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ESPAÇOS DE EXCLUSÃO E SUBJETIVIDADES DO EXÍLIO (SOBRE ANGU,

DE SANGUE, DE MARCELINO FREIRE)

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Marcio Roberto Pereira1

RESUMO
O trabalho visa ao exame da obra de Marcelino Freire, Angu de sangue (2000), a partir de uma poética de
identidade com o negro e das experiências narrativas de personagens que participam de um espaço de
exclusão, violência e exílio social. De forma geral, o livro trata da morte e da violência de maneira crua e
sem idealizações. Os personagens lutam pela sobrevivência de forma cruel e denotam o sofrimento e o
desespero daqueles marcados pela situação periférica. Ao propor uma análise dos contos de Angu de
sangue, o trabalho aqui apresentado reflete sobre uma poética da exclusão que percorre os dezessete
contos que compõem a obra, em diálogo com imagens e referências internas (por meio das imagens que
ilustram os contos) e, por outro lado, com imagens e referências ao contexto urbano dos excluídos,
representado nas páginas de jornais, revistas e noticiários de televisão.

Palavras-chave: Marcelino Freire. Angu de sangue. Exílios.

ABSTRACT
The paper aims to examine the work of Marcelino Freire, Angu de sangue (2000), from a poetic of
identity with the black narratives and experiences of characters who participate in a space of exclusion,
violence and social exile. Overall, the book deals with death and violence so raw and without idealizations.
The characters struggle to survive in a cruel formo f life and denote the suffering and despair of those
marked by peripheral situation. By proposing an analysis of tales of Angu de sangue, the work presented
here reflects on a poetics of exclusion that runs the seventeen tales that make up the work in dialogue
with images and internal references (through the images that illustrate the stories), and on the other
hand, with pictures and references to the urban context of the excluded, represented on the pages of
newspapers, magazines and television news.

Keywords: Marcelino Freir. Angu de sangue. Exiles.

Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem


para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada.
Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens – é a
imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais profundo
choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo
nem um impedimento. (BENJAMIN, 1994, 195)

Tendência da narrativa contemporânea, o retrato da realidade por meio de


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relatos que envolvem a experiência do cotidiano é um dos primeiros traços da obra


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Doutor em Letras pela UNESP/Assis. Pós-doutorado em Letras pela UNESP/Araraquara. Docente do
Departamento de Literatura do curso de Letras da UNESP/Assis. marciorpereira@uol.com.br

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 3, jan./jul. 2013


Angu de sangue, de Marcelino Freire, publicada em 2000. Nota-se que a partir da
modernidade, a crise da experiência é marcante para a crise do narrar, idéia essa
defendida por Walter Benjamin já em 1936, no célebre ensaio “O narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, ao retratar o processo de dissociação do
contador de histórias e o romancista.
No Angu de sangue, a recuperação da linguagem oral, por meio de narrativas
entrecortadas pela violência, o caos e a exclusão, formam um painel urbano das vozes
daqueles que vivem numa zona de exclusão e abandono. Como define Adorno:
“Desintegrou-se a identidade da experiência ─ a vida articulada e contínua em si mesma
─ que só a postura do narrador permite. (...) Narrar algo significa, na verdade, ter algo
especial a dizer e justamente isso é impedido pelo mundo administrado pela
estandartização e pela mesmidade”. (Adorno, 1980, 269) Tema dos mais recorrentes, o
exilio sempre esteve presente na história da humanidade, basta lembrar que, do ponto
de vista bíblico, os primeiros humanos foram banidos do Paraiso. Ao contrário dos
viajantes, dos turistas ou dos outsiders, os exilados estão impedidos – por um espaço de
tempo ou pela vida toda – de voltar para sua terra natal. Essa condição é tensão
propulsora da relação do exilado com seu espaço de origem e com o novo espaço que,
por sua vez, geram outras articulações ou experiências subjetivas que vão além do
deslocamento espacial: exilio linguístico, exilio social, exilio sentimental, entre outros.
De qualquer forma, a condição de deslocamento geográfico gera uma variedade de
experiências que cria uma articulação simultânea de várias situações identitárias que
compõem a condição do exilado. É obvio que o cosmopolita, ou aquela que se se move
por livre e espontânea vontade, possui uma experiência de maior inserção e menor
tensão com o espaço do outro, conseguindo um contraponto cultural e psicológico de
maior equilíbrio entre as fronteiras.
Não é o caso do perfil daqueles que são obrigados à condição do exílio como uma
forma de sobrevivência. Um bom exemplo dessa condição pode ser encontrada em boa
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parcela dos romances e filmes da contemporaneidade que escolhem o deslocamento


geográfico ou a experiência com a memória como formas de organizar a condição de não
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pertencimento à uma cultura que está na sua gênese e, o mesmo tempo, e também de

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uma condição diferente. Nessa condição é que existe a contraposição e a tensão entre
subjetividades distintas que ora se aproximam, ora se repelem.
Ao contrário do imigrante, o exilado não procura suplantar uma cultura em
relação à outra, numa harmonização de subjetividades e espaços, mas vivenciar a
desorientação, o deslocamento e a inadequação. Claro que também é possível perceber
uma outra forma de exilio, a do exilado em sua própria terra, que pode ser definida como
uma das experiências mais dolorosas. Nesse caso, há uma completa anulação da terra
prometida ou de qualquer escolha que busque o equilíbrio entre o herói e o espaço.
Nesse sentido, a posição de Marc Augé (2001) é bem esclarecedora:

Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um


espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional,
nem como histórico definirá um não-lugar. A hipótese aqui defendida é a de que
a supermodernidade é produtora de não-lugares, isto é, de espaços que não são
em si lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade
baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes, repertoriados,
classificados e promovidos a “lugares da memória”, ocupam aí um lugar
circunscrito e específico. (2001, p.73)

O confronto de identidades gera, dessa forma, a busca pela condição de


descontinuidade e deslocamento causada pelo exilamento. Assim, a grande incidência
de retratam a relação do homem com o tempo é substituída pela tensão homem/espaço,
ora por intelectuais no exílio, ora por intelectuais do exílio. Junte a essa equação a
questão do tempo:

Há uma possibilidade de se acrescentar à reflexão sobre o exílio, um


novo conceito, o de tempo. Todo desterro implica um „destempo‟ (termo
cunhado por Joseph Wittlin), pois o exilado seria despojado não só de sua terra
mas também dos acontecimentos de seu tempo que transcorre em seu país
enquanto ele está fora. Também, é freqüente que, durante o exílio, se viva em
dois tempos simultâneos, no presente da terra que acolhe e no passado que se
deixou para trás, sendo que este último pode tiranizar o presente pela nostalgia
do que se perdeu (VOLPE, 2005, p. 82).
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Entende-se, dessa forma, que o exílio e todas as suas formas de experiência, pode
ser considerado como uma das mais dolorosas e cruéis formas de violência ou
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abandono. Basta um olhar atento para se perceber que as histórias e os mitos que

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tenham o banimento como castigo, equivalem o exílio como pena máxima. Estar no
exílio significa uma forma de exclusão que traz uma instabilidade e um deslocamento
não apenas geográfico mas psicológico, social, linguístico, entre outras formas, que
empurram o exilado para uma periferia ou zona de exclusão que coloca em risco sua
identidade e individualidade. Por isso a idéia de Miriam Volpe, na citação acima, que fala
em “tempos simultâneos” completamente e ilumina muito bem a irradiação do exílio não
apenas como algo relacionado ao espaço. De certa forma, existe uma pluralidade de
questionamentos que envolvem a condição do banimento a partir de irradiações do
ponto de vista daquele que experimenta o exílio, daqueles que toma contato com o
exilado, das noções de cultura e sociedade de ambas as partes, das tradições e memórias
coletivas e individuais que formam a existências de quem se vê a frente de uma nova
percepção da realidade e daqueles que enfrentam a resistência ou a aproximação do
exílio.
Maria José Queiroz, na obra Os males da ausência ou A literatura do exílio, faz
um aprofundado estudo sobre o exílio destacando a importância da experiência coletiva
e individual do exilado que ao sofrer de uma “síndrome do desterro” refaz toda uma
genealogia de um sentimento que possui várias perspectivas como a “ausência”, a “a dor
de querer voltar para casa”, mas, também, o exílio como castigo, emigração, êxodo entre
outras formas de banimento.
Substitui-se a experiência empírica do real pela observação de uma realidade que
ganha vida numa espécie de mundo à deriva. Do ponto de vista desse mundo, as
personagens de Marcelino Freire observam e são observadas em diferentes realidades,
com vozes dissonantes que agem umas sobre as outras e relacionam-se por meio de
modos de violência que atingem a todos.
Assim como existe a variedade de vozes no conjunto de contos que compõem o
Angu de sangue, existe a variedade de formas de expressão da violência. Não se trata
apenas da agressão cotidiana, mas também da violência verbal, da violência física, do
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abandono e, por fim, da estilização da violência por meio da representação de cenas


(escritas ou sob a forma de imagens que compõem a obra) que adquirem um aspecto de
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normalidade frente a um cotidiano caótico e de desamparo social.

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Nesse processo haverá uma atenção mais detalhada para o resultado de
diferentes tipos de exílio (DOUEK, 2003) ─ espacial, sentimental, social, cultural,
econômico, entre outros ─ na narrativa: uma “épica de heróis que raciocinam e duvidam,
épica de heróis duvidosos, dos quais ignoramos se são loucos ou prudentes, santos ou
demônios. Muitos são céticos, outros francamente rebeldes e anti-sociais, e todos em
aberta ou secreta luta contra seu mundo.” (PAZ, 1982, 275)
A violência nem sempre é retratada de forma física, mas também relacionada,
muitas vezes, à perda de sensibilidade nas relações humanas. Destaca-se um processo de
valorização das relações sociais em que a luta pela sobrevivência, a luta pelo angu, recria
uma galeria de crônicas urbanas ou jornalísticas sob a forma de fiapos e fragmentos de
cenas de exploração.
Assim, todos os personagens que compõem os contos da obra de Marcelino Freire
possuem traços estilizados que fazem o leitor aprofundar-se numa linguagem de
estranhamento e em situações cotidianas que são mais representativas pelos gestos e
ações que propriamente pelos caracteres dos personagens. Estes são apenas grãos
dentro de um angu que mistura todos numa massa que unifica narrador, personagens e
enredos. Sobra apenas o retrato, ou antes a radiografia, como propõem algumas
ilustrações da obras, de uma realidade daqueles que lutam pela sobrevivência de forma
cruel e denotam o sofrimento, a revolta e o desespero daqueles marcados pelo abandono
social em nosso país. Segundo Antonio Candido “a brutalidade da situação é transmitida
pela brutalidade de seu agente (personagem), ao qual se identifica a voz narrativa, que
assim descarta qualquer interrupção ou contraste crítico entre narrador e matéria
narrada”. (CANDIDO, 1997, 212-13)
Como o angu, comida feita a partir de misturas, os dezessete contos misturam
personagens que possuem em comum uma realidade ─ a farinha do angu ─ a
ingredientes que compõem a banalização da morte e ao exercício cotidiano da violência.
No entanto, é um tipo de violência entranhada num cotidiano que não se altera ou
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produz sensações de desconforto ou estranhamento. Existe uma estetização da violência


e da injustiça social em que o sangue é um ingrediente banal: seja o sangue do lutador
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que escorre de uma luta em que é observado pela mulher que, por sua vez, faz um

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balanço de seu casamento, no conto “Os casais”, seja na indiferença da mãe que tenta dar
a filha para um desconhecido, no conto “O caso de menina”, em que a relação de
consangüinidade nada vale para a mãe. A criança é apenas um objeto a ser descartado.
Ou como o lixo no conto “Muribeca” representa o sangue de uma família: “Tenho fé em
Deus, com a ajuda de Deus, eles nunca vão tirar a gente deste lixo. Eles dizem que sim,
que vão. Mas não acredito. Eles nunca vão conseguir tirar a gente deste Paraíso.”
(FREIRE, 2000, 25).
No conto “Angu de sangue” a mistura de ilusão e realidade, relação social e
relação amorosa criam uma situação em que a violência é a solução, e ao mesmo tempo o
empecilho, para a resolução de todos os problemas. Nesse caso, observa-se que o
amante assassina a namorada, é assaltado no trânsito, leva o bandido ao apartamento,
onde também o mata. É a violência marcada pela circularidade das personagens que
convivem com formas variadas de opressão, tendo a ferocidade como um elemento
inerente ao ser humano.
No conto “Angu de sangue” a narrativa inicia e termina com uma mesma cena
dentro de um automóvel, símbolo máximo da modernidade e da individualidade do
homem da cidade moderna. Ao mesmo tempo, é símbolo de distanciamento de
estruturas sociais distintas. Essa violência marcada pela circularidade é uma constante
da lembrança do homem e de sua relação com a opressão: “Quando o bandido entrou e
meu carro, eu pensava em Elisa, nervoso, tentava esquecer o inferno que foi a nossa
briga. Nem tive tempo de fugir do ladrão, nem de escapar daquele pensamento. Preso
no sinal de trânsito.” (FREIRE, 2000, 69)
Nota-se que o narrador é sufocado por situações e cenas que denotam vários
aprisionamentos: o amor não realizado, a insegurança perante o ladrão que aparece, o
pensamento fixo na imagem da amante, o aprisionamento do sinal de trânsito. Em suma,
a própria narrativa marcada pelo movimento circular numa espécie de Sísifo moderno
que não escapa de seu sofrimento. No entanto, no decorrer do conto observa-se que o
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dínamo irradiador de toda a violência é o próprio narrador que considera a brutalidade


e a ferocidade como uma espécie de defesa frente ao outro: “Fiquei sem entender, ora, o
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que acontece com a nossa cidade, no coração de São Paulo vejo a cara feia de um

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revólver”. (FREIRE, 2000, 69) Essa também é a solução estética para a representação da
violência em muitos contos de Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, entre muitos escritores
que retratam o pulsar da violência e suas manifestações.
Atônito num turbilhão de relações, o narrador age como se a sua violência em
relação à namorada Elisa ─ agressão física e verbal ─ e em relação ao bandido, que é
assassinado no final do conto, fosse legítima. Como se garantisse ao possuidor de uma
posição social ─ dono do carro, do cartão de crédito, do cheque ─ o uso da agressividade
como elemento de defesa em meio ao caos urbano.

O narrador entranhado

O narrador no Angu de sangue aproxima-se de um cronista ao fazer um retrato


de pequenos dramas sociais nos quais diferentes personagens se confrontam numa
mistura social. A pós-modernidade busca apagar as fronteiras ideológicas e sociais mas
não consegue inserir uma grande massa que vive à margem de todo o desenvolvimento.
Aqui o retrato da violência é estático, ou coagulado como o sangue vindo de um ato de
violência, por meio de uma escolha vocabular que traz um corte seco e árido para
ilustrar tramas que poderiam aparecer nas colunas policiais dos jornais. A escolha dos
títulos também lembra expressões que se tornaram frases feitas ─ “Moça de família”,
“Volte outro dia”, “Filho do puto”, “Faz de conta que não foi. Nada”, “The End” ─ ou
títulos que, no diminutivo, buscam um fiapo de humanidade em personagens marcadas
pela opressão: “Belinha” e “Socorrinho”.
Esses títulos e a linguagem seca e ácida juntam-se ao aspecto gráfico da obra, que
é repleta de imagens em vermelho, verde e preto, e que possui figuras de negação da
idealização do espaço e da narrativa: um pardal morto, uma bola furada, rostos
transfigurados, radiografias humanas, grãos de milho que, juntos, compõem um mosaico
da pulsação da vida e da morte. A morte é marcada pela utilização da cor preta, a vida
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pela utilização do verde e o pulsar da vida e da morte é apresentado sob o vermelho que
tinge quase toda a obra.
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O espaço da cidade é caracterizado por elementos visuais que aparecem em Angu
de sangue como fragmentos de uma realidade em seu estado bruto, vinculando o narrar
ao aspecto visual e criando um realismo mediado pelo impacto direto com a realidade.
Nenhum dos contos da obra possui um final bem definido ou um desenlace feliz, mas são
cenas que se interligam pela opressão e pela estetização da violência.
Outro traço importante que liga as mensagens da obra ao variado número de
imagens é o tratamento com a infância e adolescência. Muitos contos retratam esse tema
e quase todas as figuras ─ bola, pardal, rostos de crianças ─ remetem a um contexto de
fragilidade e sofrimento, pois, como define Tânia Pelegrini (PELEGRINI, 2005)

A literatura, como sabemos, ao imobilizar ou fixar a vida por meio do


discurso, transforma-a em representação. Nesse sentido, como ela permite
fazer também uma espécie de teste dos limites da palavra enquanto
possibilidade de expressão de uma dada realidade, em se tratando de uma
matéria como essa, a exploração das possibilidades de transgressão ditada
pelas situações mais extremas – o sexo, a violência, a morte – cria temas
“necessários” para o escritor (não mais para o etnógrafo) que, por meio deles,
garante um interesse narrativo (para o leitor) escorado na antiquíssima catarse
aristotélica, em que o terror e a piedade, a atração e a repulsa, a aceitação e a
recusa são movimentos inerentes à sedução atávica atraindo para o indizível, o
interdito, para as regiões desconhecidas da alma e da vida humanas. (p.142)

A construção da narrativa de Marcelino Freire, em Angu de sangue, marca uma


relação de dependência entre os meios utilizados para conferir ao leitor uma totalidade
frente às cenas da vida urbana. Pedaços de histórias, fragmentos de imagens, frases
entrecortadas, enredos centrados em cenas sem idealismo mostram, visual e
literariamente, o pulsar de um cotidiano que, desde a poesia de Baudelaire, marcada
pelo fragmentário, recolhem os restos e as sobras de vidas que não mais se surpreendem
com o caos, a violência e a exclusão. Nesse entrecruzar de vozes e visões sobre a
realidade o narrador de Angu de sangue toma o lugar dos antigos contadores de
história, não para trazer a voz da experiência para seus leitores, mas para tentar
resgatar a humanidade perdida entre escombros e ruínas de uma sociedade. Sociedade
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essa que constrói fronteiras invisíveis entre realidades distintas, mas que convivem
entre si e mostram os descompassos que regem o mundo moderno. Cabe ao narrador
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trazer a voz da denúncia acompanhada de imagens de natureza morta que pulsam a
vida.
Assim o narrador se utilizará de um discurso direto ─ em sintonia com o impacto
das imagens ─ no qual o outro sempre é um empecilho, como no caso do conto “Volte
outro dia”, em que a insistência de um mendigo incomoda o narrador com a sua simples
presença. Mesmo quando o mendigo vai embora o narrador se irrita ao ouvir a
campainha, mas se tranquiliza ao saber que era o entregador de pizza.
Nota-se que o narrador não se comove com a condição do mendigo,
demonstrando a banalização da miséria, da exclusão e do outro frente a um mundo de
comidas entregues em casa, televisão, muros que separam o homem moderno do
submundo que vaga pelas ruas. “Volte outro dia”, expressão que joga o problema social
ou a violência simbólica para o futuro, para outros tempos porque o narrador tem
urgência de viver sua condição de “cidadão que não é obrigado a servir o próximo.” O
próximo deve ficar no espaço da rua, espaço esse da violência e da agressividade.
“Tantas ruas, casas, cabeças, por que logo a minha? Eu tenho direitos. O Governo
conserte suas negligências. O Governo que se ocupe. Porra, e logo eu, solteiro e sem
compromisso, depois de ter trabalhado o dia inteiro.” (FREIRE, 2000, 41)
Esses testemunhos fragmentados da realidade mostram o espaço da rua que se
contrapõe ao espaço da casa e cria identidades heterogêneas que lutam pela
sobrevivência de forma agressiva e sem se importar com o sofrimento alheio. Talvez a
literatura tenha a função de humanizar ao propor uma desautomatização do leitor por
meio de relatos compostos por vozes, muitas vezes veladas, como a do mendigo do conto
“Volte outro dia”, para propor um novo olhar sobre a realidade. Assim como as imagens
que aparecem na obra e demonstram que por trás das cenas de morte é possível refletir
sobre a vida.
Assim sendo, o tema do exílio, tanto numa perspectiva pessoal, coletiva ou
cultural (SULEIMAN, 1998, 2) interage com diferentes áreas do pensamento ao se
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relacionar com problemáticas identitárias ─ memória, lembrança, testemunho, barbárie,


entre outros temas ─ em torno das quais busca-se compreender, por meio da posição do
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intelectual, as diferentes formas de exilamento. Desencadeado por diferentes motivos,

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como, por exemplo, os processos de exploração social e econômica dos impérios
coloniais ou pelas conseqüências de estados totalitários, o exílio no século XX torna-se
uma constante na literatura. Além da representação da “fratura” ou “pelo estado de ser
descontinuo” (SAID, 2003), o exílio oferece contrapontos que aproximam e distanciam
culturas, percepções diversas da realidade, relações entre memória coletiva e individual,
que delineiam histórias de vidas marcadas por “catástrofes silenciosas” (SELIGMANN-
SILVA, 2005, 120) que perpassam a “passagem para a espacialidade em detrimento da
temporalidade.”

Referências

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Pensadores. São Paulo: Abril, 1980.

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CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In:______. A educação pela noite e outros ensaios.
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SULEIMAN, Susan Rubin. Exile and Creativity. Durham and London, Duke University
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VOLPE, Miriam L. Geografias de exílio. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

Artigo aceito em julho/2013

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