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Porque vomitei o Mario de Andrade.

Candé Costa

Revista Desvio, 26 de junho de 2018.

Antropofagia… Macunaíma… Peri (!!!). Monteiro Lobato? Todos sabem dos traumas que Monteiro
Lobato teria causado em Anita Malfatti. Fofoca da História da Arte bem das antigas. Ele é
considerado por alguns o “do contra“, o cara que teve a coragem de criticar o Modernismo Paulista
chamando todos de loucos. Sim, loucos. Pra ele, Anita, Mario, Oswald, todo mundo – malucos.
“Paranoia ou Mistificação?” é um texto devorado pela História da Arte. Uma grande referência do
auê na Arte Brasileira do início do século passado.

Falsa polêmica, daquelas que persistem até os dias de hoje sem grandes alterações. Historiadores
defendem um tom menos devastador à crítica de Lobato dizendo que estava ligada ao
estrangeirismo intelectual contido no trabalho de Malfatti. Já ela, nunca mais foi a mesma. Seu
trabalho explodiu noutras direções. Oswald de Andrade falou no “Manifesto Antropofágico” o
objetivo de “deglutir” conceitos estrangeiros à brasileira. Uma resposta crítica às acusações de
estrangeirismo intelectual.

Mas espera um pouco que tem mais. Lobato, os parentes Andrade, a Anitta… sim, eles neste
período tiveram o poder de construir uma Identidade Nacional. Lobato era um que se via nesta
missão de reformar o imaginário do país. Se a ênfase formal atingia os artistas envolvidos na
Semana de Arte Moderna de 1922, Lobato também era um ativista político, um nacionalista. Apesar
das diferenças, manteve diálogo depois de “Paranoia ou Mistificação?” com os Andrade, elogiando
Oswald em “Nosso Dualismo” (em 1926) por sua genialidade. Oswald também rasgou seda pra
Lobato… Compadres.

O Modernismo Periférico Brasileiro foi uma construção dos engajados da elite numa reformulação
de identidade relacionada com a formulação dos Estados Republicanos. Um processo nos moldes de
outras nações europeias no decorrer do Século XIX. A busca era por elementos culturais próprios
aos países: comidas, perfis sociais, crenças, história. A construção deste nosso imaginário teve
fundamentos nas interpretações sobre nação, sobre povo, construído pela elite brasileira do início do
século passado.

O Brasil sempre teve suas práticas cotidianas à revelia de suas representações. Uma manifestação
da nítida distância social brasileira onde as interpretações apresentam apenas o pensamento desta
mesma elite, nada a ver com o povo brasileiro. O dia a dia fundamenta a analogia de como as
representações de nossa cultura foram interpretadas e apropriadas pela elite de 22. Uma formulação
de imaginário que vai desde José de Alencar com “O Guarani” (1857) – onde Peri é o herói
apolíneo-indígena. Ser de Virtude, guiado por valores nacionalistas, que salva a frágil donzela
branca (que não o ama), emulando um dos mitos indígenas brasileiros da origem da humanidade.
Assim, sua prole mestiça de hibridismos materiais e imateriais, formaria nosso país – a
romantização de uma miscigenação baseada em estupros processuais de mulheres negras e
indígenas são equalizados numa falsa simetria silenciadora. O bloqueio criado por uma História
referenciada numa ode à Grécia Antiga ainda entendida como O BERÇO da Civilização. A
Civilização? As Civilizações. Os indígenas brasileiros já viviam em sociedades com milhões de
habitandes em sistemas sociais complexos milênios antes da invasão europeia nas posteriormente
nomeadas Américas.

“Macunaíma” (1928) de Mario de Andrade é ainda mais violento. O protagonista, um negro que se
torna branco após se lavar – isso mesmo, após se lavar -, é uma colagem literária dos mitos
brasileiros interpretados por Mário. Macunaíma é descrito como lascivo, preguiçoso, desonesto
apesar de sua inocência latente, oportunista. Uma descrição estupidificadora de toda uma nação.
Negros e negras preguiçosos no Brasil? O país da origem escravista onde negros e indígenas
trabalhavam forçados por mais de 12 horas por dia? A lógica do absurdo vai além em sua narrativa
reforçando mais ainda sua representação estigmatizante. Macunaíma trai seus irmãos, ignora
conselhos, é um “anti herói” não por traduzir verdade de um sujeito protagonista, mas por transmitir
os limites cognitivos de Andrade sobre o próprio povo. Uma imagem nítida e ofensiva do outro.

Monteiro Lobato leva estas dimensões ao extremo. Eugenista declarado, apoiava os ideais de
higienismo racial que são parte das Políticas do Estado Brasileiro até hoje. No “Sítio do Pica Pau
Amarelo” vemos sua cartilha da doutrina eugenista ser massificada em forma de livro para crianças
– método similar aos das Revoluções Culturais Chinesas, Nazi-fascismo Europeu ou as políticas
contemporâneas de Doutrinação Capitalista. Educa-se uma nova geração com os elementos
fundamentais que se deseja mudar. Voilà, em poucos anos Culturas inteiras são profundamente
afetadas ou destruídas. E à época a “mudança” desejava um Brasil rural para um outro
“desenvolvido” como nas metrópoles europeias – ou seja, branca. Eugenia baseia-se nas teorias
raciais do século XIX e sua argumentação que a raça branca seria o ápice presente do
desenvolvimento da espécie humana. Lobato inicia seu percurso de doutrinação infantil com
sutileza, produzindo empatia e identificação por personagens brancos enquanto destrói os negros.
Digno de Goebbels. No Sítio do Lobato, ícones da Cultura Negra Nacional são desconstruídos.
Toda lucidez está presente apenas nas falas das personagens brancas razoáveis. Tia Anastácia e Tio
Barnabé são as imagens das Pretas Velhas e Pretos Velhos. Em sociedades africanas que trouxeram
sua cultura para o país a geracionalidade é fundamental. Os mais velhos são as figuras respeitáveis,
guias coletivos, figuras de sabedoria. Lobato os representa como analfabetos ignorantes e inocentes,
alcoólatras que balbuciam psicoses. A imagem do bom selvagem, baseada nas aspirações sobre a
natureza humana de Rousseau, permeada de etnocentrismo racista. Sua mensagem é clara: negros
não sabem o que fazem, não são capazes de guiar uma comunidade, seus ícones são pacatos e
dóceis… como animais domésticos. Pacatos e dóceis… Luiza Mahín, Zumbi, Cruz e Souza, Luiz
Gama, Dragão do Mar, André Rebouças, Aqualtune, Tereza de Benguela. Se não conhece quem
são, dá uma olhada e veja a genialidade destas pessoas negras. Depois me diz o quanto foram
dóceis.

A identidade brasileira é um padrão desenvolvido pelas representações identitárias interpretadas


pela elite nacional e apenas ela. Não é produto do diálogo nacional sobre nós mesmos. É a relação
propositiva de uma elite sobre o ideário nacional. Impressiona ver como um grupo tão restrito foi
capaz de produzir tamanhas barreiras para uma identidade brasileira baseada noutros elementos
além das narrativas dos homens brancos ricos no século XX. Até hoje nas escolas é vendida a
genialidade dos modernistas brasileiros sem ao menos uma mínima crítica. A cartilha de Lobato é
seguida à risca. São como ícones para os letrados, um exemplo de intelectualidade nacionalmente
comprometida. Mas é apenas o delírio dos poderosos. Uma tentativa de se aproximar da dignidade
nacionalista dos brancos europeus da época. Sem o menor filtro, podiam tudo, ninguém os
criticava… a não ser Lobato, que não conta… Compadres.

Cem anos depois e a academia brasileira ainda funciona em seus moldes de narrativas das elites
(Vamos ver a abordagem dada a estes livros nos cursos de Arte?). Porém, com a orientação das
Pretas Velhas, hoje a Arte Brasileira vive sua mais profunda crise narrativa. Quando a elite perde
seu totalitarismo Histórico e novos corpos assumem a experiência de produção de Arte em
narrativas e conhecimento científico. O fortalecimento e resistência das culturas estigmatizadas
pelos Modernistas mostra hoje seu fracasso histórico. Os fundamentos sociais dos povos não
brancos no Brasil persistem e educam novos seres cada dia – agora, talvez, com mais abrangência.
Ao ponto de poder afirmar que hoje não precisamos mais das narrativas Modernas. Não precisamos
mais devorar Lobato, carne imprópria.
Os Tupinambás, que nos ensinaram a roubar o poder de nossos inimigos, devoraram o Bispo
Sardinha. Oswald de Andrade devorou os intelectuais europeus. Nós devoramos Oswald, Mário e
Monteiro. Fomos criados com estas referências postas goela abaixo pelo sistema educacional
brasileiro. Os ensinamentos sobre um Brasil de imaginário branco, que ataca nossa diversidade
identitária, nossas culturas do território nacional. Quando a obra é ruim, cabe a nós regurgitá-la.
Retirar de nós o pensamento estigmatizante de um povo diverso e cheio de referências. Um
caminho possível para uma profunda análise de quem realmente somos.

Sim. Eu vomitei Oswald de Andrade.

Candé Costa é estudante de História da Arte e carioca da Zona Norte da cidade. Filho da Babilônia,
transita por vários movimentos urbanos contemporâneos. Artista visual, curador da @Africanizze,
coordenador do afoxé 2.0 da UFRJ.
Costa http://www.cargocollective.com/candecosta

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