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suleando conceitos e linguagens: decolonialidades e epistemologias outras

PILHAGEM EPISTÊMICA

Henrique Freitas
Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Old pirates, yes, they rob I


Sold I to the merchant ships
Minutes after they took I
From the bottomless pit
....................................
Won’t you help to sing
These songs of freedom?
‘Cause all I ever have
Redemption songs
Redemption songs
Emancipate yourselves from mental slavery
None but ourselves can free our minds
Have no fear for atomic energy
‘Cause none of them can stop the time
....................................
BOB Marley, Redemption song
REGURGITAÇÕES INICIAIS

“Só me interessa o que não é meu. Lei do Homem. Lei


do Antropófago”.
Oswald de Andrade. Manifesto Antropófago, 1928.

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O fragmento do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade é


trazido aqui na cena de abertura desse breve texto ao revés de sua leitura
e significados convencionais consolidados no cânone do Modernismo no
Brasil. Em vez de novamente afirmar o gesto vanguardista que se abre para
um processo de reversão da dependência cultural da “nação tupiniquim” em
relação à Europa, através da devoração metafórica da cultura e dos saberes do
Outro nas letras brasileiras, por meio do conceito de antropofagia, queremos
demarcar exatamente o outro lado dessa operação: como o saque de ideias
feito a grupos marginalizados dentro do território nacional, a expropriação
dos corpos autorais periféricos dos saberes que esses coletivos outsiders
mesmos gestam, culminando na pilhagem desse conhecimento, é um sintoma
da colonialidade do poder-saber que atravessa a forma como diversas áreas
se estruturaram e permanecem ainda hoje, inclusive os estudos literários.
Mas, o que seria essa pilhagem epistêmica? Que exemplos ainda
mais evidentes podemos trazer para deixar nítido sobre o que estamos
falando? Com que forças a pilhagem epistêmica conecta-se? Quais as
linhas de fuga para seus efeitos?

PILHAGEM EPISTÊMICA: (IN)DEFINIÇÕES

A pilhagem epistêmica constitui-se no Brasil, desde o período co-


lonial, como um dos principais vetores de “produção oficial do conheci-
mento” beneficiando sempre os projetos e grupos econômicos, artísticos,
raciais socialmente privilegiados, calcado na apropriação indevida de
saberes indígenas, africanos e negro-brasileiros para o desenvolvimento
de diversos campos, ao mesmo tempo em que há o apagamento do pro-
tagonismo dessas minorias, a ausência de qualquer retorno em benefício
para suas fontes, bem como o extermínio simbólico e literal desses corpos
colocados à margem da sociedade brasileira.
A pilhagem epistêmica opera primeiro reduzindo todo o saber dos
grupos subalternizados em foco por meio de um sistema gnosiológico já
previamente conhecido que o rebaixa ante o modelo civilizacional grafo-
cêntrico, logocêntrico, eurocêntrico, etnocêntrico, falocêntrico, para depois,
extraindo desse conhecimento qualquer coisa que fulgure aos olhos exóticos

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como novidade, tomá-la para si e apresentá-la como produção individual


ou de um grupo completamente distinto do de sua gênese, sem, geralmente,
sequer mencionar as fontes de referência. Por isso mesmo, ela é também
uma das faces do racismo epistêmico e do epistemicídio fundada na per-
versão necropolítica do apagamento da diferença como corpo e como ideia.
Ao traçar uma rápida genealogia, constata-se que os indígenas que
aqui viviam desde antes da invasão europeia em 1500, bem como os
africanos que para o Brasil foram trazidos à força desde o séc. XVI deti-
nham saberes sofisticados ligados aos mais diversos setores que, quando
identificados pelo colonizador, foram também usurpados. Os viajantes e
cronistas europeus do séc. XVI narraram quase que em uníssono como
tirar sempre o melhor proveito das frutas, da terra, das gentes, dos conhe-
cimentos que os nativos brasileiros tinham das folhas. A escravização e a
colonização sequestraram, assim, não somente as forças laborais e os bens
materiais considerados valiosos de africanos e indígenas, mas, sobretudo,
seus respectivos saberes vinculados à plantação, ao consumo e fabricação
adequados de alimentos, à manipulação de ervas, à extração mineral, aos
usos medicinais, à produção literária, etc. Nas palavras de JAMES (2009),
os povos africanos tiveram seu legado usurpado pelos europeus.
Essa pilhagem tem crescido de forma tão exponencial que a biopirataria
na Amazônia, a extração indevida de recursos naturais e minerais por parte de
grileiros e de grandes empresas, da mineração desregrada e do agronegócio
predatório em diversas regiões do país, tendo como efeito colateral a poluição
de ecossistemas fundamentais à subsistência de comunidades tradicionais,
têm gerado sérios conflitos com as populações indígenas e quilombolas que
habitam e tentam preservar muitos desses territórios no Brasil.

O NAVIO PIRATA DAS LETRAS COMO MODOS DE SABER E FAZER


MORRER NA LITERATURA BRASILEIRA

O campo hegemônico da literatura brasileira estrutura-se também em


torno da pilhagem epistêmica, seja através de movimentos considerados
determinantes no processo de constituição de uma literatura nacional como
o Romantismo no séc. XIX e o Modernismo no séc. XX, seja através

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da relação epistemicida estabelecida com autorxs e obras indígenas ou


negrxs, como veremos a seguir.
O Romantismo, em especial o indianista, de José de Alencar, de
Gonçalves Dias e de Gonçalves de Magalhães celebrou o indígena como
totem discursivo nacional, tentando plasmar suas línguas e temas, reco-
nhecendo nele uma “potência nativista” que apontaria o caminho para
uma suposta brasilidade. Daí advém o exercício mímico desses autores
de uma dada dicção e do uso de um léxico indígenas na escrita literária,
no entanto não há integração mínima dos sujeitos desses saberes a esse
movimento artístico que não reconhece de fato a produção literária oral dos
indígenas, nem os integra ao espaço letrado do Romantismo. Reforçam,
assim, a ideia de que o “índio” é um ser sem cultura que precisa aderir
de forma acrítica integralmente ao modelo de servilidade civilizacional
e religioso voluntários outorgados a ele e encarnado pelo personagem
Peri, de O guarani, de José de Alencar, mas também em outros textos.
O mais grave é que nesse referido momento histórico havia, no discurso
(literário) nacional, uma omissão total do negro que continuaria sendo
escravizado até 1888 sob a bandeira de um Brasil independente desde
1822, organizado em torno de um cruel capitalismo racial que persistiu
mesmo após a abolição da escravatura. Os genocídios negro e indígena,
dessa forma, mesmo com a retórica desse primeiro momento romântico e
de um discurso abolicionista, a posteriori, continuarão por todo o século
XIX, atravessando o século XX e chegando aos dias atuais.
A nomeação de Castro Alves como “poeta dos escravos” na ordem
do discurso da literatura canônica por falar sobre a escravidão, mesmo
que de forma distanciada, emulando o condor que olha de cima a massa
cativa e não os sujeitos, seguindo os rígidos ritos românticos europeus de
produção estética como em O Navio Negreiro (ainda que este poema seja
uma expressão literária bela e poderosa, não podemos ignorar que segue
a lógica mímica do famoso texto lírico O Negreiro de Heinrich Heine),
ao mesmo tempo em que ocorre o apagamento de Luiz Gama, poeta
ex-escravizado, que tem uma literatura preocupada com a subjetividade
do negro africano e negro-brasileiro (como ocorre em seu poema mais
famoso Quem sou eu?, conhecido como Bodorrada), demonstra como

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opera a pilhagem epistêmica de que estamos tratando aqui, mesmo quando


o tema é o próprio negro e ele aparece como autor.
Ainda no Romantismo, o apagamento de Maria Firmina dos Reis é
evidência não só do racismo, mas também do machismo epistêmicos que
silenciaram durante muito tempo uma das romancistas mais importantes
do século XIX, porque forja uma narradora crivada interseccionalmente
pelos vetores de raça e gênero nos modos de dizer em sua obra, voltando-
se também a aspectos emocionais e psicológicos através de sua persona-
gem central em Úrsula, experiência literária que não tem paralelo até o
momento em que a obra foi publicada em 1859.
Os casos do embranquecimento de Cruz e Souza, mas, em especial,
de Machado de Assis, contestados em obras importantes como o livro
A consciência do impacto nas obras de Cruz e Souza e de Lima Barreto
(CUTI, 2009) de autoria de Cuti e Machado de Assis afrodescenden-
te (DUARTE, 2012) de Eduardo Assis Duarte são relevantes, pois
contrapõem-se ao apagamento estético e político da negritude de dois
autores expoentes do cânone literário que talvez exatamente por isso,
foram fortemente pilhados: no caso de Cruz e Souza, no Simbolismo, e
de Machado de Assis, como fundador da Academia Brasileira de Letras
e considerado talvez o escritor mais importante da literatura brasileira
de todos os tempos, de acordo com as análises também canônicas de sua
produção artística, portanto o desenegrecimento discursivo e apagamento
das questões raciais em ambos autores é gravíssimo. Carolina de Jesus,
Lima Barreto e Beatriz Nascimento, dentre muitos outrxs, são casos
emblemáticos desse tipo de pilhagem epistêmica.
Carolina de Jesus, a despeito de todo o sucesso que fez em sua época,
tornando-se best-seller e sustentando a publicação de outrxs autorxs da
editora a que pertencia e não vendiam tanto quanto ela, de acordo com
o biógrafo Tom Farias, teve sua obra durante muito tempo reduzida ao
sociologismo estereotípico que teima em reduzir a produção literária da
autora a um realismo clichê que lê diretamente a vida na favela da autora
pela obra, ignorando por completo o labor estético que, dentre outros re-
cursos, utiliza como o famoso fluxo de consciência que aparecerá como
um dos traços distintivos que destacará a escritora Clarice Lispector, sua

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