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Regionalismo literário e sentidos do sertão

ALBERTINA VICENTINI*

Resumo: O artigo averigua a noção de sertão dentro do regionalismo literário brasileiro.


Desenha um panorama geral de como essa noção vem configurando diferentes regionalismos
e como ela parece se comportar tematicamente hoje, cada vez mais fluida e circunstancializada,
a partir da semântica acumulada de espacialidade e cultura. Conclui pela importância de
incluir nos estudos atuais sobre o tema a parelha interior–cidade grande, pelo menos em
literatura.
Palavras-chave: literatura brasileira; literatura regionalista; sertão.

É tema deste trabalho a literatura regional matéria pronta, que enfatiza espaços físicos,
sertanista, cuja discussão é complexa, porque história, usos, costumes, imaginários específicos
envolve conceitos relevantes, como os de região, e regimes interpessoais (exóticos ou não),
literatura regionalista e sertão, conceitos fluidos, cobertos pela experiência no sentido benjami-
escorregadios, que parecem não poder ser niano do termo, cujo conteúdo se resolve num
elaborados de maneira clara. São dependentes poema ou numa narrativa, ambos fictícios.1
de contextos diversos, utilizados em diferentes Na resolução literária dessa matéria pronta
áreas, como literatura, pensamento social, pelo discurso narrativo, a literatura faz ressaltar
planejamento governamental, pesquisa univer- a perspectiva histórica que embasa os aconte-
sitária, discurso cotidiano, com diferentes fins, cimentos. Toda narrativa é, fundamentalmente,
e recuperados, a cada vez, em diferentes pers- temporalidade passada ou presente, sucessão
pectivas. de acontecimentos que ocorrem a um indivíduo-
O que teremos, então, são alguns aponta- personagem, que deve agir num determinado
mentos sobre esses conceitos que a literatura espaço e contracena com outros personagens.
regionalista em geral e a goiana em parti- Ao lado disso, por menor, mais frouxo, ou menos
cular dão a conhecer a partir da sua produção incapaz que seja, o discurso narrativo sempre
literária. Desde já assinalamos que o sertão é cria, inventa uma representação verossímil de
uma coordenada específica de algumas litera- mundo, o que significa que ela expressa também
turas regionalistas, uma vez que nem todas um imaginário e uma mentalidade, ou visão de
trabalham com essa temática: o Sul, por exemplo, mundo ou ideologia, esta última no sentido
tem os pampas, não o sertão. comum do termo.
Nesses termos, iniciamos assinalando o que
essa literatura tem apresentado como conceito 1. Em artigo recente, de 2005, Gilberto Mendonça Teles
faz um levantamento das principais obras da literatura bra-
de região. Desde o começo da corrente, do sileira em que a noção de sertão aparece. O artigo se intitula
século XVII até os nossos dias, a literatura tem “O lu(g)ar dos sertões” e consta de uma publicação da Ca-
entendido a região como um mundo já elaborado, pes/PUC-RIO dos resultados de um grupo de trabalho de
estudos lingüísticos e literários – Ibell – formado a partir de
um intercâmbio Brasil–Espanha. O nome da publicação é
* Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Diálogos ibero-americanos (coord.: Gilberto M. Teles e
USP e professora do Mestrado em Letras da UCG. org.: Júlio César Valladão Diniz).

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Portanto, região, em literatura, tem sido termos típicos, livros de receitas etc., todos
região nos seus aspectos físico, geográfico, dentro ou ao lado de suas obras literárias pro-
antropológico, psicológico etc., subsumidos na priamente ditas. E também se lançam em
história relatada (a temporalidade), seja ela polêmicas infindáveis sobre a fidelidade da
dominantemente política, econômica, social e representação de mundo que suas obras apre-
cultural, porque só a manifestação de todas essas sentam – se de fato é ou não é assim a sua
facetas ao mesmo tempo é capaz de engendrar região; se aconteceu ou não do jeito que está
uma história no sentido narrativo do termo, isto relatado. E defendem a posição de que só o
é, uma totalidade de mundo representada. Até nativo ou o enraizado no local é capaz de ler,
aqui, nada ainda distingue a literatura regionalista entender e transmitir essa identidade regional.
das outras literaturas, porque toda narrativa, A questão da identidade, então, como
qualquer que seja, apresenta esse embasamento conteúdo-chave dessa narrativa aponta para o
histórico para a criação de mundos fictícios processo de alteridade, jogo de semelhanças e
representados. diferenças, de partes e de totalidades, que culmi-
Só que a literatura regionalista, além disso, nam em auto-afirmações que se assinalam
mantém um outro elemento-chave de resolução deícticas, quer dizer, se auto-afirmam a partir
que é o seu caráter performativo de apresen- do locutor e do contexto, e deles depende. Todo
tação de uma identidade grupal2 (não impor- regionalismo literário é assim, mesmo se brasi-
tando, hoje, se essa identidade cultural se leiro, goiano, hispano-americano, francês, inglês
manifeste no campo ou na cidade), com a etc.
totalidade de seu mundo representado mantendo- No caso brasileiro, o percurso histórico da
se como conteúdo primeiro. Por isso é que se literatura regionalista e, portanto, da identidade
diz que, mesmo quando trágico, sério, cômico, regional inicia-se com as primeiras manifes-
irônico, ou comezinho, o mundo representado tações literárias do sertanismo árcade e român-
da literatura regionalista é, sempre, também tico do final do século XVIII e meados do XIX,
épico. E também por isso toda literatura regio- em alguns sonetos de Cláudio Manoel da Costa
nalista se preocupa com as questões da e expressão romântica de Alfredo de Taunay e
verossimilhança do seu mundo representado, José de Alencar. Mas define-se de fato como
pretendendo-se o mais documental possível. A corrente sistemática a partir do final do século
falta de verossimilhança pode levar ao não- XIX, com o mineiro Afonso Arinos, entrando
reconhecimento identitário do mundo focalizado século XX adentro com o gaúcho Simões Lopes
e à destituição do caráter regionalista do texto. Neto, os paulistas Valdomiro Silveira e Monteiro
Os documentos, de seu lado, pretende-se Lobato e o goiano Hugo de Carvalho Ramos no
que sejam todos verificáveis: são a linguagem início do século até os anos 20; com o grupo
da região, a fauna, a flora, os ofícios, os espaços, nordestino de Graciliano Ramos, José Lins do
os comportamentos, as roupas, as situações, os Rego e Jorge Amado pelos anos 30; com o
climas, o jeito de ser, o nível mental, os problemas mineiro Guimarães Rosa e os goianos Bernardo
regionais, as crenças, o universo ideológico e Élis e Eli Brasiliense pelos anos 50; com, no caso
por aí vai – matéria épica porque matéria pronta da literatura goiana, José Godoi Garcia, Carmo
recolhida e apresentada para expressar uma Bernardes e Bariani Ortencio pelos anos 70; e
identidade regional. duas expressões recentes – uma sergipana,
Essas são razões por que os escritores outra paulista – de Francisco Dantas e Antonio
regionalistas dizem-se também pesquisadores, Torres, para citar os mais conhecidos de todos
recolhedores de anotações em cadernetas. nós, porque regionalistas há em todas as regiões.
Publicam miscelâneas de lendas, cancioneiros, Mas dizer que a literatura regionalista é
folclore recolhido, provérbios, dicionários de expressão pretensiosamente documental de uma
totalidade de mundo afirmativa de uma identi-
2. Sobre o sentido performativo do discurso proferido sobre dade grupal também não pode bastar para defini-
a região, ver: BOURDIEU, Pierre. A identidade e a repre-
sentação. Elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia la, porque outras literaturas também o são: há a
de região. In: _____. O poder simbólico. Lisboa: Difel,1989. etnografia do cortiço, por exemplo, como

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expressão típica da ocupação espacial margi- raça mestiça, ou o locus amoenus das bucólicas
nalizada das cidades, empreendida por Aluísio greco-romanas; o sentido econômico – o sertão
de Azevedo em obra homônima; ou, atualmente, mantém uma economia distante da economia
a literatura neonaturalista sobre a violência da metrópole e do litoral, agrária e subdesen-
urbana, e tantas outras. Isso significa que um volvida em face da economia industrial e mais
recorte temático que aponte de que grupo se desenvolvida da metrópole; o sentido social – o
quer mostrar a identidade, ao lado de como se sertão mantém outro tipo de associação de
fala desse grupo, também é importante para membros, uma associação mais comunitária,
definir a literatura regionalista. outro tipo de usos e costumes; a aliança
Nesse sentido, o recorte temático principal sociopolítica – o poder dos coronéis, o desva-
em torno do qual a literatura regionalista tem limento dos camaradas, a luta social dos estados
trabalhado seus temas e seus conteúdos iden- periféricos; o sentido psicossocial, na perspec-
titários é, especialmente, o mundo rural, mundo tiva da antropologia – o sertão detém um
dentro do qual se encontra o sertão, que nos universo psíquico mais ritualizado, com formas
interessa aqui.3 Historicamente falando, esse de pensamentos mais míticas e agônicas; o
mundo rural vem sendo caracterizado de forma sentido histórico – o sertão detém a chave de
bastante dicotômica, por algumas parelhas, que nossa origem histórica típica e genuína, a partir
oscilam entre a negatividade e a positividade, das entradas e bandeiras, por exemplo, e o
mas que se apresentam sempre por acumulação, sentido do imaginário propriamente falando –
embora de forma dominante. Primeiro, a parelha quando o sertão avulta como local de vida
litoral & sertão (que se inicia com a Carta de heróica ou trágica, de vida salutar e genuína, ou
Pero Vaz de Caminha e culmina numa obra como de vida identitária. E outros tantos, que sali-
a de Euclides da Cunha, que não é um regio- entam uma perspectiva romântica, ou realista,
nalista literário, mas que discutiu a região funda- ou conservadora, ou de denúncia social, ou
mentalmente nesses termos, ao lado da questão determinista etc..
da raça e do meio). Mais à frente, na represen- Dessas perspectivas, várias relações po-
tação de Taunay e de José de Alencar, a parelha dem ser feitas: a que associa a noção de sertão
campo & cidade, imperiosa até hoje na música com terra desconhecida, inóspita, ignorada e
ou na literatura, com a expressão ímpar de bárbara, como fez Euclides da Cunha; a que
Guimarães Rosa a partir de meados dos anos associa sertão à ruralidade e ao campo, com
40. No final do século passado, com o surgi- estudos da sociologia rural ou a produção
mento dos estudos etnográficos e folclóricos de intelectual da literatura regionalista, por exemplo;
Couto de Magalhães e Sílvio Romero, precedidos a que associa o sertão à noção de fronteira
ainda por José de Alencar, a parelha Norte & econômica, e que faz com que os planejamentos
Sul, desdobrada, a partir do romance nordestino governamentais o encarem como terra a con-
de 30, em Norte, Nordeste, Sul, Centro-Oeste quistar para construir o futuro da nação; a que
e Sudeste. Posteriormente, desde Monteiro associa o sertão à identidade da nação e cria
Lobato até hoje, a parelha interior & capital, com ela o povo étnico brasileiro e as suas prin-
que nos parece ser o âmbito básico do atual cipais características culturais e raciais dife-
regionalismo. renciadas do conjunto das outras nações; a que
Além disso, o sertão também vem sendo associa o sertão ao subdesenvolvimento e ao
recortado como elemento de uma totalidade que primitivismo, merecedores de uma colonização
se situa num outro lugar propriamente falando, civilizatória, para só citar algumas.
distanciado de tudo (o contraponto ainda é feito O que essas parelhas delimitam em comum
por oposição) e em todos os sentidos possíveis. parece ser o recorte espacial de temática, o
Há o sentido espacial – o sertão é o interior que levaria a supor que os processos da tempo-
longínquo e despovoado, ou povoado por uma ralidade narrativa que empurram o conceito de
região na literatura de que já falamos nele não
3. Essa relação pode ser conferida em praticamente todos
os compêndios de história da literatura brasileira no século poderiam entrar. Mas não é o caso. Se a questão
XX. Não faremos as citações aqui, por muito extensas. do espaço, pelo menos em literatura, se mantém

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muito pelo suporte do enunciado da descrição Isso de um modo geral, bem geral. Toda e
– muito típica do regionalismo, inclusive –, ela qualquer literatura regionalista tem discutido,
também só se resolve em outros suportes que enfatizado ou reelaborado uma ou várias dessas
integram essa descrição, que são o cenário e a parelhas, ao lado de outras, específicas, e é
história relatada, com o seu mundo represen- justamente isso que a reparte em várias litera-
tado. Em literatura, cenário é lugar, decoração, turas regionais identitárias: a nordestina, a
pintura, paisagem, flora, fauna etc., mas também nortista, ou a sulina que, por sua vez, poderão
é cena, lugar onde acontecem as ações prati- ser repartidas em tantas outras mais locais ou
cadas pela rede dos personagens, lugar de onde pontuais, não importa, inventando o que vem e
se fala, componente concreto da percepção do pode ser chamado de um regionalismo mineiro,
tempo abstrato – a mudança de cenário releva goiano, gaúcho, paulista, baiano, ou local, como
mudança de ação, tempo, mesmo que simul- o da Região da Mata em Minas Gerais, ou do
tâneo. Enfim, é paradigma social e aspectual. sudoeste goiano, e por aí vai, sempre de olho na
Um cenário, para não pecar em literatura, deve história e nos espaços que recebem a matéria
ser sempre um cenário também social. Ainda, é dada. E tudo isso ao lado das diferenças lingüís-
um dos elementos que determinam o conjunto ticas e estilísticas de autor, lugar e das instituições
de oposições e interações possíveis entre os literárias de gêneros, formas etc.
personagens, recortados em dêixis: os daqui, os Podemos exemplificar isso com o regio-
de lá, o estrangeiro, o autóctone, o eu, o aqui, o nalismo goiano. O que a história da literatura
tu, a aldeia, a cidade etc, fundamentais para a goiana tem dado como conteúdo identitário
apresentação daquela matéria pronta de que a partir de algumas coordenadas temáticas que
diferenciam o nosso regionalismo dos demais,
falamos atrás: uma sinédoque continente/con-
num rendilhado de igualdades e diferenças
teúdo – o continente que suporta os diferentes
fundamental à recuperação de cada um desses
conteúdos que representam a identidade. Isso
espaços focalizados, são:
além de ser passível de agregar outros sentidos
simbólicos e metafóricos – espaços que são a) a noção de sertão, aqui entendido como
concretos e psicológicos ao mesmo tempo, por extensão de terra que se contrapõe ao litoral,
exemplo, ou míticos, como a floresta e o cerrado, povoado de fazendas e cidadezinhas interio-
de motivação realista, atmosférica etc (veja-se, ranas, matas, rios, é certo, mas já destituído
o litoral do interesse que pode ainda suscitar
por exemplo, as veredas de G.Rosa.).
no regionalismo baiano, por exemplo, que
Evidente, essas parelhas são e não são espe-
conflui litoral e capital. Ainda, sertão, para o
cíficas da literatura, quer dizer: são específicas
regionalismo goiano, também não equivale
porque com elas a literatura nos dá a conhecer
ao sertão da maneira como ele é significado
o mundo que relata (enquanto desconhece
no Nordeste – que tem como uma de suas
outras) – toda narrativa literária, ou pelo menos principais coordenadas temáticas a seca e a
toda boa narrativa literária, trabalha com acon- miséria, porque Goiás não tem a seca roti-
tecimentos particulares e recortados em tempo neira e deflagradora nordestina. Sertão goia-
e espaços particulares que levam a uma repre- no envolve, para além do espaço que distan-
sentação de mundo total que tanto melhor será cia a imensidão de terras despovoadas para
quanto mais universal conseguir ser repre- lá do mundo civilizado da capital, algumas
sentativo do que poderia ser (não do que é). coordenadas históricas do estado, quais
Mas essas parelhas também não são específicas sejam: a mineração (que não está presente
da literatura, porque fazem parte do pensamento no Nordeste), o bandeirantismo e o gado,
histórico e social propriamente dito, que as coordenadas que confluem o sertão goiano,
reelabora em termos políticos, sociais, econô- fazem-no assemelhar-se aos sertões mineiro
micos, uso de poder, distribuição, reconhecimento e paulista, de um lado, e ao mato-grossense
etc., para servirem justamente de esteio à de outro. Mas com a diferença de que a
verossimilhança do mundo representado que a mineração em Minas, por exemplo, liderou
literatura regionalista nos dá a conhecer. ou executou uma história de poder e influên-

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cia em âmbito nacional que a mineração do produtivo no concerto maior da nação do


sertão goiano não empreendeu; também, o início do século, e que, afinal, não passou (e
bandeirante paulista foi elemento agente fora não passa) de uma eleição ou seleção ideo-
de São Paulo, e o bandeirantismo em Minas lógica de formas históricas disponíveis.5 No
e Goiás foi elemento paciente. O sertão entanto, essa temática se firmou especial-
mato-grossense, por exemplo, também man- mente pelo cenário extraliterário da política
teve questões de fronteira que não aconte- – que a Marcha para o Oeste de Getúlio
ceram em Goiás, pelo menos não em relação Vargas e a Fundação Brasil Central de
a países estrangeiros, impôs a temática do Juscelino vieram reforçar – e ainda se repre-
Pantanal e das águas como ênfase identitária, senta na atualidade, por exemplo, na figura
acercou-se de um imaginário de guerra que clara de Ramiro, personagem de Juruba-
o aproximou do regionalismo sulista e reela- tuba, de Carmo Bernardes, boiadeiro supim-
borou as questões indígenas que Goiás tam- pa, bom caráter, trabalhador produtivo, que
bém teve, e de que se resguardou na sua põe ordem e disciplina comportamental e
literatura.4 Dessa forma, a literatura vai regis-
econômica na fazenda onde atua;
trando essa temática. Por Goiás, os aconteci-
mentos de um mundo capaz de criar identi- c) a temática política das lutas de poder internas
dade são acontecimentos localizados nesse ao estado e do regime político do coronelis-
espaço histórico de sertão relatado: um texto mo, provenientes do processo político histó-
como “A madre de ouro”, de Hugo de Carva- rico nacional e não necessariamente regional,
lho Ramos, é representação dessa coorde- mas que aqui se mistura à temática da cidade
nada histórica da mineração. Não seria um do interior.6 Obras como O tronco, de Ber-
produto do regionalismo literário nordestino, nardo Élis, ou Uma sombra no meio do rio,
da mesma maneira que o livro Vidas secas, de Eli Brasiliense, comprovam decididamente
de Graciliano Ramos, não seria, tal qual ele essa especulação histórica regional;
é, em algumas de suas temáticas, produto d) e, finalmente, a questão do regime de esta-
de um regionalismo goiano; mento e de trabalho, de exploração da mão-
b) uma segunda temática, proveniente da de-obra do sertão, o regime de camarada-
perspectiva ativa do bandeirantismo, é a de gem, em que o trabalho é pago por salários
sertão como terra a conquistar, portanto que se transformam em dívidas de custeio
fronteira de expansão e de economia. Con- de bens materiais, escravizando o trabalhador
solidada no regionalismo goiano, aparece rural ao seu patrão-fazendeiro ou fazendeiro-
primeiro nos tropeiros e boiadeiros de Hugo coronel, que gerou as primeiras vozes de
de Carvalho Ramos, no livro Tropas e boia- denúncia social regionalista através de Hugo
das, que é uma reedição do bandeirantismo de Carvalho Ramos, na sua novela “Gente
expressada na mobilidade literal do tropeiro
5. O roceiro existia no sertão goiano, mas não era convin-
e do gado e da produtividade econômica deste cente ao tempo falar dele, porque era detratado, como com-
último. A seleção da figura do boiadeiro e prova o texto “Velha praga” de Monteiro Lobato e a sua
não do roceiro como personagem centrais figura do Jeca Tatu. Ideologia que pode ser lida nas repre-
sentações de mundo dos contos de Hugo de Carvalho Ra-
dos contos do livro aponta uma forma mos, nas suas estórias, e naquelas representações de mundo
histórica de integrar Goiás como um estado e de estórias que ele deixou de narrar, o universo ideológico
apagado de qualquer texto, e que poderiam ser eleitas como
4. Por incrível que pareça, não há, na literatura regionalista representações que levariam a outros imaginários e a outras
goiana, um cancioneiro expressivo cuja temática fosse as ideologias, que cumpririam outros interesses históricos etc.,
lutas indígenas entre bandeirantes – primeiros sertanejos e confirmariam outras identidades para o estado de Goiás.
apossadores do território – e os caiapós, por exemplo, que 6. Diferentemente de Minas, que produz um componente
estão presentes na formação histórica do nosso sertão (o de lutas políticas no espaço também da fazenda e do sertão
que, evidentemente, pode encontrar alguma explicação, pelo ou das veredas, como é o caso de Guimarães Rosa, para além
menos no caso da literatura regionalista goiana, no seu iní- do registro dessa temática em pequenas cidades interioranas,
cio tardio, já no século XX, quando outras questões interes- como em Vila dos Confins, do também mineiro Mário
savam mais ao estado, o que volta a comprovar que a litera- Palmério, trazendo como elemento histórico o conflito
tura é também uma forma histórica de um tempo, de um armado.
poder, de uma classe etc.).

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da gleba” e em contos como “Peru de roda”, f) e, por último, o regionalismo praticado como
coroados pelo célebre “A enxada” de Ber- vitrine, principalmente nas escolas, nos tea-
nardo Élis, e, secundariamente, pelo romance tros, nas farsas, na televisão, como exposição
Pium de Eli Brasiliense, estórias de traba- dos frutos da terra, regionalismo que encontra
lhadores rurais e garimpeiros, ambos dos em Goiás o seu máximo representante no
anos 40; pequi destituído de história, destituído de
e) outras temáticas, inúmeras delas, já interfa- universalismo, de particularismo até, ou o
ceiam o regionalismo goiano com outros regionalismo de representação degradada do
regionalismos, como: a temática erótica da roceiro das festas juninas, das roceiras de
moça sertaneja, que aparece em quase todos vestido de chita. A vitrine utiliza os signifi-
os romances e contos regionalistas de dife- cantes pelos significantes meramente descri-
rentes épocas – moça fruta do mato, como tivos, que ameniza as suas ilações com imagi-
indica o próprio erotismo da metáfora; a temá- nários e ideologias históricas. Os personagens
tica da violência dos sertões, do homem da festas escolares não são confrontados
em estado instintivo, ou natural, como quis o com nenhum outro, mas são, antes, expostos,
século XVIII, gerada pelo imaginário longín- deixando perceber ou a sua conformação ao
quo da Carta de Pero Vaz de Caminha, que emblema, ou a sua degradação, ou a eleva-
dizia que o sertão era o desconhecido para ção de formas, não importa. Quaisquer que
além do que se via das caravelas, adentro sejam, são exposição de receitas por recei-
do mato, lugar de bicho. Ao que as bandeiras tas, culinária pela culinária, traje pelo traje,
acrescentaram o inóspito, o despovoado e o quase forma pela forma, de feição determi-
perigoso, a violência também fruto das guer- nista, porque representam a terra, porque a
ras interinas estaduais, da representação da terra os dá como fruto das suas árvores típi-
vida dura, da representação dos instrumentos cas ou da sua tradição, sem historicização:
cortantes, duros, e dos atos de cortar e abater jogos de necessidades naturais ou ambientais,
bichos, plantas, e índios, que forjam o trabalho apagados semanticamente pela inconsciência
braçal desses espaços etc.; as histórias de e pela alienação daquilo que representam,
amores violentos, apaixonados, trágicos, dos que as representam e dos que assistem
instintivos, desintelectualizados pela desme- a elas.
dida das ações, pelas reações primárias do
sertão sem escola ou disciplina, ao lado da Essas temáticas, no entanto, se não são do
representação contrária do amor idílico, mesmo grau – as duas últimas são de tratamento
doce, angelical, exercitado em lugares mais estereotipado que as outras –, têm mantido
amenos, bucólicos, bonitos, líricos, advindos
diferenças no conjunto da chamada literatura
de um imaginário quinhentista do Novo
regionalista, traçando-lhe fundamento e história,
Mundo paradisíaco, ou do campo como lugar
de um lado, e, de outro, reconhecimento e per-
de autenticidade e essencialidade diante do
formatividade.
artificialismo e da inautenticidade da cidade
Todas essas relações, conceitos, recortes
civilizada, como quiseram os românticos; a
bizarrice, o exótico, o pitoresco desse mun- temáticos e contraposição vêm tentando, de um
do desintelectualizado, de proporções imen- lado, desenhar, uns bem, outros mal, o que vem
sas – o sertão é imenso –, preso aos sentidos a ser sertão, pelo menos quanto às suas possíveis
da vista e do ouvido, no modo sensorial de categorias de análise, muito embora ainda pouco
viver, que vê assombrações, decide por se tenha percebido do desenvolvimento histó-
tradição, lugar de cobra-grande, de sucuris, rico e acumulativo, igual e diferente que cada
de urutus, uma violência e bizarrice animais, um desses elementos traz. De outro lado, todas
de parelha com a bizarrice do falar do elas parecem esbarrar, hoje mais do que ontem
homem, da sua roupa, do seu comportamento, ou do que no início da história brasileira, na ma-
e por aí vai. Claro, sempre com algumas terialidade, na realidade concreta do próprio
(poucas) especificidades literárias bastante termo que definem, até porque essas suas
conhecidas; dicotomias são fundamentalmente espaciais.

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Hoje, “Onde fica o sertão?”, pode-se perguntar. A literatura regionalista já havia atinado
“Ali, mais adiante”, quase sempre é a resposta. com isso: qual a materialidade espacial do sertão,
E essa pergunta e essa resposta parecem ser se o sertão está em toda a parte?, pergunta G.
recorrentes. Rosa. E responde: “o sertão é o homem”, e o
Essa delimitação insistente pela espacia- que existe é “homem humano”, carregado de
lidade, e que tem ordenado e desordenado, cultura e história, atravessando o espaço, o
assentido e complicado o conceito de sertão, tempo, as emoções, as experiências.
talvez sobreviva por acumulação: quando os Isso, de novo, tem a ver com a história. E
portugueses aportaram suas caravelas no litoral se esse argumento é bastante ponderado e apon-
brasileiro, foi fácil perceber que o sertão era ta para um discussão de perda espacial (e
todo o espaço que para dentro das praias podia cultural) histórica que de fato acontece, ele
ser apenas vislumbrado e imaginado, mas não também suscita outras questões.
visto, como assegura Pero Vaz de Caminha em Primeiro, é preciso verificar que, desde que
sua Carta. Sertão, aí, conseguia ser um elemento o sertão ganha cultura, as cidades vêm se
literalmente espacial e, de certa forma, concreto, apossando dele, até porque muito do que cons-
mensurável. Parece que à medida que as entra- titui a cultura do sertão foi apropriado dos
das e bandeiras foram explorando esse interior homens citadinos que o desbravaram, que
espacial visto das praias, o sertão também foi construíram e vêm construindo o seu espaço
caminhando rumo a essas categorias que hoje historicamente. E muito do que constitui a cidade
tentam defini-lo e que o constroem – o sertão hoje também tem a ver com o modo de vida dos
foi o rastro deixado pelas bandeiras. Quando se habitantes desses locais construídos, seja histo-
passou a recortá-lo de dentro como cultura para ricamente, seja pelas condições sociais das
além da espacialidade, a insistência no espaço, migrações campo–cidade, por exemplo. Ou seja,
parece, passou a ser mantida também em função com menos pureza e romantismo, essas situa-
de uma busca das origens. ções de alteridade têm levado a construções de
Hoje, o argumento que discute a homo- identidades numa totalidade e não em partes
geneização das diferenças por ação do capita- radicalmente separadas.
lismo na construção dos diferentes espaços e Depois, a ambigüidade que resulta de
paisagens diz que, com a empresa de porte buscar o espaço onde fica o sertão hoje talvez
industrial no campo, a telefonia e a eletricidade seja mais inerente à sua construção originária
rurais, os insumos básicos industriais, os meios do que à sua semantização: o primeiro discurso
de produção motorizados, ou seja, as apropria- elaborado sobre o sertão (como está na Carta
ções que o sertão faz das cidades, e que trans- de Pero Vaz) aconteceu a partir de um lugar
parecem em suas novas formas culturais que já definido, determinando um outro lugar distan-
se associam de fato à urbanidade, fica muito ciado do emissor. Dessa forma, as suas primeiras
mais difícil saber onde fica o sertão. O que coordenadas categoriais foram (e ainda são),
significa que ele vem perdendo cada vez mais portanto, deícticas,7 isto é, ligadas à situação do
espacialidade e materialidade concretas, que sua discurso e determinadas pelo espaço-tempo
cultura vai se constituindo cada vez mais no conjunto do emissor e receptor. Como categoria
âmbito daquilo que, antropologicamente, pode da dêixis, o sertão, realmente, não pode deter
ser chamado de arquétipo cultural, e que suas uma espacialidade única, porque depende, a
realizações concretas vão se tornando, também, cada vez, do lugar que ocupa o emissor do
a cada dia, mais tradição ou vitrine, ou patrimônio discurso ou o sujeito da enunciação. Mas o fato
cultural, que qualquer outra coisa. de ele deter uma espacialidade cambiante não
Daí a série de movimentos disparatados e significa dizer que não tenha uma identidade e
conservadores da recuperação dessa cultura, categorias definidoras, isto é, uma semântica.
como função compensatória que se instala nos
estudos e produções que falam disso, como uma 7. Cf. de novo Gilberto Mendonça Teles, quem primeiro
introduz essa idéia, no já citado artigo da nota 1 e também
maneira de tentar salvar alguma coisa que vai em um outro, apresentado ao Coloque International de
se perdendo no tempo e no espaço. Rennes, França, em 1990 (mimeo.).

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VICENTINI, ALBERTINA. Regionalismo literário e sentidos do sertão.

Assim, podemos perguntar: determinar o muito notadamente aí que ele aparece concreta
sertão hoje, no nível prático, corresponde a e culturalmente como diferentes sertões,
localizá-lo cada vez mais circunstancialmente? assinalando diferentes microrregiões dentro da
Sertão está onde estão atualizadas as identi- macro, particularizando e historicizando a
dades que o definem, isto é, onde estão atuali- totalidade. De um lado, portanto, há as categorias
zados os seus postulados culturais? Por mais que historicamente definem o que é o sertão,
que perca em espacialidade, o sertão não se indicam seus dados culturais principais desde
reduz mais a ela (embora ela se mantenha como sua remota aparição, generalizam-se como
categoria semântica acumulada historicamente) regionais de Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Nor-
e, se não existe o sertão total, existem, no entan- deste, Norte e, de outro, as atualizações de
to, os sertões circunstanciais, pequenos, rendi- múltiplos sertões, pequenos, rendilhados, recor-
lhados, no campo, na cidade interiorana, na tados, diferentes das totalidades, e que recriam
cidade grande, cruzados e delimitados pelas essas categorias acumulativa, dialética e
estradas de rodagem, pelos povoados, pelas diferencialmente a partir de seus dados culturais.
pequenas cidades cobertas de antenas. Ou, para Entre esse igual e diferente, e as preocu-
dizer como G. Rosa em Grande sertão: vere- pações com a materialidade espacial, o pensa-
das: “o sertão, ah, o sertão está em toda parte”; mento social brasileiro vem reiterando essas
“o sertão está dentro de nós”; “o sertão é o que dicotomias, com a sua especificidade e modifi-
não tem fim”; “ o sertão é o sertão”; “o sertão cações. Especificamente hoje, ela parece recor-
tem muitos nomes”. O sertão é o que atualiza tar a sua temática em formas como as que se
categorias de uma cultura historicamente dife- seguem.
renciada (e que se diferencia historicamente a Primeira, em uma tríade, em que um termo
cada dia) mediante estruturas sociopolíticas e se mantém subentendido e um outro aparece
econômicas. mais enfaticamente: sertão–cidade do inte-
Falar da perda do sertão dentro de um rior–capital (ou cidade grande), em que o
processo de homogeneização da cultura esta- sertão vira expressão cultural mais paradig-
belecida pelos ideários da produção do espaço mática que sintagmática e cede sua espacia-
capitalista finda, então, por “generalizar através lidade, paisagem, geografia, “causos”, aconte-
de regras comuns aquilo que não é uniformizável: cimentos, conflitos etc. ora para a cidade inte-
desenvolvimento desigual e articulado do próprio riorana, ora para a cidade grande, principalmente
capitalismo no interior da formação social”, como para a sua periferia. Na literatura regionalista,
assegura Paulo Henrique Martins (in Silva, já com Monteiro Lobato, em Oblivion, e Graci-
1990). A produção de um espaço apenas é possí- liano Ramos, em Angústia, isso vinha se desen-
vel de se realizar através de um duplo movimento: volvendo. Na atualidade, o romance Essa terra,
homogeneização e heterogeneização. “O capital de Antonio Torres, pode ser um grande exemplo
apenas pode uniformizar o espaço através de disso, conforme já assinalamos em outro artigo
novas segmentações que ele mesmo cria” (in nosso.9
Silva, 1990) – o que significa que a extinção de
uma forma é antes um contexto de transfor- riamente, no seu nome, aquilo que ela contraria na sua rea-
lização, isto é, cultura e estado burocrático.
mação e ou recriações de novas formas, que se
9. Cf. nosso artigo “O sertão e a literatura”, publicado na
transformam, mas não desaparecem necessa- Revista Ciências Sociais, UFG: v.1, n.1, jan./jun. 1998. Re-
riamente, até porque implicam uma cultura. sumimos: o romance conta a estória de Nelo, rapaz nascido
no campo, que deixa a cidadezinha interiorana para a qual
Nesses sentidos e nessas discussões, ade- tinha ido criança, Junco (BA), e vai para a cidade grande
mais, é que o sertão vai revendo o conceito de realizar sonhos. Fracassado, retorna a Junco, onde é recebi-
região, principalmente o elaborado pela perspec- do como vencedor, farsa que não consegue sustentar, ma-
tando-se no dia seguinte ao da sua chegada, para perplexida-
tiva administrativa do Estado brasileiro,8 e é de e frustração de todos, especialmente da mãe, que enlou-
quece, e de Totonhim, irmão mais novo, que seguirá a trilha
8. Muito embora a chamada literatura regionalista siga do irmão para São Paulo. O universo de Junco, não o da
adjetivando-se até mais burocraticamente ainda dentro des- cidade grande ou o do sertão, é o retratado: a mentalidade
sa perspectiva, como goiana, mineira, gaúcha, coincidindo dos habitantes, os tipos da cidade do interior, suas estórias,
com os estados-províncias, e fazendo coincidir, contradito- formados a partir da matriz da família sertaneja que sai do

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Na literatura goiana, o romance Nunila, de implantar em Goiás, por exemplo, projetos


Carmo Bernardes, assume essa temática. Esse econômicos, como os do Rio Formoso (governo
romance deve ser ligado a um anterior, Juruba- Ary Valadão). Fauna, flora e geoambiente
tuba, porque recorre ao mesmo personagen significam o cerrado. Hoje, parece ganhar o
principal. Ramiro (falso nome de Lino, que deixa elemento humano na expressão que já é usual
a fazenda Jurubatuba e segue para a cidade pela região central – “povos do cerrado”. Mas
interiorana de Descoberto, onde de fato se essa troca é absolutamente pragmática e signi-
passam os acontecimentos). fica, antes de tudo, a perda de história e de cultu-
Uma segunda forma é nova e tem suas ra. Sertão continha ambos; cerrado é produ-
raízes nas ciências biológicas e geográficas, mas tividade econômica e geografia, territorialidade
se desenvolveu principalmente no âmbito desprovida de imaginário, de literatura etc.
político-econômico e recobre muito do que é (foi) Terceira, a do confinamento da palavra
o sertão de Minas e Goiás. É o cerrado com sertão. Esses outros usos e nomenclaturas fize-
todas as suas implicações de espaço, fauna, flora ram com que a palavra sertão se aliasse muito
e, muito particularmente, produtividade econô- mais à seca nordestina que a qualquer outra
mica.10 região do país, implantando certo monopólio de
É claro que o cerrado traça limites, fron- sentido que, desde Euclides da Cunha, tentava
teiras regionalizadas: se sertão era um nome que, se firmar e que os meios de comunicação de
de uma maneira ou de outra, recobria as Re- massa acabaram por determinar. Hoje, sertão é
giões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, cerrado muito confinado ao Nordeste do país.
é um termo (e um conjunto de significados) que De qualquer maneira, parece que qualquer
se liga à região central (Goiás e Mato Grosso e investigação que se faça hoje sobre a literatura
uma parte de Minas e São Paulo) de forma mais regionalista e o sertão deve pretender responder
específica. pelo comportamento dessas temáticas, espe-
Aliás, foi à região central que, historica- cialmente dentro da relação interior–capital,
mente, o termo se vinculou, notadamente pela partindo da hipótese de que essa dicotomia
época da construção de Brasília, o que indicia a mantém, mesmo que oculto, conforme exposto,
sua aliança com a noção de fronteira. De fato, o tema do sertão como elemento-baliza, o que o
as suas primeiras recorrências de significação tema do cerrado ainda não deixa entrever.
aliavam-se à “descoberta” (e, portanto, inaugu-
ração) da sua possibilidade produtiva em termos
de agricultura, até então considerada meio que
Abstract: This essay studies the notion of “sertão” in
economicamente inviável em terras como as do the Brazilian literary regionalism. It establishes a general
cerrado. Tanto é que as primeiras observações view of how this notion configures different regionalisms
a esse respeito vieram das administrações e and how it seems to work thematically nowadays, in a
governos biônicos dos anos 60/70, que quiseram more and more fluid and circumstantialized way, always
in relation to its spatial and cultural meaning.

campo assolada pelo capitalismo da monocultura – o pai, as Key-words: Brazilian literature, regionalism, “sertão”.
filhas, o irmão –, mas que retém as coordenadas do sertão.
Dividido em quatro partes de títulos significativos: “Essa
terra me chama”; “Essa terra me enxota”; “Essa terra me
enlouquece”; “Essa terra me ama”, afinal, de qual terra se Referências
fala no texto, dado que o deíctico ‘essa’ não aponta um
lugar nem perto (para o que se usaria ‘esta’) nem longe BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação.
(para o que se usaria ‘aquela’)? A resposta pode ser de todas, Elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de
de cada uma delas, ou de nenhuma. Estilisticamente, o livro região. In: _____. O poder simbólico. Lisboa: Difel,
se fragmenta em muitas narrativas: narrador – autor de
1989.
terceira pessoa; a mãe; Nelo; Alcino, o louco da cidade, e
outros, mantendo estórias lacunares que fragmentam a nar- CONGRESSE INTERNATIONAL DE RENNES. Atas.
rativa em muitas vozes e episódios, desrespeitando, como é France, 1990. (Mimeografado).
da narrativa moderna, a cronologia, a linearidade.
10. Significativamente, uma das mais recentes publicações
MARQUES, Reinaldo et. al. (Org.). Limiares críticos.
regionais é O pequeno livro do cerrado, de Gil Perini. SP: Ensaios de literatura comparada. Belo Horizonte:
Editora Giordani, 1999. Autêntica, 1998.

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VICENTINI, ALBERTINA. Regionalismo literário e sentidos do sertão.

PERINI, Gil . O pequeno livro do cerrado. São Paulo: TELES, G. M.; DINIZ, J. C. (Orgs.). Diálogos ibero-
Editora Giordani, 1999. americanos. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2005.
SCHETTINO, M. Espaços do sertão. Brasília, 1995. VICENTINI, A. A narrativa de Hugo de Carvalho
Dissertação (Mestrado). Ramos. São Paulo: Perspectiva, 1986. (Col. Debates).
SILVA, N. (Org. ) A República em migalhas. Rio de _____. O regionalismo de Hugo de Carvalho
Janeiro: Marco Zero, 1990. Ramos. Goiânia: Cegraf/Editora da UFG, 1998.

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