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O DISCURSO HISTÓRICO NA NARRATIVA FÍLMICA: A REVOLUÇÃO

FARROUPILHA E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO GAÚCHO

Wanderson Oliveira dos Santos


Universidade do Estado do Rio de Janeiro
w.os@uol.com.br

A proposta de trabalho que apresento parte da análise de três obras audiovisuais,


produzidas no período conhecido como a “Retomada” do cinema brasileiro, sendo elas:
Anahy de las Misiones (1997), Netto perde sua alma (2001) e Netto e domador de
Cavalos (2008) em que as mesmas têm como tema ou contexto histórico a Revolução
Farroupilha e a construção da identidade do habitante do Rio Grande do Sul no século
XIX. Ainda estou na fase de coleta de dados inicias das três obras supracitadas, sendo
ser a decupagem dos filmes esse primeiro estágio.
Cabe ressaltar que a visão sobre a construção identitária do gaúcho que vamos
analisar através das três obras recebe um corte temporal do no fim do século XX e início
do século XXI, sendo documentos que nos ajudam entender como tal assunto era
tratado por pelo menos uma parte da sociedade vigente.
Sobre o filme histórico funcionando como construtor de uma identidade de
determinada região ou povo, Rossini (1997) diz o seguinte:

E o filme histórico apresenta-se como um veículo importante para que um


grupo fale de si mesmo, pois através deste tipo de cinema a sociedade pode
expor — pelo resgate dos seus mitos, da sua história — a identidade que
deseja para si mesma, ou o modo como se vê. Assim, a partir destas
representações de caráter histórico, é possível reforçar, reatualizar a
autoimagem de uma sociedade. O filme histórico age, portando, como um
espaço de resgate da memória nacional que por sua vez auxilia na
construção/reforço da identidade social. ROSSINI, 1999, p.70.

Entendemos ser o filme o resultado final de um trabalho em conjunto de seus


autores, diretores, que utilizando os recursos de cenário, áudio e vídeo, como trilha
sonora e técnicas de edição, constroem um discurso acerca de um assunto, no nosso
caso de análise, a construção da identidade do gaúcho. Cabe ressaltar, também, que os
trabalhos historiográficos sobre a Revolução Farroupilha sobre a construção da
identidade do gaúcho serão utilizados como nossas bases de análise do discurso exposto
nos filmes.

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Consideramos, assim, que a tese deve abarcar a descrição e a crítica técnica a
cada um dos filmes, realizando discussões profundas e levantando questões de como um
material audiovisual pode contribuir para a compreensão de dado período histórico
(tanto da Revolução Farroupilha em si como do período em que o filme é produzido).
No caso específico da criação de um discurso identitário do gaúcho, a partir da
Revolução Farroupilha, nos interessa saber como o uso de artifícios próprios do cinema,
no caso gravação e edição de imagens, fotografia, diálogos, trilha sonora, por exemplo,
contribuem na produção de um material que extrapola os círculos acadêmicos, tornando
um tema da história pública.
Assim, cabe relembrar os apontamentos de Angel Luis Hueso Monton, no texto
O homem e o texto midiático no principio de um novo século (MONTON, 2009),
contido no livro Cinematógrafo. Um olhar sobre a história no qual afirma não termos
conseguido fornecer aos jovens e às crianças meios adequados para interpretar imagens,
assim como fizemos com os textos escritos o que, segundo ele, isso seria consequência
de nosso desprezo pela imagem, considerada como mera diversão. A imagem tem um
fator social e, muitas vezes, representa um pensamento vigente ou uma forma de
enxergar o mundo, sendo construtora de uma ideologia do grupo produtor daquele
conteúdo audiovisual.
Nesse ponto, faz-se necessário apontar algumas obras que já tentaram construir
um discurso sobre a questão cinema-história. Começamos analisando a dissertação de
Rafael Hansen Quinsani, denominada A Revolução em película: Uma reflexão sobre a
relação cinema-história e a Guerra Civil Espanhola (QUINSANI, 2010) na qual o
autor debate como o historiador deve conviver e desenvolver seu ofício, a partir da
existência de filmes históricos, porém, sem perder seu papel social de construir uma
memória, através de métodos científicos, dos quais fazem parte também documentos
fílmicos, utilizando uma análise crítica de tais vestígios históricos para desenvolvermos
uma narrativa.
Quinsani procura em seu trabalho realizar uma reflexão acerca do cinema como
importante ferramenta para a construção de um discurso histórico, sendo esse também
nosso objetivo. É nossa pretensão também observar momentos de exaltação e outros de
crítica à Revolução Farroupilha, além do os pontos de uma interseção entre textos,

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trabalhos e pesquisas historiográficas e os filmes. Não se trata de entender os erros ou
acertos das produções, na relação com o documento escrito, mas sim, procurar
compreender o porquê da escolha de determinada cena ou diálogo para um dado
momento retratado na obra.
Já a dissertação de mestrado de Priscila Ferreira trata de produções audiovisuais,
assim como em nosso projeto de doutorado. Ferreira (Ferreira, 2010) utiliza os
apontamentos de Mônica Kornis (2010) para entender que essas produções são produto
da época em que são realizadas, são retratos de seu tempo (KORNIS, 2012, p.65) No
caso do objeto de nosso estudo, as produções audiovisuais a partir da “Retomada”, nos
cabe perguntar como o gaúcho foi retratado naquelas obras e o que o levou a ser assim
descrito nas narrativas fílmicas.
José D´Assunção Barros (2008) nos auxilia na questão ao entender os filmes
como “fontes históricas” que nos ajudam a compreender como uma determinada
sociedade enxerga determinado fato histórico, ou no caso de nosso estudo, a formação
da identidade de um povo a partir de suas ideologias, imaginários, relações de poder e
padrões de cultura. Em Imaginação Social, Baczko entende o imaginário coletivo como
algo que intervém na configuração das relações de poder de uma dada sociedade. No
âmbito do imaginário (que pode ser verificado nos modos como a sociedade seleciona,
endossa e conserva aspectos de sua história consolidando certa memória, como ritualiza
seus valores e convicções, como se faz representar através de símbolos) duplica-se e
reforça-se a dominação efetiva através da apropriação dos símbolos que aglutinam os
indivíduos e garantem a obediência pela conjugação das relações de sentido e poderio.
As três obras audiovisuais previamente selecionadas e que tematizam direta ou
indiretamente a Revolução Farroupilha, foram produzidas a partir do final do século
XX: Anahy de las Misiones (1997), Netto perde sua alma (2001) e Netto e o domador
de cavalos (2008). Todas se inserem em um fenômeno ocorrido no final da década de
1990, chamado de ”Retomada” do cinema brasileiro, iniciada com a Lei do Audiovisual
8.685, promulgada em 1995 ( SALVO, 2008. p. 895-916).
Salvo (2008) observa um rápido crescimento da importância dos recursos da LIC
(Lei de Incentivo à Cultura) para o incremento da atividade cultural no Rio Grande do
Sul. No seu estudo ele indica que no início do período 1997-2004 o orçamento da

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SEDAC (Secretaria da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer do Rio Grande do Sul)
representava 65% dos recursos destinados a cultura no estado, já final constata-se a ser
66% provenientes da LIC contra 34% do orçamento.
Com relação às características técnicas dos filmes da “Retomada”, Hauer nos
indica:

No cinema da Retomada, as características de autoria empregadas na


Nouvelle Vague sofrem uma curvatura quando empregadas no cinema
nacional. Alguns diretores não somente produzem filmes autorais e de arte
num contexto mais hermético, quer dizer, com público mais direcionado, mas
também buscavam um público convencional e salas comerciais. (HAUER,
2016, p. 27)

Um dos filmes que escolhemos para analisar é Anahy de las Misiones (1997). De
acordo com Salvo (SALVO, 2008, p. 895-916), o filme teve ótima relação cópia/público
(8.733), porém atingiu um público insuficiente para gerar a renda necessária para cobrir
todos os custos1 de sua produção. Collares (Collares, 2012) informa que 130 mil
espectadores assistiram ao filme, sendo 90 mil no estado do Rio Grande do Sul, ou seja
quase 70% do público. Podemos observar que a narrativa, de alguma forma, chamou
mais atenção dos gaúchos em comparação ao restante do Brasil, hipoteticamente,
estaríamos falando da própria Revolução Farroupilha e a forma como as personagens se
comunicavam com um dialeto local, princípio, o que nos coloca algumas questões que
cabem a ser investigadas: um indício de que a obra poderia mobilizar alguns elementos
identitários dos gaúchos? Ou ainda, a produção e sua divulgação tem como prioridade o
público estadual? Ou insere-se em um contexto histórico que procuraremos entender de
valorização das regionalidades? Hauer (2016) nos indica algumas características do
filme:

O enredo de Anahy é fiel à linguagem, ao figurino e ao espaço, e o que se vê


no filme é um retrato dos pampas missioneiros e dos campos de cima da
serra, no século XIX. O filme é totalmente dublado, pois não era possível
captar o som direto das locações. As roupas eram enterradas, desenterradas e
batidas em paredões para ficarem com aspecto de envelhecidas. O ator
Marcos Palmeira mergulhava seus dedos na lama para que parecessem
verdadeiramente sujos e há um dente podre no sorriso de Anahy, interpretada
por Aracy Esteves. Não há fios elétricos por onde sua carroça passa, eles

1
Ibid, p.913.

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foram escondidos em aterramentos para que não aparecessem. São detalhes
que, se percebidos pelo espectador, farão diferença no momento da leitura.
(HAUER, 2016, p.19).

Já os dois filmes que tratam da figura de Antonio Souza Netto, um líder


Farroupilha e proclamador da República Rio-grandense, Netto perde sua alma (2001),
Netto e O domador de cavalos (2008) estão inseridos em um projeto que ainda
envolveria um terceiro filme ainda não rodado, tratando de Netto e a Lenda da Princesa
Moura Teiniaguá. De certa forma, a figura do militar gaúcho com memória acerca dos
seus feitos é convocada nas obras e faz um contraposto com Anahy, pois enquanto Netto
seria uma figura histórica que participa ativamente da Revolução Farroupilha, Anahy,
um personagem imaginário, é uma mulher comum que apenas observa passivamente o
desenrolar da Revolta, tendo sua vida influenciada pelas decisões dos exércitos
Farroupilha e Imperial.
Em nossa pesquisa, objetivaremos compreender como dois membros de uma
sociedade gaúcha guerreira e de fronteira (uma mulher índia e pobre e um guerreiro
proprietário de terras e militar) colaboram a formar (ou consolidar ou refletir) uma
identidade plural, mas tendo a Revolução Farroupilha como mediadora. Interessante
ressaltar que em algumas cenas dos filmes percebemos Anahy como espectadora dos
fatos históricos e o General Netto como protagonista, algo bem comum nas narrativas
históricas tradicionais, embora Anahy e Netto sejam ambos líderes de seu círculo social,
família e exército, respectivamente.

Dentre os fatos do nosso passado, no entanto, a Revolução Farroupilha é o


evento que mais tem merecido a atenção dos realizadores, tanto para o
cinema quanto para a tevê. No cinema, especificamente, a guerra que se
desenvolveu no Estado, entre 1835 e 1845, já foi tema de dois longas-
metragens nos últimos anos, Anahy de las Misiones (1997), de Sérgio Silva, e
Netto perde sua Alma (2001), de Tabajara Ruas e Beto Souza. A forma como
ambos olham para a guerra, porém, é diversa. De forma simplificada,
podemos dizer que Souza e Ruas se voltam para a narrativa do herói
separatista que foi esquecido, excluído da própria história gaúcha a fim de
que se concretizasse a união do Estado com a Nação; enquanto Silva dirige
seu olhar para aqueles que constantemente são excluídos de qualquer história;
pobres miseráveis que não fazem a guerra, mas que vivem (ou sobrevivem) à
custa dos restos do embate. (ROSSINI, 2000, p.6-7)

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Assim, reafirmamos que Revolução Farroupilha é um episódio de suma
importância e contida nas três narrativas. Por isso, pretendemos analisar como a
Farroupilha é abordada nessas obras e como e qual a percepção da identidade gaúcha é
exposta/trabalhada nos filmes e, bem como, entender se há uma homogeneidade na
construção de uma identidade gaúcha nas obras da chamada “Retomada”.
Também pensamos em contrapor a teoria proposta por Stuart Hall (2004) que
trabalha com a ideia de haver alguns teóricos que argumentam que os efeitos gerais dos
processos globais culturais não respeitam mais os limites do território nacional como
critério para definir características locais, enfraquecendo ou solapando formas nacionais
de identidade culturais (HALL, 2004, p.42). Assim, perguntamos se tais obras
trabalham para reafirmar essa identidade regional gaúcha? Acreditamos que sim, pois
além de elementos do discurso falado, temos atores, músicas e vestimentas
características do habitante do Rio Grande do Sul do século XIX.
Contudo, indico que nosso trabalho se encontra em estágio inicial de decupagem
das obras. Assim, ao final do texto, apresento um quadro resumido das três obras, mas
ainda sem uma análise aprofundada do que será finalizado. Entretanto, algumas
comparações já são possíveis, mesmo ainda sem uma visão aprofundada a respeito dos
principais aspectos do filme, já podemos considerar alguns pontos:

Personagem Participaçã Episódios da Folclore Linguage


Filmes Período
Principal o na Guerra Guerra Gaúcho m

Observadora
e dependente
Anahy de
dos Observa barco
las Anahy 1839 Boitatá Gauchesco
despojos. de Garibaldi
misones
Filho vai à
guerra

Oficial do
1866 exército Batalha do
Netto farroupilha e Seival e
perde sua Netto Netto do exército proclamação da _ Português
alma relembra a brasileiro na República Rio-
Farroupilha guerra do Grandense
Paraguai

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1835
Capitão de Conclamação
Netto e o milícia da aos negros a Negrinho
Início da
domador Netto guerra da participar do do Português
Revolução
de cavalos cisplatina grupo de pastoreio
Farroupilha
(1825-1828) lanceiros

Como disse anteriormente, ainda estou em estágio inicial de pesquisa, mas as


conclusões acima já nos fornecem um direcionamento para os pontos a serem abordados
no restante do trabalho. Questões como a formação militar do gaúcho, uma pretensa ou
não luta pelo fim da escravidão e a participação de pessoas não ligadas aos Farrapos
nem imperiais participaram do embate. De todas essas questões, já iniciamos debate
sobre a presença do negro na Revolta.

A discussão acerca do protagonismo negro na Revolução Farroupilha

Em Nossos heróis não morreram: um estudo antropológico sobre formas de


“ser negro” e de “ser gaúcho” no estado do Rio Grande do Sul, Cristian Jobi Salaini
(Salaini, 2006) procura resgatar a memória da participação que os lanceiros negros
tiveram no embate. De acordo com pesquisas realizadas por Salaini, esse importante
elemento da formação da sociedade rio-grandense constituía de 1/3 à metade do exército
formado para lutar contra o Império. Denominados de “Corpos de Lanceiros Negros”,
receberam a promessa de serem libertos, caso os Farrapos saíssem vencedores. Além de
serem bravos guerreiros, também desempenhavam outras funções importantes para o
funcionamento das comunicações e logísticas das tropas gaúchas. Essa promessa de
liberdade seria a motivadora do episódio passado em Porongos, que fazia parte do
Município de Piratini, hoje denominado Pinheiro Machado. Fontes indicam que a paz
entre o Império Brasileiro e os revoltosos esbarrava exatamente na cláusula onde se
discutia a situação dos escravos negros ao final do embate que já passava de nove anos.
Nesse momento uma guerra de versões procura explicar o ocorrido na
madrugada de 14 de novembro de 1844. Para alguns, o General David Canabarro teria
desarmado e separado os lanceiros negros antes do ataque imperial, em concordância
com um pedido. Haveria uma carta enviada ao Coronel Francisco Pedro de Abreu por
Luís Alves de Lima e Silva, então Barão e futuro Duque de Caxias Outra corrente
historiográfica não acredita nessa versão da história, entendendo que a carta teria sido

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forjada para desmoralizar Canabarro. No final do século XIX, de acordo com Carvalho,
Oliveira (2006), os historiadores Alfredo Varela e Alfredo Ferreira Rodrigues divergem
sobre o assunto. Varela entende ter havido uma traição de Canabarro, já Rodrigues é
contrário a essa versão. Já nas décadas de 1970 e 1980, a contenda de visões foi
realizada entre dois grupos: um acreditando em tal traição, formado por Moacyr Flores,
Spencer Leitman e Margareth Bakos. Já Claudio Moreira Bento e Ivo Caggiani
acreditam na versão de surpresa aos Farrapos, de acordo com Salaini.
Outro trabalho relevante a respeito do assunto é o de Luciano Rodrigues Barbosa
(Barbosa, 2011) que começa sua explanação buscando encontrar elementos para a
dicotomia raça e cor, presente na sociedade brasileira nos séculos XVIII, XIX e XX e
que, de acordo com seu ponto de vista, foi preponderante para uma interpretação
problemática do ocorrido em Porongos. Sua principal argumentação está no fato de que
cor ou raça fazem parte de uma ordem hierárquica que favorece os brancos, na maioria
dos casos, correlacionada com a dicotomia elite/povo, na qual a primeira sustentou uma
sociedade escravocrata. O Rio Grande do Sul, igualmente como o restante do território
que durante séculos pertenceu à Coroa Portuguesa, se desenvolveu baseado no trabalho
escravo, principalmente de negros vindos da África. Da mesma forma, que o elemento
branco da sociedade gaúcha seria valorizado e o negro, por sua, desqualificado como ser
humano.
Tratando propriamente da Traição de Porongos, Barbosa (2011) vai utilizar a já
mencionada discussão historiográfica entre Alfredo Ferreira Rodrigues e Alfredo Varela
a respeito do tema. Rodrigues contrapõe a afirmação de Varela que o General Canabarro
estaria acertado com o Barão de Caxias, comandante das tropas responsáveis por
aniquilar os Farrapos, para desarmar os lanceiros negros facilitando uma possível
carnificina. Importante salientar, como o próprio Barbosa o fez em seu trabalho, que a
questão da traição dizia respeito apenas à traição ao exército republicano dos
Farroupilhas e não aos negros libertos presentes no local.
Ao analisar uma correspondência de Manuel Alves da Silva Caldeira, ex-
lanceiro de Teixeira Nunes, oficial Farrapo, defensor incondicional dos negros Farrapos,
Varela, então, formaria seu juízo sobre o ocorrido a partir desses elementos. Porém,
Rodrigues, desqualificaria os depoimentos escritos por Caldeira ao afirmar que ele não

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estaria em Porongos no momento da invasão pelos imperiais. A resposta de Rodrigues a
Varela veio no texto A pacificação do Rio Grande do Sul, baseado nas informações de
Joao Pedro da Costa (Farroupilha); e Pedro José Bandeira e Leonel Ribeiro de Almeida
(legalistas).
Varela (1845), a partir do testemunho de Caldeira, é contundente ao afirmar que
o acampamento tinha conhecimento da aproximação dos legalistas. Ainda conta que o
próprio Canabarro havia retirado as pedras dos fuzis e os morrões das peças de
artilharia, por estarem danificados, ficando acertado o rearmamento da tropa no dia
seguinte. Caldeira ainda acrescentou que o grupo havia sido atacado na manhã seguinte,
por cerca de seiscentos homens, gritando “mata negro e o que é branco deixa”.
Na outra ponta da controvérsia, Rodrigues nega que os homens de Canabarro,
segundo ele, setecentos, não tinham armas de artilharia, pois a única que tinham havia
sido escondida para não atrapalhar a marcha dos homens. Ainda acrescenta que o tal
dito “mata negro e o que é branco deixa” é contestado pelo fato de que homens brancos
também foram mortos e feridos em Porongos, como informa o Capitão José Luiz dos
Campos em seu depoimento.
Dando sequência à querela historiográfica, em 1899, Alfredo Varela publicou A
pacificação do Rio Grande do Sul (1845), no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro e
nesse texto explicitou uma carta de Caxias à Chico Pedro ou Moringue, comandante das
tropas que atacaram Porongos, na qual pede para poupar a vida dos brancos e ainda que
infantaria estaria desarmada. Mesmo contestada por muitos tal carta seguiu de base para
Varela procurar outras testemunhas que validassem sua tese de traição em Porongos.
Mais uma vez, Rodrigues (1846) responderia a Varela um ano seguinte com a
publicação de David Canabarro e a surpresa de Porongos (réplica ao Dr. Varela)
Nesse texto, ocorre uma destruição dos argumentos utilizados anteriormente por Varela
e o uso de duas testemunhas de que a dita carta escrita por Caxias seria uma falsificação
feita por Chico Pedro para criar uma desunião nos Farrapos. Felix de Azambuja Rangel
era parente e grande amigo de Chico assistiu ao embate em Porongos e afirmou que
carta fora forjada para criar intriga entre os Farrapos. Manoel Patricio de Azambuja,
outro parente de Chico, confirmou a produção fraudulenta de tal carta. Após analisar

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depoimentos, Rodrigues mudou sua versão e afirmou que a mortandade majoritária foi
de negros e confirmou a não veracidade da carta analisada anteriormente.
Em 1933, viria mais um capítulo dessa disputa sobre Porongos com a publicação
da História da Grande Revolução – o cyclo Farroupilha no Brasil, na qual Varela
concorda com Rodrigues ao afirmar que a carta de pretensamente escrita por Caxias era
falsa. Porém, Juremir Machado da Silva (Silva, 2010) entende ser esse recuo como uma
ação característica de um nacionalismo ascendente e muito interessante no momento em
que se organizam comemorações ao centenário da Revolução Farroupilha.
Após essa discussão centrada nos dois historiadores, o século XX marca uma
mudança de foco nas discussões acerca de Porongos quando começam analisar o
episódio como uma traição à República. A primeira geração de estudiosos pós-Varela e
Rodrigues conta com nomes de peso da historiografia gaúcha como Walter Spalding
(1939), Fernando Luis Osório Filho (1935) e Augusto Tasso Fragoso (1938). Barbosa
começa essa parte de seu trabalho explanando as ideias de Spalding (1939) que indicam
a surpresa de Canabarro ao ser atacado, mas entende que a carta de Caxias seria
verdadeira e ainda que as vítimas estariam desarmadas, mas se diferencia de Rodrigues
ao afirmar que os lanceiros negros haviam se dispersado e que o General Netto resistira
heroicamente, ao contrário das versões anteriores.
Já o americano Spencer Leitman (1979) de seu enfoque à polemica para
assinatura de paz entre Farrapos e Imperiais. O debate estaria no fato de que alguns
Farroupilhas entendiam a abolição da escravidão como função preponderante para o
término dos embates. Ou seja, o aniquilamento dos negros seria um grande passo rumo
a um acordo com Caxias. Leitman (1979) baseado nos textos de Domingo de Almeida
foi pioneiro a dizer que os negros foram divididos para facilitar seu assassinato e ainda
aponta que houve uma letalidade de 80% dos negros lanceiros (Barbosa, 2011, p. 32).
Porém, alguns contestam essa versão, já que a força numérica dos negros ainda era alta,
mesmo após Porongos.
Assim, nos cabe questionar, mais uma vez, o porquê desse episódio não ser
mencionado nos jornais durante a comemoração. Obviamente, nas comemorações, os
episódios que tendem a manchar algo considerado sagrado por uma comunidade, como
no caso da Revolução Farroupilha, são deixados de lado. Contudo, nota-se na leitura

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dos jornais de 1935 pouca ou quase nenhuma menção aos combatentes negros. Os
grandes nomes destacados são de homens brancos e de uma classe de homens
detentores de terras e de escravos no Rio Grande do Sul.
Na contramão desse discurso de desvalorização do negro na participação da
Revolução Farroupilha, cabe destacar o trabalho de Letícia Rosa Marques (Marques,
2013) que trata da participação do mulato José Marianno de Mattos, nascido em 1801
no Rio de Janeiro, nas fileiras dos Farrapos. Marques traçou um perfil desse
personagem esquecido por muitos quando se fala da luta dos Farroupilhas contra o
Império do Brasil, através dos escritos de Alfredo Varela e de jornais da época. Marques
também resgata outros estudos dedicados à participação de José Marianno de Mattos na
Revolução Farroupilha. Ao falar do trabalho de Claudio Bento intitulado O negro e
descendentes na sociedade do Rio Grande do Sul (1635-1975), aponta para o fato de
autor chamar Mattos de “um mulato quase branco”, indicando ser essa uma visão
característica daqueles que procuravam “clarear” a pele do personagem, pois esse
atingira altas patentes no exército Farrapos, contrastando com a situação da maioria dos
negros envolvidos na guerra. Marques continua explicando que outros autores também
trataram Mattos como uma das lideranças dos Farrapos, como Spencer Leittman (1979)
que não cita a cor do personagem, assim como Spalding (1987) o chama de “moreno
claro”.
De acordo com sua pesquisa, José Marianno de Mattos foi um elemento
dedicado à causa dos revoltosos, sendo uma ponte com líderes uruguaios, pois
frequentemente visitava o país vizinho como negociador e tinha contato com sua
população e com líderes locais como Fructuoso Rivera, fazendo com que a ideia de
abolição se fizesse presente em sua pauta política, algo que acabou não ocorrendo após
a Paz de 1845, e os negros que lutaram ao lado do Farroupilhas teriam que esperar até
1888 para celebrar a liberdade.

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Filmes:

Anahy de las Misiones. Direção: Sérgio Silva, Produção: Gisele Hiltl. M.Schmiedt
Brasil: 1997. 110 min Produções, son., cor.

Netto perde sua alma. Direção: Tabajara Ruas e Beto Souza, Produção: Beto Souza,
Tabajara Rua e Esdras Rubin. Rio Filmes. Brasil: 2001. 102 min, son., cor.

Netto e o domador de cavalos. Direção: Tabajara Ruas, Produção: Tabajara Ruas.


Walper Ruas Produções Brasil: 2008. 95 min, son., cor.

*Informação classificada para uso interno.

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