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A ANTROPOFAGIA DE OSWALD

O riso e a blague, tão característicos de sua personalidade e de sua obra ficcional, são os vetores
importantíssimos sem os quais não se pode entender o Manifesto. Nesse caminho, a antropofagia é
entendida como procedimento cultural viável que implica no ato conscientizador da brasilidade.
Nesta manifestação ritualístico-cultural interessante corroboram o riso e a ironia mordaz como
instrumentos do ato canibalístico de devoração do estrangeiro.
O ato canibalístico oswaldiano está em sintonia e semelhança com aquele praticado pelos primeiros
índios encontrados pelas expedições ultramarinas portuguesas, espanholas, francesas e holandesas, as
quais pretendiam "colonizar" e catequizar as novas terras americanas. Estes índios, na grande maioria
caetés, tupinambás e tupiniquins, devoravam as presas humanas, na crença de que assim incorporariam os
atributos positivos das vítimas sacrificiais e, conseqüentemente, excretariam o que não teria serventia ou
valor.
Eis a relação intrínseca entre a antropofagia oswaldiana que se inspira na antropofagia indígena.
Para estes últimos, tratava-se do ato de degustação propriamente dito que implicava, naturalmente,
na desconstrução daquele corpo imolado. Para Oswald, o riso, a crítica, o sarcasmo e a
mordacidade operariam da mesma forma, isto é, desconstruindo todo um corpo (que também
admite o plural) socialmente imposto e que não respondia às necessidades mais essenciais da nação.
Partindo de uma paródia sobre a dúvida e a angústia hamletianas, Oswald tensiona dialeticamente a ser
brasileiro: tupy or not tupy. A noção do trágico shakespeariano cede lugar à ironia e ao humor, já que
tudo é passível de se tornar risível, vale dizer, comível. Ou seja, a alegria é a prova dos nove. A escolha
pelo tupy em detrimento do not tupy norteia a proposta oswaldiana. Esse é o objetivo essencial da sua
antropofagia: a busca de uma brasilidade que possa dar conta de nossa multiplicidade identitária.
Portanto, seu texto se propõe como caminho possível a que se vá ao encontro do "ser brasileiro" e
neste sentido revela as incoerências e absurdos que nos fundaram.
Por outro lado, sabedores de que a hibridez nos amalgamou nisto que somos, a antropofagia
também é proposta no sentido de aniquilar o complexo binário de exclusão que sempre nos serviu
de base para o pensamento crítico, principalmente principalmente a partir do Romantismo. Por
exemplo, em Iracema, de José de Alencar, a índia que dá
nome à obra precisa morrer para que o elemento colonizador, forte, masculino e europeu supere as
vicissitudes encontradas no Novo Mundo. O filho de Iracema e Martim, o português desbravador a quem
ela se liga por força de um amor desmesurado, é sintomaticamente chamado de Moacir, literalmente filho
do sofrimento.
Este sujeito híbrido traz em si as marcas já resolvidas deste conflito de civilizações: ele é criado pelo
pai, já que a mãe morre, e na Europa, portanto culturalmente um branco ocidental. Neste caso, a
oposição de mundos se resolve pelo aniquilamento do outro. Vence o mais forte, vale dizer, o
europeu. Este exemplo é econômica e cifradamente citado por Oswald nas referências que faz à
Alencar, à Iracema, ao genro de D. Antônio de Mariz, este último personagem importante de uma outra
obra alencariana, O guarani, cujo processo conflitivo de civilizações diferentes é resolvido da mesma
forma.
Em outras palavras, o que o texto de Oswald de Andrade permite que se leia é justamente o ato
antropófago como instrumento desencadeador da consciência do diferente. A sua "metáfora-
chave", que aponta para uma alegoria, é a devoração antropofágica que pressupõe, através de uma
outra lógica, a incorporação dos atributos positivos do outro e não mais a submissão de um pelo
outro como foi no Romantismo. Como uma amálgama que se forma a partir de elementos diversos, a
antropofagia conduz a uma espécie de composição, cuja essência é, paradoxalmente, a exteriorização da
diferença que a forma: A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura-ilustrada pela contradição
permanente do homem e o seu Tabu, ou ainda: Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para
transformá-lo em totem.
Este é o procedimento desejado; mais que isso: é a exortação do Manifesto antropófago. A literatura,
como manifestação cultural de um povo, deve realizar-se através desta conscientização. A América
Latina, em especial, tem sua formação marcada pela tensão quase nunca pacífica entre duas civilizações
diferentes. A tematização deste assunto pela Literatura tem sido freqüente não apenas como produto da
contemporaneidade. Obras como O Uraguay, de José Basílio da Gama, de 1769, tratam desta relação
binária de exclusão em que um se submete ao outro. O mesmo pode ser creditado ao texto capital de
Euclides da Cunha, Os sertões, de 1902, sem apontar, naturalmente, os romances histórico-indianistas do
romantismo.
Ocorre que o Modernismo Brasileiro, através deste, que é um de seus textos capitais, proclama um
novo entendimento para estas relações binariamente tensionadas. Apesar de todo aparato agressivo
aparente no Manifesto, Oswald de Andrade aponta outro caminho mais pertinente e mais salutar. A
novidade e o inusitado de suas posições causaram profunda estranheza na época e ainda hoje
provocam dissonâncias.
Assumir a heterogeneidade, ou seja, uma cultura híbrida, e dela orgulhar-se, nos idos da década de
20, é, sem dúvida, tomar uma postura crítica frente todo um panorama cultural proveniente da
Europa, que era o centro de irradiação da "cultura civilizada". Esta postura significava um
enfrentamento irremediável de um corpo social que precisava (isto Oswald viu bem) se tornar
vítima sacrificial, para ser devida e antropofagicamente devorada.
Por fim, gostaríamos de salientar que o Manifesto antropófago propõe e realiza, na medida em que
sua escrita é, ela mesma, resultado desta postura antropofágica.
BIBLIOGRAFIA
1 - ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago. In.: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-
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4 - CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In.:
Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
5 - CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
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