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BOCCACCIO PELA LÍNGUA DE PASOLINI: UMA ADAPTAÇÃO DE

DECAMERON PARA O CINEMA

Fernando Santos1

RESUMO
Este trabalho tem como objetivo geral realizar uma pesquisa bibliográfica de estudos sobre a
adaptação da obra literária Decameron (1348-1353), de Giovanni Boccaccio, para o cinema,
feita pelo cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. Tem-se por objetivos específicos: 1) elaborar
uma sondagem de estudos sobre o tema em bancos de dados digitais e revistas científicas da
área; 2) suscitar a observação das possibilidades inventivas do processo de adaptação
cinematográfica de textos literários. A metodologia utilizada foi a de levantamento
bibliográfico, tendo como recurso os seguintes bancos de dados: Biblioteca Digital de Teses e
Dissertações (BDTD), SciELO e as revistas de pós-graduação FronteiraZ (PUC-SP), Anuário
de Literatura (UFSC), Comunicação & Sociedade (UMESP). Para a pesquisa foram
escolhidos os seguintes termos de busca: “Pasolini”, “literatura”, “cinema” e “Boccaccio”.
Foram encontrados 6 resultados, sendo analisados até o momento 2 dissertações e 4 artigos de
temáticas semelhantes à proposta. Como análise preliminar desse material, foi observado,
primeiramente, uma despreocupação do cineasta italiano em seguir fielmente o texto literário,
adotando outros caminhos mais fecundos de conexão com a obra original. De acordo com a
leitura dos estudos analisados, a metalinguagem utilizada por ambos os autores ao
clarificarem o processo de construção artística em suas obras é um desses caminhos
inventivos que os conecta. Conclui-se, parcialmente, que o cineasta ao dispor de um ecletismo
em relação ao texto original possibilita múltiplas potencialidades na sua adaptação
cinematográfica de Decameron.

Palavras-chave: Pier Paolo Pasolini; Giovanni Boccaccio; Decameron; literatura; cinema;

INTRODUÇÃO
O processo de adaptação de textos literários e de outras linguagens para o cinema
recebeu ao longo das últimas décadas uma profusão de discussões em relação a terminologia
adequada a ser usada. A ideia de “fidelidade” à obra original norteou as discussões mostrando
os problemas e limitações do termo “adaptação” (BULHÕES, 2016).
A transposição da prosa medieval renascentista de Decameron (1348-1353) para o
cinema, feita pelo cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975), revela uma série de
procedimentos que articulam rupturas e proximidades em relação ao texto-base. Dentre esses
procedimentos, de acordo com os estudos analisados, pode-se destacar: o aspecto autoral
codificado em passagens do filme, a mudança do enfoque nos personagens burgueses para os
das classes populares e a análise crítica do seu tempo através do passado.
No âmbito das pesquisas na área de literatura e cinema é pertinente a problemática do
processo adaptativo de textos literários para o cinema. Segundo o estudo de Betella, “o filme
de Pasolini não é uma expressão contígua da obra literária” e sim “uma manifestação de
relação que se estabelece, na realização do filme, entre o cineasta e a obra literária”
(BETELLA, 2016, p. 176). À vista disto, justifica-se os estudos atenciosos que têm sido

1 Graduando em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa (UFSC). E-mail:


fernandods14@gmail.com
dedicados ao filme Decameron (1971), pois poderão servir como farol que iluminará os
encalços do processo de adaptação cinematográfica.
Este trabalho teve como objetivo realizar uma revisão bibliográfica de estudos sobre a
obra fílmica Decameron (1971) de Pier Paolo Pasolini, analisando as particularidades do
processo de transposição do texto literário de Giovanni Boccaccio (1313-1375) para o cinema.

METODOLOGIA
O presente trabalho foi elaborado a partir de uma revisão bibliográfica realizada nas
bases de dados BDTB, SciELO e em revistas de pós-graduação da área de literatura e
comunicação FronteiraZ, Anuário de Literatura e Comunicação & Sociedade. Para a
sondagem de estudos foram utilizadas as palavras-chaves “Pasolini”; “literatura”; “cinema”;
“Boccaccio”. Como soma final se obteve 7 trabalhos. Selecionou-se, após a leitura dos
resumos, 4 artigos e 2 dissertações relacionados à temática proposta.
Por fim, com a leitura na íntegra de todos os artigos e parcialmente das dissertações,
foi elaborada uma enumeração dos estudos de acordo com a sua densidade e contribuição para
a pesquisa. Os critérios para a enumeração foram: a) maior proximidade com a temática; b) os
aportes teóricos utilizados pelos pesquisadores; c) fluidez e organização das ideias.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
As referências analisadas neste estudo demonstraram pontos em comum e
divergências entre si quanto aos procedimentos utilizados pelo cineasta na sua adaptação de
Decameron. Também foi identificado similaridades na maneira de discutir as problemáticas
do processo adaptativo de textos literários para o cinema.
Um dos pontos em comum percebido nas pesquisas é o aspecto autoral presente na
obra fílmica. De acordo com Andrade (2010, p. 76) “Pasolini não retoma a moldura
boccacciana e cria sua própria, representante de sua leitura de Il Decameron e de sua visão de
mundo”. Este procedimento também é apontado e analisado em outro trabalho da seguinte
maneira:
As novelas, cuja composição no tempo de Boccaccio já se sentia o embate entre
forças lúdicas e pragmáticas, entre certo prazer literário e uma exemplaridade moral,
foram reacomodadas de modo a perfazer dois blocos emoldurados por duas
histórias. (BETELLA, 2016, p. 176)

Trata-se das histórias do personagem Ciappelletto (primeira novela da primeira


jornada no livro) e do personagem aluno do pintor Giotto interpretado pelo próprio cineasta
(quinta novela da sexta jornada – inserida apenas em fragmentos no filme) (BETELLA, 2016;
COMINI, 2005; GUERINI, 1999).
Conforme os trabalhos analisados, uma das operações realizada pelo cineasta em sua
adaptação é o de direcionar o seu olhar para os personagens das classes populares, ao
contrário da obra literária base que coloca no centro da narrativa o grupo de dez jovens
corteses narradores das novelas (ANDRADE, 2010; BETELLA, 2016; BULHÕES, 2016;
GUERINI, 1999; SIEGA; 2012).
Os estudos apontam uma série de fatores que teriam levado o cineasta a operar tal
transmutação de personagens. Segundo Bulhões (2016, p. 60) “na autenticidade e na
coletividade festiva do mundo popular se encontraria a matriz legítima das narrativas do
Decameron”. Um desses fatores é o erotismo. O eros do filme pode ser lido como expressão
ideológica e crítica do cineasta ao seu tempo (BULHÕES, 2016; SIEGA, 2012). Segundo um
do estudos,
A focalização do tema do sexo se dá assim enquanto experimentação formal que se
apresenta como meio de expressão ideológica – lá onde a ideologia está
aparentemente ausente, – manifestando a leitura crítica de Pier Paolo Pasolini em
relação ao próprio tempo. (SIEGA; 2012, p. 205-206)

Destaca-se a singularidade na leitura de Bulhões (2016) em relação ao tema do sexo na


obra de Pasolini. Para o autor, em relação a adaptação da quarta jornada da quinta novela,
“Pasolini não evita a nudez para situá-la no natural, no espontâneo. Não cultiva um
exibicionismo que traria tensão erótica ao espectador” (BULHÕES, 2016, p. 61).
Figura 1: Cena da quarta jornada da Figura 2: Cena da quarta jornada da
quinta novela, mostrando a nudez quinta novela, mostrando a nudez
espontânea do filme espontânea do filme

Fonte: Decameron (1971) Fonte: Decameron (1971)

Outro fator delineado nas pesquisas é a forte presença da oralidade e do dialeto


napolitano. Em um dos episódios do filme — o do velho que lê as histórias do Decameron em
uma viela rodeada de personagens do povo — a presença da oralidade como instrumento de
transmissão é marcante. Segundo os estudos, tal procedimento de contação de histórias
oralmente é uma das formas do cineasta de deslocar a visão do relato da forma escrita e
erudita das classes privilegiadas e aproximá-lo de personagens populares (ANDRADE, 2010;
BETELLA, 2016; BULHÕES, 2016).
Com relação a presença do dialeto napolitano no filme, os estudos apontam diversas
motivações para a sua inserção. Para Betella (2016), em relação a novela de Elisabetta e
Lorenzo, “no caso de Lorenzo, […] a marca do dialeto do sul na interpretação do ator deixa
óbvia a intenção de destacar a condição inferior da personagem” (BETELLA, 2016, p. 185).
Este traço também é comentado no estudo de Andrade (2016) “se ser siciliano funciona como
símbolo da personalidade de Lorenzo, sua presença no filme é uma metonímia em relação a
outros sicilianos” (ANDRADE, 2010, p. 187).
Identifica-se, também, em alguns estudos analisados, o apontamento da presença do
dialeto meridional como forma de resistência do cineasta italiano ao avanço neocapitalista de
seu tempo e o desaparecimento das tradições populares (ANDRADE, 2010; BETELLA, 2016;
SIEGA, 2012). Na análise de Siega (2012), “esta presença dialetal é motivada pelo desejo de
representar uma mentalidade arcaica que vinha sendo aniquilada pelo pujante
desenvolvimento econômico” (SIEGA, 2012, p. 207).
Foi encontrada divergência entre dois trabalhos em relação a proximidade da obra
fílmica com o texto literário. Segundo Comini (2005), no filme de Pasolini não há uma
contextualização do período em que foi escrita a obra medieval e nem das agruras infligidas
pela peste negra – motivo central que levou o escritor florentino a escrever o Decameron
(COMINI; 2005, p. 123). A ideia se contrapõe a do estudo de Siega (2012), pois, segundo a
autora,
Embora Pasolini não faça referências à introdução boccacciana, o seu “hórrido
começamento” persiste na representação do evento da morte como elemento de
iniciação ao percurso narrativo, onde a presença da peste é substituída pela ação
sanguinária de Ciappelletto. (SIEGA; 2012, p. 214-215)
Figura 3: Ciappelletto matando um Figura 4: Ciappelletto carregando o
homem com uma pedra na cena de homem que matou em um saco na
abertura do filme sequência de abertura do filme

Fonte: Decameron (1971) Fonte: Decameron (1971)

Conforme os estudos de Andrade (2010) e Betella (2016), percebe-se uma abordagem


do tema da morte por outro viés, focado na montagem cinematográfica do filme. De acordo
com as autoras, Pasolini estabelece uma analogia entre a montagem do filme e a morte,
alcançado uma mistificação dos fragmentos que seleciona (ANDRADE, 2010; BETELLA,
2016).
Outro exemplo de recurso da linguagem cinematográfica utilizado pelo cineasta, e que
deixa sua marca autoral no filme, é apontado pelo estudo de Comini (2005). Trata-se do
insert, segundo o autor, na sequência 7 – quinta novela da quarta jornada, “logo no início
dessa Sequência, a câmera focaliza por alguns instantes um vaso sobre a janela do quarto de
uma garota. Esse vaso simboliza todo o desfecho que a história vai ter” (COMINI, 2005, p.
132). Esse detalhe não faz parte da obra literária, e só “chegou as telas por meio da
sensibilidade de Pasolini” (Ibidem., p. 132).

Figura 5: Plano do vaso sobre a janela do Figura 6: Elisabetta e Lorenzo, os


quarto da protagonista da sequência 7 protagonistas da sequência 7

Fonte: Decameron (1971) Fonte: Decameron (1971)

Mais uma mudança que destoa o filme da obra literária, e que deixa o traço autoral de
Pasolini, é apontada pelos trabalhos analisados. Refere-se ao personagem aluno do pintor
Giotto, interpretado pelo próprio cineasta. De acordo com Bulhões (2016), em relação a cena
final do filme, “vemos Giotto-Pasolini de costas contemplando a obra, que se mostra na tela.
Pasolini assume-se realizador autoral que recriou a obra de Boccaccio: foi o seu Boccaccio o
que se viu na tela. Pasolini parece assinar seu filme” (BULHÕES, 2016, p. 68-69).
Notou-se semelhança entre as pesquisas na maneira de interpelar o processo de
adaptação de textos literários para o cinema e suas terminologias. Segundo o estudo de
Bulhões (2016), o processo de adaptação de uma obra literária deve levar em consideração
outros elementos que não o da fidelidade ao texto original, como o diálogo e o exercício
crítico de leitura que deflagrariam “correspondências ou correlativos entre o signo verbal
literário e os signos audiovisuais no cerne do processo de recriação” (BULHÕES, 2016, p.
51). Além disso, o autor aponta que
a convivência com adaptações que preferem enfatizar o próprio traço de discordância
em relação à obra original, algumas de inegável pujança criativa, levou à percepção de
que a transgressão poderia convidar o espectador a uma fruição mais complexa e rica
– a obra fílmica realizaria uma espécie de incorporação escorpiônica ou ironicamente
corrosiva que, no fim das contas, questionaria a própria leitura como atitude reverente
ao repertório literário. (Ibidem, p. 51-52)

Em relação ao trabalho de adaptação de Pasolini em Decameron (1971), os estudos


foram unânimes no que diz respeito ao gesto de infidelidade do cineasta italiano à obra
literária. Os estudos também evidenciariam a singularidade desta adaptação em específico,
mostrando as operações realizadas para ora se aproximar do texto-base e ora se afastar, além
do traço autoral incrustado no filme de forma contundente (ANDRADE, 2010; BETELLA,
2016; BULHÕES, 2016; COMINI, 2005; GUERINI, 1999; SIEGA; 2012).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A adaptação cinematográfica de Decameron (1971), do cineasta italiano Pier Paolo
Pasolini, apresenta inúmeras particularidades na releitura do texto literário do escritor
florentino Giovanni Boccaccio. Os estudos dedicados a analisar essas particularidades
apontam a potência e a originalidade no processo adaptativo realizado pelo autor.
Em todos os estudos, evidenciou-se a forte presença do aspecto autoral. Percebeu-se
também, em uma das pesquisas, a falta de acuidade na análise dos recursos cinematográficos
empreendidos pelo cineasta para transpor a obra literária ao cinema. Coloca-se a necessidade
de trabalhos com investigação mais precisa neste ponto.
Os estudos demonstraram que o processo de adaptação de uma obra literária para o
cinema não deve ser limitado pela sua fidelidade ao texto-base. Ao contrário, as adaptações
cinematográficas acabariam sendo muito mais inventivas se transgredissem o texto da obra
original. Esses estudos podem ser proveitosos para a reflexão do trânsito intersemiótico entre
as linguagens, principalmente para pesquisadores da área de cinema e literatura.
REFERÊNCIAS

ANDRADE, Ana Carolina Negrão Berlini de. Trans-formações (a)temporais em Il


Decameron: de Pasolini a Boccaccio. 2010. 211 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da
Literatura) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências
Exatas, São José do Rio Preto, 2010.

BETELLA, Gabriela Kvacek. O Decameron de Boccaccio e o olhar transcriador de Pasolini.


FronteiraZ, São Paulo, n. 17, p. 170-187, 2016.

BOCCACCIO, G.; DIAS, M. S. (Org.). Decameron: 10 novelas selecionadas. São Paulo:


Cosac Naify, 2013.

BULHÕES, Marcelo. Pasolini leitor do Decameron: adaptação e autorismo cinematográfico.


Comunicação & Sociedade, São Bernardo do Campo, v. 38, n. 2, p. 43-72, 2016.

COMINI, Marcelo. O Decamerão sob o olhar de Pasolini: Uma perspectiva


cinematográfica para Boccaccio. 2005. 148 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) –
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005.

GUERINI, Andréia. O Decameron e Pasolini: a interface literatura-cinema. Anuário de


Literatura, [S. l.], v. 7, n. 7, p. 37-48, 1999.

SIEGA, Paula Regina. Il Decameron de Pier Paolo Pasolini: da prosa medieval ao roteiro
cinematográfico. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, vol. 14/2, p. 201-216, jul-dez
2012.

O Decameron (Il Decameron). Direção: Pier Paolo Pasolini. Produção de Produzioni Europee
Associate. Itália: United Artists, 1971, 112 min.

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