Você está na página 1de 3

A Voz da Carniça: Raça e Luta de classes em Augusto dos Anjos.

Allison Duarte Barbosa.

Problemática:

O título dessa minha fala brinca com a ambiguidade da palavra “carniça”, que no linguajar cearense
significa “pessoa pouco confiável”, segundo o dicionário cearense organizado por P. L. Andrade 1.
Mesmo que dos Anjos, embora fosse paraibano, desconhecesse esse significado cearense, é possível
dizer que sua poesia é a voz da carniça nos dois sentidos. É comum a leitura da poesia de dos Anjos
como uma poesia da morte, da angústia, no niilismo, do pessimismo. Ao propor uma leitura da
poesia como voz da carniça, encontrando nela um protesto contra o racismo científico da época, e
por consequência expressão dos esmagados pela luta de classes no Brasil da República velha, me
contraponho a essa leitura, pelo que ela tem de abstrato, de idealismo. Ao se falar de uma poesia da
morte, da angustia, do niilismo, do pessimismo, torna-se esses elementos “no geral”, separando dos
processos histórico-políticos que produzem tal morte, tal angústia, tal pessimismo. E ainda, mais,
morte, angustia, e pessimismo de quem? Quem são os assaltados pela morte, pela angústia e pelo
pessimismo?

Metodologia.

Essa minha leitura é guiada pelo materialismo histórico-dialético, que considera a cultura, o plano
das ideias, como expressões das condições materiais, e da configuração histórica da luta de classes.
No caso do Brasil, um país com histórico colonial, as elites reproduzem à sua maneira as ideologias
das classes dominantes europeias. Todavia, o modo como essas ideologias funcionam no país
colonial e subdesenvolvido, fatalmente adquire outros sentidos, outros funcionamentos. São esses
funcionamentos singulares que convém determinar. Nesta leitura que faço, a explicação para a
aberração que é a poesia de dos Anjos, o modo como ele destoa do parnasianismo, caracterizado
pelo formalismo, o cientificismo, a apresso por imagens belas e a impessoalidade, é que dos Anjos
toma o partido dos “condenados da Terra”, e distorce esteticamente o ideário da classe dominante, o
cientificismo reinante, a fim de exprimir a dor das chamadas raças degeneradas, inferiores.

Façamos um rápido passeio histórico.

Como sabemos, no final do século XIX e início do século XX, no Brasil inicia o processo de
abolição da escravatura e a proclamação da Primeira República. Dá-se uma incipiente
industrialização combinada à urbanização, emergindo uma classe mais urbanizada e consumidora
de importações, incluindo a cultura. Desde os anos 70, as novas teorias científicas importadas da
Europa faziam a cabeça da intelectualidade brasileira. O positivismo, o darwinismo social, as
teorias raciais, tornam-se centrais nos Museus Etnográficos e nas Faculdades de Direito e de
Medicina.

Augusto dos Anjos nasce em 1884, no Engenho de Pau d’arco, interior da Paraíba. Filho de um
médico, cuja biblioteca certamente foi devorada por dos Anjos. É significativo que em 1903, dos

1 http://www.dxbrasil.net/pt7aa/Livros/O_Idioma_do_Ceara_-_4a_ed_-_07-11-2012.pdf
Anjos ingressa na Faculdade de Direito do Recife, e recebe uma formação que se tornará
constitutiva de sua obra. A Faculdade de Direito de Recife, como Lilia Shwarcz analisa em seu livro
O Espetáculo das Raças, tornou-se um centro irradiador do cientificismo positivismo, e do
darwinismo social europeu. O esforço de intelectuais como Silvio Romero e Tobias Barreto, era de
dar ao estudos do Direito um estatuto científico derivado dessas teorias nas quais a noção de raça
era central.

“Sem entrar nos meandros da teoria de Romero, mais importa entendê-lo enquanto uma grande
influência, uma espécie de “pai fundador”. É na predileção do tema da mestiçagem; na fala radical e
cientificista, que vemos a força desse mestre que elabora a teoria e cria um grupo. A partir de
Romero, o direito ganha um estatuto diferente no Brasil. Passa a combinar com antropologia, se
elege como ‘sciencia’ nos moldes deterministas da época e se dá o direito de falar e determinar os
destinos e problemas da nação” (Shwarzc, p. 203).

Quando se fala dessa fundamentação do direito no naturalismo, se quer dizer encontrar as causas na
herança racial da conduta em relação à conduta perante as leis. A antropologia traçava classificações
raciais e dela se extraía uma psicologia que definia os traços herdados da raça. Logo, os indivíduos
tinham sua conduta perante a lei determinada pelos traços herdados da raça. Negros e índios, sendo
raças compreendidas como vestígios de povos primitivos, eram compreendidos como incapazes de
desenvolver um comportamento superior. Eles eram marcados pela “degeneração” biológica. Sendo
o Brasil constituído em grande parte por negros e índios, a preocupação com a identidade nacional,
que circundava a recente República, tinha nessa grande quantidade de povos ditos primitivos, e nos
mestiços como um atraso, como um bloqueio a formação da nação. Silvio Romero foi o grande
expoente da mestiçagem como um meio de embranquecer o brasileiro, a fim de criar uma só raça, e
só então se poderia constituir uma nação autêntica.

Veremos que essa questão perpassa a poesia de Augusto dos Anjos, só que de maneira torta,
transfigurada, aberrante. É como se Augusto dos Anjos quisesse fazer de seu “Eu”, o título de seu
único livro de poesia, a voz desses condenados, essa mescla racial da qual falava Silvio Romero. Só
que no lugar de fazer dessa mescla um elo na cadeira do progresso, até o embranquecimento
nacional, o Eu de Augusto dos Anjos exprime o grito, a tragédia, o ganido de uma população
condenada, inumanizada, massacrada.

Ora, considerando que essa população negra, indígena, mestiça, colocadas cientificamente num
estatuto inferior de humanidade, tanto biologicamente quanto juridicamente, é a mão de obra
escrava, os braços que sustentaram a economia agrícola brasileira, pode ser falar que a questão
racial se identifica com a questão da luta de classes. O estudante de Direito que era filho de médico,
parece ter feito de sua obra um programa de abrigar si a morte, a condenação, a ferida, dessa
população condenada, considerada patológica, degenerada. Posso tomar aqui as palavras de Maria
Olívia, cuja tese de doutorado, busca depurar a obra do poeta dos títulos reducionistas e resgatar seu
sentido.

“O trágico presente nos poemas de Augusto era uma tentativa de revelar, ainda que nas entrelinhas,
a repressão pela qual passou o povo brasileiro durante os processos de colonização e,
posteriormente, de instauração da República, com o conceito de progresso que o país adotou. É
possível encontrar, no contexto da sua obra, alusão ao massacre de índios e à tortura praticada
contra escravos negros no Norte e na Paraíba, mas também denúncias acerca das torturas infligidas
aos marujos que encabeçaram a Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro. Por conta dessas posições, o
poeta sofreu inúmeras pressões, que acabaram por ocultar a sua real importância para a literatura
brasileira” 2.

Tendo isso em vista, passemos a uma breve análise de apenas três poemas que dão substância a
essas afirmações

Lázaro da Pátria, o quinto poema de Eu. Lázaro, um personagem de uma parábola do Evangelho, é
colocado aqui como uma expressão das etnias condenadas, os mestiços do Brasil.
Filho podre de antigos Goitacases, em qualquer parte donde a cabeça ponha.

Idealização da Humanidade Futura.

Versos a um cão.

2 https://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/outubro2009/ju444pdf/Pag12.pdf

Você também pode gostar