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08/02/2021 Folha de S.

Paulo - Uma genealogia das imagens do racismo - 19/3/1995

São Paulo, domingo, 19 de março de 1995

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Uma genealogia das imagens do racismo


MUNIZ SODRÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Drácula, bem o sabem os aficionados, não se reflete no espelho —


logo, é sem imagem. O mito do vampiro tem sido persistente no
imaginário contemporâneo, talvez porque indique, com alguma
magia, a armação da cultura em construção de uma identidade. O
conde Drácula é o inverso da identidade normalizada pela cultura
pequeno-burguesa. E, para coroar todas as suas inversões
antropológicas, não aparece no espelho.
Mais uma razão, assim, para a atualidade desse mito. Na sociedade da
imagem (anagrama de magia) ou dos dispositivos de visão, o sujeito
só existe se aparece no "espelho", isto é, se tem condições
socioculturais de ter imagem publicamente reconhecível.
Passados 300 anos de Zumbi dos Palmares, os ecos brasileiros dessas
discussões primeiro-mundistas em torno de quociente de inteligência,
superioridade ou inferioridade de raças parecem-me abrigar, na
verdade, uma outra questão, que pode ser anunciada da seguinte
maneira: Qual o quociente de "aceitabilidade" da imagem do homem
de pele escura numa ordem social que ilumina suas pretensões
planetaristas e hiper-racionalistas com tonalidades branco-européias?
Para responder a essa questão, é preciso remontar historicamente a
"fontes" de imagens coletivas do homem negro no Brasil. Não
qualquer fonte, certamente, mas aquelas bem acolhidas pelas elites e
pelos aparatos de reprodução das idéias (escolas, manuais escolares,
academias, obras literárias etc) postos sob a égide do Estado nacional.
Sabe-se que todo Estado nacional procura instituir uma "comunidade
nacional" na base de uma etnicidade fictícia —e se entende o
"fictício" não como mera ilusão, mas como a montagem de um efeito
institucional com sentido histórico preciso. A partir de critérios
linguísticos e biológicos, o Estado "etniciza" a população,
essencializando as suas representações por meio de ideologias
nacionalistas ou mitos de identidade baseados em cultura, origem e
projeto coletivo presumidamente comuns.
A identidade assim obtida permite a idealização das relações políticas
que instituem a cidadania. É o Estado que a garante como ficção
étnica, certo, mas como ficção única, desenhada contra o pano de
fundo da cultura universalista européia, que classifica a diversidade
humana por categorias étnicas ("etnicidades") unas, únicas e
diferentes. Características linguísticas, mas também somáticas e
psicológicas funcionam como operadores públicos dessa ficção.
Pouco importa que já desde o século passado um pensador do porte
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de Max Weber tenha proposto em Economia e Sociedade o abandono


da etnia como conceito sociológico, por considerá-lo cheio de
ambiguidades e contradições. Na prática, a etnicidade tem livre curso
como dialética de uma comunidade e uma história, desenhando as
linhas de uma identidade e uma diferença coletivas.
A nação resulta de jogo dialético entre uma herança comunitária e
uma história onde se constrói uma entidade política. O imaginário, o
fictício entram no jogo quando se trata de forjar uma identidade
coletiva. Tomar essa identidade como "natural" é esquecer ou recalcar
a trama histórica de sua montagem, abrindo caminho para
estigmatizações e racismos.
As teorias etnicistas alemãs, desde Fichte, incorporavam a crença na
naturalidade étnica. Talvez também por isso os pensadores brasileiros
que, a partir do declínio do Império, se indagaram sobre a identidade
nacional, fossem bastante sensíveis à questão da etnia. Silvio Romero,
autor de uma famosa História da Literatura Brasileira (1888),
localizava a identidade étnica do brasileiro na mestiçagem, física ou
psicológica. Para ele, a influência africana era maior que a européia
ou a indígena, o que faria a distinção entre o elemento nacional
brasileiro e o das outras nações hispano-americanas.
Enquanto Romero encarava a ascendência africana —mesmo às vezes
ambiguamente— como um traço positivo, escritores como Euclides
da Cunha ( Os Sertões, 1902) e Oliveira Vianna ( Populações
Meridionais do Brasil, 1910), embora também ambíguos em algumas
partes de suas obras, tendiam a ver no negro ou na miscigenação
fatores de instabilidade social e de enfraquecimento intelectual frente
a Portugal ou a nações "brancas".
A verdade é que, desde a Independência (1822), as representações
racistas, enquanto sistema de pensamento institucional, tinham
começado a exacerbar-se no Brasil. Os negros foram deixados de fora
do pacto social instaurador da nova ordem, e os índios apenas
simbolicamente incluídos.
A relação social racista impôs-se com mais força à consciência
pequeno-burguesa depois da abolição da escravatura, no instante em
que as antigas hierarquias sociais sentiram-se ameaçadas. Era a época
em que o negro despontava como objeto de ciência para alguns
setores da intelectualidade nacional, ao mesmo tempo em que se
expandia a "ideologia do embranquecimento". Esta última alimentou
os dogmas da superioridade racial, do determinismo climático, da
geopolítica, da filosofia eugenista, que redundaram em instituições
como a Liga de Higiene Mental ou em pensamentos como os de
Oliveira Vianna e Euclides da Cunha.
Oliveira Vianna, advogado, mulato, repetia muitas das opiniões de
Silvio Romero e Euclides da Cunha. Ele começa Populações
Meridionais do Brasil com loas à "genialidade" de gente como
Lapouge, Gobineau e outros pais do racismo doutrinário. Mas seu real
objetivo era refletir sobre como poderia uma população racialmente
miscigenada como a do Brasil preservar a sua unidade nacional e
desempenhar um papel no mundo moderno. Em sua tentativa de
resposta, os mestiços apareciam como seres "inferiores", embora
houvesse aqueles que, por terem "aparência ariana" (cabelo, cor da
pele, moralidade dos sentimentos etc), faziam exceção. Com esta
ressalva, Vianna buscava certamente livrar a própria cara.
A ideologia do embranquecimento, já presente na obra de Oliveira
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Vianna, era no fundo uma tentativa de preservar a discriminação


contra eventuais efeitos colaterais da abolição. Representava a
passagem do racismo de dominação ao racismo de exclusão.
Dessa ideologia excludente procedem as fontes de imagens racistas
circulantes na contemporaneidade. Suas premissas são entretanto
acadêmica e cientificamente irrelevantes.
Por quê?
1º) Em primeiro lugar, porque não existe a raça negra. Se é
sociologicamente ambíguo, como já indicamos, o conceito de etnia, o
de raça é ainda mais problemático. Inexiste raça, a não ser a humana.
Montaigne já o havia dito: "Todo homem carrega a forma inteira da
humana condição". Ou seja, "raça" não é mais do que a "humana
condição". Fora disso, existem linhas morfológicas (formato craniano,
tipo de cabelo, cor da pele etc) que já permitiram à antropologia física
classificar os grandes grupos humanos como "caucasóides",
"mongolóides" e "negróides".
Esses traços visíveis (ponto de partida para qualquer imagem) não
têm nenhuma coerência genética com outros traços não
imediatamente visíveis, a exemplo da frequência de proteínas séricas
na gamaglobulina. É possível, portanto, que um indivíduo de pele
branca apresente genes de origem negróide, como correu
recentemente em pesquisa feita na região de Porto Alegre (cf. Joel
Rufino em Atrás do Muro da Noite).
O que existe mesmo é a diversidade das linhas morfológicas da "raça
humana" em função da adaptação territorial e a diversidade dos
modos pelos quais cada grupo humano relaciona-se com o seu real,
ou seja, a diversidade das culturas. A diferença dita étnica resulta de
uma combinação de linhas morfológicas com singularidades
linguísticas e culturais. Mas essa diferença é simbolicamente,
culturalmente construída. Quanto à raça, é tão só uma invenção de
quem nela crê, daquela consciência que sobrecarrega a percepção de
imagens fantasiosas.
2º) Um certo senso comum precisa continuar acreditando na idéia de
raça ou em algo equivalente. De fato, com a desmoralização científica
do conceito de raça, o racismo ideológico ou doutrinário —o mesmo
em que trafegaram Oliveira Vianna, Euclides da Cunha e outros—
perdeu suas bases biológicas e sobrevive apenas como aberração de
pensamento junto a grupos anacrônicos ou a pseudo-cientistas.
Resta para o senso comum (as representações sociais, as opiniões, a
antiga dóxa), um vazio de classificação ou de saber em face da
alteridade humana. Como ajustar a consciência à percepção daquele
que, por ter cor e cabelo diferentes, sabe-se ser "outro"?
Ou seja, como ajustar, num mundo regido por imagens tecnicamente
normalizadas, a imagem de um "outro" à minha própria? A idéia de
raça torna-se operativa (ou mesmo a de etnia, que pode esconder a
noção de raça).
Embora não exista raça, o senso comum constrói imaginariamente a
relação racial. A discriminação desse tipo vem a calhar, porque todo
racismo implica um saber automático (sem dúvidas, sem discussões)
sobre o outro. Vê-se a cor da pele e, como um passe de mágica ou de
imagem, tem-se a ilusão de um saber-poder sobre o outro diferente.
Rosenberg, teórico do nazismo, bem o percebeu: "Os que sabem tudo
não têm medo de nada".
Há, assim, na consciência racista ou na neo-racista, uma busca de
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exorcismo do vampiro, do medo do outro. Há a secreta esperança de


estabelecer "relações de verdade" com concidadãos familiares. Isso
importa no momento da cultura ocidental em que a questão da
verdade universal se enfraquece juntamente com o esvaziamento dos
sistemas metafísicos —religião, ciências humanas, doutrinas morais e
filosóficas.
Afirmando-se uno, idêntico a si mesmo e a um grupo determinado
pelos traços visíveis da cor, o sujeito da consciência discriminante
acredita entrar numa relação de verdade com membros de uma
comunidade imaginariamente semelhante em tudo —da cor aos
genes. Uma falsa verdade estatui: somos radicalmente idênticos, os
que não se parecem conosco são radicalmente diferentes, logo
discrimináveis, já que não nos comunicamos com eles em termos de
"verdade".
O ocaso do racismo doutrinário ou ideológico não acaba com a
discriminação, precisamente porque esta não é mais questão de razões
de Estado colonialista nem de evolucionismo teórico. A
discriminação foi assimilada pelo senso comum e difrata-se no
mundo das práticas cotidianas, porque é uma espécie de saber-poder.
Na microfísica das relações humanas, esse suposto saber automático
sobre o diferente gera poder. É preciso não esquecer que o nazi-
fascismo não estava só no Estado nazi-fascista, mas também na
multiplicidade dos atos cotidianos de um vizinho ou de um colega de
trabalho. O saber discriminante tem estreita analogia com a
caracterologia histérica e obsessiva.
Ao contrário do que possam pensar os otimistas das chamadas tecno-
democracias ocidentais, apologistas do mundo neoliberal, a
globalização cultural só tem exacerbado a discriminação étnica. Com
o aumento da mobilidade migratória das populações e com a
acelerada circulação das imagens públicas das variadas espécies
humanas, cada um vê-se compelido, muito mais do que no passado, à
troca com a alteridade. O Ocidente culto estava preparado para
reconhecer o direito à diferença. Mas descobre a duras penas que a
questão não é apenas intelectual, ou seja, que não se resolve por
reconhecimento nem por direito.
Há aí uma verdadeira questão simbólica, mais difícil do que a
socioeconômica e mesmo a psicológica. A questão simbólica não
passa por reconhecer ou desconhecer, mas por dar e receber ou
hospedar e ser hospedado. Implica reversibilidade das trocas.
Ora, abrigar o outro (o migrante, o estrangeiro, o diferente) sem a
mediação de uma ética do acolhimento parece ameaçar a consciência
viciada no individualismo moderno. O "outro" representa a ameaça
fantasmática de dividir o espaço a partir do qual falamos e pensamos.
É essa a ameaça (arcaica, primitiva) que espreita a consciência
discriminante: o medo de perder o espaço próprio. Medo primitivo,
análogo ao terror noturno das crianças. O "outro" acaba virando
Drácula, sem imagem legítima.
Voltar a falar hoje da tradição de pensamento racista no Brasil faz
sentido, porque é fundamental rever o posicionamento das elites
logotécnicas (articulistas, editorialistas, jornalistas de destaque,
publicitários, programadores culturais, professores etc) no que diz
respeito à questão étnica. Não tem sido uma questão prioritária para
as elites e no entanto vem sendo um problema crescente na ordem
global contemporânea.
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A formação de uma imagem total, diz Paul Virilio, é tributária de uma


iluminação. O que tem "iluminado" no espaço público/mediático do
Brasil a imagem dos descendentes de Zumbi? As tonalidades ainda
sombrias da consciência discriminante. Pode-se até aceitar o fato de
que a imagem do negro tenha melhorado aqui e ali, mas a sua real
condição é desastrosa, quando se pensa em termos de distribuição de
renda, de emprego e de oportunidades educacionais. Diferentemente
do que ocorre nos EUA, não se pode citar uma só "família
tradicional" negra.
É que aqui são fundas as raízes da discriminação. Nelas tropeçam até
mesmo as consciências ditas iluministas, por deliberação (caso
vergonhoso de figuras públicas ou jornalistas que são abertamente
racistas no vídeo, sem que ninguém proteste) ou por ato falho —
quando alguém diz, por exemplo, que tem pé na cozinha por ser
mulato. A nação real é uma metonímia dos Palmares. Mas suas elites
estamentárias —leitoras de Oliveira Vianna e quejandos nas escolas
— olham no espelho europeu para se verem como moços de fino trato
ou, como canta Caetano Veloso em seu último disco, "caballeros de
fina estampa". É preciso reeducar as elites com a lição de Zumbi dos
Palmares.

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