo há pouco. Depois pousei‑os em D. Aleixo, para lhe relembrar
que eu já estava entregue. Ele podia ir, mas não se mexeu. O seu rosto estava
impassível. Tive a tentação de encolher os ombros. Eu entraria de qualquer
forma e ele sabia que não podia impedir‑me, nem seguir‑me. Sorri vitorio‑
samente, abri a porta e entrei. Rodei sobre os calcanhares, ficando de frente
para D. Aleixo. Ele devolvia‑me o sorriso na mesma medida do meu. O que
tinha ele? Fechei a porta da capela atrás de mim e... O que tinha a capela?

33
“Compadecia‑se muito dos pobres, e da gente plebeia miserável, e sempre trazia
consigo dinheiro para dar esmolas, e as dava da sua mão em todo o lugar.”, Frade
Manoel dos Santos, História Sebástica, Livro I, Cap. XVI, p. 103.

95
Uma sensação de semelhança e disparidade em simultâneo chegavam até
mim para onde quer que olhasse. Semelhanças porque os santos, o altar,
os bancos, o turíbulo, até as almofadas encarnadas do cadeirão do padre
Luís, tudo se mantinha! Mas uma luz inundava agora a peça, habitualmente
mergulhada na penumbra.
O padre Luís estava ajoelhado lá à frente, ainda de costas para mim,
concentrado nas suas orações. Eu não sabia o que fazer, se quedar‑me ali
mesmo, ou avançar um pouco mais. Continuava a olhar em volta, em todas
as direcções, tentando assimilar a mudança. O meu coração continuava a
bater acelerado, as minhas mãos tremiam. Comecei a prestar atenção e per‑
cebi as orações sussurradas do padre. Pareciam amplificadas pelo silêncio
da capela. Senti‑me mal. Não doente, mas mal. Mal com o lugar, com o
espantalho que eu deveria parecer dali. Eu era agora do tamanho do pa‑
dre Luís, mas talvez ele ainda tivesse mais força. Teria? Todos elogiavam o
meu poder físico, podia pô‑lo à prova agora que realmente precisava. Mas
querê‑lo‑ia? Essa era a questão. O facto era que passara semanas doente,
jurando no leito, que cheguei a julgar ser o da minha morte, que tudo pas‑
sara, que seria forte quando estivesse junto do padre Luís. Forte em todos os
sentidos. E agora tremia. De medo? Não, não chegava a ser, esse já passara,
de gozo. Um gozo que vivia da minha própria debilidade, da minha fraque‑
za perante aquele homem. A verdade é que ele me dominava no primeiro
olhar. Neste caso nem isso, pois ele estava de costas, meditando, e eu não
conseguia revirar os calcanhares, sair, reencontrar D. Aleixo, que me espe‑
raria com um sorriso ainda mais vitorioso e voltar para os meus aposentos.
Eu estava pregado ao chão.
O padre Luís levantou‑se finalmente. Pareceu‑me mais baixo. Ben‑
zeu‑se, olhando para a cruz. Indiferente aos meus pensamentos de culpa, o
meu sorriso despontou, pois sabia que ele se ia virar e... Dei instintivamente
dois passos atrás. Procurei com a mão algo para me apoiar. As minhas for‑
ças pareciam ter‑se esvaído.
– Parece‑me que ainda não estais recuperado, meu filho. Estais pá‑
lido.
Era frei Luís de Montoya34 quem estava na minha frente!
34
Os historiadores em geral indicam frei Luís de Montoya como o primeiro confes‑
sor de D. Sebastião, mas Dauril Alden, The Making of an Enterprise, The Society of
Jesus in Portugal, its Empire and Beyond, 1540‑1750, afirma que a nomeação daquele
apenas terá ocorrido em 1566 por insistência da rainha D. Catarina, p. 82. O Pe. José
Pereira Baião, em Portugal Cuidadoso e Lastimado com a Vida e Perda do Senhor Rey
Dom Sebastião, escreve o seguinte: “Cuidando‑se também logo no princípio em el
rei Mestre de Alma; por aderências do mesmo Cardeal Infante, entrou neste cargo o
mesmo Padre Luiz Gonçalves, que o era das Letras, e o confessou os primeiros anos.

96
– Será melhor sentar‑vos?!
Ia a fazê‑lo quando senti o pasmo que me abalroara ser arrojado
pela torrente em que o meu sangue se transformara. Endireitei‑me de um
salto e, sem dizer qualquer palavra, deixei o frade sozinho. Abri de rompan‑
te a porta da capela; o meu aio esperava‑me, o seu sorriso já completamente
aberto, os seus olhos brilhantes. Percebi agora que vitória era essa que eles
exalavam há pouco.

Capítulo XIV
1567 – O Ano das Modas

H á coisas que têm de acabar, outras que nunca mudam e algumas


que não nos deixam dormir. Eu sei de uma que é o somatório des‑
sas todas. Parti na segunda quinzena de Janeiro para Almeirim,
onde o ar me entrava pelas narinas, dilatando‑as, e aos meus músculos na
mesma proporção. Montava a cavalo na várzea, caçava javalis, corria canas.
E a doença voltou.

Mas parecendo à Rainha, que era demasiado o aparto, a que o punha; e atribuindo
a ele uma indisposição que el rei teve, não quis que o Mestre o confessasse, mas deu
este cargo ao S. Padre Fr. Luiz de Montoya (...)”, Liv. I, Cap. XXI, p. 92.
A substituição do confessor do rei acontece após a sua doença se tornar de conheci‑
mento público e, segundo o Padre José Pereira Baião, a rainha atribuía a Luís Gon‑
çalves a indisposição do rei. Seria essa indisposição de D. Sebastião a doença que
lhe sobreveio aos onze anos? Não é possível sabermos. Mas duas coisas são certas: a
rainha empregou as suas forças na destituição do padre Luís Gonçalves como con‑
fessor, não como mestre, já que pela autoridade do cardeal D. Henrique ela não o
podia destituir dos dois, e ela terá optado pelo cargo que lhe pareceu mais pernicioso
para o rei. Mais tarde, quando D. Sebastião atinge a idade legal para reinar, o lugar de
confessor é devolvido ao padre Luís da Câmara, o que indica, pelo menos, desacordo
com a decisão da sua avó.

97
Davam‑me constantemente remédios a tomar e aplicavam‑me em‑
plastros à noite após os sangramentos aos quais era submetido. Aquando
destes tratamentos mais me parecia com um homem morto, não sabendo
o que seria pior: se a doença se a cura. Frequentemente me sentia tonto,
prestes a desmaiar e, além das dores, tinha vergonha. Vergonha porque eu
conhecia a causa da doença e porque a minha imagem de rei forte ruía.
Proibiram‑me as caçadas e as montarias. Achavam eles que eu seria capaz
de as fazer? Bem, talvez tentasse, para desfazer a impressão que eu achava
que tinham de mim, um rapaz cheio de achaques, em vez do rei viril que eu
queria que vissem.
Melhorei substancialmente, mas só no Verão, em Sintra. Encontra‑
va‑me submetido a uma rigorosa dieta e não montava um cavalo há meses,
mas não era isso que me fazia mal, eram as confissões...
A minha avó ocupava‑se de mim como podia. As modas de Castela
preenchiam muito do seu tempo, tirando‑a da minha companhia. É que
depois de se ter governado um reino, não era menos trabalhoso escolher os
tecidos e os cortes, averiguar as tendências, sobretudo as castelhanas, pois
essas sim eram de valor para a rainha de Portugal. Eu detestava as modas,
mas não sei se seria só para a contrariar ou porque de igual modo me inco‑
modavam os luxos.35
– Alteza, vinde ver! – Chamava‑me a minha avó com tanta excita‑
ção na voz que logo calculei que tivessem chegado algumas peças de ves‑
tuário de Castela. – Vede estes calções de corte galante. São a última moda
em Castela. – Esbocei um meio sorriso, satisfeito por ter adivinhado. Mas,
por outro lado, em se tratando da minha avó, qual era a dificuldade? – Ex‑
perimentai‑os. – Pediu‑me, estendendo‑mos. – Mandei-los vir proposita‑
damente para vós. – Poderia ela estar a falar a sério? Como era possível
passar‑lhe pela cabeça que eu vestiria aquilo. – Tendes estado doente, será
para o vosso primeiro passeio a cavalo. O vosso tio Filipe e os seus fidalgos
usam‑nos.
– Pois muito me contento com aqueles que trago e com os outros
que tenho.36 – O sorriso da minha avó esmoreceu de pronto, mas não me
senti culpado. – Não gosto de novas modas, não as quero introduzir no

35
“Estranhava aos fidalgos trazere luvas de cheiro, e as de q usava erão chans, e sem
perfume, e de idade de sete annos, começou a ter avorrecimento às delicias, e o mos‑
trava por obra em sua pessoa.”, Pe. Amador Rebelo, Relação da Vida d’Elrey D. Sebas‑
tião, p. 66.
P . Amador Rebelo, Relação da Vida d’Elrey D. Sebastião, p. 66. Esta recusa de D.
36 e

Sebastião deve‑se a não lhe agradarem novidades e ser um atreito defensor do rea‑
portuguesamento do traje.

98
meu reino, nem as usarei para não dar mau exemplo de mim aos outros.
– Ainda não satisfeito, resolvi continuar: – E, quando finalmente atingir a
maioridade, não as permitirei no meu reino e muito zelarei pela conserva‑
ção do antigo traje português, que de espanholices já estou cheio!

Capítulo XV
1568 – O Ano da Coroação

E ste seria um dos anos mais importantes da minha vida, eu bem o


sabia, esperara por ele demasiado tempo. Mais concretamente, pelo
20 de Janeiro, o dia de S. Sebastião, o dia do meu aniversário e que,
este ano, também seria o do meu coroamento. Um sentimento de anseio
por esse dia preencheu os anos em que esperei por ele. No entanto, nos
últimos meses, a vontade de que esta data chegasse célere ampliou‑se, até
se tornar no meu único desejo. O dia em que eu assumiria o pleno poder.
O pleno poder! Desejava‑o porque ansiava pela minha primeira ordem. Há
anos que, por brincadeira, a imaginava, mas mudara de ideias muitas vezes
ao longo do tempo. Mas agora sabia que ordem seria essa: o reparo de uma
injustiça, a restauração do padre Luís como meu confessor. Queria ver ago‑
ra com que sorriso receberia o meu aio, que nessa altura já não o seria, esta
minha ordem. Desta vez, a vitória seria minha! Mas ainda estávamos no
primeiro dia do ano. Faltavam mais dezanove para eu finalmente abando‑
nar a menoridade. Gozem os vossos últimos dias de poder, pois o seu prazo
de validade já quase chegou ao fim. Aproveitem‑nos, que eu assim também
farei, mas por motivo diverso.

As minhas lições e tudo o resto continuaram a decorrer de igual forma


à dos últimos anos, como se aqueles dias que me separavam do dia 20
fossem iguais aos outros. Talvez o fossem ao fim e ao cabo, pois as minhas
insónias persistiam. Levantei‑me e saí dos meus aposentos. Assim que

99
desfiz a volta do corredor, vi um feixe ténue de luz desaparecer no fundo
da galeria, encobrindo‑se ele também pela dobra de outro corredor. A mi‑
nha curiosidade levou‑me a persegui‑lo. Acelerei o passo mas, até atingir
o ponto em que a passagem era recta, já não havia qualquer indício de luz.
Talvez tudo não passasse de imaginação minha. A ansiedade misturada
com a vigília podia dar resultados destes. Tornei sobre os meus calcanha‑
res, resolvido a voltar para a minha cama, pois mais valia ter alucinações
lá, pensei. Pelo menos era mais quente, concluí sacudido por um arrepio.
Ao passar junto da porta do quarto da minha avó, ouvi‑a falar com mais
alguém. Um instante chegou para eu reconhecer a voz do meu mestre Pe‑
dro Nunes.
– O grande amor que tenho pelo rei, o zelo pelo seu serviço e o
bem da sua pessoa, – era de mim que o mestre falava e não pude resistir a
aproximar‑me mais da porta para melhor ouvir, – obrigam‑me a sair do
meu costume e levantar figura sobre o dia, e tempo, em que se lhe há‑de
fazer entrega do governo e, desvelando‑me a apurar juízo dela, o quanto
permite a minha ciência, e as regras da Matemática, e depois de mui bem
considerado o que alcançava, me pareceu conveniente avisar Sua Alte‑
za, cuidasse em dilatar o acto da entrega alguns dias... – Dilatar a entrega
do meu governo? Mais ainda? Há onze anos que eu o esperava. – Ainda
que não sejam mais de três, porque se el rei começar a governar neste dia,
será o seu reinado instável, cheio de inquietação ordinária e de mui pouca
dura.37
Mas o que era aquilo afinal? Uma previsão ou um agouro? Tive
ganas de entrar por ali dentro, mas a resposta da minha avó não se fez de‑
morada.
– É com atenção que vos ouço, mas o que me pedis é impossível.
Tudo se está a aprontar para que a cerimónia se realize no dia de S. Sebas‑
tião, e este é um plano antigo. – Salientou a minha avó. – Como me dizeis
isto só agora? Apenas dois dias nos separam do evento! Já não pode haver
prorrogação! Além disso, como espereis que eu convença o cardeal? Basea‑
da nas vossas previsões astrológicas? Ele achará ridículo!
– Já vos haveis servido antes de previsões astrológicas para conhe‑
cer a vida do rei!
– Pois mais me ajudais! Bem sabeis o disparate que elas se revela‑
ram. Começando logo pelo seu aspecto. “Será preto e de pequeno corpo”

37
Profecia do matemático Pedro Nunes, adaptada de Pe. José Pereira Baião, Portugal
Cuidadoso e Lastimado com a Vida e Perda do Senhor Rey Dom Sebastião, Livro Pri‑
meiro, Cap. XXXIII, p. 101. No entanto, Queiroz Velloso, D. Sebastião 1554‑1578,
afirma que esta profecia terá sido inventada pelo próprio cronista, p. 99.

100
– Repetiu a minha avó, de cor e em tom jocoso, uma das previsões de
Maldonado. Detrás da porta, não pude evitar o sorriso, mas logo esmore‑
ceu quando ela continuou, agora quase em sussurro, mas ainda assim au‑
dível. – “Será muito dado a seus prazeres com as mulheres.” – Soltou uma
gargalhada nervosa e cínica.
Afastei‑me, mas ainda ouvi o mestre responder‑lhe:
– Assim vejo que são inevitáveis os trabalhos deste reino.38
Tive apenas tempo de me esconder na ombreira de uma porta
quando o mestre de matemática saiu, e fosse pela penumbra em que o pa‑
lácio se encontrava mergulhado àquela hora ou pelo pesar nitidamente es‑
tampado no seu rosto, ele não deu por mim.
De volta para o meu quarto, demorei‑me pelo caminho, pois não me
saía do pensamento o que ouvira há pouco. Não que as previsões do mestre
me atormentassem, apesar de o saber bem-intencionado. Eu não acreditava
nestas coisas que claramente ofendiam a Deus. Além disso, ainda que ver‑
dadeiras se pudessem revelar, eu era o escolhido Dele. Logo, nada de mal
me poderia atingir.
No dia seguinte, ao sair do oratório de ouvir missa, D. Aleixo espe‑
rava‑me. A sua austeridade descaída, os olhos húmidos, a voz mais suave
do que era habitual, rogou‑me para que o ouvisse:
– Há dez anos, Alteza, que por falecimento d’el‑rei D. João meu
Senhor, que Deus tem em glória, e por voto e nomeação me foi entregue
a criação e guarda de V. Senhoria e convosco os ânimos e esperanças de
todo este reino. Vigiei‑vos e cuidei‑vos, procurando responder ao peso da
responsabilidade deste cargo. Alegro‑me por Deus me conceder a satisfa‑
ção que desejava: antes da minha morte ver V. Alteza em idade de tomar o
governo de seus reinos e ornado de entendimento. Pareceu‑me que devia,
pelo contentamento deste dia, amor, e lealdade com que criei e servi a V.
Alteza, fazer‑lhe algumas lembranças.
“Entrais, Senhor, neste incomportável trabalho de governar vossos
Reinos em idade que temo que vos persuadam a fugirdes da companhia e
conselho da rainha vossa avó, e do Cardeal vosso tio e cercado de quem, por
se sustentar na privança, aprova por justos os erros do vosso gosto, padeça
o reino grandes trabalhos.
“E como Deus dotou a V. Alteza inclinado a empreender coisas
grandes, temo que vos inclinem as empresas maiores do que permitem as
forças dos vossos Reinos, de onde se seguirá meterem‑vos em empresas,

Frase supostamente proferida por Pedro Nunes in Pe. José Pereira Baião, Portugal
38

Cuidadoso e Lastimado com a Vida e Perda do Senhor Rey Dom Sebastião, Livro Pri‑
meiro, Cap. XXXIII, p. 101.

101
das quais ou saireis com pouca honra ou aventurareis vossos Estados e vida,
sem conhecerdes o engano senão quando lhe falte o remédio.
“E porque nem a piedade e ânimo religioso dos Reis está seguro de
inconvenientes, lembro que nunca temi faltas na pessoa de V. Alteza por
costumes, e obras viciosas, senão por algum excesso que passasse os limites
das virtudes. Porque muitas coisas há, com que uma pessoa particular pode
ganhar a glória, que sirvam de condenação a um Príncipe...39

Quando D. Aleixo acabou de me falar, um discurso que ele com certeza pre‑
parara há muito e ensaiara vezes sem conta nos seus aposentos, um silêncio
sepulcral instalou‑se no Paço, como se as suas palavras ainda entoassem
nele e os presentes se calassem para as escutar com atenção. Eu olhava‑o nos
olhos e ele a mim. A humidade deles transformara‑se em lágrimas grossas,
que lhe deveriam turvar a vista. As suas palavras abalaram‑me. Sabia‑as
carregadas de recados e entrelinhas para desvendar, mas eram no fundo de
amor. Ele era o mais parecido com um avô que eu tinha tido nestes últimos
dez anos. Tive vontade de o abraçar, mas contive‑me, ele não. Lançou‑se a
mim, apertando‑me com força. Senti as suas lágrimas quentes tombarem
nos meus ombros. Assustei‑me a princípio, pensando que perceberia no
seu gesto a voluptuosidade a que o padre Luís me habituara. D. Aleixo que,
durante anos me censurara as lições, ensinava‑me agora, no fim do meu
aprendizado, uma bem importante: nem todos os abraços são maliciosos.
Na tentativa de emendar o seu gesto mais acertado, fez menção de se ajo‑
elhar. Impedi que o fizesse, cerrando a minha mão em torno do seu pulso.
Alcei‑o e abanei com a cabeça em sinal de negação. Ele, um velho soldado
de oitenta anos, sorria cheio de acanho para mim, um jovem de catorze.
Assim era a deferência ao seu rei.
– Muito vos agradeço os vossos conselhos e o amor com o qual mos
dais e, se alguma coisa me alegra em tomar o governo do reino, será em vos
mostrar nas mercês que farei à vossa Casa, a grande estimação em que te‑
nho os vossos serviços. E se agora, pela vossa idade, é melhor retirar‑vos do
Paço, não vos escuso dos vossos serviços, nem dos vossos conselhos.40

Laborava‑se arduamente junto ao palácio, para se erguer encostado a ele


a Sala de Madeira destinada à entrega dos Selos Reais. Esta comunicava
interiormente com o palácio, mas era aberta pelo lado de fora para que o

39
Resumo adaptado do discurso de D. Aleixo, podendo a totalidade ser lida em Frade
Manoel dos Santos, História Sebástica, Livro I, Cap. XVI, pp. 108 à 112.
40
Adaptado de Frade Manoel dos Santos, História Sebástica, Livro I, Cap. XVI, p.
112.

102
povo pudesse presenciar este momento. O interior dessa sala era a delícia
da minha avó, agora afastada dos assuntos de Estado, que via no sucesso da
decoração a sua missão.
A terça‑feira amanheceu cinzenta. Levantei‑me e assomei à janela.
Dali dava para ver a Sala de Madeira. Lembrei‑me da minha mãe. Apres‑
sara‑se a correr para defender os interesses do reino do seu irmão, mas não
lhe interessava ver o filho receber os Selos Reais. Olhei para o chão. O meu
olhar fixou‑se primeiro num nó da madeira do soalho, depois nos meus
pés, a parte do meu corpo que eu mais detestava. Eram pequenos, de mais
para o meu tamanho, e, como se isso ainda não fosse suficiente, o meu pé
direito era maior que o esquerdo, e os seus dedos de tamanho quase igual.41
Pancadas na porta do meu quarto desviaram simultaneamente os meus
pensamentos e o meu olhar.
– Senhor, venho ajudar‑vos a vestir‑vos. – Gritou o meu pajem do
exterior. – Dais‑me licença para entrar?
Olhei para o relógio da parede. Eram oito horas e um quarto. Preci‑
samente catorze anos volvidos sobre o meu nascimento naquele momento,
e ele ainda não aprendera. Desde que me conseguia vestir sozinho que o
fazia, ninguém me via despido há anos.
– Não! – Gritei secamente.
– Mas Senhor, hoje não é um dia igual aos outros. Hoje sereis rei
de facto!
O que seria preciso fazer para que ele se fosse embora? O simples
conhecimento de que ele estava detrás daquela porta seria impeditivo para
mim de me vestir. Hoje serei rei de facto, repeti enquanto me dirigia para

41
Descrição dos sinais que D. Sebastião tinha no corpo, transcrita e traduzida de
Pe. José Teixeira, Adventure Admirable, pp. 111 à 113: “a mão direita maior que a
esquerda; o braço direito mais comprido que o esquerdo; o corpo tão curto, desde as
espáduas até à cinta, que o seu gibão não pode servir a outra pessoa, mesmo que seja
da sua estatura; da cintura aos joelhos é muito longo; a perna direita mais comprida
do que a esquerda; pé direito maior que o outro; os dedos dos pés quase iguais; no
dedo mínimo do pé direito tem uma verruga que lhe cresce, a qual mais parece um
sexto dedo; peito do pé muito alto e elevado; num ombro um sinal do tamanho de
um vintém de Portugal; na espádua direita, para o lado da nuca, um sinal preto do
tamanho de uma pequena unha; tem sardas no rosto e nas mãos, pouco aparentes;
tem o corpo da parte esquerda mais curto que da direita, de modo que coxeia sem
que se note, falta‑lhe um dente na maxila direita; sofre de fluxo de sémen; além destes
sinais secretos tem vários outros que se podem ver, como os dedos longos e as unhas
do mesmo modo; o lábio de Áustria, como seu avô Carlos V, imperador, pai de sua
mãe, e sua avó Catarina, rainha de Portugal, mãe de seu pai, irmã do dito Carlos V; os
pés pequenos e as pernas curvas e todas estas marcas nasceram com ele.”

103
a bacia. Pegando o jarro pela asa, derramei para dentro dela água até meio.
O pajem ainda me gritava alguma coisa, mas já não conseguia discernir
as suas palavras. Juntei as mãos em concha, mergulhei‑as dentro de água,
hoje seria rei de facto, e ergui‑as até à altura da cara, recebendo como um
supetão a frescura do líquido e daquela velha notícia. A partir de hoje, só de
mim dependeriam as decisões do reino. Reabilitar o padre Luís como meu
confessor já nem sequer me parecia uma ideia tão boa assim, mas tinha de
o fazer, ele pedira‑mo.

Sentia suores escorrerem‑me pela testa e costas. Temi por uma reincidên‑
cia da doença, o pior que me podia acontecer naquele momento. Apesar do
meu esforço por levar o dia do meu décimo quarto aniversário como a um
outro qualquer, pedi que me trouxessem o desjejum ao quarto, coisa que só
fizera nos dias que estivera doente. Mas hoje queria ver o menor número de
pessoas possível antes da entronização.
Finalmente ouvi o relógio da torre da igreja de São Domingos ba‑
dalar as duas da tarde. Coloquei aos ombros a peça que faltava, o manto
carmesim, que chegava até ao chão, varrendo‑o quando caminhava. Des‑
loquei‑me até ao espelho, para ver a figura que ele reflectia. Sorri, satisfeito
com a imagem que ele me devolvia. Sentia‑me rei.
Abri a porta dos meus aposentos e lá fora já me esperavam o meu
tio, os Títulos do Senado e dos Tribunais. Segui acompanhado por eles até
à Sala de Madeira, que tinham enfeitado com panos da Flandres. Caminhei
até ao fundo, sentindo os olhares dos presentes fixos em mim. A primeira
pessoa que reconheci foi a minha avó, apesar de toda vestida de negro, real‑
çava mais do que qualquer outra, mas não era ela que o meu olhar procura‑
va. A distância que separava a entrada da Sala de Madeira da minha cadeira
parecia interminável e, ainda assim, o tempo que demorei a percorrê‑la não
foi o suficiente para conseguir localizar o padre Luís. E isso deixava‑me ner‑
voso. Sentei‑me finalmente na cadeira de talha dourada. O meu tio tomou
assento ao lado do meu. A sala silenciou‑se e o meu tio começou a orar,
colocando‑se todos os presentes de cabeça baixa. Mantive a minha mais
elevada do que deveria. Ainda procurava o padre Luís, mas apenas avistava
o frei Montoya, que notou a minha agitação e não se inibiu de demonstrar
a reprovação no seu rosto. A minha avó levantou o olhar, suspeitando da
postura do frade. Comecei a baixar a cabeça devagar, esforçando‑me por
manter os olhos levantados. Senti o meu rosto iluminar‑se. Conseguira, en‑
fim, descobrir o padre Luís. Encontrava‑se sentado ao lado do seu irmão,
Martim Gonçalves, de cabeça baixa, aparentemente absorto na prece.
– Muito Alto e muito poderoso rei nosso Senhor, posto que este dia
seja de mim o mais desejado e de maior glória que de poder, em que vejo

104
a V. Alteza em idade de catorze anos, assentado na sua Cadeira Real com
muita prudência, virtude e zelo do serviço de Nosso Senhor e lhe entrego
o governo destes seus Reinos quietos, e pacíficos no estado em que estão.
Tudo o que fiz, ou deixei de fazer, foi sempre por me parecer que era o
que mais cumpria ao serviço de V. Alteza. Se ainda assim contra minha
intenção o agravei, peço‑vos perdão. Eu darei graças a Nosso Senhor pelas
mercês que fez a V. Alteza e a estes seus Reinos, eu fui apenas um fraco ins‑
trumento por quem ele as quis obrar. Eu, de minha parte, se algum louvor
me cabe ofereço‑os a V. Alteza para compensar as minhas faltas. Por isso
mandei pôr em papel o que se fez neste tempo em que regi este reino, para
que V. Alteza o possa saber mais particularmente.42
O camareiro‑mor do meu tio estendeu‑lhe o Selo das Armas Reais,
as minhas, de cor dourada, colocadas num bordão e preso a ele por uma fita
verde. Este aceitou‑o e colocou‑se de joelhos diante de mim, oferecendo‑mo.
Com o Selo das Armas Reais seguia o regimento deste reino, como ficara esti‑
pulado pelas Cortes, quando eu cumprisse os catorze anos. Assim foi. Tomei
da mão do meu tio, o príncipe cardeal regente, o Selo das Armas chamando
a mim a governança destes Reinos. Comecei a cumprir o meu destino.
– Tenho‑vos em mercê o trabalho, que levasteis em governar estes
Reinos, e o cuidado que disso tivesteis, de que sempre terei a lembrança. Eu
recebo o governo e espero em nosso Senhor que, com a mercê que a Rainha
minha Senhora e Avó quer fazer de me ajudar, e com a que me vós dareis,
governe estes Reinos como convém a bem deles, e à minha obrigação.43
Mal acabei de falar, o meu tio beijou a minha mão em sinal de agra‑
decimento pelas minhas palavras. A minha avó levantou‑se do seu lugar,
ajoelhou‑se na minha frente e antes de me beijar a mão, olhou‑me nos olhos,
antes de os baixar com a deferência que lhe era devida. Um brilho vitorioso
bailava neles, a alusão no meu discurso à sua ajuda enaltecia‑a. Imitou‑a a
minha tia‑avó, a infanta D. Maria, esta sem olhares vitoriosos, apenas com
o seu semblante sério e sempre inalterável. Seguiram‑se‑lhes os vereadores
da cidade de Lisboa, os duques, os condes e os fidalgos ali presentes.

Acabei o dia no Mosteiro de S. Domingos, resguardado das bajulações e


atribulações da entrega dos Selos Reais. Ajoelhei‑me em frente ao altar,
benzendo‑me devotamente. Depois, uni as mãos junto ao peito e de olhos
fechados, tentando ampliar a força das minhas palavras com o poder da
minha mente.

42
Discurso do Cardeal D. Henrique adaptado e resumido, a totalidade pode ser lida
em Frade Manoel dos Santos, História Sebástica, Livro II, Cap. I, pp. 116 à 121.
43
Frade Manoel dos Santos, História Sebástica, Livro II, Cap. I, p. 121.

105
– Agradeço‑vos, Senhor, a chegada deste dia em que, completan‑
do os meus catorze anos, veio finalmente a idade em que posso governar
os meus Reinos segundo os meus desejos. Permiti‑me, Senhor, que possa
seguir as pisadas de glória dos Reis meus antepassados, que sempre zela‑
ram pela expansão do Reino de todas as suas formas, assim como do Vos‑
so nome. Possibilitai‑me tamanha ventura. Deixai‑me ser Vosso capitão!
– Pedi baixinho. – Deixai‑me ser Vosso capitão! – Deixei escapar em tom
audível, mas voltando a murmurar continuei. – Deixai‑me ser Vosso capi‑
tão. – Repetia incessantemente, como se ao dizê‑lo sem parar as palavras
ganhassem força por si e pudessem tornar‑se realidade.

Eu tinha o poder, era verdade, e este é inebriante. Mas para não me deixar
levar por arrufos de momento, que eu sabia que os tinha, cumpri o que dis‑
sera no meu discurso de entronização. Assim, para o meu primeiro despa‑
cho, chamei o meu tio e a minha avó. A experiência de ambos nos negócios
do reino era inegável e, por isso, indispensável. Queria‑os sempre comigo
nestes momentos. Havia em mim o desejo imenso de ser rei de facto, mas
não me podia permitir a errar.
No fim do despacho, informei a minha avó e o meu tio sobre o afas‑
tamento do frade Montoya como meu confessor e a recolocação do padre
Luís nesse lugar.
– Mas não podeis fazer isso! – Respondeu‑me sem pensar a rai‑
nha.
– Não posso? Porquê? – Disse‑lhe, não poupando o sarcasmo na
minha voz.
A minha avó resfolgou, antes de me dar resposta.
– Não dissesteis que ouviríeis os meus conselhos?
– Disse e mantenho. – Comecei, abanando a cabeça em sinal afir‑
mativo. – Mas se bem vos lembrais, eu referia‑me a assuntos do reino. A
escolha do confessor é um assunto pessoal, esses resolvo‑os eu!
Nessa mesma tarde comuniquei ao frade Montoya a minha deci‑
são. Ao contrário do que imaginara, ele não ficou nem um pouco ressenti‑
do. Mostrou até satisfação, um certo alívio, pareceu‑me, em deixar o lugar
de meu confessor.44
– Já esperava essa vossa ordem. – Comunicou‑me ao mesmo tem‑
po que começava a juntar as suas coisas de forma apressada e atabalhoada.
Parecia uma criança a arrumar os seus livros no saco quando percebe que
a aula acabou.

44
Diogo Barbosa Machado, Memórias para a História del Rey D. Sebastião, Parte II,
Livro II, Cap. XXII, p. 618.

106
– Levais a Bíblia convosco também? – Perguntei ao vê‑lo arrumá‑la
junto dos seus poucos pertences.
– É minha.
– Vossa? – Perguntei, confuso.
– Sim, minha! – Insistiu. – O que me remete para uma outra ques‑
tão, ou duas até. – Fiz um jeito com a cabeça, incitando‑o a continuar. – Se
não havia aqui na capela nenhuma Bíblia, pois tive de trazer a minha, de que
faláveis vós, que passagens vos lia o padre Luís nos vossos sermões? – Perce‑
bi de imediato o que ele queria dizer, mas o pior é que ainda havia mais uma
pergunta. – E se havia aqui uma, e se a usavam, como a confundísteis com
a minha que tem uma encadernação tão particular? – Esta última pergunta
fora a gota de água na minha desconfiança. Ele era mais um que sabia.
– Foi um gosto ter‑vos como meu confessor ao longo deste tempo.
– Consegui articular a custo.
– Tem piada, eu diria que não, pois apesar de manterdes os vossos
hábitos de confissão semanal, nada me confessasteis!
– Isso não vos impediu de me dardes penitências atrás de penitên‑
cias.
– Merecesteis todas! Os silêncios eternos no confessionário são sem‑
pre sinónimos de pecados inconfessáveis. E os vossos silêncios foram cons‑
tantes e inabaláveis. Por isso, merecesteis todas as penitências que vos dei!
A chama das velas vacilou. Olhámos para trás. A porta da capela
acabara de se abrir. Era o padre Luís da Câmara. Escondi as mãos debaixo
dos braços, para esconder que tremiam. O frade Montoya alternava o olhar
entre mim e o padre. Este caminhava lentamente na nossa direcção, como
se passeasse num jardim, com uma Bíblia debaixo do braço.
– Aqui está a Bíblia desta capela. – Começou estendendo‑a para o
frade Montoya. – Enfim, a que eu usava enquanto aqui estive. Também era
minha, levei‑a quando fui embora.
O frade, ao contrário do que eu e se calhar o padre Luís esperáva‑
mos, aceitou‑a, e para nosso maior espanto, levou‑a ao nariz.
– Tem graça... – Começou baixando a Bíblia defronte da cara.
– O que é que tem graça? – Perguntou o padre Luís, perdendo de
repente a segurança com que entrara ali.
– Tem graça que, tendes vós saído daqui há mais de um ano e, antes
disso, terdes sido confessor do rei por seis, esta Bíblia cheire como se tivesse
sido impressa ontem. – Retorquiu, estendendo‑a para o seu dono.
O padre esquivou‑se a falar, a melhor atitude que eu o vira tomar.
Mas por outro lado, eu bem sabia o que o frade Montoya achava dos silên‑
cios. Este, com a trouxa já arrumada, pediu‑me licença para sair, mas não
sem antes me dizer:

107
– O ar deste palácio foi sempre nocivo à Santidade. Para mim o ano
que aqui passei pareceu‑me muitos séculos!45
O padre Luís seguiu os seus passos, mas apenas para fechar a por‑
ta da capela atrás do frade, retornando logo depois para junto de mim e
sentando‑se na sua antiga cadeira de onde costumava ouvir as minhas con‑
fissões, ou algo assim...
– Então, meu menino loiro? – Começou com o seu olho bom a
parecer rodar na órbita. – Deveis ter muito para me contar. – Acrescentou,
batendo com a palma da sua mão na sua coxa, como que me convidando
a sentar.
– Ide para o Diabo! – Proferi irritado, levantando no ar, num gesto
brusco, o meu braço direito. Arrependi‑me logo depois do que dissera, por
estar no lugar onde estava. Mas a minha intenção mantinha‑se e atravessei
a capela até à porta em passos largos. Mas antes que a franqueasse, o padre
Luís gritou‑me:
– Haveis de voltar! Haveis de voltar mais depressa do que julgais!
Sois meu, bem o sabeis.
Ignorei o seu atrevimento, ansioso por sair dali. Tinha dificuldades
em respirar. Já no corredor do Paço, senti‑me a desmaiar. Um braço pegou
no meu, amparando‑me. Olhei para trás. Era o padre Luís. Deixei‑me con‑
duzir de volta para a capela, onde ele me largou só o tempo suficiente para
fechar a porta da mesma. Sentou‑se na sua cadeira de estofos encarnados
e puxou‑me para o seu colo, onde longamente me afagou o cabelo, até a
minha respiração normalizar.
A verdade é que ele me transmitia uma estranha sensação de segu‑
rança. Reconfortava‑me e angustiava‑me simultaneamente. O grande el‑rei
D. Sebastião, o qual os outros tomam como sendo de ferro e que pode mais
do que muitos homens feitos, era uma criança desamparada nos braços do
seu confessor. Estar sentado ao seu colo trazia‑me à lembrança uma infân‑
cia que eu não vivera, fazia‑me acreditar que estava perto de resgatar afectos
que eu não conhecera. Havia uns instantes, breves apenas, em que, encos‑
tado ao corpo do padre Luís, sentindo‑lhe o calor, o cheiro, eu era como
uma cria aninhada de encontro ao seu progenitor. Mas eu sabia que isso
tinha um preço. Ainda de olhos fechados, a minha segurança começava
a ser corroída, projectando nas suas carícias que se aventuravam cada vez
mais em mim, o gozo que estava quase a vir. O pior era que o prazer não
era só dele.

45
Diogo Barbosa Machado, Memórias para a História del Rey D. Sebastião, Parte II,
Livro II, Cap. XXII, pp. 617‑618.

108
O meu primo D. Carlos, o outro neto da minha avó, morreu neste ano.
Recebi a notícia em Sintra a 30 de Julho, mas o meu primo morrera a 24
no palácio de Madrid, onde o pai o mantinha aprisionado. Agora era só
eu. Só eu restava à minha avó. Eu era a última prova viva de que ela tentara
construir uma família. Noutra perspectiva, talvez a dela, a prova de que ela
falhara nessa empresa.

Capítulo XVI
1569 – O Ano da Peste

N esse ano, o Inverno não fora agreste, mas estava extremamente


húmido. Das paredes escorriam grossos fios de água, apesar de
mantermos as lareiras acesas para que o ar secasse, mas como o
frio era brando, o ambiente tornava‑se desconfortável. Nos tectos, apare‑
ciam grandes manchas de bolor negro-esverdeado, e algumas das nossas te‑
las estragaram‑se de forma irrecuperável, inclusive o primeiro quadro que a
minha avó mandara pintar de mim.
Em Fevereiro, na pele dos lisboetas começaram a aparecer as pri‑
meiras manchas vermelhas. Estas foram‑se tornando mais extensas e in‑
chadas, até ficarem com um aspecto medonho de carbúnculos e tumores
com pintas, nódoas na carne que apodreciam e se desfaziam. Mas estes sin‑
tomas foram a princípio espaçados, assim como as mortes. Por isso, não se
deu grande importância. Nesse mês, morreu o meu aio, D. Aleixo de Mene‑
zes, que Deus o guarde em Sua glória. Fora um dos homens mais valentes
que eu conhecera. Em recompensa pela sua bravura recebera, no fim da
sua vida, a incumbência de guardar um menino, ainda que rei. Sei que me
amava, como se ama a um soberano, mas sobretudo como a um neto, ou
filho tardio. Senti a sua morte, embora não a tivesse chorado.
Os lisboetas de pele manchada multiplicavam‑se exponencialmen‑
te. Ouvia os velhos dizerem que era a peste, pois estes ainda se lembravam

109

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