Você está na página 1de 1

| ALDEIA • ROSA MARIA VIEIRA

RACISMO À
MODA DA CASA
uma pesquisa sobre racismo no Brasil di- discriminação, estabelecendo hierarquias inamovíveis.
vulgada pelo jornal Folha de S. Paulo em Uma vez demonstrada “cientificamente” a desigualda-
1995, 89% dos participantes afirmaram de racial, estavam justificadas a desigualdade social e
não ter preconceito racial, enquanto apenas a inexistência de cidadania para os recém-libertos. O
10% admitiram tê-lo. Entretanto, 87% dos entrevis- Brasil republicano não precisaria nem de racismo ofi-
tados demonstraram preconceito ao pronunciarem cial, nem de apartheid, para discriminar e segregar ne-
ou concordarem com frases racistas. Repetida em gros e seus descendentes.
2011, a pesquisa apresentou as mesmas conclusões. No entanto, para que esse “racismo sem cara” pudesse
Que racismo é esse, tão peculiar, que nega publica- permitir aos brasileiros se sentirem, nos termos de Lilia,
mente a sua existência, mas se manifesta na dimen- “uma ilha de democracia racial cercada por racistas por
são privada? todos os lados”, muita água teria, ainda, que correr sob a
A resposta, que não é simples, pode ser procurada ponte das relações raciais no país.
na forma conservadora como o Brasil Foi nos anos 1930 que a modernidade,
colocou fim à escravidão e tratou seus anunciada pela indústria, passou a exigir
libertos, sem ressarcimento e incorpo- QUE RACISMO É ESSE, nova identidade nacional. Ela será cons-
ração econômico-social, sem integra- TÃO PECULIAR, QUE truída por intelectuais que, pressurosa-
ção ou cidadania. Porém, não somente mente, inverteram os sinais negativos
aí. A combinação entre liberalismo po- NEGA PUBLICAMENTE da mestiçagem e apresentaram o Brasil
lítico elitista e racismo, além da ressig- como uma sociedade multirracial inte-
nificação da questão racial e da apro-
SUA EXISTÊNCIA, MAS grada. Nela, a exclusão era compensada
priação simbólica da mestiçagem pela QUE SE MANIFESTA NA pela assimilação cultural e a harmonia so-
identidade nacional moderna, certa- cial estabelecida pela convivência entre
mente exerceram papel decisivo, como DIMENSÃO PRIVADA? as raças, pautada pela intimidade sexual.
bem demonstrou a antropóloga e pro- Nessa construção, Casa Grande &
fessora da Universidade de São Paulo Senzala (1933) ocupou lugar central:
Lilia Moritz Schwarcz. Gilberto Freyre transformou a miscigenação no sím-
Não foi por acaso que teorias racistas foram lar- bolo da civilização tropical e em redutor das distâncias
gamente difundidas no Brasil às vésperas da aboli- e dos conflitos sociais. Nascia aí o mito da convivência
ção e da República, quando a transformação de “pe- harmoniosa das raças, que transformaria o Brasil em
ças de serviço” em “cidadãos brasileiros” entrou na exemplo de tolerância racial.
ordem do dia. Nessa época, as concepções sobre a Esse mito terá que esperar os anos 1950 para ser des-
desigualdade biológica das raças, a inferioridade do construído por Florestan Fernandes. Em seu lugar, o
negro e a condenação da mestiçagem como fator de sociólogo paulista colocará o racismo “invisível”, “dis-
degeneração andaram em par com projetos de “bran- simulado”, “assistemático”, o “preconceito de ter pre-
queamento” do país, ancorados na imigração de eu- conceito”. Negando a tolerância racial, mostrará que a
ropeus que, como trabalhadores, dirigiam-se aos ca- discriminação, nunca oficializada no âmbito público,
fezais paulistas. permanecerá na dimensão privada.
O racismo científico prestou-se, então, à natura- (Este texto beneficiou-se, entre outras, das lei-
lização das diferenças sociais. A “raça”, definida a turas dos trabalhos de Lilia Moritz Schwarcz e
partir do fenótipo, passou a classificar e delimitar a Antonio S. A. Guimarães).
ROSA MARIA VIEIRA > Professora da FGV-EAESP > rosa.vieira@fgv.br

| 62 GVEXECUTIVO • V 14 • N 1 • JAN/JUN 2015

Você também pode gostar