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Paulo - Derrida e os ecos da Argélia - 29/6/1997 2/16/18, 5:49 PM

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São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997

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Derrida e os ecos da Argélia


MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Jacques Derrida descobriu a história. Todos conhecem a acusação que


desde o início da teoria desconstrutivista a perseguiu como um
estigma: o seu formalismo radical teria deixado a historicidade de
fora. Ou ainda: a crítica avassaladora à concepção tradicional de
fenômeno, ou seja, de uma presença originária, que para Derrida
estaria na origem da metafísica ocidental, teria servido para criar uma
filosofia (nietzscheanamente) relativista, para a qual ficção e realidade
não podem ser diferenciadas. Pois bem, Derrida, que nasceu em 1930
em El Biar, Argélia, tem tentado nos seus escritos dos últimos anos
revelar a dimensão histórica do seu pensamento.
Contra alguns intérpretes radicais da sua obra -como o
ultrapragmatista norte-americano Richard Rorty- Derrida quer
demonstrar que a filosofia é mais do que apenas "um estilo de
escritura". O seu recém-lançado livro "Le Monolinguisme de l'Autre"
(O Monolinguismo do Outro, Galilée, 140 francos, 137 páginas) trata
justamente da "crise histórica" que está na base da desconstrução e
ironiza alguns dos seus críticos.
A desconstrução seria filha da história, antes de tudo, porque ela é
uma expressão da própria biografia de Derrida e da sua "tripla
dissociação". Derrida, como "judeu-franco-magrebiano" (nessa
ordem), em vez de falar sobre a riqueza de uma "herança cultural"
múltipla, revela-nos a sua tripla alienação "originária": "Ser franco-
magrebiano, ser 'como eu', isso implica, antes de mais nada, um
distúrbio de identidade".
Ele mantinha distância da língua e cultura árabe ou bérbere
(magrebiana) que eram "proibidas" a alguém advindo da classe
média, sobretudo no meio judeu "assimilado" ao qual ele pertencia.
Por outro lado, essa "assimilação" sofrida pelos judeus algerianos
(que tinham recebido em 1870 a cidadania francesa) na primeira
metade deste século deve ser vista mais como uma aculturação via
"aburguesação". Na família de Derrida, "bar-mitzvá" era denominado
de "comunhão", e a circuncisão, de "batismo". Por último, a cultura
francesa, oficial, era vista por ele como vinda de uma metrópole
distante, além do mar, fantasmática. O francês, a língua na qual
Derrida sempre escreveu e na qual foi composta a cultura literária que
ele sempre amou, é sentida por ele como uma língua estrangeira. Aí
está, como ele afirma, a "origem dos meus sofrimentos". Esse triplo

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vácuo cultural é descrito como "a incultura radical da qual sem


dúvidas eu nunca sai" (Cf. a situação dos intelectuais das "ex-
colônias" de um modo geral...).
Mas Derrida -como um autêntico pai da desconstrução- não se
permite escrever uma autobiografia no sentido tradicional do termo
("sendo que não existe uma língua materna autorizada, em que língua
(devo eu) escrever as memórias?"). Para ele não apenas o
autobiográfico tem um valor histórico, como também -assim como já
para Friedrich Schlegel ou Goethe- o histórico é de modo imediato o
teórico. Ele procura fazer da sua exposição autobiográfica um
testemunho histórico: ou seja, ele quer demonstrar um fenômeno
universal. Ele faz da sua crise (termo que vem do grego "krisis",
ligada ao verbo "krinein": separação, divisão) o instrumento para a
crítica (também derivado de "krinein") e "destruição" da metafísica
ocidental. Ele revela que a "nostalgéria" que está na base da
desconstrução é, na verdade, apenas mais uma versão da nostalgia
que estrutura e permeia a linguagem como um todo.
Para Derrida, a sua posição permitiu que ele vislumbrasse de modo
mais claro o elemento artificial que se esconde por debaixo de termos,
vale dizer, de palavras que adquiriram na nossa cultura um valor de
natureza, tais como: verdade, alienação, apropriação, habitação,
ipseidade, lei, língua, nação, etc. Seguindo a sua crítica do
logocentrismo e falocentrismo ocidentais, ele põe em questão, agora
nessa obra, o conceito de língua materna. "Não existe habitat possível
sem a diferença do exílio e da nostalgia". Nesse sentido, ele critica o
apego como que "sacralizante" (heideggeriano) de Hannah Arendt ao
alemão, que ela teria cultivado e tratado como uma língua materna,
originária.
Para o nosso autor não há uma língua pura, antes apenas uma
pluralidade de traduções. Nunca podemos habitar uma língua; daí a
sua afirmação aporética (e a desconstrução sempre é aporética, para-
doxal): "Falamos apenas uma língua. Nunca falamos apenas numa
língua". Já no seu "Mémoires pour Paul de Man" ele definira a
desconstrução de modo lacônico com a frase: "Mais de uma língua"
("plus d'une langue").
A seguinte máxima de Wilhelm von Humboldt também vale para a
desconstrução: "A língua não é uma obra (Ergon), mas sim ação
(Energeia)". Cada ato de fala constitui uma monolíngua, uma
monolíngua potente que, ciumenta, quer conquistar as demais
(mono)línguas para si. Mas a língua só existe no embate com o outro.
O colonialismo é, portanto, um dado estrutural da linguagem.
(Derrida insiste que desse modo ele não quer relativizar a história: as
guerras e conflitos coloniais permanecem um drama histórico. Ele
quer apenas revelar o elemento exemplar do colonialismo assim como
criticar todo nacionalismo cego). Também nesse sentido Derrida traz
à tona a camada político-histórica do seu pensamento: a relativização
da noção de língua(-materna) e de nação(-metrópole) abre caminho
para uma revisão da historiografia e da linguística. Como diferenciar,
por exemplo, uma língua de um dialeto?

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