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Capítulos do livro:

Denise Rollemberg. Exílio. Entre raízes e radares. Rio de Janeiro. Record, 1999.

Capítulo 1 - Exilados, estrangeiros, apátridas


I - A Odisséia

O exílio sempre acompanhou a história da humanidade. É uma experiência


primordial, ao mesmo tempo, social e individual. Suas simbologias e representações
nos falam de situações, sentimentos e práticas recorrentes ao longo do tempo.
Não por acaso, o exílio estrutura personagens mitológicos, arquétipos da
cultura ocidental. Ulisses, impedido de voltar a Ítaca pela fúria de Posêidon, deus do
mar, viveu os mais inusitados sofrimentos e experiências, em terras estrangeiras, até
conseguir, vinte anos depois da partida, o regresso tão desejado. Em casa, não foi
reconhecido; esperavam-no invasores, usurpadores, guerra. Édipo, impedido de viver
em seu reino, na inútil tentativa de alterar o destino, encontrou no caminho o incesto,
a desgraça, a escuridão. Loth, ao partir para o exílio, viu sua mulher transformar-se
em estátua de sal, ao olhar para trás, desobedecendo às orientações divinas, no
momento em que sua cidade, Sodoma, era destruída. Rute, descendente de Moabe,
fruto incestuoso de Loth, estrangeira e estranha à linhagem judaica, foi reconhecida
como ancestral e matriarca do povo escolhido. Jesus e sua família, deixaram Belém,
fugindo do massacre comandado por Herodes. Adão e Eva, os primeiros homem e
mulher, expulsos do paraíso, os primeiros exilados. Os exemplos não têm fim. São
emblemáticos. Trazem a marca do exílio.
Na tentativa de compreender os indivíduos, a psicanálise, como se sabe,
buscou e busca referências universais de personagens mitológicos. Nestes, encontra
situações e sentimentos recorrentes, paradigmáticos, estruturadores, essenciais.
Cada exílio é definido, evidentemente, por uma conjuntura específica, por
problemas próprios à época e ao lugar. No entanto, elementos comuns são facilmente
percebidos, nos exílios de diversos povos, em diferentes momentos. Jean-Michel
Palmier, no magnífico estudo sobre o exílio dos intelectuais alemães antifascistas, nos

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anos 30, constata: « Sem dúvida, as experiências conhecidas pelos emigrados de
1933 nem sempre são excepcionais: elas constituem o destino de todos os exilados »1.
O exílio é fruto da exclusão, da negação, da dominação, da anulação, da
intolerância2. Em si, guarda um valor negativo3. O deus bíblico que expulsa, pela
primeira vez, como o homem, a sua imagem e a sua semelhança, é intolerante. Como
os deuses gregos, concebidos segundo os vícios e virtudes dos homens e da época.
Jean-Luc Mathieu destaca a constância da intolerância, na história:
«Encontram-se, ao longo de toda a história da humanidade, igualmente dividida entre
culturas e continentes: intolerância, ostracismo político, ódio dos outros, guerras,
miséria, que jogam nas estradas homens de todas as condições»4.
Mas o exílio é também a negação da negação, a luta pela afirmação, a
resistência. O exemplo de Ulisses é clássico5. Nos versos d’A odisséia, o esforço do
personagem, de homens e deuses contra a injustiça e o castigo. É a vitória ante as
adversidades, o triunfo da resistência, a derrota da exclusão, a solidariedade dos que
acolhem os expulsos, dos que tomam seu partido.
Para Mathieu, a outra face da intolerância é exatamente a solidariedade: «...em
todas as culturas e todos os continentes, encontram-se mãos estendidas que protegem
e asilam. Tolerância, pacifismo, diálogo, compreensão, partilha, tais são também
características, não menos permanentes, da história da humanidade»6.
O exílio tem, na história, a função de afastar/excluir/eliminar grupos ou
indivíduos que, manifestando opiniões contrárias ao status quo, lutam para alterá-lo.
O exilado é motivado pelas questões do país, envolve-se em conflitos sociais e
políticos, diz não a uma realidade. Neste ambiente são forjados seus « projetos » e

1 - PALMIER, J.M., 1988. vol. 1. p.336.


2 - A intolerância não tem sido, unicamente, em relação ao outro, mas também dos homens e mulheres
em relação a si mesmos. A psicanálise atesta estas contradições.
3 - Segundo o dicionário Aurélio, exílio significa «1. Expatriação, forçada ou voluntária; degredo,
desterro. 2. O lugar onde reside o exilado. 3. Fig. Lugar afastado, solitário, ou desagradável de habitar»
e exilado, «expatriado, desterrado, banido, degredado».
4 - MATHIEU, J.L., 1991. p.4.
5 - Ulisses é sempre lembrado como o protótipo do exilado. Mas o que o define como tal não é a
«partida», elemento essencial - juntamente com o «impedimento da volta» - , na caracterização de todo
exilado. O cidadão Ulisses deixou seu país como respeitado chefe militar para ir à guerra. Sua
definição de exilado está na impossibilidade/dificuldade de voltar e no sentido de castigo desta
maldição, como resposta à ofensa contra Posêidon, o temido e poderoso deus do mar.
6 - MATHIEU, J.L., 1991. p.4.

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« ilusões », como observou o psicanalista Marcelo Viñar7. O exílio é o afastamento
deste universo e recai sobre o « homem revoltado », na expressão de Albert Camus,
como um castigo. Ao mesmo tempo, o exílio aparece como possibilidade, quando a
resistência interna é impossível.
Sobre os pilares - afastamento/exclusão/eliminação e castigo - o universo do
exilado se constrói 8 . O afastamento causará a despersonalização e o anonimato,
próprios do exílio, devido à « ruptura narcísica », produzindo, por sua vez, a crise de
identidade. A ruptura tem a dimensão de um traumatismo, porque o exílio rompe com
o movimento que constrói o homem a partir de seus projetos e ilusões, renovado,
permanentemente, na convivência com os outros. O exílio rompe com o conforto da
relação na qual o homem é reconhecido, o que evita o sentimento de precariedade:

« Para o exilado, a ruptura da ancoragem narcísica se faz em um conflito


violento, sobretudo para quem outrora tinha um papel social reconhecido por
ele e pela comunidade. Perde o espelho múltiplo a partir do qual criava e
nutria sua própria imagem, seu personagem. No exílio, ninguém o reconhece.
Aquele que eu era não existe mais. O personagem está morto, o cenário não é
mais o mesmo, os atores tampouco. E nos encontramos ali, sem olhar, sem
palavra: comoção e crise radical de identidade. O homem está nu »9.

O traumatismo e o sentimento de perda e de ferida profunda caracterizam o


luto vivido pelo exilado, num primeiro momento10. O luto, no entanto, não será uma
experiência privada, mas coletiva e partilhada :

7 - VIÑAR, Marcelo, 1992. p. 111.


8 - No caso dos exílios latino-americanos dos anos 1960 e 1970, a utilização sistemática da tortura,
matando e/ou desestruturando física, emocional e psicologicamente os que se opunham às ditaduras
e/ou ao capitalismo, teve um papel fundamental nesta prática de afastamento/exclusão/eliminação. Para
Ana Vasquez e Ana Araujo, mais do que obter informações, a tortura, neste momento, procurava
anular estas pessoas, de maneira durável ou definitiva. Cf. VASQUEZ, A. e ARAUJO, A., 1988. p. 43.
Para o tema tortura, ver, entre outros, VIÑAR, Maren e VIÑAR, Marcelo, 1992, PELLEGRINO,
Hélio. «O tesouro encontrado», prefácio de POLARI, Alex, 1982 e ARQUIDIOCESE DE SÃO
PAULO, 1985.
9 - VIÑAR, Marcelo, 1992. p. 71; cf. também p.111.
10 - Ana Vasquez e Ana Araujo classificam os exílios latino-americanos - mais exatamente os casos da
Argentina, do Uruguai e do Chile -, em três etapas: a 1ª marcada pelo traumatismo - corte violento dos
vínculos com o mundo social, afetivo, cultural e político - e pelo luto; a «transculturação» é a
experiência que predomina num 2º momento; por fim, a 3ª etapa estaria caracterizada pelo abalo dos

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«... os exilados não choram somente seus « mortos » e seus « presos », seu luto
é também social, no sentido que eles devem aceitar o fim de um modus
vivendi, de um contexto social e político que não poderá mais se reproduzir tal
como era. Perda de seus sistemas de referências, de seus objetos de amor, de
seus pólos de investimento e de agressividade »11.

O exilado, então, viverá a « dialética entre pessoa e personagem ». O


personagem é o que construímos a partir da convivência com os outros. Entretanto,
ele também é parte da pessoa. A « anomia », própria do exílio, destrói o que é
acessório, no personagem e revela os extratos mais secretos da pessoa. No exílio, os
frágeis equilíbrios e harmonias se desfazem: « O exílio coloca em relevo as
qualidades e os defeitos de nossa condição de humanos, amplificando-os »12.
Encontramos também, freqüentemente, o termo « desenraizado » para se
referir ao exilado. Ele é o que perdeu as raízes:

« As raízes (...) designam o que une o ser vivo à fonte, aos elementos de base
que se transformam para constituir sua matéria própria. Imagem ou metáfora
que indica o que é rompido no dilaceramento do exílio e que situa o
sofrimento no centro do tema: dor de estar separado de suas raízes, distanciado
das representações familiares »13.

Nas palavras de José López Portillo14,

« o desterro é sempre uma mutilação da parte do ser humano que mais dói:
mutilação no sentido da biografia individual e da história coletiva. O refugiado
perde as referências com a realidade. Abandona os sinais dos antepassados, se

mitos. Cf. VASQUEZ, A. e ARAUJO, A., 1988. Para a concepção de exílio como « ferida », ver
também PALMIER, J.M., 1988. vol. 1. p.366.
11- VASQUEZ, A. e ARAUJO, A., 1988. p. 46.
12 - Cf. VIÑAR, Marcelo, 1992. pp. 113-4.
13 - VIÑAR, Marcelo, 1992. p.111.
14 - Em 1982, foi editado, com o apoio do governo de José López Portillo, então presidente do
México, o livro El exilio español en Mexico, 1939 - 1982, reunindo diversos textos de jornalistas e
depoimentos de pessoas que viveram a experiência do exílio dos republicanos espanhóis.

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desliga da realidade de significações que os próximos haviam tecido a sua
volta, desde antes do nascimento e se coloca no mundo, sem a terra a seus pés
e com recordações - e nada mais que recordações - como únicas senhas de
identidade »15.

A perda aparece, na psicanálise, como a morte da mãe. Julia Kristeva lembra


que não é por acaso que o emblemático livro de Albert Camus, O Estrangeiro,
começa com a morte da mãe do personagem-título. É a « origem perdida » 16 .
Melanie Klein chega a identificar o exilado ao matricida17. A partir daí, ele se faz:
«... o sujeito se constrói a partir do exílio, devido à perda do objeto primordial, que
está perdido desde a gênese de sua constituição »18.
Miguel Torga, em belo texto sobre o « emigrante », nos fala, a partir de sua
experiência como migrante português no Brasil, da dor do desenraizamento, dos que
vivem divididos entre culturas e mundos diferentes, sentimento que atinge
profundamente o exilado. Medo do desconhecido, incompreensão, solidão,
isolamento, incertezas, violência do clima, tudo isto rompe a unidade que ele
dominava e provoca «...esta quebra interior, este desequilíbrio do espírito (...), partido
como um cristal trincado por um vento cruel ». Deste sentimento, surge um ser de
duas faces, olhando em direções opostas, desejando partir e ficar, vivendo em um
« caos de valores contraditórios », onde oscila, hesita e sofre. Na poesia de Torga, as
erupções fugazes, emergentes do vulcão que queima os subterrâneos do ser, é alguma
coisa rompida gritando por uma unidade impossível. Os países de origem e destino
são como « lábios de uma ferida necrosada, sem esperança de cicatrização ». A
solidão o domina: «Solidão de um Cristo de braços abertos, estendido em duas
direções opostas, mas pregado na dureza da madeira »19.
Dividido entre culturas diferentes, ele torna-se um apátrida. Juridicamente,
apátrida é aquele que não tem governo para defendê-lo 20 . Vale a pena citar a

15 - PORTILLO, José López, in NEVARES, Salvador Reyes, 1982.


16 - KRISTEVA, Julia, 1994.
17 - Cf. OLIVEIRA, Luís Eduardo Prado de, 1983. p.30.
18 - VIÑAR, Marcelo, 1992. p.131.
19- TORGA, Miguel, citações, respectivamente, pp. 35, 38 e 39.
20 - Cf. KRISTEVA, Julia, 1994.

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definição de « apátrida » de Victor Serge, escritor francês e russo, que nasceu, viveu e
morreu como exilado:

«... homens a quem as tiranias recusam até a nacionalidade. Quanto ao direito


de viver, a situação dos apátridas, que na realidade são os homens mais
ligados às suas pátrias e à pátria humana, só é comparável à do homem ‘’sem
reconhecimento'‘ da Idade Média, que, não tendo senhor nem suserano, não
tinha direito nem a defesa, e cujo simples nome tornou-se uma espécie de
insulto »21.

A desqualificação do refugiado - « categoria inferior, senão desonrada » -


atormentava, enormemente, Stefan Zweig22. Para o escritor austríaco, as humilhações
do exílio foram insuportáveis.
O refugiado vive sob a pressão de ter que se adaptar à nova realidade, mas
segundo referências idealizadas de um tempo passado e de um lugar não mais
existente. Segundo Bertold Brecht, não há como amenizar a realidade: « ... o país que
nos recebeu não será um lar, mas o exílio »23.
A adaptação deve existir, mas não a ponto de destruir o desejo referencial de
retorno. Por isto, ela é vista, por vezes, com desprezo. Ela significaria a renúncia ao
país de origem. Em geral, trata-se de um processo penoso, agravado pelas carências
materiais, pelo desconhecimento da língua, da cultura e dos trâmites burocráticos,
pela falta de documentos, pela não rara impossibilidade de exercer a profissão de
origem: « Em um mundo que lhe parece frequentemente estranho e hostil, ele [o
exilado] se sente completamente infantilizado »24.
Neste quadro, ele tenta reproduzir, no exílio, o seu país, o seu mundo, vivendo
em guetos: « Odiado pelo país natal, mal acolhido pelo país de asilo, ele é tentado a se

21 - SERGE, Victor, 1987. p.425. Segundo o dicionário Petit Robert, 1994, «Homme “sans aveu”, “par
extension”, vagabond; “sens moderne”, personne sans scrupule». «Vagabond», em francês, também
pode significar «pessoa sem domicílio fixo».
22 - Cf. PALMIER, J.M.,1988. vol. 1. p.350.
23 - Cit. por PALMIER, J.M., 1988. vol. 1. p.337.
24 - PALMIER, J.M., 1988. vol. 1, p.337.

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fechar na própria solidão ou a freqüentar apenas os outros emigrados, pois eles
partilham as mesmas experiências amargas »25.
Com o gueto, criam-se dois mundos, lado a lado, dois tempos diversos. O
presente e o passado, o aqui e o lá, a realidade e a idealização. Acentua-se o abismo
entre as vivências, mais do que diferentes, opostas. O tempo presente assume duas
faces e é descontínuo: « O espírito funciona como um gravador com duas faixas, que
registra dois mundos, dois universos cujas significações nem sempre são
compatíveis »26. Mas o gueto, muitas vezes, é o possível, em dado momento. É a
realidade.
Assim, « o estrangeiro continua a se sentir ameaçado pelo território de outrora,
tragado pela lembrança de uma felicidade ou de um desastre - sempre excessivos »27.
Como mecanismos de defesa, num primeiro momento, recusa o país de exílio
e idealiza o país de origem - paisagens, povo, comida28. Mas, se ele sente saudade,
também sente raiva do país que o expulsou : « ’’O ódio e a nostalgia no coração! Que
aventura ser um emigrante ’’»29.
O tempo e o lugar presentes são um hiato entre o passado e o futuro: « Como
Janus, o deus de duas cabeças, olhar para o passado e o futuro, tentando manter, num
mesmo instante, o lamento e a esperança ». Espaço e tempo se confundem, num
amálgama insidioso: a oposição « aqui/lá » se sobrepõe à oposição « antes/agora »30.
Para Julia Kristeva, ao lamentar o espaço perdido, o estrangeiro, na verdade, chora o
abandono de uma época de sua vida31.
A provisoriedade se somará ao caráter descontínuo do tempo. É mais
suportável imaginar o exílio num tempo passageiro, acreditar que o retorno será
breve. Será a « vida entre parênteses », fora da « verdadeira vida », no país de
origem32. O estrangeiro vive neste espaço de transição33. A transitoriedade, marca

25 - PALMIER, J.M., 1988. vol. 1, p.337.


26 - VIÑAR, Marcelo, 1992. p.112.
27 - KRISTEVA, Julia, 1994. p. 12.
28 - Cf. VASQUEZ, A. e ARAUJO, A., 1988. p. 49.
29 - Klaus MANN, cit. por PALMIER, J.M., 1988. vol. 1. p.369.
30 - Cf. VASQUEZ, A. e ARAUJO, A., 1988. p.17 e 11.
31 - KRISTEVA, Julia, 1994.
32 - Cf. VASQUEZ, A. e ARAUJO, A., 1988. p. 33.
33 - Cf. OLIVEIRA, L.E.P. de, 1983.

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do momento inicial do exílio, dificultará a adaptação e a organização da vida:
trabalho, moradia, relações sociais e afetivas, tudo terá contornos imprecisos e frágeis.
O desconforto daí decorrente também relaciona-se ao sentimento de culpa, não
raro, motivo de tormento do exilado. Nesta seqüência, a auto-interdição aparece: num
primeiro momento, viver com um mínimo de conforto pode ser interpretado como
egoísmo e frivolidade34.
O exilado é um peregrino, um « sujeito errante », como definiu José López
Portillo. Por ter as raízes cortadas, procura não apenas a sobrevivência material, mas
também o seu « centro de gravidade »35. A busca incessante por outro lugar é a busca
por « outro tempo ». Viver em muitos países é, também, uma espécie de vingança por
não poder viver no seu país, uma prova de sua capacidade - e liberdade - de viver
« onde quiser »36. Por outro lado, reforça - e lembra - a interdição: viver em qualquer
lugar, à exceção do lugar desejado.
No entanto, mesmo desenraizado, o exilado deverá reconstruir sua vida. E a
reconstrução se fará a partir «...da perda, da desilusão, do desencorajamento, da
derrota»37. A inevitável crise de valores, antes sólidos e absolutos, não facilitará o
recomeço.
Libuse Tyhurst, ao analisar a « psico-dinâmica » de refugiados da II Guerra,
observa que, a princípio, logo após à chegada ao país de acolha, dissipado o perigo,
eles são tomados por certa euforia38. Em seguida, vão percebendo as dificuldades de
linguagem, as diferenças de costumes e valores, as separações, as perdas. O presente e
o futuro são incertos. Apegam-se ao passado, ao país de origem, ao familiar. Há um
movimento de recusa do presente e do futuro, e a volta a um passado idealizado,
longínquo e feliz.
Em meio ao naufrágio, o passado é o que resta:

34 - Cf. VASQUEZ, A. e ARAUJO, A., 1988. p. 47.


35 - Cf. in NEVARES, Salvador Reyes, 1982.
36 - Não é preciso dizer que este « onde quiser » é limitado pelos inumeráveis obstáculos legais e
materiais que o exilado enfrenta para a concretização deste desejo. O fato de ele viver em vários países
também está ligado a estas dificuldades.
37 - VIÑAR, Marcelo, 1992. p.111.
38- Cf. também PEDERSEN, Steli, in MURPHY, H., 1955. Cf., ainda, PALMIER, J.M., 1988, vol. 1.
pp.340-1, que constata uma « certa euforia », após a angústia da fuga, entre os que escaparam de Hitler.

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« ”O exilado é hostil ao presente, a mais efêmera e, entretanto, a mais
importante categoria do tempo. Apenas no passado ele encontra a própria
justificação e as razões para esperar um futuro que deve tudo reparar, que deve
derrubar os usurpadores, mas também colocar num primeiro lugar os
exilados na pátria reencontrada. Esta perda do presente, desejada e, no entanto
sofrida, dia após dia, o impede de se firmar na terra de asilo. Ele não o deseja,
em absoluto, pois está sempre na estrada, e tudo é provisório, cada “agora”
torna-se um “intervalo fugaz”»39.

E o escritor alemão exilado do nazismo completa: « ”semelhante ao homem


que tinha perdido sua sombra, eu tinha perdido o futuro, me restava apenas o
passado”»40.
A valorização do passado é explicada também pelo fato de o refugiado ter uma
história pessoal e coletiva, ao mesmo tempo, intensa e terrível. Assim, muitas vezes,
ele se seduz pela própria história, pelo seu passado:

« O refugiado rumina sua história porque tem uma grande história, porque sua
história é impressionante e ele é o primeiro a reconhecê-lo. E a rumina
obsessivamente porque, além disto, tem a necessidade de se explicar, a si
mesmo, em primeiro lugar, mas também aos outros, e porque tem a
necessidade, finalmente, de se justificar »41.

No entanto, é preciso voltar-se para o presente, para a reconstrução da sua


vida. É simbólico o destino da mulher de Loth: contrariando as ordens dos anjos,
olhou para trás, ao deixar sua cidade destruída, virou estátua de sal, desintegrou-se,
desapareceu42.

39 - Manès SPERBER, cit. por PALMIER, J.M., 1988. vol. 1. p.341.


40 - Cit. por PALMIER, J.M., 1988. vol. 1. p. 340.
41- MATESANZ, J.A., in NEVARES, José Reyes, 1982. p.170. Embora José Antonio Martesanz, no
texto «La dinámica del exilio», trate da experiência concreta dos espanhóis republicanos, no México,
acredito que suas reflexões contribuem para a compreensão do sentido filosófico e existencial da
emigração política, em geral.
42 - Esta imagem é recorrente entre exilados alemães do nazismo. Cf. PALMIER, J.M., 1988, vol. 1.
p.367.

9
Comum entre refugiados, a «reação paranóica» será a tentativa de restabelecer
o contato com a realidade, ou seja, com o presente. Obrigado a renunciar às relações
sociais anteriores, chega desarmado ao novo país, em geral, rebaixado em seu nível
social e material. Não raro, pessoas conhecidas e reconhecidas, que ocupavam
posições de destaque no país de origem, tornam-se anônimas:

« A reação paranóica intervém para inverter esta situação; para arrancar o


refugiado da impressão de estar excluído de tudo e para colocá-lo no centro
das coisas. Deixando de ser uma pessoa anônima, ele torna-se o alvo de tudo.
Esta incerteza e esta hostilidade são projetadas sobre os estrangeiros de quem
depende. Vítima de suas intrigas, ele tem o direito de acusá-los e tira daí
sensíveis satisfações narcisistas »43.

O processo de mudança deixa marcas identificadas através da análise da


«psico-dinâmica» dos refugiados: sentimento de isolamento, insegurança, necessidade
de uma revisão dos valores, a partir da consciência da sua relatividade, aumento do
individualismo - em decorrência mesmo do desabamento dos antigos modos de
comportamento. Tudo isto contribuirá para tornar os contatos humanos penosos e
fazer nascer a insegurança e a ansiedade. A incerteza a seu próprio respeito e ao meio
onde vive explica o sentimento de impotência que ele experimenta44.
Prado de Oliveira45 afirma que os problemas mentais, entre os migrantes, são
maiores que entre os autóctones. A migração produziria uma situação
tendencialmente psicotizante46. O estudo de H. Murphy também parte do que seria
um pressuposto conhecido e reconhecido a respeito dos imigrantes: as taxas de
mortalidade, assim como as de suicídio e hospitalização por doenças, entre eles, são
superiores às da população local 47 . Marcelo Viñar fala em « psicopatologia do
exílio » que:

43 - PEDERSEN, Stefi, in MURPHY, H., 1955. p.37.


44 - Cf. TYHURST, L., in MURPHY, H.B., 1955.
45 - Luís Eduardo Prado de Oliveira é psicanalista, ex-exilado brasileiro dos anos 1960 e 1970, que
permaneceu no exterior, após a anistia de 1979.
46 - Cf. OLIVEIRA, L.E.P. de, 1983.
47 - Cf. MURPHY, H., 1955.

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« ... não tem de específico senão a recrudescência epidêmica da endemia que
compõe o léxico dos manuais de nossa profissão. A crise neurótica é freqüente
e comporta a angústia e a tentativa de restituir uma definição do personagem.
Mais graves são os casos onde o conflito e o luto não podem se conter na
esfera do mental e extravasam no corpo (agravamento ou aparição de
doenças), ou ainda derivam em direção à sociopatia (soluções psicopáticas,
caractereopáticas, psicóticas) ou às neuroses de destino (acidentes reiterados,
fracassos) »48.

Ana Vasquez e Ana Araujo também lembram as reações paranóicas, as


doenças - materialização da culpa -, os estados de irritabilidade, as insônias
prolongadas, a morbidade, os estados de desleixo, a depressão e o suicídio, como
típicos da primeira etapa do exílio49. O « duplo sistema de referências » a que está
submetido o exilado, onde se opõem a realidade do país de origem àquela vivida no
país de acolha, contribui para a instalação de uma « situação praticamente
esquizofrênica »50.
Se é verdade que os estrangeiros, exilados, refugiados e migrantes vivem estas
experiências, Prado de Oliveira se pergunta por que a psicanálise não se interessou,
particularmente, por eles. A resposta, segundo o psicanalista, está no fato de a
psicanálise, ela mesma, ser uma teoria fundada no estrangeiro, no exilado, no
refugiado, no migrante. Ou seja, não tem uma preocupação especial por eles, porque o
universo do estrangeiro está na sua base. A psicanálise encontra de maneira
exacerbada no estrangeiro o que encontra nos outros homens. O estrangeiro é aquilo
que não se pode reconhecer em nós mesmos51: o inconsciente. É esta a descoberta de
Freud, ele próprio « ... judeu errante da Galícia a Viena, em seguida Londres,
passando por Paris, Roma e Nova York ... ». A alteridade torna-se parte do mesmo.
Neste sentido, « somos nós próprios estrangeiros » ou « o estrangeiro está em
nós »52. Desconhecido, o inconsciente está presente.

48 - VIÑAR, Marcelo, 1994. p.114.


49 - Cf. VASQUEZ, A. e ARAUJO, A., 1988. p.50.
50 - Cf. VASQUEZ, A. e XAVIER DE BRITO, Â., 1993. p.54.
51 - Cf. OLIVEIRA, L.E.P. de, 1983.
52 - KRISTEVA, Julia, 1994. p.190-1.

11
Albert Camus, em suas pungentes memórias, fala da dolorosa identificação do
familiar ao desconhecido: «Essa angústia diante do desconhecido e da morte que
sempre tornava a encontrar ao voltar do ginásio para a casa, que já enchia seu coração
no fim do dia com a mesma rapidez com que a escuridão devorava a luz e a
terra,...»53.
Aliás, esta dualidade « familiaridade/estranhamento » estrutura O Estrangeiro:

« por um surpreendente golpe de sorte (ou de genialidade), Camus vai


transformar esta paisagem natal, que é para ele o lugar da maior familiaridade,
na metáfora mesma do estranhamento, ou mais exatamente em seu suporte
correlativo “natural”»54.

O exilado pode ser marcado pelo sentimento de culpa, em relação aos que não
sobreviveram. Muitas vezes, define-se mesmo como sobrevivente, figura bastante
ambígua: feliz porque não desapareceu numa situação ameaçadora, onde tantos
sucumbiram, mas infeliz exatamente por isto, por estas ausências, pela culpa que
carrega. O argumento racional, segundo o qual sua morte não mudaria em nada a
sorte dos outros é inútil 55 . A angústia e a opressão desta sensação podem criar
problemas psicológicos, dificultando a vida no exílio. A sobrevivência chega a ser
percebida como uma acusação dos mortos, que é, na verdade, uma acusação a si
mesmo. É um insulto à morte dos que não sobreviveram. A sobrevivência é a
deserção56.
Mas o sentimento de sobrevivência pode ter uma outra face - positiva - que,
no enfrentamento das dificuldades, fortalece e norteia a continuidade da luta, que
alimenta a resistência. Victor Serge percebeu e viveu a complexidade deste
sentimento: ao mesmo tempo, uma perturbação, uma orientação, um estímulo e um
compromisso, que chega perto da culpa, mas escapa dela, exatamente porque
transforma o peso da sobrevivência em luta:

53 - CAMUS, Albert, 1994. p.203.


54 - ROBBE-GRILLET, Alain, 1990. pp.41 - 42.
55 - PEDERSEN, Steli, in MURPHY, H., 1955.
56 - Cf. TAPAJÓS, Renato, 1977.

12
« ... sobreviver é, dentre todas as coisas, a mais desconcertante. Por que
sobreviver, se não por aqueles que não sobrevivem? Essa idéia confusa
justificou minha sorte e tenacidade, dando-lhes um sentido - e, por muitas
outras razões, ainda hoje sinto-me ligado a muitos homens a que sobrevivi, e
justificado por eles »57.

II - Nos braços de Penélope

Se os conflitos vividos expõem o exilado a experiências dolorosas, criam


também a possibilidade de renovação, inovação, descoberta, transgressão, ampliação
de horizontes. Não se está defendendo, evidentemente, o «sofrimento» como
«enriquecimento». No entanto, mesmo sem uma percepção dicotômica, um pólo é
sempre mais ou menos enfatizado em detrimento do outro. Se muitos sofrem com o
desenraizamento, outros se descobrem neste processo. O exílio, apesar de tudo o que
foi dito - ou por causa disto - , oferece um outro lado: a oportunidade do recomeço e
da transformação. Estrangeiros e anônimos, sentem-se responsáveis por seus destinos.
Acima de qualquer lei, apesar de formalmente excluídos dela e arcando com as
conseqüências daí decorrentes. É a possibilidade de renascer - levando a bagagem
acumulada - , de construir uma visão ampla de mundo. Alguns dão o salto e adquirem
uma auto-confiança inestimável. Outros não.
O testemunho de Serge é primoroso para a compreensão do « outro lado do
exílio »:

« Exilado político de nascença, conheci as vantagens reais e os pesados


inconvenientes do desenraizamento. Ele amplia a visão do mundo e o
conhecimento dos homens; dissipa as névoas dos conformismos e
particularismos sufocantes; evita uma auto-suficiência patriótica que, na
verdade, não passa de uma medíocre auto-satisfação; mas, na luta pela
existência, constitui um handicap mais que sério. (...). Por minha parte, não
deploro o fato de trazer esse peso de chumbo sobre a cabeça, sentindo-me ao
mesmo tempo russo e francês, europeu e euroasiático, sem ser estrangeiro em

57 - SERGE, Victor, 1987. pp.19-20.

13
lugar nenhum - apesar das leis -, mas reconhecendo em todos os lugares, na
diversidade dos locais e das pessoas, a unidade da terra e dos homens »58.

José Antonio Matesanz considera que o « terremoto » do desterro acaba dando


uma dimensão universal à vida do exilado :

« ...este estar suspenso entre dois mundos sem pertencer plenamente a


nenhum, este estar com as raízes expostas é precisamente o que lhe dá sua
dimensão universal; este não ser nada é o que lhe possibilita ser tudo, cidadão
do mundo, patriota da terra que habita, seja qual for esta terra »59.

Ana Vasquez e Ana Araujo não deixam de realçar a dupla face do exílio. Um
drama e um renascimento, ao mesmo tempo. A distância que faz sofrer é a mesma que
permite uma pausa para a reflexão e a aprendizagem, de onde surge uma visão mais
clara de si e do projeto pelo qual se lutava. Neste processo, como ensina a
antropologia, o olhar do outro, como num « jogo de espelhos », leva a uma melhor
compreensão de si próprio. Tendo em vista o crescimento provocado pela ruptura, as
autoras chegam a falar na expatriação, passada a etapa inicial, como uma sorte,
contradição entendida por alguns, mas raramente explicitada. Confessar uma condição
de bem-estar e o desejo de permanecer no país de exílio é assumir o desligamento
entre o destino individual e o destino do processo político coletivo, que lhe conferia a
identidade original. É pôr em questão o exílio, dando-lhe mesmo outro sentido:
« ...todas as privações, a dor, a prisão, a perda daqueles que se amava, em suma, todo
o sofrimento é, de repente, despossuído de significação: então, o exílio não é mais que
uma perda, enquanto que o tempo “fora” adquire um novo sentido »60.
Assim, o exílio teria produzido a metamorfose 61 , criando uma identidade
ligada à original, mas distinta dela.

58 - SERGE, Victor, 1987. pp. 425-6.


59 - In NEVARES, Salvador Reyes, 1982. p. 174; cf. também p.167.
60 - VASQUEZ, A. e ARAUJO, A., 1988. p. 11.
61 - Cf. VELHO, Gilberto, 1994: «Na sua famosa obra As metamorfoses, Ovídio narra histórias onde
homens, mulheres, deuses, animais, plantas, minerais, rios, lagos, estrelas etc. mudam de sexo, gênero,
natureza, espécie, forma, contudo sempre guardando algum sinal do estado anterior. Embora sofram a
ação do destino fica o registro de alguma vontade ou iniciativa dos seres». p. 8.

14
Quando o exílio é descoberta, pode existir um certo pudor em reconhecê-lo
como tal. Neste caso, a culpa tende a enfatizar o sofrimento, onde ele deixou de ser o
essencial.
O exílio também pode ser - e freqüentemente é - o lugar da resistência, da
continuidade da luta. Este é um aspecto positivo do exílio. Muitas vezes, a
experiência é definida e vivida como « missão ». Segundo Carl Zuckmayer, no caso
da intelectualidade alemã exilada do nazismo, o exílio era a resistência à barbárie: « A
última gota de sangue que pulsa no coração de um emigrado “é o símbolo do espírito
e da liberdade”»62.
A transgressão à estrita obediência e o desafio de correr o risco do desvio
estão, segundo Julia Kristeva, no fundamento da soberania de Davi, ou seja, em Rute,
sua ancestral, a matriarca do reino judeu. Estrangeira à linhagem judaica, Rute é
descendente de Moabe, fruto incestuoso de Loth. O próprio Loth é um exilado, ou
melhor, o « patriarca dos exilados »63 que deixou Sodoma antes da destruição. A
eleição do povo judeu é a recompensa à transgressão da ordem e ao desafio à
homogeneidade. É também « ... uma concepção da soberania que repousa no
rejeitado, no indigno, no fora-da-lei (...). [Ainda que não seja], absolutamente, um
encorajamento ao desvio nem ao proselitismo, mas um convite a se considerar a
fertilidade do outro »64.
Miguel Torga trabalha poeticamente este outro lado do exilado:

« Enquanto os outros mortais são árvores humanas plantadas no solo onde


nasceram, que o vento da exclusão não arranca nem o imperativo da fome
desloca, o emigrante, ao invés de galhos, tem asas, que não atingem somente
o espaço limitado da copa, mas toda a imensidão possível »65.

Para se pensar os aspectos positivos do exílio, é interessante a comparação


estabelecida por Georges-Hubert de Radkowski entre o sedentário e o nômade:

62 - Cit. por PALMIER, J.M., 1988. vol.1. p. 379.


63 - Cf. PASKOV, Viktor, 1991-1992.
64- KRISTEVA, Julia, 1994. p.80. É bom lembrar, no entanto, que Rute, conforme Kristeva deixa
claro, aceita as regras do povo judeu. Mesmo assim, apenas seu filho entrará na linhagem judaica, já no
momento do parto; ela jamais.
65 - TORGA, Miguel. pp. 39-40.

15
« Que é um sedentário? É um homem fixo no solo como uma planta: pela raiz.
Do solo extrai a existência. Aí, implorando ao generoso céu, a vertical de seu
corpo harmoniza-se com a horizontal da terra onde germina sua vida, o real se
concentra. Aí se situa o lugar que o acolhe e o abriga, aí ele vive, daí ele pro-
vém. Ele existe em virtude deste centro, é daí que ele extrai sua origem, seu
fundamento...»66.

O lugar é seu bem, sua propriedade: « o lugar é o fundamento do real e o lugar


está no centro, ele é o centro », para onde tudo converge.
Para o nômade, ao contrário,
« o real não está no centro, mas escapa pelos horizontes rasgados por sua
marcha errante...Nômades, estamos fora de nosso lugar, na estrada. O que nos
orienta, nos anima, nos move, está além de nós, fora de nosso atual alcance...
somos homens do futuro, homens do por-vir, homens que anunciam o
porvir...»67.

Para muitos, as raízes deixam de ser importantes: « Raízes? Eu não quero


raízes, eu quero radares! », exclamou um filho de exilado, nascido no exílio 68. Ou
ainda, como filosofou o migrante português João Lemos: «No passado, meus
ancestrais descobriram o mundo. Existem territórios ainda mais vastos a descobrir em
si (...). O que me interessa são os frutos, não as raízes»69.
Livre de fronteiras, o estrangeiro desafia a moral de seu país. Para ele, tudo é
possível. Os tabus sexuais são mais facilmente transpostos; ele diz na língua
estrangeira o que teria dificuldade de dizer na sua, conforme observou Julia Kristeva.
Talvez a solidão, da qual falara Torga, seja o absoluto da liberdade do estrangeiro,
livre de qualquer laço com os seus.70

66 - RADKOWSKI, G.H., cit. por GAILLARD, A.M., 1990. p.87.


67 - RADKOWSKI, G.H., 1989; citações, respectivamente. pp. 13, 17 e 18.
68 - Thiago de Oliveira, filho de Luís Eduardo Prado de Oliveira.
69 - Testemunho de João Lemos, emigrado na Suíça, desde 1977, ator e motorista de taxi. Cit. na
exposição de fotografias de Simone OPPLIGER., Le coeur et la terre: Imagens et récits
d’enracinement et d’exil., no Centre Culturel Suisse, Paris, de 8 abril a 21 maio de 1995.
70 - Cf. KRISTEVA, Julia, 1994.

16
A contradição será o artífice do nosso personagem. É o exílio que o colocará
em contato com o mundo71. O exílio foi sua escola: « “O Universo é uma espécie de
livro do qual não se leu senão a primeira página quando somente se viu o seu país”
» 72 . E o exilado vê muitos países, vive diferentes culturas, fala e ouve línguas
estranhas, acumula infindáveis experiências. No exílio, ele se forma e se transforma.
E, se neste turbilhão « desequilibra o espírito », também descobre outros continentes.
Apátria, o mundo será sua pátria: « A única pátria, estrangeiro, é o mundo que
nós habitamos; um só Caos produziu todos os mortais» (Méléagre de Gadara, séc. I
a.C.)73.
Como o nômade de Radkowski, sob os « signos da separação e da amplidão »,
assumindo esta ao superar aquela, apropriando-se do objeto, possuindo-o74.
Os que descobrem estes continentes terão asas.

III - A maldição de Posêidon

Se exilado é uma categoria própria da literatura, liberta de amarras e


convenções, no campo jurídico, atendendo a necessidades objetivas de classificação
de organismos oficiais e internacionais, é «traduzida» como refugiado e migrante.
Nesta passagem, o exilado/refugiado descaracteriza-se, passivo e vitimizado, e perde
a sua condição de ser construído na e pela ação.
Os textos mais antigos que se referem ao direito de asilo datam de meados do
2º milênio a. C. No entanto, no plano internacional, as primeiras definições só
apareceram nos anos 20 do nosso século, mas visando sempre grupos precisos.
Somente em 1951, com a criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR) e com a Convenção de Genebra, uma definição mais geral de

71 - Humilhado com as dificuldades na obtenção de documentos e vistos, Stefan Zweig sentiu,


exatamente o inverso, afirmando ter sido, antes do exílio, um « cidadão do mundo » . Cf. PALMIER,
J.M., 1988. vol. 1. p.351.
72 - FOUGERET, em 1748, cit. por KRISTEVA, Julia, 1994. p.149.
73 - Cit. OPPLIGER, Simone, 1995.
74 - Cf. RADKOWSKI, 1989. p.19.

17
refugiado foi acordada75. Ainda assim, como visava atender sobretudo aos refugiados
do leste da Europa, manteve um caráter eurocêntrico76.
Segundo a Convenção de Genebra, é refugiada qualquer pessoa

« ... que, como resultado de acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de


1951 e devido a fundados temores de ser perseguida por motivos de raça,
religião, nacionalidade, vinculação a determinado grupo social ou opiniões
políticas, se encontre fora do país de sua nacionalidade e não possa ou, devido
aos referidos temores, não queira, entregar-se à proteção de tal país; ou que,
carecendo de nacionalidade e encontrando-se, em conseqüência de tais
acontecimentos, fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa
ou, devido aos referidos temores, não queira, a ele regressar »77.

Em 1961, o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados ratificou a Convenção,


eliminando qualquer data-limite78.
A partir daí, o estatuto de refugiados da Organização das Nações Unidas é
regido por estes dois instrumentos jurídicos, embora o conceito tenha sido ampliado
pela Convenção da Organização da Unidade Africana, em 1969, procurando proteger
os refugiados da África79.
O Alto Comissariado não considera refugiadas « ...normalmente...as pessoas
que se vêem obrigadas a deixar o país de origem como resultado de conflitos armados
internacionais ou nacionais... »80, ou seja, o que conhecemos como « refugiados de

75 - Cf. LEGOUX, Luc, 1995.


76 - Cf. JACQUES, André, 1985.pp. 214-215. Sobre o eurocentrismo da Convenção de Genebra, ver
Edmond JOUVE, citado por André JACQUES, p. 215.
77 - Convención sobre el estatuto de los refugiados, de 1951, §2, seção A do art.1, in OFICINA DEL
ALTO COMISIONADO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LOS REFUGIADOS, 1979. p.64.
78- A Convenção de 1951 foi adotada por uma Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas,
em 28/07/1951, e entrou em vigor em 22/04/1954. O Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de
1967, de 31/01/1967, vigora desde 04/10/1967. Oitenta e três países fazem parte da Convenção e/ou do
Protocolo. Cf. relação dos países no Anexo IV, pp. 94-5 e cf. Protocolo sobre el estatuto de los
Refugiados, de 1967, in Anexo III, pp. 89 e ss, in OFICINA DEL ALTO COMISIONADO DE LAS
NACIONES UNIDAS PARA LOS REFUGIADOS, 1979.
79 - Cf. JACQUES, André, 1985.
80 - OFICINA..., 1979. p.43.

18
guerra » 81 . Também estão excluídas, as « vítimas de fome ou de desastres
naturais »82. A exceção é prevista para o caso de, além destes infortúnios - ou por
causa deles -, a pessoa demonstrar ter « fundados temores de ser perseguida », como
prevêem a Convenção e o Protocolo 83.
As classificações nunca são simples. Não se trata de uma « operação mecânica
e rotineira »84, o que leva o Alto Comissariado a publicar um manual, de cento e três
páginas para explicar a seus funcionários, a definição de refugiado, expressa em
apenas um parágrafo, conforme a citação acima. Aliás, segundo Jean-Luc Mathieu, «o
próprio ACNUR mistura frequentemente os diferentes significados da palavra
“refugiado”» e seu sentido estrito constitui apenas uma parte do que a opinião pública
chama habitualmente «refugiado»85.
Definindo refugiado segundo critérios «técnicos» e «impessoais» - como é
próprio do discurso jurídico -, capazes de reconhecer indivíduos e grupos
populacionais de diferentes continentes, etnias, meios sociais, em diversos momentos,
o ACNUR estabelece, antes de tudo, uma maneira de ver a «questão dos refugiados»
e, por sua vez, uma forma determinada para tratar o assunto. Ao fazê-lo, o ACNUR
deixa de lado aspectos que seriam específicos do migrante. No entanto, as fronteiras
que diferenciariam uns dos outros são tênues e, muitas vezes, se confundem. Só
analiticamente podem estar rigorosamente separadas.
É interessante notar como, mesmo utilizando uma linguagem jurídica e
impessoal, o que caracteriza a busca de uma objetividade racional, o critério básico
para definir refugiado dificilmente seria mais subjetivo e emocional: o «temor».
Talvez apenas um sentimento semelhante poderia ser alçado à condição de
denominador comum em meio a tão grande diversidade, estando presente em
indivíduos e populações de toda e qualquer origem. Um latino-americano, um

81 - Estes são protegidos por outros instrumentos internacionais, como os Convênios de Genebra de
1949 e o Protocolo Adicional de 1977 aos Convênios de 1949. Cf. OFICINA..., 1979. p.43. Para se
referir às pessoas tangidas por invasões estrangeiras e guerras, a bibliografia específica usa, com
frequência, o termo «pessoa deslocada» (personne déplacée).
82 - OFICINA..., 1979. p.12.
83 - No caso dos « refugiados de guerra », deve ficar demonstrado também que o pretendente à
condição de refugiado « ... pode ou não recorrer à proteção de seu governo, ou de uma potência
protetora que tenha o dever de salvaguardar os interesses de seu país durante o conflito armado, e que
se possa considerar essa proteção eficaz ». Cf. OFICINA..., 1979. p.43.
84 - OFICINA ...., 1979. p.59.
85 - Cf. MATHIEU, J.L., 1991. p.7 e cit. anterior, p. 8.

19
africano, um europeu do Leste, um vietnamita, de diferentes faixas etárias, níveis
sociais, em conjunturas históricas diversas sentem medo. Em outras palavras, para se
chegar a um critério unificador das diferenças, só recorrendo-se a um aspecto da
própria «condição humana».
Como se sabe, elaborar critérios classificatórios implica em atribuir valor e
hierarquizar86. Trata-se de um ato de poder na medida em que se traduz em práticas.
Definindo o refugiado a partir do critério do medo, o ACNUR o qualifica como
vítima. Na verdade, a Convenção ocorreu sob o clima da Guerra Fria e foi redigida
pensando-se, sobretudo, nos refugiados do leste da Europa 87 , o que explicaria a
vitimização do refugiado.
Como o exilado é classificado oficialmente como refugiado, ele é
desqualificado como ser político, exatamente o que lhe dá identidade. Em outras
palavras, o critério forjado no contexto da Guerra Fria cria descompassos em relação,
por exemplo, ao exilado das ditaduras latino-americanas, nos anos 1970,
essencialmente políticos. Evidentemente, ele deixa o país de origem devido a um
regime que o ameaça fisicamente ou sob o qual se recusa a viver. Mas, não deve ser
vitimizado. Ele é um ser político que, de uma forma ou de outra, desafia e enfrenta o
poder constituído, segundo suas idéias e posições e, por isto mesmo, está nesta
condição88. Muitos brasileiros nos anos 1960 e 1970 recusavam o sentido de vítima
do termo refugiado a eles atribuído. A vitimização que facilmente se transformava em
infantilização soava até mesmo como ofensa.
O líder do movimento estudantil Vladimir Palmeira 89 tem uma boa síntese
sobre o assunto:

«Não se trata dos “pobrezinhos refugiados” e sim do pessoal que constrói sua
vida conscientemente, que sabe no que se meteu, que mantém uma ligação
permanente com o Brasil e sabe das injustiças de sua sociedade, e que

86 - Cf. DUARTE, L. F., 1986.


87 - JACQUES, André, 1985. p. 214.
88 - Como trabalho com um conceito amplo de exilado, conforme veremos adiante, nem sempre as
pessoas atingidas pelo exílio nos anos 1960 e 1970, tinham esta característica. Para lembrar alguns
exemplos, cito as crianças e os adolescentes filhos de exilados e mulheres que se tornaram exiladas por
serem casadas com perseguidos, caso mais frequente entre a geração 1964 (sobre a discussão de
«geração», ver adiante). No entanto, a princípio, acredito que o exilado deva ser assim identificado.
89 - Entrevista com Vladimir Palmeira no Pasquim, 10 (508): 10-15, 23/29 mar. 1979. p. 13.

20
incorpora o exílio como parte de sua vida. Não temos vocação sentimentalóide
nem queremos posar de mártir. Quem faz a luta popular no Brasil se arrisca a
muita coisa, e o exílio é parte integrante do horizonte que as pessoas vão
abrindo quando entram nessa luta. ...os exilados são caras ativos, é gente que
ganha o pão de cada dia com seu trabalho e que na medida de seus meios
participa da vida brasileira. É importante dizer isso pra acabar com a visão dos
pobrezinhos dos refugiados».

Ou, como Arthur José Poerner, que se assumia como

«um refugiado político consciente de que nos encontramos no exílio em


consequência de atitudes assumidas em defesa de uma causa que temos por
justa, a do nosso povo. Ninguém, portanto - e disso não estamos excluídos -,
tem o direito de se apiedar de quem goza da maior de todas as liberdades, a da
sua consciência. Fora, pois, com a autocompaixão, essa insidiosa moléstia que
vive a nos espreitar! Fora, também, com a lamentação das oportunidades
perdidas em decorrência do exílio!»90.

Os exilados brasileiros viveriam, contudo, o seguinte conflito: por um lado, os


incomodava a classificação de refugiado, não se reconhecendo como vítimas e
recusando a infantilização implícita no tratamento das organizações internacionais de
acolha. Mas, por outro, os benefícios legais e materiais do estatuto convinham e eram
necessários a eles. Ao mesmo tempo que o estatuto pode representar a salvação, é um
limite, um controle.
Este problema, no que se refere à experiência brasileira, apareceu com maior
nitidez a partir da queda do presidente Allende, quando os exilados se dispersaram
geograficamente. No Chile, até o golpe de Estado, ser refugiado político era uma
posição valorizada, numa conjuntura de acirramento dos movimentos sociais de
esquerda. Este prestígio ainda permaneceu, durante algum tempo, entre a esquerda
européia que recebia os exilados do Chile, o que não impediu, no entanto, um tipo de
acolha e assistência muitas vezes pautado na vitimização/infantilização.

90 - Depoimento de Arthur José Poerner, em Memórias do exílio, 1978. p. 265.

21
Contradições decorrentes da identificação do exilado como refugiado se
explicitaram, sobretudo, em determinados momentos da trajetória dos exilados
brasileiros, levando a situações surpreendentes, como veremos.
Nos últimos anos, é cada vez mais evidente a fluidez dos limites das
classificações de refugiado, exilado e migrante. A fome, a miséria, as doenças
agravadas pelos conflitos armados, em diversas partes do mundo, sobretudo na
África, e mais recentemente nos países do leste europeu, vêm aumentando o êxodo
em direção aos países mais ricos da Europa ocidental. Fica difícil e complexo
estabelecer as fronteiras entre o migrante econômico e o refugiado político. Em
muitos casos, elas empiricamente não existem. Em outros casos, contudo, é o
migrante econômico mesmo que se desloca, buscando melhores condições de vida,
situação tão antiga quanto o homem. O quadro é agravado ainda com o aumento do
desemprego na Europa, a crise no setor da previdência, a ascensão de governos e
grupos de direita, o crescimento da extrema-direita. Tudo isto cria uma conjuntura
mais e mais desfavorável ao refugiado. Os órgãos oficiais restringem com rigor a
concessão do estatuto, exigindo, muitas vezes, o impossível: provar a existência de
«fundados temores» de perseguição. Na verdade, uma clara política para barrar a
chegada e a instalação de refugiados/migrantes. Face à ausência ou à insuficiência de
provas, o estatuto de refugiado é recusado. Outros mecanismos também têm sido
utilizados em alguns países, como, por exemplo, a instalação dos emigrados, por
tempo indeterminado, em verdadeiras prisões, proibindo-os, inclusive, de sair do
local, até a resposta do governo sobre o pedido de asilo. Este ambiente hostil,
humilhante e autoritário fariam parte da mise-en-scène para dissuadir o
refugiado/migrante da intenção de ficar naquele país. Instituições de solidariedade e
apoio aos solicitantes de asilo, advogados e grupos de esquerda vêm denunciando esta
prática que já se tornou comum em países desenvolvidos.
Em tempos de crise, desta forma, os países signatários da Convenção de
Genebra vão criando formas para se esquivar dos compromissos outrora assumidos,
sob o impacto da 2ª Guerra, quando o mundo assistiria a um momento de grande
expansão de políticas públicas nacionais no campo social e de prestígio dos
organismos internacionais. Nada mais longe dos inícios dos anos 1990.

IV - Navegando em mares revoltos

22
Diante de tais observações, fica claro por que, para o pesquisador, é muitas
vezes difícil ou até mesmo impossível, quando não inútil, o exercício de traçar nítidas
fronteiras entre o exilado, o refugiado e o migrante. No entanto, algumas reflexões a
respeito de distinções entre o refugiado e o migrante ajudam na discussão específica
do exílio e do exilado.
O que é o migrante? Em primeiro lugar, ele é caracterizado pelo aspecto
econômico. A migração é motivada por pressões econômicas, assumindo também - e
principalmente -, um caráter social. Em geral, fala-se de uma partida « voluntária »,
de uma « escolha pessoal », em comparação às situações do refugiado e do exilado.
Segundo Anne-Marie Gaillard, um « migrante econômico » diferencia-se do
exilado por ter feito uma « escolha individual e amadurecida » pela partida, « mesmo
quando a migração é indispensável à sobrevivência », em oposição ao exilado, cuja
partida é « imposta brutalmente »91. É esta, igualmente, a posição de Ana Vasquez e
Ângela Xavier de Brito, ao afirmarem que « ...o motivo da partida distingue o exílio
da migração econômica... ». O exilado é forçado a deixar seu país e o migrante
escolhe este caminho. Ao primeiro, é interditada a volta, o que não ocorre com o
segundo. Mesmo « virtual », esta possibilidade de volta é, ao menos, legal92.
No entanto, se se acredita que nenhum grupo social parte, na penosa condição
de migrante, se lhe é garantida, no país, uma vida minimamente digna, pode-se
flexibilizar a interpretação, segundo a qual, o migrante parte « voluntariamente »,
como resultado de uma « escolha pessoal », mesmo que muitas explicações sejam
dadas para atenuá-la. A migração é um fenômeno social, não individual, e a partida
deve ser entendida numa perspectiva ampla, não estando limitada à idéia da escolha
individual, da possibilidade legal da volta, nem tampouco à presumida ausência de
« imposições » e « brutalidades », mesmo se comparada à violência sofrida pelos
exilados. Tais violências estão presentes onde há pobreza, miséria e desemprego,
fatores que motivam os processos migratórios. Seria melhor dizer que o migrante não
opta individualmente pela partida e sim é levado socialmente a escolher esta opção93.
Em sociedades marcadas pela desigualdade, sobretudo em períodos de crise

91 - GAILLARD, A.M., 1990. p.6.


92 - VASQUEZ, A. e XAVIER DE BRITO, Â., 1993. p.62.
93 - A autobiografia de Albert Camus é primorosa para a compreensão da migração, neste sentido,
inclusive na descrição e na análise da violência a que os migrantes estão submetidos, no momento da
partida, na viagem ao país de destino, na instalação, na vida que levam etc. CAMUS, Albert, 1994.

23
econômica - realidade dos países e dos momentos de emigração - , é difícil encontrar
o lugar da opção entre os excluídos. Se tal opção existe - e, sem dúvida, pode-se dizer
que há escolha - , ela é realizada sob fortíssimos constrangimentos.
Para se compreender o migrante, parece-me mais esclarecedor vê-lo como
« trabalhador » 94 . Sem inserção no mercado de trabalho ou precariamente nele
integrado, parte em busca de melhores condições materiais. Freqüentemente, os
migrantes têm sido « os mudos », assolados pela pobreza, sem memória, sem nome e
sem passado, que « fizeram o mundo desfazendo-se para sempre » 95.
É significativo que o ACNUR também utilize o critério « econômico » na
diferenciação do migrante do refugiado, acrescentando, ainda, o « desejo de mudança
ou aventura », as « razões familiares » ou os « motivos de caráter pessoal »96. Mais
uma vez, a dificuldade de estabelecer as definições aparece:

«Entretanto, a distinção entre o emigrante por motivos econômicos e o


refugiado é, às vezes, tão imprecisa como a distinção entre medidas
econômicas e políticas adotadas no país de origem do solicitante. Atrás das
medidas econômicas que afetam os meios de vida de uma pessoa podem
ocultar-se intenções ou propósitos de ordem racial, religioso ou político
dirigidos contra um grupo determinado. Nos casos em que as medidas
econômicas destroem os meios econômicos de determinado setor da população
(...), as vítimas podem, de acordo com as circunstâncias, converter-se em
refugiados ao abandonar o país»97.

A análise da situação da volta também é útil para a compreensão da condição


do migrante98. O migrante pode voltar, mas ele o faz, geralmente, na condição de
visitante. Se bem sucedido, ele tem orgulho de exibir sua ascensão econômica aos
conterrâneos. Se este não for o caso, sonhará, eternamente, com o dia de rever o país,
embora por poucos dias. No universo do migrante, a volta definitiva é pensada apenas

94 - Cf. VASQUEZ, A. e ARAUJO, A., 1988, p.35; cf. VASQUEZ, A. e RICHARD, G., 1978. p.5.
95 - CAMUS, A., 1994, pp. 278 e 174. Este livro também é excelente para se ter uma percepção da
questão da memória entre os migrantes.
96 - OFICINA..., 1979. p.17.
97 - OFICINA..., 1979. p. 17.
98 - Sobre as especificidades da «volta» e da «chegada», entre os exilados, ver os capítulos 9 e 10.

24
quando acompanhada da riqueza conquistada, no exterior. Do contrário, é o pior que
lhe pode acontecer. Seria a evidência do fracasso, a humilhação só enfrentada em
circunstâncias dramáticas. Fala-se na volta do migrante como uma opção pessoal, mas
não deixa de ser problemático pensar assim. Legalmente viável, concretizá-la, muitas
vezes, não depende apenas da vontade e envolve um mínimo de condições materiais,
nem sempre acessíveis.
O que seria específico do exilado classificado como refugiado? Sobretudo, o
aspecto político99. Por discordar do regime político e/ou econômico vigente e, muitas
vezes enfrentá-lo, é perseguido institucionalmente. Com isto, surge um conflito, pois,
em geral, o exílio atinge pessoas ligadas a um tipo de luta pela transformação de seu
país. O exilado define-se bem no dilema do escritor russo Andriei Bieli, perseguido,
nos anos 1930: « Não consigo viver fora desta Rússia e não consigo respirar
nela! »100.
Pode ser expulso formalmente - como banido, por exemplo - ou ser
informalmente « empurrado para fora », devido às perseguições e ameaças do
aparelho repressor. Nestes casos, a partida é a própria garantia de sobrevivência física.
Mas há também situações em que, por não suportar o regime, os cerceamentos e o
ambiente autoritário a que o país está submetido, o indivíduo acaba por partir.
Em suma, fundamental para a compreensão deste tipo de condição, é o fato de
ela ter referências políticas mais ou menos sólidas, concretizadas, na maior parte das
vezes, numa prática afrontadora do sistema econômico e/ou do regime político. Os
princípios políticos, embora possam ser reavaliados no exílio - e, frequentemente, o
são - , fortalecem o exilado, preparando-o para o enfrentamento de sua condição.
O exilado tem um projeto sócio-político para a sociedade. É a derrota deste
projeto101, ao mesmo tempo individual e coletivo, ou as dificuldades consideradas
intransponíveis para a sua implementação, que o faz exilado102.
Se as análises sempre constatam que o exilado não opta pela saída do país, é
interessante observar o contrário: o exílio como forma de opção. A esquerda armada,

99 - Procurando diferenciar os exilados políticos chilenos, uruguaios e argentinos, na França, a partir


dos anos 1970, dos migrantes, Ana Vasquez e Gabriela Richard identificam a « ideologia » como
elemento particular dos primeiros. Cf. VASQUEZ, A. e RICHARD, G., 1978. p.5.
100 - Cit. por SERGE, Victor, 1987. p. 177.
101 - Para a definição de projeto, ver VELHO, Gilberto, 1994.
102 - Cf. VASQUEZ, A. e ARAUJO., 1988. p.35.

25
por exemplo, mesmo num quadro desfavorável, de impasse e massacre, evidente
sobretudo a partir de dezembro de 1970 e janeiro de 1971 103 , teve enormes
dificuldades de pensar a saída do país como um recurso disponível, viável e
temporário, logo, como uma opção política. A recusa ao exílio, portanto, não
raramente, era vista como única opção. São exemplares, entre outros, os casos de
Carlos Lamarca e Iara Iavelberg. «Exílio é o cemitério da ideologia. A pessoa precisa
de dinheiro para viver e perde a capacidade de atuar. Corrompe-se
ideologicamente»104. Isto é, perdia sua identidade, sendo sinal de fuga, fraqueza e,
pior ainda, corrupção. Daí a grande expectativa dos que se negavam a sair, em relação
à volta dos trocados por diplomatas estrangeiros. Saindo das prisões em direção ao
exterior, imaginava-se que eles logo retornariam ao país e se integrariam na luta.
Neste sentido, o banimento não era a porta de saída do país nem o início do exílio,
mas ao contrário, a porta de (re)entrada.

Como se vê, o «pesquisador do exílio» logo se depara com as dificuldades e


complexidades do seu tema. De imediato, percebe que, para compreendê-lo - em sua
amplitude e riqueza - , é preciso recorrer às diversas áreas de sensibilidade e
conhecimento: história, sociologia, antropologia, ciência política, literatura,
psicologia...
Marcelo Viñar, uruguaio, ex-exilado, radicado em Paris, psicanalista de
exilados e ex-exilados latino-americanos, ao abordar o tema, afirma:

« Seria preciso ser sociólogo, demógrafo, politólogo, psicólogo social,


antropólogo, além do pobre psicanalista que aqui fala 105 . E ainda faltaria
aquela essência de que são feitos os poetas ou romancistas para compreender
alguma coisa desta questão... »106.

103 - O sequestro do embaixador suíço, com as difíceis negociações que se seguiram entre os
guerrilheiros e o governo militar, é o marco.
104 - Lamarca, cit. por PATARRA, J. L., 1993. p.461.
105 - E historiador!
106 - VIÑAR, M., 1992. p. 109.

26
Os estudos de especialistas ampliam a visão do historiador. O diálogo nos leva
a outros universos, abrindo à compreensão de significados políticos, filosóficos e
existenciais.
Ao falarmos em exílio, estamos lidando com o exilado, categoria moldada na
subjetividade, na ambigüidade, na contradição. Dos exílios datados, surge a face
subjetiva do personagem histórico. Então, estudar o exílio é compreender também o
exilado: « Interpretar os exilados para compreender o exílio », segundo Ana Vasquez
e Ana Maria Araujo, elas também ex-exiladas chilena e uruguaia, pesquisadoras dos
exílios dos países do cone sul, numa ótica da psico-sociologia e da sociologia107.
Assim, a estrutura cultural e psicológica e a personalidade do exilado serão
essenciais na compreensão da maneira como o exílio será vivido. Secundarizar estes
aspectos, produziria uma visão parcial e limitada da experiência concreta. Trata-se
mesmo de um sujeito fragmentado, heterogêneo. Não pode ser trabalhado como um
monolito. O importante é localizar e trabalhar as multiplicidades.
Para além dos aspectos psicológicos, há outras tantas diferenças: origens
sociais, etárias, geracionais, culturais, profissionais, países de acolha, conjunturas e
circunstâncias histórias. Construir tipos ideais de exilados e de experiências.
Identificar casos significativos. Gerais. Particulares. Descobrir as diferentes etapas de
um mesmo exílio. Acompanhá-las. Privilegiar o aspecto qualitativo e não só o
quantitativo. Observar os lados positivos e negativos da experiência. Contar a
«história do exílio», a partir das «histórias de vida», dos relatos e depoimentos dos
exilados. Recuperar os lutos, as dores, as rejeições, os desenraizamentos, as angústias,
as adaptações, as assimilações, as descobertas, as viagens, as alegrias, as
transformações. Levantar a produção intelectual. Os escritos. Os estudos. As
atividades. Os trabalhos e empregos. A militância ou o seu abandono. O que ficou, o
que mudou. Buscar o impacto da emigração ante os governos, as classes políticas e as
sociedades dos países de destino. A repercussão no país de origem. Compreender a
dança destes diversos aspectos, num quadro de transformações permanentes, sob a
influência dos processos e acontecimentos históricos no Brasil e no mundo, que, por
sua vez, a influenciaram.
Buscar as infinitas maneiras de se viver um exílio não impede a visão de um
todo. Ao contrário. Para uns, mesmo diante das dificuldades, a experiência levou a

107 - VASQUEZ, A. e ARAUJO, A., 1988. p.27.

27
descobertas, a encontros, a aprendizados, a mundos. Para outros, são tempos de
solidão, derrota, dor, luto, separações. Para muitos, o doce e o amargo, a calmaria e a
tempestade alternaram-se, sucederam-se, misturaram-se, sintetizaram-se. Ouvem-se
histórias de suicídios, contam-se casos de nascimentos... Narrar a história do exílio e
problematizá-la, creio, é conseguir entender esta dupla face, ao mesmo tempo,
ambígua e complementar. É equilibrar-se entre o objetivo e o subjetivo. É montar um
mosaico de rostos e vivências em meio às circunstâncias e aos processos históricos. É
nesta complexidade que está o sentido do exílio, suas tristezas e alegrias, suas perdas
e vitórias, enfim, sua beleza.
Se isto é conseguido, a imagem começa a surgir, os contornos vão se
desenhando, o foco vai sendo encontrado.

V - Quem é Ulisses?

O exílio dos anos 1960 e 1970 foi uma tentativa de afastar e eliminar as
gerações que contestavam, a partir de um projeto, a ordem política e/ou econômica
identificada à ditadura militar. O slogan do governo Médici, Brasil, ame-o ou deixe-o
é emblemático. É preciso, portanto, compreendê-lo na mesma lógica da prisão
política, dos assassinatos, da imposição à clandestinidade; como mais um esforço dos
militares para controlar a liberdade de expressão e a manifestação intelectual; de
destruição de toda criação contestatória e de uma determinada experiência política. O
exílio, em sentido mais amplo, seria, ao mesmo tempo, a emigração política, a cadeia
e a clandestinidade vivida por muitos no Brasil. As palavras de César Benjamin
sintetizam este sentido:

«... foi uma grande vitória da direita, da ditadura, botar na cadeia ou no exílio
uma parte expressiva das vanguardas do movimento popular em certo período.
(...) A diáspora, a tortura, os assassinatos, a cadeia, longe de fortalecerem (...)
eram um sintoma da nossa fraqueza e, ao mesmo tempo, contribuíam para
aumentá-la. (...)

28
... do ponto de vista da luta, o exílio cumpre para o poder o mesmo papel das
prisões, isolando e afastando indivíduos, grupos ou vanguardas sociais dos
locais da luta...»108.

Ainda que o exílio seja carregado de uma conotação de castigo e punição, não
deixava de ser um incômodo para a ditadura. As ameaças da polícia política aos
presos que iam ser trocados por diplomatas estrangeiros, condenando-os à morte no
momento do embarque, além de serem a resposta possível naquelas circunstâncias à
audácia dos guerrilheiros, expressavam o ódio a quem conseguia deixar o país.
Melhor seria se estivessem mortos, presos, «desaparecidos», impossibilidados de
promoverem campanhas de denúncia que contradiziam a imagem que a ditadura
queria passar de si mesma no exterior.
O exílio representou a derrota de um projeto político e pessoal. Impôs o
afastamento das gerações de 1964 e 1968 do cenário político e de todo o universo de
referências que lhes dera identidade. Mas foi também a liberdade, a resistência, a
continuação da contestação. Se os relatos dão conta da dor dos amigos mortos, das
persistentes e atormentadas lembranças da prisão, das separações, da derrota, do medo
ante as incertezas e o desconhecido, recuperam também a euforia de estar livre, a
salvo, vivo, negando a negação, dando continuidade à luta. De um lado, o fim e a
morte com o desenraizamento do mundo conhecido; de outro, o recomeço e a vida,
que traziam um mundo por descobrir. O exílio brasileiro dos anos 1960 e 1970 é esta
dubiedade, na qual cabem a morte e a vida.
Trabalhando com o conceito de geração, procuro me basear em Jean-François
Sirinelli, cujo ponto de partida está em Jean Luchaire (1933), segundo o qual « ”uma
geração é uma reunião de homens marcados por um grande evento ou uma série de
grandes eventos” » 109 . Desta vivência comum, são gestados o que chamou de
«efeitos da idade», capazes de produzir os «fenômenos de geração». Nas palavras de
Sirinelli,

108 - Carta de César Benjamin a sua mãe, Iramaya Benjamin. Estocolmo, 14 de novembro de 1978. pp.
6 e 7.
109 - LUCHAIRE, cit. por SIRINELLI, 1987, p. 43. Ver também SIRINELLI, J. F., 1987, 1988, 1989,
1996. A proposição de Karl Mannheim é igualmente relevante, ao destacar as experiências históricas
comuns na formação das gerações: MANNHEIM, K., 1990 e BRAUNGART, Richard e
BRAUNGART, Margaret, 1989. Para o debate sobre o uso do conceito de geração, ver, entre outros e
além dos já citados, KRIEGEL, Annie, 1979.

29
«... esses efeitos da idade são às vezes suficientemente poderosos para
desembocar em verdadeiros fenômenos de geração, compreendida no sentido
de estrato demográfico unido por um acontecimento fundador que por isso
mesmo adquiriu uma existência autônoma. Por certo, as repercussões do
acontecimento fundador não são eternas e referem-se, por definição, à
gestação dessa geração e a seus primeiros anos de existência. Mas uma
geração dada extrai dessa gestação uma bagagem genética e desses primeiros
anos uma memória coletiva, portanto ao mesmo tempo o inato e o adquirido,
que a marcam por toda a vida»110.

Assim, os efeitos da idade não são resultados mecânicos das relações entre
classes de idade, mas uma gênese que tem nascimento, uma existência e um
crepúsculo. Entretanto, para que o evento seja capaz de jogar um tal papel catalisador
e permitir o surgimento de uma geração, tem, necessariamente, uma forte amplitude e,
com isto, atinge outras classes de idade. Porém, mesmo que possa marcar toda uma
sociedade, ele será, ao mesmo tempo, gerador de uma classe de idade nova. Trabalhar
com o conceito de geração, portanto, não seria uma reconstrução a posteriori, «...mas
um dado originado das representações coletivas de uma época»111. Sirinelli chama a
atenção para o fato de que, a partir de uma origem comum, a geração segue sua
história: «uma vez surgida, ela viaja através do tempo ao ritmo de seus membros»112.
A diversidade dos itinerários, no entanto, não faz com que uma geração perca toda a
homogeneidade e, com isto, a existência. Ainda assim, «uma geração não é um lugar
de monocultura política: em seu seio coexistem temperamentos e sensibilidades
políticas diversas»113.
O exílio dos anos 1960 e 1970 foi uma experiência vivida pelo que se pode
considerar duas gerações, a de 1964 e a de 1968. Os marcos fundadores foram os
movimentos reformistas e o golpe militar que depôs o presidente João Goulart e as

110 - SIRINELLI, 1996. p. 255.


111 - SIRINELLI, 1987. p. 9 e 10; cf. também p. 8.
112 - SIRINELLI, 1987. p. 10.
113 - SIRINELLI, 1989. p. 69.

30
manifestações, sobretudo, de estudantes, iniciadas em 1965/1966, em uma curva
ascendente até meados de 1968, finalizando com o Ato Institucional nº 5114.
A partir do 1º de abril, toda uma geração de lideranças ativas na cena política
no pré-1964 passou a ser perseguida pelo regime militar. De políticos experientes, que
já atuavam antes de 1945, quando se extingiu a ditadura do Estado Novo, até
militantes bem mais jovens; de políticos e intelectuais que defendiam reformas no
país, através da disputa legal e institucional, a grupos que já propunham
transformações mais profundas, apontando para a necessidade de se recorrer ao
confronto direto, sem o recurso da lei. Em comum, tinham a experiência dos embates
da conjuntura anterior ao golpe: as barganhas políticas, as negociações pré-eleitorais,
as greves, as manifestações de rua, a cumplicidade e a proteção do Estado, os
comícios na Central do Brasil, a reforma agrária na lei ou na marra, as Ligas
Camponesas, as rebeliões de cabos e sargentos115. Entretanto, em geral, associa-se a
primeira geração àqueles que se identificavam com o projeto das reformas de base,
ligados a sindicados e a partidos políticos legais, como o PTB, ou ilegais, como o
PCB. Quando foram para o exílio, já eram, na maior parte, homens maduros e
definidos profissionalmente. Embora a geração 1964 tenha se exilado em variados
países (México, Chile, Bolívia, Argélia, França), Montevidéu foi, sem dúvida, o
grande pólo de concentração, a capital do exílio, sobretudo, em uma primeira fase.
Já a geração 1968 está identificada a militantes mais jovens, extremamente
críticos às posições e práticas do PCB, muitos originários do movimento estudantil,
de onde saíram para se integrarem à luta armada em organizações que
supervalorizavam a ação revolucionária - de massas ou de vanguarda. Os eventos e as
lutas do pós-1964 - o movimento estudantil, as passeatas, as greves, a luta armada, os
sequestros de diplomatas - são as referências 116 . Quando partiram, ainda não
possuíam, em sua maioria, uma profissão definida e vivenciaram o exílio em seus
anos decisivos de formação como indivíduos e profissionais. As principais cidades do
exílio da geração 1968 foram Santiago e Paris.

114 - O AI-5, de 13 de dezembro de 1968, decretou o recesso do Congresso e conferia plenos poderes
ao governo, marcando assim, o fechamento do regime.
115 - Cf. DREIFUSS, René, 1981; IANNI, O., 1965 e 1968; LABAKI, A., 1986; MORAES, D., 1989 ;
PARUCKER, Paulo, 1992; WEFFORT, F., 1978.
116 - Cf. AARÃO REIS Filho, D., 1988, 1990 e 1998; GORENDER, J., 1987; MARTINS Filho, J. R.,
1987; MORAES, J.Q. de, 1989; RIDENTI, M., 1993.

31
Ainda que não se trate de trabalhar com as duas gerações de forma dicotômica
e monolítica, é possível traçar diferenças e oposições que ajudam à compreensão do
exílio. Por exemplo, a geração 1964 sentiu muito mais o golpe como uma derrota do
que a geração 1968, que viveu este impacto com mais intensidade, anos depois em
1973, com o golpe no Chile117. Para a geração 1964, a luta estava muito associada à
defesa do passado anterior ao golpe, à preservação de uma tradição que merecia
mudanças, nos limites de um projeto de reformas. A geração 1968, ao contrário,
negava e desprezava a experiência pré-1964. A luta deveria ser travada em outro
patamar, a partir de um marco zero, que julgava inaugurar118. O ano 1968 anunciava
esta esperança.
No exílio, as gerações 1964 e 1968 são como duas margens, duas paralelas que não
se tocam. As pontes foram raras e frágeis. Os contatos sempre difíceis, não resultando
em atividades mais consistentes. Na verdade, a relação entre as gerações nem estava
colocada. Figuras como Miguel Arraes, Apolonio de Carvalho e Rolando Frati
poderiam ser apontadas como exemplos de políticos que fizeram o trânsito de uma
geração para outra. Ainda que originários da geração 1964 e, portanto, guardando a
«bagagem genética», como diria Sirinelli, tiveram um movimento de integração aos
ideais da geração 1968. Da mesma forma, militantes da geração 1968, como Rui
Mauro Marini, Theotônio dos Santos, e até mesmo militantes da luta armada, como
Carlos Minc, Alfredo Sirkis e Carlos Fayal, que, no final do exílio, aderiram ao
movimento de «reconstrução» do PTB, em Lisboa, o fizeram deixando muito de lado
sua identidade de geração. A interlocução entre as gerações não foi possível. O
diálogo entre elas nem estava em questão. A proposta de recriação do antigo partido
trabalhista, sob a liderança de Leonel Brizola, em junho de 1979, é a própria
expressão do desejo da geração 1964 de recuperar o passado, depois de tantos anos de
exílio119. Analogamente, o apoio de muitos da geração 1968 à formação do Partido
dos Trabalhadores, que se anunciava no final dos anos 1970, tinha a ver com a
pretensão à ausência de vínculos com o passado, que o PT tão bem encarnava.

117 - Esta comparação é muito recorrente nas entrevistas concedidas a DRC.


118 - É interessante notar que os militares, como os jovens de 1968, também tinham um projeto no
qual o passado, o reformismo e a geração 1964 estariam enterrados. Se o projeto da geração 1964
possuía na base a tradição trabalhista, os militares e a geração 1968 identificavam-se a um projeto de
futuro, onde o passado estaria excluído. Evidentemente, é desnecessário dizer que, a partir daí, os
projetos eram absolutamente diferentes.
119 - Vale notar a força da tradição trabalhista. Mesmo depois de tantos anos de exílio, no final, o PTB
é «recriado», inclusive com a adesão de militantes da geração 1968, num ato pleno de significados.

32
Se a geração 1968 desprezou a de 1964, vendo-se como o recomeço, a geração
1964 considerava a de 1968 sem rumo e sem futuro. Talvez o conceito de populismo
tenha impedido uma abertura da geração 1968 em relação à geração 1964, como a
rejeição à luta armada dificultou o diálogo de grande parte da geração 1964 com a
geração 1968.
O exílio esteve longe de ser uma experiência homogênea. As vivências foram
as mais variadas, a começar pelo tipo de exilado. Houve os atingidos pelo banimento;
houve quem decidiu partir, às vezes até com documentação legal, por rejeitar o clima
em que se vivia no país; houve quem, pessoalmente, não era alvo da polícia política,
mas se exilou ao acompanhar o cônjuge ou os pais; houve os diretamente perseguidos,
envolvidos, uns mais outros menos, no confronto com o regime militar; houve quem
foi morar no exterior por outras razões que não políticas e, através do contato com
exilados, integrou-se às campanhas de denúncia da ditadura e já não podiam voltar
com tanta facilidade. Os casos são inúmeros. Neste universo tão diverso, são todos
exilados. Cairíamos em um vazio inútil se pretendêssemos estabelecer quem era e
quem não era, estrito senso, exilado.
O exílio não chegou a ser um fenômeno de massas como, por exemplo, no
Chile. A maior parte dos atingidos era da classe média, escolarizada e
intelectualizada, embora, evidentemente, também tenha havido camponeses, operários
e pessoas com nível de instrução baixo. As origens e referências sociais foram
importantes na vivência da experiência. Outro elemento fundamental para a
heterogeneidade do exílio é o país de destino. A vivência na França, por exemplo, é
absolutamente diferente da de Cuba; estar na Suécia não é semelhante a morar na
URSS. A quantidade de países onde se esteve também. Houve exilados que ficaram
em um único país; outros estiveram em vários, o que implicava constantes processos
de readaptação e reinserção social. Continuar ou não ligado à militância política,
ainda que redefinida, também é um elemento a considerar. Por exemplo, viver o exílio
como membro de um partido é diferente de vivê-lo desligado de qualquer
organização. Além disto, o exílio é dinâmico, está sempre em movimento,
influenciado pelas circunstâncias, pelos acontecimentos e processos históricos. Por
exemplo, a relação de uma pessoa com o exílio em 1973 não é a mesma que em 1978.
E por fim, embora da maior importância como já foi destacado, o exílio é vivenciado
de acordo com as características e as personalidades de cada um.

33
Até o momento, tem sido impossível quantificar as pessoas que estiveram no
exílio, sobretudo, partindo de um conceito amplo de exilado. Os números que surgem,
aqui e ali, não indicam nenhuma referência ou fonte. São apenas suposições: 10.000?
15.000? No exílio e no momento da volta ao Brasil, estes números eram simplesmente
falados e repetidos. Quem estaria incluído e excluído dos cálculos? Como se chegou a
eles? Como os números variaram no tempo? As respostas não existem120.
O exílio brasileiro dos anos 1960 e 1970 será tratado a partir de uma
periodização em 3 fases, segundo as tendências e situações predominantes e/ou
significativas, que, não sendo rígidas, ajudam a uma melhor compreensão e análise.
A síntese de Vera Sílvia Magalhães, «nem era um exílio, embora fosse de
fato», caracteriza bem a 1ª fase do exílio 121 . Iniciada em 1964, com o golpe,
estendeu-se até a deposição de Salvador Allende, em 1973. A morte do presidente e o
terror desencadeado no Chile simbolizaram, tragicamente, não só o fim da experiência
socialista chilena, como também a derrota da revolução na América Latina. A onda de
direita, traduzida na série de golpes de estado, impulsionou muitos deslocamentos no
exílio. Tangidos do Brasil, os exilados foram, sucessivamente, obrigados a deixar
outros países, à medida que as ditaduras se instauravam. A queda do governo da
Unidade Popular marcou a expulsão do continente.
Outra característica predominante da 1ª fase é que, tanto entre os que deixaram
o país na conjuntura do pós-1964 como entre os que se exilaram posteriormente, foi
frequente a idéia de que o exílio seria curto, apenas um recurso para escapar à
perseguição. A volta ao Brasil, para se reintegrar à luta, permanecia no horizonte.
José Maria Rabêlo lembra-se da partida, logo depois do golpe:

«Nós todos (...) tínhamos a ilusão de que o exílio seria uma coisa curta. Eu me
lembro inclusive da declaração que fiz pouco antes de tomar o avião. Mandei
aos jornais, e o Correio da Manhã a publicou com bastante destaque, uma

120 - O objetivo de quantificar o número de exilados frustou-se completamente pela total falta de
dados que pudessem ter um significado real. Qualquer tentativa de fazê-lo seria mera suposição sem
nenhum fundamento.
121 - Entrevista com Vera Sílvia Magalhães, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, em 25 de janeiro e
14 de março de 1994.

34
nota que começava dizendo que nós partíamos para um breve regresso. Foi
com esta idéia que quase todos nós deixamos o Brasil»122.

Nos dois primeiros anos de regime militar, os exilados acompanhavam com


grande interesse o que se passava no país, mantendo a expectativa quanto à
possibilidade de reversão da conjuntura. Para muitos da geração 1964, o golpe
assemelhava-se a um rearranjo de elites políticas e o exílio a um breve intervalo, de
onde se observariam os desdobramentos do episódio. No entanto, depois de 1965, já
começava a ficar claro que o rápido retorno, no quadro do restabelecimento da ordem
democrática, não era tão evidente. Alguns voltaram e integraram-se no combate à
ditadura. Outros sentiram que o exílio, de fato, começara, sem tantas ilusões acerca da
retirada dos militares para os quartéis nem da capacidade de derrotá-los naquele
momento. Para alguns, porém, a realidade do exílio logo se impôs. Assim, quando a
segunda vaga de exilados chegou ao exterior, com integrantes não apenas da geração
1968, mas também da de 1964, a primeira vaga já estava há anos no exílio.
A geração 1968, em geral, também avaliou que o exílio não se prolongaria.
Via-o como um tempo de preparação e reorganização para a reintegração à luta. São
desta fase os treinamentos guerrilheiros em Cuba e na Coréia; os estudos de teóricos
da revolução; a preocupação com a forma física; as tentativas de aprendizado de
profissões manuais que servissem de fachada na clandestinidade; os projetos, até
mesmo mirabolantes, para entrar no país; a não-inserção ou a inserção limitada nas
sociedades, revelando, mais do que em qualquer outro período, o sentido de
provisoriedade típico do exílio. As atitudes e decisões se orientavam neste sentido.
Maria Augusta Carneiro Ribeiro, por exemplo, trocada pelo embaixador americano
em 1969, fez uma cirurgia dentária, na Itália, visando mudar a fisionomia e dificultar
a sua identificação no Brasil 123 . São frequentes os testemunhos de mulheres que
optaram pela interrupção da gravidez, considerando que a gestação e o nascimento da
criança inviabilizariam o projeto da volta. Luiz Alberto Sanz lembra que a maioria
do grupo libertado em janeiro de 1971, em troca do embaixador suíço, do qual fazia
parte, desembarcou em Santiago querendo voltar «a qualquer preço». Um dizia:
«Minha tarefa é exclusivamente me preparar para voltar para o Brasil». Outro: «Eu

122 - Depoimento de José Maria Rabêlo, em Memórias do exílio. vol. 1, 1978. p. 147.
123 - Entrevista com Maria Augusta Carneiro Ribeiro, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, 04 de abril
de 1996.

35
volto nem que seja para meter a cabeça numa árvore». A maior parte, entretanto,
desistiu, o que não foi o caso de Edmur Péricles Camargo, o Gauchão, que, tentando
entrar no país, teria sido sequestrado no Uruguai. Hoje, seu nome está nas listas de
«desaparecidos»124.
É assim que, em vários relatos, aparece a idéia de que o exílio sequer se
iniciara. As interpretações, hoje, alternam-se. Às vezes, confirmam a periodização: o
exílio só começou mais tarde, em uma conjuntura diversa; outras vezes,
reconsideram-na: o exílio já havia iniciado, mas não o percebiam. O testemunho de
Vera Sílvia Magalhães, segundo o qual, enquanto existiu a idéia e o desejo da volta,
assim como a preparação para concretizá-la, não havia exílio expressa a ambiguidade:

«Não pensei em me inserir em nenhum país, até o golpe de 1973. Estava


treinando, lendo, estudando para me construir como quadro revolucionário.
(...) O golpe de 1973 foi uma marca para toda a esquerda. A partir daí, todo
mundo mudou de vida, de uma forma ou de outra. (...). Depois do Chile, foi
uma espécie de diáspora. (...) Até então, o exílio era uma coisa transitória.
Nem era um exílio, embora fosse de fato. Foi na embaixada da Argentina, no
Chile, que me identifiquei como Vera Sílvia. Aí, tive a visão de que ia ficar
mais tempo no exterior»125.

A enorme disponibilidade para a militância deu o tom da 1ª fase, exigindo


uma dedicação intensa e até integral. O trabalho e as atividades políticas se
aproximavam, se confundiam, não raro aquele era exercido em função destas.
Todas as situações revelam a crença na vitória contra a ditadura e a esperança
na revolução. Indicam também a não avaliação do exílio - e até mesmo o seu desprezo
- como o momento e o espaço, não apenas a curto prazo, de luta e resistência. Esta
percepção, para a maior parte dos exilados brasileiros, só surgiu mais tarde126.

124 - Entrevista com Luiz Alberto Sanz, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, em 14 de setembro de
1995.
125 - Entrevista com Vera Sílvia Magalhães, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, em 25 de janeiro e
14 de março de 1994. Vera lembra, entretanto, casos de pessoas que entraram na embaixada argentina
no Chile com nomes falsos, mantendo portanto, a idéia da volta ao Brasil.
126 - Mais uma vez, ressalvo ter sido esta posição uma tendência, mas não a regra geral. Por exemplo,
no Chile, o grupo Campanha atuou intensamente orientado pela idéia do «exílio como missão» (cf.
Palmier, 1988), publicando um periódico cujo lema era «Fazer do exílio uma Campanha» (sobre o
grupo e o periódico, ver capítulo 6). Aliás, nesta 1ª fase, até por assumir esta posição, o grupo era

36
Permanecer na América Latina foi, então, o sonho e o projeto político das duas
gerações. A atmosfera que agitava o continente e a proximidade geográfica com o
Brasil sinalizavam que se estava no tempo e no lugar da revolução. Embora esta fosse
a tendência, evidentemente, o exílio, na 1ª fase, não se limitou à América Latina.
O apoio dos governos de Cuba, da Argélia e do Chile da Unidade Popular a
exilados brasileiros, traduzido de formas diferenciadas, foi também uma
característica. Aliás, a valorização do exilado não se restringia aos governos e
partidos de esquerda. A sociedade, em geral, o demonstrava nas ruas, no convívio
diário com os que chegavam.
Cuba foi uma grande referência para muitos, fascinando e atraindo, vista como
o exemplo concretizado da vanguarda que revolucionaria todo um país. Grupos da
geração 1968, por exemplo, gravitavam em torno dos que faziam treinamento
guerrilheiro na ilha. Em outro sentido, o Chile também foi um importante referencial,
atingindo um número maior de exilados brasileiros. A revolução no campo
institucional e com intensa participação social, marcou profundamente quem viveu a
experiência. O contraste com o isolamento das vanguardas brasileiras reorientava
concepções e perspectivas, estimulava a autocrítica e alimentava o sonho da
revolução com as massas.
Cuba e Chile, cada país a sua maneira, foram os símbolos da crença e da
esperança na revolução na 1ª fase.
A queda de Allende, desencadeando uma onda de terror, provocou uma
ruptura de grande impacto. A vitória das forças reacionárias era uma realidade até
mesmo no país que contava com uma ampla base social na luta pelo socialismo,
estimulando a reflexão sobre a viabilidade ou não da revolução institucional.

marginalizado e ironizado pela colônia no Chile, confiante na volta e na vitória. Outros casos podem
ser citados, como a peça de teatro Vinte e cinco anos depois, escrita por Pedro Vianna, exilado no
Chile, que se propunha a denunciar a prisão política e a tortura no Brasil. Entretanto, não por acaso,
poucos brasileiros a assistiram ou mesmo tomaram conhecimento dela, embora tenha alcançado grande
sucesso de público e crítica, com muita repercussão na imprensa (cf. arquivo pessoal de Pedro Vianna).
Um militante, na época, exprimiu como ninguém, na sua simplicidade, o lugar das atividades de
denúncia entre os brasileiros exilados: «Isto é trabalho de mulher!» (depoimento informal, não
gravado, de Daniel Aarão Reis Filho a DRC). Mais tarde, esta situação mudou completamente e as
denúncias ganharam outro status.

37
De uma forma ou de outra, a revolução latino-americana estava derrotada,
pelo menos momentaneamente. «A derrota de um continente» 127 . Com o fim da
experiência chilena, uma outra etapa começava: o exílio no exílio.
Os governos latino-americanos recusaram asilo aos brasileiros vindos do
Chile. Poucos conseguiram ficar na América Latina, embora fosse o desejo da
maioria. A partir de então, ocorreu a dispersão, em direção aos países que se
dispunham a recebê-los. Até o fim da 1ª fase e o princípio da 2ª, as mudanças de um
país para outro foram, em geral, impostas por circunstâncias que escapavam ao
controle dos exilados. Muitos viram, nesta passagem, o início do exílio ou se deram
conta de que ele já havia começado.
A 2ª fase iniciou com a chegada dos brasileiros a países com culturas bem
diferentes, em comparação com a dos países latino-americanos. As dificuldades de
adaptação tornavam-se maiores, a começar pelos idiomas. A idéia da volta ficava
cada vez mais distante e a inserção nas sociedades, ainda que relativa, torna-se uma
realidade, até mesmo em função da necessidade de trabalhar para sobreviver. Foi a
fase da diáspora, do exílio espalhado por diversos países.
O tipo de militância foi mudando, em um processo de crescente valorização da
defesa dos direitos humanos. As associações de exilados se difundiram, mobilizando
campanhas de denúncia da ditadura. Houve um deslocamento de interesse de países
como Cuba e Chile, para a Europa ocidental. A revolução em evidência na 1ª fase, aos
poucos, cedeu lugar à temática da democracia. Paris tornou-se a capital do exílio da 2ª
fase.
Entretanto, a revolução não estava completamente excluída de cena. Revista e
redefinida a partir da experiência no Brasil e na América Latina, reavivou-se com os
movimentos de libertação nacional dos países africanos e com a revolução dos cravos,
em Portugal.
Na Europa, o exilado tornava-se refugiado, dissolvido entre tantos outros,
valorizado no quadro da mobilização que se seguiu ao golpe de 1973, mas, com o
passar do tempo, esquecido em suas atividades de trabalhador não-qualificado. O
relato de Glória Ferreira é, neste sentido, significativo:

127 - Cf. entrevista com Glória Ferreira, concedida a DRC, em Paris, 29 de setembro de 1995 e 1º de
fevereiro de 1996.

38
«Depois, veio uma sensação universal de ser estrangeira muito mais profunda.
Acho que isso marca a nossa integração na Europa porque a gente já vem
desterrada da América Latina. Somos recebidos como refugiados. Na Suécia,
eu me sentia muito identificada com os estrangeiros porque meu trabalho não
era qualificado. Lá você é estrangeira na rua, você é cabecita negra, como se
diz na Argentina»128.

A 2ª fase do exílio abriu a possibilidade de vivências múltiplas e variadas que


tiveram grande peso na redefinição da identidade dos exilados. A Europa, na
conjuntura dos anos 1970, colocava-os em contato com universos e referências que
ampliavam enormemente as perspectivas políticas e a visão de mundo. Temáticas até
então desvalorizadas pela esquerda brasileira - e mesmo ausentes nela - vieram para o
centro da discussão. As descobertas pareciam sem fim no Velho Mundo.
A passagem para a 3ª fase não foi marcada por um evento e, portanto, não há
um ano preciso, mas por um processo de desgaste na fase anterior, resultado de uma
adaptação social limitada ou, profissionalmente, muito abaixo das aspirações dos
exilados, em sua maioria de classe média.
Estas circunstâncias coincidiam com o descontentamento com as lutas
institucionais, com um cansaço da vida nas mesas dos cafés, discutindo conjunturas e
assuntos que se desenrolavam no Brasil já muito distante.
Os países africanos recém-libertados e Portugal da revolução dos cravos
abriam outros horizontes e reacendiam esperanças revolucionárias, mesmo que em
novo contexto. Dos processos, surgiam a possibilidade de inserção social e
profissional qualificada para os brasileiros, muitas vezes, em função até da formação
que haviam adquirido nos anos anteriores na Europa. Muitos encontraram aí a
revalorização como pessoas de esquerda e como profissionais, um espaço para
exercerem atividades criativas e enriquecedoras.
A busca de outros países de exílio não se deu mais no quadro de fugas e
constrangimentos, como ocorrera anteriormente, mas como uma opção dentro de uma
margem de escolhas possíveis, se não muito ampla, ao menos existente. Assim, a 3ª
fase pode ser entendida como de migrações. De certa forma, em termos cronológicos,
se sobrepõe à 2ª fase. O que a define, no entanto, é, fundamentalmente, este

128 - Depoimento de Glória Ferreira, em Memórias das mulheres no exílio, 1980. p. 428.

39
movimento de deslocamento motivado por fatores econômicos e ideológicos. A
migração no exílio.
Nestas circunstâncias, a volta ao Brasil foi redefinida. Não ocorreria mais no
contexto em que foi pensada anteriormente, mas, ao contrário, com a aprovação de
uma lei de anistia.

Capítulo 4 - Refazendo identidades

«O salão de banho era enorme. As mulheres ficavam peladas, as cantoneiras


de ladrilho em volta, de onde sai água fria e quente. O vapor. A água sai do
chão. Você senta no chão para tomar banho. Se esfrega e vai jogando água
com a cuia. O banho é coletivo, todas juntas, a água corre pelo chão de
ladrilho. Aquele cenário é terrorífico. As mulheres são verdes, tatuadas. Vão
se tatuando conforme sua condição de mulher: a mãe, a avó... o corpo vai
sendo tatuado, contando uma história. Tinham umas velhas com as costas, os
braços, todos tatuados. As tatuagens não aparecem porque as mulheres
vivem cobertas. Uma coisa horrorosa... com a falta de sol, ficam feias,
macilentas... Fui vendo aquela coisa... Tinham umas mulheres que são
esfregadoras de pedra pome... elas esfregam a pedra no teu corpo. Só se toma
banho uma vez por semana, então, o corpo fica todo gorduroso... Fazem com
força. Tiram o sebo todo. Aquele ambiente foi mexendo, mexendo, mexendo...
teve uma hora que eu caí, desmaiei». Maria Augusta Carneiro Ribeiro129.

O relato da vivência de Maria Augusta Carneiro Ribeiro com as mulheres


muçulmanas, na Argélia, parece cena de filme surrealista. O choque cultural foi
inevitável para a jovem de classe média, saída de uma geração que desafiava a ordem

129 - Entrevista com Maria Augusta Carneiro Ribeiro, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, 04 de abril
de 1996.

40
e os costumes, valorizando a capacidade de homens e mulheres mudarem o mundo
através da própria intervenção. Depois da glória de ser trocada pelo embaixador
americano por meio de uma ação revolucionária e do treinamento guerrilheiro em
Cuba, para entrar no Brasil e se reintegrar à luta, Maria Augusta via-se em estranha
situação. Esperava a autorização da sua organização para voltar, autorização que não
chegava, que jamais chegaria. A guerrilha estava minada, a repressão acumulava
vitórias, a organização desaparecia. E Maria Augusta esperava.
Muitos anos se passaram até que o desejo da volta ao Brasil pudesse ser
realizado. Ao longo do tempo, o exílio teve que ser vivido no dia-a-dia, envolvendo
questões de ordem subjetiva e objetiva.
Depois de se sentir no centro dos acontecimentos, em uma conjuntura de
intensa agitação política, o exílio foi, para as gerações 1964 e 1968, a ruptura com
uma realidade e o desenraizamento do universo de referências que dera sentido à luta.
A derrota de um projeto político e pessoal, o estranhamento em relação a outros
países e culturas, as dificuldades de adaptação às novas sociedades, que muitas vezes
os infantilizavam, o não-reconhecimento nos novos papéis disponíveis, tudo isto
subvertia a imagem que os exilados tinham de si mesmos, desencadeando crises de
identidade. Em diversas situações cotidianas, foi possível ver a manifestação destas
crises: na batalha pelos documentos ou na recusa em obtê-los; no trabalho e no
estudo; na militância política ou no seu abandono; nas atividades culturais e artísticas;
na vida familiar e afetiva.
A história do dia-a-dia no exílio é, portanto, a história do choque cultural
renovado constantemente; do mal-estar em relação ao outro e, sobretudo, em relação a
si mesmo, entre o que se era - ou se pretendia ser -, e o que se acabou sendo de fato. É
a história da desorientação, da crise de valores que significou, para uns, o fim de um
caminho e, para outros, a descoberta de outras possibilidades. É a história do esforço
inútil e inglório para manter a identidade. É a história da sua redefinição e da sua
reconstrução, que se impunham num processo que se estendeu ao longo das fases do
exílio e que continuou para muitos, mesmo depois da volta ao Brasil.
Diversos fatores atuaram na maneira de viver o cotidiano, a começar pelos
traços de caráter e personalidade de cada um. O status social igualmente pesava:
enquanto alguns exilados eram reconhecidos como profissionais ou como
personalidades públicas, não lhes faltando convites institucionais para prosseguirem
trabalhos interrompidos, outros precisavam impor sua presença, lutando pelo visto e

41
pela sobrevivência material, muitas vezes realizando atividades que nada tinham a ver
com suas expectativas e para as quais estavam superqualificados. Os recursos
pessoais também produziam diferenças: alguns contavam com reservas de dinheiro ou
com a ajuda de família, outros não. A idade interferia: em geral, os mais novos, com
menos bagagem acumulada e solidificada, eram mais flexíveis diante das
adversidades, mas, por outro lado, os exilados com alguma notoriedade, eram também
os mais velhos; o conhecimento da língua estrangeira e o grau de dificuldade para
aprendê-la faziam diferença; ter a companhia da família, às vezes, representou um
fator de segurança e apoio, mas às vezes, foi uma sobrecarga de responsabilidade. As
fases do exílio também foram decisivas: as referências de cada período podiam abrir
horizontes ou eliminar esperanças, facilitando ou não o enfrentamento das situações
concretas; os países de exílio interferiam diretamente, aguçando ou atenuando as
contradições. Finalmente, pertencer a um partido ou organização ou ter uma
militância mais definida, ou redirecioná-la para um projeto profissional, em geral,
dava um sentido à vida no exílio.
Enfim, a crise de identidade do exilado envolveu uma rede complexa de
questões, inclusive psicológicas, que afetaram cada um de forma particular. Há relatos
irônicos como o de Darcy Ribeiro: «Pra sofrer o degredo é preciso ter muito caráter,
coisa que não tenho. Sofri à minha maneira, sem exageros»130. Já para outras pessoas
o dia-a-dia foi um drama insuportável, que levou, no limite, à loucura ou até mesmo
ao suicídio, evidenciando o quão dilacerante a dor do exílio pode ser. Entre os
extremos, as vivências foram inúmeras. Recorrente é o fato de a maior parte dos
depoimentos levantar - e até enfatizar - os aspectos psicológicos seja para afirmar sua
relevância seja para questioná-la. Trata-se, portanto, de refletir como o processo de
crise de identidade influenciou as duas gerações como um fenômeno histórico. Em
outras palavras, de pensar como a desorientação provocada pelo exílio atuou na
redefinição do projeto político anterior, a partir da reconstrução da identidade dos
exilados. Magno José Vilela, dominicano exilado em Paris, por exemplo, falou no
exílio como uma «aventura coletiva»131 e não individual. Mais apropriado, contudo,
seria percebê-lo como uma «aventura coletiva» e, ao mesmo tempo, uma «aventura

130 - Entrevista com Darcy Ribeiro, no Pasquim, 9 (426): 8-15, 28 ago./02 set. 1977. p. 13.
131 - Depoimento de Magno José Vilela, em Memórias do exílio, 1978. p. 220.

42
individual». Ainda em 1976, César Benjamin, na Suécia, chamou a atenção para a
questão, com suas contradições e ambigüidades:

«Paris é uma festa, mas para muitos é também um fim de festa. Há um drama
no ar, de que somos protagonistas há vários anos mas agora com outro caráter.
Nossa sorte, ou azar, não sei, mas nossa força, com certeza (mas que se torna a
fraqueza de muitos), vem de ser coletivo, quer dizer, histórico. Aqui, porém,
vê-se claramente o fim de um ciclo: o mesmo drama que teve suas bases
lançadas quando rompemos, com energia mas pouca visão, com nossa classe
em 1969, seguindo sem ela a todo vapor, hoje chega a seu ato final, que pode
levar, para alguns, toda uma vida, numa profunda crise de identidade que,
desnecessário dizer, abre a (difícil) possibilidade de reconstrução. O triste é
ver este drama atual: se no Brasil suas bases estavam lançadas e em
desenvolvimento, lá ele se mesclava com o elemento heróico, utópico (no
sentido de antítese de mesquinho), tendia ao épico que nos sustentava e dava
uma beleza; enquanto aqui, para muitos, do drama resta a tragédia, ou até
atinge-se a farsa. A crise de identidade que se vê nos rostos das pessoas sem
pátria e sem classe, sem encadeamento entre passado e presente se projetando
prá frente, vivendo numa eternidade estática e vazia de sentido (é bom, por
sinal, eu estar lendo agora A Montanha Mágica), a crise de identidade, repito,
se é forte e dura, nos abre ao mesmo tempo a possibilidade de sua reconquista
em outro nível, maior, mais profundo e humano, porque optada. Trata-se de
um desafio. Creio que muitos não o vencerão, mas os que sobreviverem terão
algo a dizer»132.

I - A perda da alma que fala

Na Alemanha oriental, o «país cinzento», a «arquitetura e a cor dos prédios»,


«a dificuldade com a língua», «o horário», «a disciplina», «o controle rígido», «o
sistema totalitário», o clima, os hábitos, os costumes, tudo tão diferente de Contendas

132 - Carta de César Benjamin a sua mãe, Iramaya Benjamin. Estocolmo, 16 de novembro de 1976. p.
1.

43
do Sencorá, interior da Bahia, onde nasceu, fizeram parte do cotidiano de Delson
Façanha, de 1974 a 1983133. A esperança na guerrilha urbana e rural, que mudaria o
rumo da História, impedindo que tantos nordestinos fizessem um caminho semelhante
ao seu, marcado pela pobreza e pela necessidade, desaparecia diante da dura rotina de
operário não-qualificado e estrangeiro da indústria química alemã, a quem eram
atribuídos os piores serviços, sob o olhar atento, onipresente e controlador da
República Democrática Alemã.
A afastamento do universo de referências faz com que o exílio pareça com
vazio, ausência, intervalo. As noções de tempo e lugar perdem a nitidez, confundindo
o passado e o presente, sobrepondo o país de origem ao de destino, num esforço para
manter o que não existe mais. Na impossibilidade de realizá-lo, restou em muitos a
angustiante sensação de tempo perdido: «Mais do que tempo, são as sensações
perdidas, a sensibilidade, o modo de encarar a vida - tudo me faz falta. Tempo
perdido por estar aqui, e não aí», como descreveu César Benjamin 134. O «estar fora
do lugar» confundia-se com o «estar fora do tempo». Miguel Arraes fala da busca do
lugar perdido como a luta pela vida, como a resistência à morte:

«O exílio é como se você visse o tempo passar fora de você. As coisas


ocorrem sem que você participe, sem que você esteja dentro delas. É preciso,
portanto, um esforço enorme para se manter a par da realidade, através de
conversas, visitas, leituras de jornais, programas de rádios etc. É preciso um
esforço para viver porque, do contrário, quando se fica fora do tempo não se
vive»135.

Em meio às dificuldades para redefinir um projeto político e de vida, o


passado era, para Vera Sílvia Magalhães, a procura de si mesma e se impunha como
essencial à própria sobrevivência:

«Eu fui para o treinamento em Cuba no roldão da minha própria história. Não
tive o comando. Porque a minha saída era dentro do grupo (dos 40 presos

133 - Entrevista com Delson Façanha, concedida a DRC, em Niterói, 24 de agosto de 1995.
134 - Carta de César Benjamin para sua mãe, Iramaya Benjamin. Estocolmo, 23 de setembro de 1977.
135 - Entrevista com Miguel Arraes, no Pasquim, 9 (535): 4-5, 28 set. / 04 out. 1979. p. 5.

44
políticos trocados pelo embaixador alemão), eram os meus amigos. Eu não
sabia exatamente se a revolução seria possível ou não novamente no Brasil,
em que momento histórico. Eu tinha muitas dúvidas. Mas quando você chega
a um ponto, naquela idade sobretudo... eu cheguei a meu ponto limite. Eu
achei que tinha dado o que eu podia para construir um projeto revolucionário,
mas e daí? Como você faz um outro projeto? Você já está de tal forma
emaranhado naquilo...Muita gente desistiu, é verdade, nem foi treinar em
Cuba, mas no meu caso, eu fui assim: “eu tenho que sobreviver a esta tristeza,
a este pessimismo. Como? Readquirindo o que foi a coisa mais vital em mim,
que foi o meu projeto revolucionário. Então eu tinha que continuar»136.

Em suas memórias da luta armada e do exílio, Reinaldo Guarany descreve a


desorientação no período em que viveu no Chile, não se reconhecendo no processo
político em curso, rejeitando o presente que lhe conferia a identidade de refugiado,
voltando-se para o passado de guerrilheiro:

«... eu me apegava ao passado, às “glórias” vividas, quase exigindo respeito


reverencioso pelo herói que deveria representar, recusando-me à mediocridade
do presente, reelaborando uma realidade que só quem vivia era eu e os meus
fantasmas, nos delírios a que eu era arrastado todas as madrugadas. Ali, no
banco da praça, durante o silêncio da noite, eu recuperava a minha identidade,
deixando de ser aquele cabide de roupas que tinha de suportar a linguagem
chula dos cogoteiros e cafetinas do Mapocho»137.

O exílio é associado frequentemente a desenraizamento, desestabilização,


solidão: «Eu acordava sufocado, ligava pra todo mundo, escrevia feito um louco,
procurava as pessoas. Me enchia de prazer em saber dos detalhes das vidas contadas
em cartas», diz Juarez Ferraz de Maia 138 . A solidão do exílio desencadeava em
Juarez a lembrança da solidão vivida na prisão, das semanas passadas na solitária.

136 - Entrevista com Vera Sílvia Magalhães, concedida a DRC, no Rio, 25 de janeiro e 14 de março de
1994.
137 - GUARANY, Reinaldo, 1984. p. 112. Cogoteiros: trombadinhas de Santiago, cf. p.107.
138 - Entrevista com Juarez Ferraz de Maia, concedida a DRC, em Paris, 27 de novembro de 1995.

45
Para Maria Valderez Coelho da Paz, o exílio produz uma espécie de «pânico
da solidão» :

«O exterior e o exílio são um exercício de solidão. Foram para mim. Quando


morei com amigos brasileiros foi no início muito bom (...). Depois a casa
começou a ser invadida por pessoas que se procuravam de uma maneira
compulsiva, obsessiva. Se procuravam e não se diziam nada, e se diziam tenho
a impressão que era raramente. (...). Era o pânico da solidão, uma solidão que
aparece mais claramente quando as referências estão longe. (...). Comecei
então a recusar aquela imposição. Além disso, eu queria também poder estar
só, poder estar comigo. Se isto não acontece você cai naquele ritmo louco ou
fica louca você»139.

Mas a solidão não é exatamente um problema que atinja apenas os exilados.


Na avaliação de Emília Viotti da Costa, a sociedade norte-americana de um modo
geral, onde viveu o exílio, é uma sociedade de solitários. O fato, estaria ligado ao alto
grau de competitividade, à falta de um projeto coletivo, de perspectiva e de sentido de
vida. «Mesmo os indivíduos que foram criados aqui sofrem uma solidão espantosa,
solidão que explica o alcoolismo, a droga, os conflitos de adolescentes» 140 .
Entretanto, por desconhecer os códigos sociais, o exilado sente-se particularmente
marginalizado neste universo e, portanto, muito solitário.
A desestruturação emocional do exílio é apontada como responsável pelo fim
de muitos casamentos. Em meio à perda de referências e às dificuldades do período de
reconstrução, o desgaste é inevitável. Por outro lado, fala-se também nas relações que
se mantiveram exatamente por causa do exílio, como uma necessidade de preservar
algo estável, diante da instabilidade, apegar-se a quem se conhece, diante do
desconhecido.
A maneira infantilizadora como os franceses relacionavam-se com os exilados
faz Naná Verri Whitaker, lembrar os «momentos terríveis de desespero», ante a
arrogância e a pretensão de superioridade: «A reputação da França como terra de asilo

139 - Depoimento de Maria Valderez Coelho da Paz, em abril de 1978, em Memórias das mulheres do
exílio, 1980. p. 348.
140 - Depoimento de Emília Viotti da Costa, em abril de 1979, em Memórias das mulheres do exílio,
1980. p. 397.

46
é só verniz». Mesmo as pessoas de esquerda dispostas a ajudá-los na adaptação
assumiam esta posição: «Como se dissessem: “- Estamos fazendo um bem para você.
Podemos ajudar”. Nunca o faziam de igual para igual»141.
A dupla face das instituições de ajuda a refugiados: de um lado, a
solidariedade, providenciando alojamento, alimentação, trabalho, roupas,
documentos; de outro, a infantilização inerente à dinâmica assistencialista. Entre a
necessidade e o constrangimento, o exilado, rebatizado como refugiado, sem se
reconhecer no novo papel que lhe atribuíam. Não é à toa que se fala da desagradável
sensação de ir receber os recursos concedidos. Nas palavras de Sebastião Hoyos,
percebe-se todo o ressentimento com o sistema de acolha suíço: «As ajudas existem
na Suíça para refugiados, mas tem que se mendigar. As regras para obter ajuda são
feitas para humilhar os indivíduos. Eu nunca aceitei isto. Eu tenho a honra de dizer
que nunca fui beneficiado por estas ajudas. Eu sempre trabalhei aqui»142.
O processo de infantilização foi penoso sobretudo para quem estava
submetido a trabalhos desqualificados, com dificuldades para encontrar uma brecha,
seja na política, no trabalho ou no estudo, capaz de mudar a situação. Assim, o exílio
parecia se reduzir à mera sobrevivência, sobretudo se comparado às perspectivas que
a militância passada havia criado, levando a avaliações como a de Joana:

«... a experiência de prisão foi muito mais enriquecedora do que a do exílio.


Pode parecer um absurdo o que vou dizer, mas eu me sentia muito mais viva
do que me sinto aqui. Porque na prisão , mal ou bem, me sentia agindo. No
exílio, a maior parte do tempo me sinto sobrevivendo mesmo, e só.
(...) O exílio é muito, muito diminutivo. Tudo se reduz à sobrevivência! No
exílio, você escolhe muito pouco!»143.

O relato de Nanci Marietto, neste sentido, é também dramático. Segundo ela, o


problema se dava não exatamente por ser exilada ou refugiada, mas por ser
estrangeira: «Os italianos pensam que, se você é estrangeiro, eles podem fazer

141 - Entrevista com Naná Verri Whitaker, concedida a DRC, em Paris, 14 de outubro de 1995.
142 - Entrevista com Sebastião Hoyos, concedida a DRC e Daniel Aarão Reis Filho, em Genebra, 10
de janeiro de 1996.
143 - Depoimento de Joana, em julho de 1977, em Memórias das mulheres do exílio, 1980. p. 331; não
consta o sobrenome.

47
qualquer coisa. Éramos tratados mal, fui embrulhada de todos os modos, o que ocorre
com frequência com os estrangeiros. Tinha-se um péssimo relacionamento com as
pessoas»144. Os trambiques, os roubos, os insultos, as agressões, as humilhações a
que estava submetida fazem parte das tristes histórias vividas por Nanci, em
Roma145.
Se a infantilização parece ter afligido menos os profissionais qualificados que
conseguiram uma inserção profissional em nível equivalente ao que possuíam no
Brasil, o depoimento de Emília Viotti da Costa, professora universitária nos EUA,
aponta de que maneira também eram atingidos pelo problema:

«No exílio muito se aprende, mas o exílio é também um atraso de vida: um


processo de infantilização, pois que o exilado tem de certa forma de ser
“ressocializado”. Ele (ou ela) tem que aprender uma nova língua e esse
aprendizado leva anos. Muito poucos são os exilados que conseguem um
perfeito domínio dessa nova língua. Por maior que seja o seu conhecimento, o
exilado nunca adquire a certeza de suas palavras. E o que é pior: ele perde o
domínio da sua própria língua. Se vive de palavras (é escritor, jornalista,
sociólogo, historiador...), ou porque ensina ou porque escreve, sente ainda
mais agudamente este problema. E quando, a duras penas, consegue reduzir o
número de gafes verbais, descobre que não se trata de traduzir palavras
apenas, mas toda uma etiqueta. Não é apenas a maneira de dizer as coisas que
é diferente, são também os gestos, e não apenas os gestos, mas o que eles
ocultam: a maneira de pensar e de sentir. Pouco a pouco o exilado verifica que
as mesmas dificuldades encontradas na tradução da linguagem encontram-se
na tradução da sua maneira de ser. Toda a sua identidade é questionada»146.

A perda da língua materna é a perda da linguagem expressiva, a perda da


emoção, como analisa Luiz Alberto Sanz: «Ao falar num idioma que não é o meu e
que eu não domino tão bem, eu conseguia dizer coisas com muito menos emoção do

144 - Entrevista com Nanci Marietto, concedida a DRC e Daniel Aarão Reis Filho, em Rocca Priora,
Itália, em 20 de janeiro de 1996.
145 - Encontramos Nanci em uma pequena cidade encravada em uma colina de pedra, próxima a
Roma, vivendo com o marido italiano e três filhos adolescentes que veio adotar ainda bebês, no Brasil.
146 - Depoimento de Emília Viotti da Costa, em Memórias das mulheres do exílio, 1980. p. 394.

48
que eu digo em português». A sensação experimentada no Chile consolidou-se na
Suécia:

«Conseguia dizer as maiores barbaridades para as pessoas sem me envolver


demais com o que estava dizendo. Parecia que era outra pessoa que estava
dizendo. (...). Quando passava a dominar o idioma, conseguia botar emoção e
aí era um desastre. Dizer barbaridades com emoção choca mais do que se você
falar sem emoção. Se é muito mais ‘’objetivo’’ quando não se domina a
língua»147.

Herbert Daniel também registrou o significado da ausência da língua materna:


«O maior problema do exílio é a perda da língua. Perder sua língua é perder a
alma»148. A língua como referencial básico da identidade social e a falta da língua
redefinindo identidades, metamorfoseando as pessoas:

«...começo a me orgulhar de falar errado e entender mal o sueco só prá ter


prazer redobrado quando leio alto Fernando Pessoa ou entendo tudo, em
nuances, o que Graciliano diz. Como se vê, minha identidade - e como
precisamos dela! - começa a ser igual ao calo daquele cidadão que comprava
sapato apertado só pra sentir o bom de tirá-lo. Pela primeira vez me sinto
patriota, daqueles bem babacas. Quem diria...». 149

A capacidade de expressão e compreensão se restringia ou desaparecia


subitamente. Sobretudo para quem viveu em países como a Suécia, a Dinamarca, a
Alemanha, onde o aprendizado da língua levava tempo, agravando o isolamento do
exilado em relação aos outros e ao mundo. O depoimento de Eny, dona-de-casa com
apenas a segunda série primária, demonstra como as dificuldades com o idioma
estrangeiro podiam tornar penosos os atos mais simples do cotidiano de pessoas
pouco escolarizadas, mesmo em um país de língua espanhola, como o Chile:

147 - Entrevista com Luiz Alberto Sanz, concedida a DRC, no Rio, 14 de setembro de 1995.
148 - Entrevista com Herbert de Carvalho/Herbert Daniel, no Pasquim, 13 (643): 22-23, 22/28 outubro
de 1981. p. 23.
149 - Carta de César Benjamin a sua mãe, Iramaya Benjamin. Estocolmo, 30 de dezembro de 1977.

49
«Vi um negócio que vendia tudo, mantimentos, arroz, feijão... O menino do
meio foi do meu lado, me dava muito apoio, não sei, tinha hora que ele me via
em situação tão difícil que dava palpites. Eu queria comprar um frango pra
gente comer. Como é que eu peço? Mostrei com o dedo. O vendedor me
pergunta em português se eu não sabia falar espanhol. Disse que ele tinha
vivido no Brasil e falava um pouquinho o português. Pra mim falava
maravilhosamente bem. Eu fiquei tão feliz... comprei uma garrafa de vinho,
um frango, arroz... aproveitei! Desse dia em diante fui a freguesa número um
do negócio» (grifos no original)150.

II - Mitologias dos espaços de origem e de destino

O mito da terra

No exílio, desenvolveu-se o que Daniel Aarão Reis Filho chamou de «mito da


terra», ou seja, uma determinação difundida entre os militantes, segundo a qual, no
exterior e portanto fora da prática, não se devia opinar e muito menos decidir sobre
os rumos da luta. Ao contrário, cabia-lhes esperar as orientações vindas «da terra», de
quem estava na prática. Isto foi particularmente forte na primeira fase, quando os
exilados ainda estavam polarizados em torno de organizações de vanguarda e o exílio
era desvalorizado como tempo e lugar de luta:

«Para aquela esquerda, quem era preso ou saía para o exílio, nas duas
hipóteses, saía da prática, do que se chamava prática. Perdia completamente a
condição, o direito de sugerir e de intervir. A idéia era de que só poderia falar
quem estivesse na prática revolucionária. Havia um desprezo muito grande
pela teoria, pela discussão, pelo debate e por aqueles que estivessem tentando
orientar a organização de fora»151.

150 - Depoimento de Eny, em janeiro de 1978, em Memórias das mulheres do exílio, 1980. p. 216; não
consta o sobrenome.
151 - Entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio, 17 de novembro de 1996:
transcrição da fita 3, p. 13.

50
No caso específico do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8),
organização da qual Daniel fazia parte, é interessante notar como a valorização do
exílio como espaço para a rearticulação da luta no exterior, no momento de
acirramento do cerco da repressão, ocorreu entre os últimos militantes que deixaram o
Brasil. A leitura de textos de Lenin escritos no exílio, procurando daí influenciar a
luta, redimensionou o papel que o exílio brasileiro podia ter152.
É neste contexto de mitificação revelada na palavra «terra» - que designava
mais do que o Brasil, mas o lugar da luta, da revolução, para onde se voltaria - que se
forjou uma «figura emblemática», segundo Daniel, constantemente presente em
outros exílios: o militante de direção que chega do país, para se encontrar com os já
exilados, trazendo orientações. Legitimado porque vem «da terra» e, se aproveitando
do isolamento dos militantes no exterior, não se priva, inclusive para se manter no
poder, de os «empulhar», filtrando, censurando e manipulando informações153.

O mito do país socialista

O exílio abria a possibilidade da vivência em países socialistas, o que colocava


o militante em confronto com suas próprias referências anteriores. A experiência foi
decisiva para a confirmação, a negação ou a redefinição do projeto socialista.
Maurício Dias David, seduzido pela «utopia do sistema socialista », foi estudar
economia na Alemanha oriental, mas só conseguiu ficar em Berlim seis meses, onde
ganhara bolsa de doutorado:

«Aí foi o meu rompimento com o comunismo. Eu disse “eu lutei a minha vida
contra isto que está aqui, contra esta sociedade como a vejo organizada”.
Rompi muito duramente, até ficar numa posição anticomunista, me
aproximando muito da social-democracia sueca. A asfixia do país, o sistema
controlado e ditatorial foram um choque»154.

152 - Cf. entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio, 17 de novembro de 1996;
transcrição da fita 4, p. 24.
153 - Cf. entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, 17 de
novembro de 1996; transcrição da fita 4, pp. 24, 25 e 26.
154 - Entrevista com Maurício Dias David, concedida a DRC, em Paris, 09 e 15 de março de 1995.

51
Antes da experiência, Maurício passara dois meses na Suécia e, após comparar
os dois países e sistemas, optou por viver na social-democracia.
A decepção também marcou a passagem de Delson Façanha por Cuba, entre
dezembro de 1973 e março do ano seguinte, enquanto esperava para seguir para a
Alemanha oriental. Segundo ele, não foi permitido ao grupo de cerca de duzentas
pessoas vindas da embaixada venezuelana no Chile, conhecer o país. O governo
assegurava alimentação, a hospedagem e assistência médica. Sem contato com a
população, foram instalados em um hotel a mais ou menos cem quilômetros de
Havana, onde eram vigiados permanentemente: «Eu me decepcionei. O pouco contato
com as pessoas que tive, vi que só estavam interessadas em fazer negócios, o que era
um fenômeno dos países ditos socialistas»155.
No mês seguinte à chegada à Argélia em junho de 1970, Vera Sílvia
Magalhães, partiu para Cuba. Mas o que viu não a entusiasmou. O contato era
basicamente com a burocracia, «pessoas privilegiadas e autoritárias», que só
permitiam o acesso a quem o partido permitisse. Restou a decepção.
Se a experiência cotidiana em países socialistas colocou em xeque as
refêrencias, também as reafirmou, como demonstra o entusiasmo de Márcio Moreira
Alves com a mesma Cuba, que a outros pareceu tão sem liberdade:

«Em Cuba tive a impressão visual, e a vivência, do que é o socialismo e do


que é possível fazer num país socialista. Cuba é Pernambuco com caráter. É
isso: Pernambuco com vergonha na cara, com um governo decente, com um
povo que não é explorado. E a potencialidade dessa transformação é tão
evidente que realmente transforma a pessoa. Tudo aquilo que você pode ter
imaginado lendo, lá você pode ver na prática, e, portanto, numa opção muito
mais profunda.
Tenho impressão que aprendi duas vezes em minha vida. Primeiro comecei a
aprender com o golpe militar de 1964. Comecei a aprender realmente o que
era o meu país, qual a cara verdadeira do Brasil. Cara dura, violenta,
sanguinária.
Depois, comecei a aprender em Cuba: a aprender que há possibilidades de
uma vida harmônica, sem as carências mais elementares de comida, saúde,

155 - Entrevista com Delson Façanha, concedida a DRC, em Niterói, 24 de agosto de 1995.

52
educação e ver que um povo subdesenvolvido pode criar uma vida
assim»156.

No mesmo sentido, o testemunho de Roberto Morena, antigo militante


sindicalista do PCB, exilado na Tchecoslováquia, é muito expressivo. Há anos
vivendo em um país duramente reprimido pelo socialismo soviético, prevalecia uma
visão acrítica do sistema e a confirmação de seu ideário:

«A vivência em países sob o sistema socialista nos deu uma clara visão da
viabilidade e a realidade das idéias revolucionárias que abraçáramos desde a
juventude, já na escola e fortalecida nas fábricas e na militância nas
organizações sindicais e no Partido Comunista. Uma esplêndida realidade do
que se pensava, do que se propunha, do que se preconizava: uma sociedade
sem donos de fábricas, uma sociedade em que o homem se sente seguro no
presente e no futuro, em que a desigualdade social desaparece, a possibilidade
de cultura e de saber está aberta e ao alcance para toda a coletividade e vai
avançando com firmeza no caminho da edificação completa do
socialismo»157.

O mito do «país de acolha»

O termo «país de acolha» é amplamente utilizado na literatura e nas


instituições que se ocupam de refugiados para designar o país onde estes passam a
viver. Entretanto, se a palavra «acolha» faz lembrar a solidariedade que muitas vezes
esteve presente na recepção e no processo de adaptação à sociedade, ela também
encobre ou atenua uma realidade bem mais complexa. Aliás, como já vimos, mesmo
a solidariedade não esteve a salvo de contradições e ambiguidades. Se segmentos da
sociedade mobilizavam-se para receber exilados políticos, outros agiam em sentido
contrário identificando-os a «terroristas» cuja estada devia ser interditada.

156 - Depoimento de Márcio Moreira Alves, em Memórias do exílio, 1978. p. 233.


157 - Depoimento de Roberto Morena, em Memórias do exílio, 1978. p. 325.

53
Segundo Herbert de Souza, em alguns países, os exilados eram de fato
tratados como terroristas e cita o caso de Theotônio dos Santos que, ao chegar aos
EUA, foi barrado e acusado de terrorismo, a partir de informações trocadas entre
polícias de diversos países158. No mesmo sentido, Reinaldo Guarany testemunhou a
campanha da direita alemã contra a recepção de refugiados do Chile, chamados de
terroristas em seus jornais. As polícias dos próprios governos que concediam o
estatuto de refugiado, cumprindo um acordo internacional, a Convenção de Genebra,
mantiveram contato com a polícia política brasileira, a mesma cuja prática, baseada
na tortura, na prisão e no assassinato de oponentes ao sistema, tanto indignava a
sociedade. Um professor francês atuante no Comité France-Brésil, que denunciava a
ditadura, guarda um formulário escrito em alemão e em português sobre as atividades
políticas de exilados brasileiros, que indica a colaboração entre as polícias brasileira e
alemã159. Ricardo Vilas, embora tenha conseguido o visto para entrar na Inglaterra,
foi preso ao desembarcar com a mulher e a filha de oito meses. Todos tiveram que
passar a noite detidos no aeroporto. Acusado de terrorista, pressionaram-no para
assinar um documento onde pedia para deixar o país160.
Depoimentos de diversos exilados em países democráticos, como a Alemanha
ocidental e a França, não deixam dúvida de que as suas polícias recebiam
informações da polícia brasileira e não se privaram de usá-las visando pressionar,
intimidar e humilhar. No interrogatório realizado pela polícia francesa, no processo
que examinava a solicitação do estatuto de refugiado, tentaram induzir Daniel Aarão
Reis Filho a que ele mesmo dissesse em que condições havia saído do Brasil, ou seja,
através do sequestro de um diplomata estrangeiro por grupos guerrilheiros:

«... o tipo que me interrogava não se constrangeu em me fazer ver que em


cima da mesa dele tinha um dossiê sobre a minha pessoa e que só podia ter
sido dado a ele pelo governo brasileiro, porque a França não teria tido
condições de reunir documentação sobre mim naquele momento. Eu acho
que, sem dúvida, existia contato entre as polícias, alguma coisa que será
esclarecida daqui a algumas décadas se o governo francês abrir os seus

158 - Entrevista com Herbert de Souza, no Pasquim, 10 (519): 10-12, 8/14 junho de 1979.
159 - Cf. entrevista com o referido professor, concedida a DRC, em Paris, em 1995.
160 - Entrevista com Ricardo Vilas, concedida a DRC, em Paris, 30 de novembro de 1995.

54
arquivos ou o governo brasileiro. Estava evidente ali que havia troca de
informações»161.

Reinaldo Guarany, ao ser chamado pela polícia em Berlim ocidental, também


constatou que possuíam uma pasta, contendo informações a seu respeito em
português e alemão. As mesquinharias e os constrangimentos por parte da polícia
fizeram parte do cotidiano dos exilados brasileiros na Alemanha ocidental. Durante a
copa do mundo de 1974, por exemplo, alguns exilados foram obrigados a
comparecerem à delegacia três vezes por dia na hora dos jogos, temendo-se atentado
à seleção brasileira. Processado por falsificação de documentos, entrada ilegal no país
e até bigamia, Reinaldo e Dora, sua mulher, jamais conseguiram asilo no país.
Quando ela se suicidou, o governo finalmente deu asilo a ele e a outros exilados que
estavam na mesma situação. Reinaldo preferiu, então, deixar o país162.
Miguel Arraes, constantemente identificado com o governo da Argélia, país
onde passou todo o exílio, lembra as restrições dos países democráticos:

«Durante anos fui impossibilitado de viajar, pois os governos da França e da


Inglaterra não me deixavam entrar por motivos nunca esclarecidos. Meus
próprios filhos quando viajavam para esses países para estudar, eram retirados
das filas nos aeroportos para uma revista especial»163.

Como já vimos no capítulo anterior, depois de ser banido, em junho de 1970,


Apolonio de Carvalho, que lutou na Resistência francesa, esperou dois anos para
obter o visto de entrada na França, negado também a outros quatro ex-presos
políticos do mesmo grupo, durante o governo Georges Pompidou164. A autorização
só foi concedida após mobilização de setores da esquerda e do Partido Socialista. No

161 - Entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, 19 de maio de
1997; transcrição da fita 7, p. 28.
162 - Cf. GUARANY, Reinaldo, 1984. pp. 132 e 133; Cf. também entrevista com Reinaldo Guarany,
concedida a DRC, no Rio, 31 de agosto de 1995.
163 - Entrevista com Miguel Arraes, no Pasquim, 9 (535): 4-6, 28 set./04 out. de 1979. p.6.
164 - Cf. entrevista com Apolonio de Carvalho, concedida a Álvaro Caldas, Daniel Aarão Reis Filho e
Nely Sá Pereira, no Rio, 09 de outubro de 1986; transcrição: volume 7, p. 173. O ministro do interior
de Pompidou era o conservador Raymond Marcellin.

55
mesmo ano, o governo suíço convidou Apolonio e Ladislas Dowbor, também banido,
a deixarem o país.
Segundo Erasmo Saenz-Carrete, em 1975, na ocasião do atentado cometido
pelo venezuelano conhecido como Carlos, o Chacal, quando policiais franceses foram
mortos, a polícia política francesa, Direction de Surveillance de Territoire (DST),
submeteu refugiados políticos a interrogatórios, chegando a «penetrar em domicílio
de refugiados brasileiros» 165 . No ano seguinte, o então ministro do interior,
Poniatowski ameaçou expulsar os refugiados políticos que «criassem problemas para
a ordem pública». Georges Casalis, francês atuante em instituições de defesa dos
direitos humanos, denunciou no Tribunal Bertrand Russell II que, devido ao episódio,
«...medidas extremamente pesadas de controle e intimidação aconteceram entre
refugiados brasileiros beneficiários, entretanto, do estatuto oficial da ONU»166.
Embora se trate de um caso individual que extrema de forma trágica os
constrangimentos no «país de acolha», é muito simbólica a experiência vivida por
Sebastião Hoyos que, apesar de longa, merece ser acompanhada. Preso na Guiana
Francesa e expulso do país pela DST, Hoyos foi levado para a prisão da Santé, na
França e, em seguida, para uma pequena cidade francesa, perto de Genebra, e
instalado num hotel sob a vigilância de policiais. Aí, começou uma história fantástica
que Hoyos conta sem esclarecer aspectos essenciais, deixando muitas perguntas sem
resposta. O fato é que ele conseguiu fugir com a ajuda de um militante da
organização guiana, na qual atuava pela independência do país. Levado até as
proximidades de uma montanha nevada, um especialista em alpinismo o esperava e,
com sua ajuda, conseguiu atravessá-la e chegar à Suíça.
Em Genebra, Hoyos pediu asilo político para ele e para a sua família, que a
organização já havia retirado da Guiana. Como resposta, recebeu uma comunicação
da polícia de que devia deixar o país. «Foi um drama: com mulher, três filhos
pequenos, sem dinheiro, sem documento, sem nada»167. Hoyos, no entanto, não fala
sobre seu envolvimento na luta pela independência da Guiana e as razões precisas da

165 - SAENZ-CARRETE, Erasmo, 1983. p. 214; citação seguinte, p. 217.


166 - Déclaration de Georges Casalis, le 13/01/1976, à la suite de l’intervention de la délégation
argentine devant le Tribunal Russell II (3ème session) sur «Le réfugiés politiques» (TBR. II. R. Cart.
I). Neste documento, Georges Casalis denuncia outros atentados contra refugiados latino-americanos,
ocorridos em Paris. Sobre o Tribunal Russell, ver o capítulo 8.
167 - Entrevista com Sebastião Hoyos, concedida a DRC e Daniel Aarão Reis Filho, em Genebra, 10
de janeiro de 1996.

56
prisão e da recusa à solicitação de asilo. Após recorrer, ganhou o «direito de asilo
provisório», que durou todo o tempo do exílio. Segundo conta, nos anos seguintes,
sempre esteve vigiado de perto pela polícia: «A perseguição continuou, mesmo fora
do Brasil, na Guiana Francesa, aqui na Suíça. Dificuldade para trabalhar, dificuldade
em todos os sentidos...». Em 1990, um episódio agravou ainda mais a situação: um
assalto ao banco onde, desde 1981, trabalhava no transporte e na guarda de valores.
Levaram a quantia fabulosa de 23 milhões de francos suíços. Dois meses depois, aos
55 anos de idade, prenderam Hoyos, acusado de cumplicidade com os assaltantes. A
condenação veio em seguida: sete anos e meio de prisão. Uma mobilização
internacional provocou a revisão do processo e a sua libertação, em 1994, depois de
quatro anos de cadeia. O dossiê de acusação, afirma Hoyos, não tinha provas contra
ele e baseava-se em falsos testemunhos dos colegas pressionados pelos banqueiros. O
processo foi, enfim, anulado, mas Hoyos luta para ir a novo julgamento. A tragédia
ainda não havia terminado. Na prisão, sentia dores no estômago e, embora tenha
solicitado a visita do médico, nunca foi atendido. Quando saiu da prisão, foi
diagnosticado um câncer avançado.
A história dos «aviadores» também contribui para a reflexão dos limites da
expressão «país de acolha», até mesmo em países socialistas mitificados por
militantes. Três jovens simpatizantes da luta armada, para demonstrar o compromisso
com a revolução latino-americana, sequestraram um avião no Brasil e seguiram em
direção a Cuba, símbolo de todo o seu ideário. Lá, tiveram o destino de todos os
sequestradores de avião que desembarcavam sem o respaldo de uma organização
conhecida das autoridades cubanas e sem autorização prévia do governo: foram
detidos. Sem perceberem exatamente a situação em que se encontravam, ofereceram-
se para trabalhar, afinal, queriam servir ao socialismo. Os cubanos, então, os levaram
para uma pedreira, onde davam o melhor de si na dura tarefa, para a glória da
revolução. Entretanto, no relacionamento com os outros trabalhadores, começaram a
estranhar que, frequentemente, ouviam as maiores críticas ao sistema e, surpresos,
constataram que eram todos presos. Só assim, se deram conta da própria situação, que
se agravou quando propuseram a construção de uma estátua de pedra em homenagem
ao camarada Trotski. Assim, caíram em completa desgraça, sem autorização para
deixar o país, sem documentos, sem passagem. Conseguiram deixar Cuba, meses
depois, graças à intervenção de militantes que chegaram para fazer treinamento
guerrilheiro e que garantiram não se tratar de espiões ou coisa do gênero. No sonho

57
dos «aviadores», apelido que ganharam destes militantes, o «país de acolha» dos
revolucionários da América Latina transformara-se em pesadelo168.

III - A desorientação, o vazio, o medo, a loucura

O medo fez parte do exílio, surgindo em graus e momentos diferentes. Da


guarda montada nas primeiras noites em Ben Aknoum, por integrantes do grupo dos
40 presos trocados pelo embaixador alemão, que não descartavam a possibilidade de
um atentado da repressão brasileira, até a suposição da presença do delegado Sérgio
Fleury, símbolo do terror da ditadura, em Santiago, quando militantes da Ação
Libertadora Nacional (ALN) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)
planejaram matá-lo 169 . Aliás, o fantasma do Fleury aparecia e reaparecia em
momentos e países diferentes, assustando e ameaçando. Ao longo do tempo, esta
«paranóia parcialmente fundamentada, parcialmente delirante, a idéia de que a polícia
política estaria vigiando, tramando contra nós, se manifestaria de outras formas»170.
Mas o medo tomou feições mais terríveis. É expressiva a quantidade de relatos de e
sobre exilados que tiveram problemas psiquiátricos ou que associam o exílio à
loucura, o lugar da perda da identidade. Senão, à «drama», à «anomalia» e à
«doença»171. No relato do Padre Lage, o esforço para reconhecer a si mesmo:

«...o exílio degrada o homem. Minha experiência é de uma luta permanente


para ser eu mesmo e mais nada, contra toda a degradação a que me força a
situação de exilado. Não sei se é porque o exilado foi tirado à força e no
momento mais agudo de sua capacidade de entrega ao povo. Foi desraigado no
momento de maior enraizamento. E este desgarramento perdura. Esta
contradição perdura.
Eu me sinto cada vez mais brasileiro, sem querer identificar-me com nada.
Eu me sinto muito brasileiro. Não sei como. E por isto mesmo incapaz de

168 - Uma versão deste caso encontra-se em GABEIRA, Fernando, 1980.


169 - Cf. GUARANY, Reinaldo, 1984. p. 104. A informação da presença de Fleury, no Chile, foi dada
pelo PS chileno à ALN e à VPR, mas não se confirmou. Cf. entrevista com Reinaldo Guarany,
concedida a DRC, no Rio, 31 de agosto de 1995.
170 - Cf. entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio, 09 de novembro de 1996;
transcrições da fita 1, p. 48, e da fita 2, p. 1.
171 - Cf. entrevista com Arthur José Poerner, no Pasquim, 11 (571): 13-15, 6/12 junho de 1980. p. 13.

58
enriquecer-me com a grande oferta de cultura de um país como este (México).
Acho que o exílio enlouquece. Quem sabe estou eu já louco? (...) A loucura
possivelmente é isto: achar que não é mais ele. Eu me pergunto: será que sou
eu mesmo? Hoje mesmo me perguntei isso de manhã»172.

Em 1976, Vera Sílvia Magalhães teve pela primeira vez uma «crise psicótica»,
quando acreditou que alguém, numa situação banal do dia-a-dia do exílio em Paris,
fosse um agente da repressão: «Acho que foi uma explosão interna em torno do
vazio». A perda do projeto revolucionário e a impossibilidade de redefini-lo levavam
à desorientação:

«Eu não sei mais qual é o meu papel exato nesta história toda. (...). Tenho um
lado perdido. Sinto a minha vida atual muito esvaziada das coisas em que
acreditava. Eu não acredito mais. Não adianta fingir. Acho que pago um preço
por esta falta de crença, no sentido religioso mesmo. Não tenho nenhuma.
Então, fiquei meio perdida. Tenho muita coisa acumulada, de cabeça, de
experiência que não sei onde botar. Nunca mais me dediquei a nada
especificamente, a não ser a meu filho»173.

Eny conta como os dramas vividos no Brasil deixaram sequelas que


apareceram no exílio:

«Depois das tragédias todas no Brasil, eu fiquei muito doente. Pra você ter
uma idéia... eu adoro vermelho. Adoro. Por mim, visto tudo vermelho. Mas
fiquei de um jeito que tinha medo de vermelho. Tudo que era vermelho eu
tinha que tampar. Eu não queria ver a claridade do dia, sabe? Meu marido
ficava desesperado. Chegava em casa, aquele sol bonito, aquele dia lindo, eu
pegava um cobertor e punha na janela porque não queria ver a claridade do
dia, não queria ver a claridade do sol. Fiquei muito ruim mesmo, um bom
tempo doente. Tive um tratamento num hospital psiquiátrico com uma médica
muito boa. Aí eu fiquei bem. Quando já estava saindo da fossa, me

172 - Entrevista com Padre Lage, em Pasquim, 11 (533): 24-26, 14/20 set. 1979. p. 26.
173 - Entrevista com Vera Sílvia Magalhães, concedida a DRC, no Rio, 25 de janeiro e 14 de março de
1994.

59
reanimando mais, veio o golpe (no Chile) e eu fiquei outra vez sozinha com a
criançada»174.

O medo da repressão e a saudade desencadearam em Vilma «surtos de loucura


muito severos», exatamente quando o exílio indicava tempos de segurança e
tranquilidade financeira. «Quanto mais doente, mais saudosa e mais ligada às coisas
da infância. Não aguentou o tranco, sucumbiu. Tem gente que passa por isto e não
enlouquece, outras sim», conta o ex-marido 175 . Sem os problemas materiais que
afligiram outros exilados, inserido profissionalmente e bem adaptado em cada país
por onde passou, o sofrimento de seu exílio foi a doença da mulher, que «nunca se
recuperou», permanecendo voltada para o passado.
Em meio à falta de perspectivas, a redefinição da identidade, frequentemente,
implicou um processo lento e doloroso. Houve quem não conseguisse superar a crise.
A morte foi o caminho que frei Tito de Alencar e Maria Auxiliadora Lara
Barcellos, a Dora, encontraram para por fim ao medo, ao vazio e à loucura.
Tito, banido em 1971, enforcou-se em um convento nas proximidades de
Lyon, em 1974, aos 31 anos de idade. Nos três anos de exílio, jamais se refez do
trauma da tortura e da prisão. A convicção de que Fleury estava na França para
persegui-lo transformou sua vida em um tormento. A reestruturação de Tito foi
impossível, como descreveu o também dominicano Magno José Vilela:

«Na França, ele tentou continuar seus estudos, mas não conseguiu. Ele estava
num estado psicológico extremamente delicado: lhe faltava coragem, lhe
faltava energia, lhe faltava condições, enfim, para sobreviver. Ele sobreviveu
num estado triste até o dia em que ele preferiu a morte»176.

174 - Depoimento de Eny, em janeiro de 1978, em Memórias das mulheres do exílio, 1980. pp. 216-7;
não consta o sobrenome.
175 - O entrevistado solicitou-me que não revelasse o nome da pessoa em questão. Vilma é, portanto,
um pseudônimo.
176 - Depoimento de Magno José Vilela, em Memórias do exílio, 1978. p. 215. Sobre frei Tito, além
deste depoimento, ver também o dossiê no final do livro.

60
Dora, libertada com frei Tito , atirou-se na linha do metrô de Berlim, em 1976,
também aos 31 anos. Pouco antes, havia sido submetida a tratamento psiquiátrico177.
Na Bélgica, Juarez Ferraz de Maia recebia «cartas tristes, piradas e muito
dolorosas»178, onde ela falava de solidão, angústia, derrota e expunha a descrença
nos homens e mulheres e na possibilidade de mudança. Luiz Alberto Sanz, exilado na
Suécia e integrante do mesmo grupo dos presos trocados pelo embaixador suíço, fez,
com Lars Safstrom, o filme Quando chegar o momento, sobre a morte de Dora,
usando o depoimento que ela havia dado com mais quatro banidos, para outro filme
que realizou no Chile, Não é hora de chorar179.
A trajetória de Sebastião Rios simboliza também o drama da desorientação no
exílio. Ex-professor da Universidade de Brasília, Rios participou diretamente da ação
do sequestro do embaixador americano e conseguiu sair do país sem jamais ser preso.
Estabelecido na Argélia, fazia um trabalho de apoio à organização, preparando
documentos para militantes clandestinos no exílio. Mais tarde, transformado em
clochard, Sebastião Rios podia ser encontrado no boulevard Saint-Germain, em Paris.
Se estas são experiências extremas, quando a redefinição ou a reconstrução da
identidade não se viabilizou, a comparação de Tomás Tarqüínio do exílio com um
espelho quebrado por uma pedra, onde é difícil se ver na imagem distorcida, sintetiza
a sensação presente em muitos relatos180.
A fragmentação do espelho talvez seja a mesma do conto Ana Luísa,
publicado na revista de exilados na Suécia, de significativo título, Fragmentos, como
o autor, Reinaldo Guarany, reconhece: «Ana Luísa é um reflexo da fragmentação da
cabeça da gente, na Suécia»181.

177 - Cf. entrevista com Reinaldo Guarany, marido de Dora, concedida a DRC, no Rio, 31 de agosto
de 1995. Cf. também GUARANY, R., 1984.
178 - Entrevista com Juarez Ferraz de Maia, concedida a DRC, em Paris, 27 de novembro de 1995.
179 Cf. entrevista com Luiz Alberto Sanz, concedida a DRC, no Rio, 14 de setembro de 1995. Quando
chegar o momento, financiado pela televisão sueca, teve como enredo uma viagem de Sanz e Reinaldo
Guarany a procura de Dora, pela Alemanha e por Paris, onde viveu o exílio europeu. Segundo Sanz,
trata-se de um filme não apenas sobre Dora, mas sobre o exílio de todos eles. O filme chegou a ser
exibido, após a anistia, na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro. Sobre o suicídio de
Dora, ver também os dois livros de memórias de Guarany (GUARANY, 1980 e 1984) e a sua
entrevista concedida a DRC, no Rio, 31 de agosto de 1995.
180 - Cf. entrevista com Tomás Togni Tarquínio, concedida a DRC, em Paris, 17 de janeiro e 26 de
fevereiro de 1995.
181 - Entrevista com Reinaldo Guarany, concedida a DRC, no Rio, 31de agosto de 1995.

61
A convivência entre brasileiros foi um recurso para amenizar os problemas.
No dia-a-dia, nas festas, nas atividades políticas, a colônia de exilados tentava
reproduzir um ambiente brasileiro, às vezes, estereotipado por comidas e músicas
típicas. Muitos lembram que nunca comeram tanta feijoada como no exílio, prato não
tão presente no cardápio diário, no Brasil, sobretudo da classe média, à qual a maioria
pertencia.
De um modo geral, os mais adaptados à sociedade repudiavam a vida na
colônia e criticavam - e até mesmo desprezavam - quem a vivia intensamente,
acusando-os de estarem voltados para si mesmos, incapazes de se abrirem para as
oportunidades disponíveis e de desconhecerem o país onde estavam. Em
contrapartida, estes ressentiam-se desta autonomia, de uma adaptação identificada à
desistência da luta ou aos aspectos das pessoas do país de exílio que a colônia
ironizava.
Márcio Moreira Alves chamou de «tribos de canibais», os exilados fechados

«... num pequeno grupo de brasileiros, que pensam apenas o Brasil, que lêem
apenas sobre o Brasil, que se relacionam com o meio ambiente apenas de uma
forma parasitária, para trazer coisas, buscar coisas, recursos para isso ou
aquilo... enfim, que vivem sugando da sociedade onde outros companheiros
estão trabalhando e pensam o Brasil dentro de um vazio, ao mesmo tempo em
que se afirmam através de degladiações e de ataques aos outros grupos de
brasileiros que fazem a mesma coisa»182.

Entretanto, a vida em gueto, como os próprios exilados se referem, teve um


importante papel. Era uma tentativa de amenizar as inseguranças do exílio, de se
resguardar da rejeição e dos preconceitos contra o estrangeiro, de evitar o
estranhamento em relação à sociedade, para muitos, de sobreviver. Voltando-se para
os que tinham uma história comum, buscavam recuperar o passado que dera sentido à
vida, reconhecendo-se naquela cultura que ia muito além dos pratos típicos, enfim,
preservando a própria identidade. Ao longo da história, a vida em gueto é
constantemente um recurso do qual diferentes grupos sociais, em diferentes épocas e

182 - Depoimento de Márcio Moreira Alves, em Memórias do exílio, 1978. pp. 230-1.

62
lugares, lançaram mão quando viram a identidade ameaçada ou questionada. O gueto
foi, portanto, uma forma de resistência, a negação da negação, a luta contra a
fragmentação: «A maneira como a gente sobreviveu, no exílio, foi se manter juntos»,
resume Vera Sílvia Magalhães 183 . Apesar do «ambiente neurótico» do gueto,
segundo Juarez Ferraz de Maia, «se não fosse a colônia de brasileiros na Bélgica, a
gente pirava»184.
No entanto, é verdade que se trata de um universo delimitado, onde não
faltaram os confrontos e as contradições. Na interpretação de César Benjamin, as duas
faces da vida em colônia, a insatisfação do limite que ela impõe e a dificuldade de
ultrapassá-la: «Neste ponto, exílio parece cadeia: nosso grupinho nos é pré-definido...
. Fora dele, o resto é louro e fala uma língua esquisita»185.
O gueto pode ser também um caminho para a reorganização das pessoas e a
reformulação do projeto político derrotado. Desta vivência, nasceram comitês de
denúncia da ditadura e pela anistia, publicações, manifestações, atividades e grupos
políticos e culturais. Magno José Vilela fala da retomada e da intensificação do
contato com os brasileiros, em Paris, «...não só como uma necessidade psicológica,
mas, sobretudo, como um ato político. Encontrar para o bate-papo, para escutar
música, tudo isso, mas também para a continuação de um combate político»186.
Ao longo dos anos 1970, ficaram famosas as festas na colônia em Paris que
acabavam em grandes surubas. Luís Eduardo Prado de Oliveira analisa sob o olhar de
psicanalista e exilado: «A suruba tinha uma função integradora. Era um jeito de as
pessoas se unirem, antes de se diferenciarem de novo. Mas isto me dava a impressão
de loucura. A colônia brasileira era muito enlouquecida»187.
Mais uma vez, a associação do exílio, agora especificamente do gueto, à
psicopatologia. Na verdade, as fronteiras são tênues. Os próprios projetos de
militantes de vanguarda, sobretudo na primeira fase do exílio, pareceram delírios, até
mesmo na época e para quem estava comprometido com a retomada da luta no Brasil.

183 - Entrevista com Vera Sílvia Magalhães, concedida a DRC, no Rio, 25 de janeiro e 14 de março de
1994.
184 - Entrevista com Juarez Ferraz de Maia, concedida a DRC, em Paris, 27 de novembro de 1995.
185 - Carta de César Benjamin a sua mãe, Iramaya Benjamin. Estocolmo, 30 de dezembro de 1977. p.
3.
186 - Depoimento de Magno José Vilela, em Memórias do exílio, 1978. p. 211.
187 - Entrevista com Luís Eduardo Prado de Oliveira, concedida a DRC, em Paris, 27 de outubro e 03
de novembro de 1995.

63
Algumas histórias do exílio são, neste sentido, exemplares, além de trazerem à tona
de uma forma muito evidente a arrogância e a autovalorização desmensurada típicas
da vanguarda.
Uma delas, muito conhecida e comentada no Chile, é de um editor de uma
publicação de exilados que, poucos meses antes da queda da Unidade Popular, tentou
mobilizar os brasileiros para formarem uma «brigada» para participar da resistência
ao anunciado golpe. O termo, evidentemente, seria uma homenagem às brigadas
internacionais que lutaram na Espanha contra Franco. Os exilados não levaram a sério
a proposta, sequer a cogitaram. Quem fosse resistir ao lado dos chilenos, o faria nos
partidos políticos ou associações, onde estivessem organizados. Surpresa, a colônia
assistiu ao desdobramento do caso:

«Caída no esquecimento essa proposta, não impediu que algumas semanas


mais tarde, sempre antes do golpe, naturalmente, a mesma pessoa tivesse uma
outra idéia, radicalmente oposta a essa e igualmente ridícula: procurar o
Salvador Allende em pessoa e propor a ele um avião especial para retirar os
quadros da esquerda brasileira mais importantes, no sentido de preservar
aquelas reservas estratégicas da revolução latino-americana. Ele chegou a ter
entrevistas nesse sentido com dirigentes do PS, que naturalmente recusaram
polidamente e também essa proposta caiu no esquecimento. Mas o fato de, em
poucas semanas, o mesmo militante ter saído de uma proposta de construir
brigadas para combater em defesa da revolução chilena, para uma outra,
radicalmente oposta, de imaginar meios para promover a retirada dos quadros
brasileiros, como se eles fossem de fundamental importância para os destinos
da revolução latino-americana... Esse trânsito mostra uma desorientação, uma
certa crise de referências, uma deriva que era realmente a situação em que se
encontrava a esquerda brasileira, ou boa parte dela, no Chile»188.

A crise de identidade da esquerda brasileira, assim como «o tipo de


mentalidade e o universo de referências que marcavam os exilados comprometidos

188 - Entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio, 14 de maio de 1997;
transcrição da fita 6, pp. 42 e 43.

64
com a luta armada no Chile» 189 fazem parte de outra história também bastante
significativa. Um ex-dirigente de organização de vanguarda elaborou um plano para
viabilizar a volta ao país, contando com a ajuda de um ex-líder das ligas camponesas
do Nordeste, conhecido como Zé. Ainda antes de 1964, Zé havia sido barbaramente
espancado no Brasil e enviaram-no a Cuba para se tratar. Com o golpe militar, não
voltou e, anos mais tarde, quando militantes começaram a chegar para o treinamento
guerrilheiro, aproximou-se deles, tornando-se amigo de vários. Assim, o ex-dirigente
e o camponês conheceram-se e, como a perspectiva era de voltar, idealizaram um
barco com fundo falso. Nele, os guerrilheiros entrariam no país, via Amazônia, e não
pelo sul - Uruguai ou Argentina -, que eram as fronteiras comumente usadas e,
portanto, mais conhecidas pela repressão. A organização empenhou-se no plano e
chegou a destinar recursos consideráveis para a construção do barco:

«Esse projeto mostra um pouco a megalomania, o delírio de grandeza. Na


sequência, o Zé, que estava envolvido com este ex-dirigente da organização
nesse projeto, pirou de vez. Essa história eu sei não por ouvir contar, mas eu a
vivi: um dia me lembro que o encontrei no Chile, muito aflito e veio com uma
história longa, inclusive apoiado em anotações que me mostrou. Uma história
complicada, segundo a qual ele tinha descoberto, inventado, elaborado uma
arma especial e que poderia ser de grande valia para a esquerda armada
brasileira. Essa arma era um foguete auto-propulsado. Ele se queixava
amargamente, inclusive, que os cubanos tinham roubado os planos originais
dele, mas que ele tinha, depois de muito trabalho, conseguido reconstituir.
Quer dizer, foguetes auto-propulsados que se tornariam armas exterminadoras
para a nossa luta nas cidades e na guerrilha urbana. Eu realmente, nesse
momento, tive a convicção de que o Zé tinha «passado o fio», «virado o fio».
Depois eu soube que, de fato, esse tinha sido o destino dele. (...). Não conto
essa história para desmerecer alguém. É apenas para mostrar uma expressão
do delírio e da deriva em que se encontravam os militantes e as organizações
de esquerda»190.

189 - Entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio, 14 de maio de 1997;
transcrição da fita 6, pp. 37 e ss.
190 - Entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio, 14 de maio de 1997;
transcrição da fita 6, pp. 39, 40 e 41.

65
Por fim, e ainda considerando os delírios no campo da vanguarda, toda a
simbologia da figura do coronel Jefferson Cardim, antigo comandante da frustrada
coluna militar no sul do país. Em Cuba, queixando-se do descaso com que era tratado
pelos cubanos, procurava os militantes que iam chegando, sempre se fazendo
acompanhar do ordenança, tradição do exército que manteve. O fiel soldado, que
também deserdara, carregava a pasta do coronel, de onde Cardim tirava um enorme
mapa do Brasil e explicava detalhadamente planos mirabolantes para entrar no país.
A crise de identidade e de valores da esquerda no exílio também pode ser
registrada nas ações armadas sem finalidades políticas, realizadas no Chile191, que,
entretanto, já expressavam um processo de deriva do ideário e dos princípios da
vanguarda. Reinaldo Guarany conta que a ALN, organização da qual fazia parte, dera
instruções a seus militantes que desembarcaram em janeiro de 1971, para não
aceitarem trabalho nem se inserirem socialmente. Deviam aguardar as orientações.
Porém, depois de certo tempo, o governo não os sustentava mais e a ALN não tinha
como mantê-los. A solução encontrada foi fazer ações de desapropriação, como se
dizia na época, e dividir o dinheiro entre os participantes. No início, o alvo eram os
doleiros, que exerciam uma atividade ilegal e não podiam dar queixa à polícia:

«Muitos brasileiros fizeram muitas ações no Chile. Pessoal da VPR, da ALN,


gente que montou grupo paralelo com o objetivo político ou não e por gente
que resolveu fazer para ganhar grana. Eu conheci um cara que ficou rico
pessoalmente, porque depois de algum tempo, ele não tinha mais o intuito de
fazer ação armada para juntar dinheiro para o Brasil, mas com o objetivo
pessoal. Ficou tão rico que comprou uma fábrica, virou empresário»192.

Tratava-se, na verdade, de uma minoria entre os exilados brasileiros no Chile,


que agia como se o meio usado - e aprendido -, no Brasil, para conseguir recursos
para a guerrilha se autonomizasse em relação aos princípios e objetivos.
Entretanto, também foram feitas ações com finalidade política, como conta
Reinaldo Guarany. Exilados brasileiros ligados a um setor mais à esquerda no PS

191 - Cf. entrevista com Reinaldo Guarany, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, 31 de agosto de
1995. Cf. também GUARANY, Reinaldo, 1984.
192 - Entrevista com Reinaldo Guarany, concedida a DRC, no Rio, 31 de agosto de 1995.

66
chileno, articularam-se para conseguir e enviar armas para o Brasil, a Argentina e o
Uruguai. Descoberto, Ângelo Pezzuti, banido do grupo dos 40, e outros envolvidos
foram presos. No governo socialista da Unidade Popular, voltou a ser torturado:

«O Ângelo Pezzuti foi muito torturado, quebrado literalmente. Os outros


presos também. Ele me disse que a diferença entre a tortura que sofreu no
Brasil e a que sofreu no Chile era que o Victor Toro, o cara da polícia, que era
do PC, fez questão de torturá-lo de cara limpa. Neste momento, grupos de
exilados brasileiros que estavam fazendo ações por conta própria se
desarticularam e se mandaram para a Europa»193.

As ações armadas com fins pessoais demonstram como a crise de valores já


estava presente na primeira fase do exílio. Reeditadas em outro contexto, levavam a
um ponto extremo o que, em certo sentido, já ocorrera no Brasil, quando grupos
armados tiveram que fazer assaltos puramente para se sustentar. Mas, no Chile, o
ciclo da sobrevivência reaparecia deformado e as ações soavam como caricatura do
que foram. Mesmo com objetivos políticos, eram tentativas desesperadas de prolongar
o passado, de trazê-lo para o presente, de sobrepor a identidade de guerrilheiro à de
asilado.
O lado do exílio, do qual as ações em proveito próprio fazem parte, ou seja, o
capítulo dos trambiques, é delicado, até porque, mesmo conhecido, há um certo
constrangimento em admiti-lo, em explicitá-lo. As pessoas preferem passar ao largo
do assunto, mesmo se não tiveram nada a ver com ele, optando por aspectos mais
nobres. E, como seria de esperar, quem esteve envolvido neste tipo de experiência só
raramente o recupera.
Os trambiques foram variados, multiplicaram-se ao longo dos anos e estão,
igualmente, ligados às crises de valores e de identidade. Houve quem passasse o conto
dos cheques de viagens, declarando a sua perda e gastando-os simultaneamente; ou
quem, no momento da anistia, inventou roubos de documentos, dinheiro ou bens, para

193 - Entrevista com Reinaldo Guarany, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1995.
Cf. também GUARANY, Reinaldo, 1984. pp. 108-110. Ângelo Pezzuti, morreu no exílio, na França,
em um acidente de motocicleta, em setembro de 1975. Delson Façanha também foi preso no Chile, no
governo Allende, em junho de 1973, com outras pessoas, inclusive outro brasileiro, quando a casa em
que estava foi invadida pela polícia em busca de armas. Façanha passou cinco dias na prisão, quando
foi surrado - «era uma tortura de socos» - e deixado em uma cela gelada durante o inverno. Cf.
entrevista com Delson Façanha, concedida a DRC, em Niterói, 24 de agosto de 1995.

67
receber indenização ou o dinheiro do seguro. Na África, exilados que, mesmo
comprometidos com os projetos de construção do socialismo em países miseráveis e
secularmente explorados pelo colonizador, não se privaram de participar de
negociações com setores não tão identificados aos princípios socialistas, ganhando
dinheiro com o envio de dólares para o exterior, o que feria os interesses dos governos
que os haviam recebido194.
Muitas histórias e especulações envolvem o caso da Caixinha, no Chile,
instituição formada por brasileiros para ajudar quem chegava do Brasil. A Caixinha
tinha um programa de bolsas de estudo, concedidas por outra instituição, para
incentivar a formação de exilados. No entanto, era acusada pelos próprios brasileiros
de usar as bolsas para manter militantes de determinadas organizações, sem jamais
definir critérios que não este para distribuí-las. A princípio informal e com poucos
recursos, logo se transformou completamente com o recebimento de uma importante
quantia doada pelo Conselho Mundial das Igrejas, para apoiar os exilados 195 . O
conselho composto por brasileiros exilados decidiu usá-la na abertura de um grande
restaurante, ao mesmo tempo, casa de espetáculos e fábrica de alimentos para
empresas. A idéia era, através de uma atividade econômica, multiplicar a verba ganha
e, então, ajudar os exilados. Como a Caixinha não existia juridicamente, doze pessoas
que estavam legalizadas no Chile se dispuseram a receber o dinheiro. Um cinema no
bairro da Providência, área valorizada de Santiago, chegou a ser comprado para ser
transformado no restaurante. Quando houve o golpe de 1973, funcionava apenas a
parte de produção de refeições, colocada sob proteção da ONU. Os dois principais
responsáveis pela Caixinha não foram presos, ao contrário, continuaram a trabalhar
fornecendo alimentação para os refugiados nas embaixadas e para os presos no
Estádio Nacional. É difícil saber o que ocorreu de fato, mas as acusações de desviar o
dinheiro, de trabalhar para os serviços de informação do governo brasileiro e da junta
militar chilena logo recaíram sobre as pessoas da direção da Caixinha.

IV - Documento, materialização da identidade

194 - Cf. entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio, 04 de junho de 1997;
transcrição da fita 8, p. 35.
195 - A informação de que a verba foi doada pelo Conselho Mundial das Igrejas está no relatório da
Anistia Internacional sobre o Chile: AMNESTY INTERNATIONAL. Chili. Un rapport d’Amnesty
International. Bruxelles, 1974. p. 23.

68
No exílio, os documentos de identidade - de residência ou de viagem -
ganhavam uma importância especial. Falsos ou verdadeiros, os exilados estavam
frequentemente tentando obtê-los, preservá-los. Cada documento recebido era motivo
de grande alegria, de comemoração. Na clandestinidade, deles dependiam para os
deslocamentos e o desempenho das atividades. Legalizados ou tentando se legalizar
em um país, os documentos definiam aspectos essenciais do dia-a-dia, a começar pela
própria permissão ou não para se estabelecerem, trabalharem, terem direito a saúde,
moradia, alimentação etc. Portanto, é um assunto que mobilizava. Ao recusar ou
desprezar documentos verdadeiros, o que ocorreu muitas vezes na primeira fase, os
exilados revelavam a ligação com o projeto revolucionário, cuja derrota se explicitou
mais tarde. A resistência a se desfazer da documentação falsa era o esforço para
preservar o passado e, portanto, uma identidade. A legalização implicava a sua
redefinição, o que ocorreu sobretudo na segunda fase do exílio, mas também na
primeira.
É sintomático que Daniel Aarão Reis Filho, que viveu dois anos no Chile com
os documentos conseguidos em uma festa em Paris, depois dos trinta dias na
embaixada do Panamá, em Santiago, à espera do salvo-conduto para deixar o país, só
tenha se lembrado de destruí-los, quando seguia para o aeroporto, correndo o risco de
não embarcar:

«De madrugada, os ônibus encostaram na embaixada. Nos colocaram nos


ônibus e, escoltados por carabineros e forças do exército, fomos para o
aeroporto. Era uma hora da manhã. Eles faziam questão que esses comboios
não circulassem pela cidade de dia. Aí deu-se um fato incrível: quando eu
estava já no ônibus, me dei conta que estava com o meu jogo de documentos
excepcional: o passaporte e sete documentos. Ora, na lista que iria para o
Panamá eu me chamava Daniel, mas nos meus documentos eu tinha outro
nome, então se eu fosse pego com todos aqueles documentos os caras
poderiam dizer: “bom, você não vai embarcar porque você não é o Daniel,
você é o João de tal. Então, eu tive que picotar todos aqueles documentos e
jogar devagarinho pela janela, porque em cada ônibus tinha um paco, um PM.
Eu tive que ir jogando pela janela devagarinho, inclusive eram vários ônibus,

69
eu tinha medo que se eu jogasse tudo de uma vez isso pudesse atrair a atenção
de quem viesse atrás 196.

Assumindo seu nome, deixava para trás não somente o Chile, mas também o
projeto de volta ao Brasil, o projeto da guerrilha. A tentativa de fazer um curso
universitário no Panamá, concretizada na França, onde obteve o estatuto de refugiado,
indicava a redefinição de todo um projeto de vida.
A «fixação» por documentos é relatada por Joana:

«O problema dos documentos... Sou obcecada com essa estória dos papéis!
Qualquer possibilidade que vejo de conseguir um papel eu persigo
loucamente. Inclusive aqui, onde tudo depende do arbítrio e da burocracia,
para mim é quase uma batalha pessoal conseguir um diabo de documento.
Carta de motorista, qualquer pretexto para conseguir agir um pouco, definir
alguma coisa da sua vida passa a ser importante»197.

Mesmo os exilados estabelecidos em um país e inseridos socialmente, houve


casos de pessoas que jamais solicitaram o estatuto de refugiado, recusando a condição
e os controles a que estariam submetidos junto aos órgãos estatais. Em geral, tratava-
se de exilados que podiam se dar ao luxo de dispensar os benefícios, inclusive
materiais, que o estatuto concedia, ou seja, uma minoria.
Até o golpe no Chile, as organizações mantiveram no exterior simpatizantes,
em geral, ex-militantes que atuavam no sentido de conseguir documentos,
normalmente entre turistas brasileiros, e prepará-los para serem usados por exilados
clandestinos. A eles também cabia a função de obter apoio e dinheiro, através de
contatos com governos, organizações e partidos políticos198.
Na segunda fase do exílio, a falta de documento ou a precariedade dos papéis
emitidos por governos latino-americanos foi motivo para a negação de visto em

196 - Cf. entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, 10 de maio de
1997; transcrição da fita 6, pp. 34 e 35.
197 - Depoimento de Joana, em julho de 1977, em Memórias das mulheres do exílio, 1980. p. 331; não
consta o sobrenome.
198 - Cf. entrevista com Daniel Aarão Reis Filho a DRC, no Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1996,
transcrição da fita 3, p. 29, fita 4, p. 9; 10 de maio de 1997, transcrição da fita 5, p. 11; cf. entrevista
com Luís Eduardo Prado de Oliveira, concedida a DRC, em Paris, 27 de outubro e 03 de novembro de
1995.

70
diversos serviços diplomáticos. As humilhantes peregrinações em busca de um país
que os recebessem e a forma negligente com que eram tratados contrastavam com a
auto-imagem do revolucionário. Daniel Aarão Reis Filho conta o absurdo da situação:

«Nós estávamos encruados no Panamá, que não dava passagem de ida e volta,
só de ida, e muitos de nós, a maioria, não tínhamos documentos de viagem.
Foi aí que o Panamá nos deu um título de viagem, mas era um papel higiênico,
nós o chamávamos assim, era um papel, não era nem uma carteira que se
prezasse, com capinha dura, nada. Era um papel que se desdobrava em quatro
e estavam lá a fotografia 3x4, o nome, a filiação, o país de origem. Então, um
de nós descobriu que, numa feira, se vendia uma capinha dura com as armas
panamenhas. Para darmos uma aparência mais decente àquele papel higiênico,
todo mundo foi lá e comprou a capinha e grampeamos o papel nela. Era só
uma coisa para inglês ver, porque qualquer aduana que a abrisse veria que se
tratava de um papel grampeado numa capa comprada numa feira. Era ridículo,
mas em todo caso, dava uma certa aparência»199.

As angustiantes situações causadas pela falta de documentos resultavam da


determinação do governo militar de negar passaporte a exilados, uma característica
peculiar à ditadura brasileira, se comparada a outros governos autoritários do
período 200 . Embora não houvesse uma lista de nomes de pessoas destituídas de
nacionalidade, como ocorreu por exemplo na Alemanha nazista, a simples recusa à
emissão de passaporte deixava os exilados sem identificação. Até no momento do
golpe no Chile, quando os estrangeiros corriam risco de vida, a embaixada brasileira
recusou-se a emiti-los: «Foi o único país que fez isto. Outros países, como a Bolívia,
se preocuparam com seus nacionais no Chile e deram passaporte para irem para outro
país. O Itamaraty não», lembra Maurício Dias David201. A embaixada do Paraguai,

199 - Entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio de janeiro, 19 de maio de
1997; transcrição da fita 7, p. 14.
200 - Cf. entrevista com Herbert de Souza, no Pasquim, 10, (519): 10-12, 8/14 de junho de 1979.
201 - Entrevista com Maurício Dias David, concedida a DRC, em Paris, 09 e 15 de março de 1995.

71
em plena ditadura do general Strossener, recebeu os paraguaios, comunicando que o
fazia para salvá-los, mas que seguissem para outro país202.
Os relatos de vários presos no Estádio Nacional atestam a presença da polícia
política brasileira, interrogando presos brasileiros e ensinando técnicas de tortura à
polícia chilena 203 . O embaixador brasileiro que apoiou o golpe, Antônio Câmara
Canto, era o mesmo que presidira a comissão de inquérito responsável pelo expurgo
no Itamaraty, eliminando os diplomatas considerados de esquerda.
Therezinha Rabêlo, com o marido refugiado na embaixada do Panamá e o
filho mais velho preso no Estádio Nacional, conta o procedimento da embaixada
brasileira não autorizando o embarque dos outros filhos para o Brasil:

«... eu ficava horas e horas na Embaixada porque a situação era tão difícil - e
vejam vocês que gente patife - era o único lugar onde eu tinha um pouco de
segurança e tranquilidade e eu pensava que eles iam me ajudar porque éramos
brasileiros e as crianças não tinham nada a ver com isso. Comprava uns
sanduíches, punha as crianças perto de mim, sentava lá e ficava pedindo,
tentando convencer... (...). O que essas crianças sofreram... o embaixador
devia ter pegado todas as crianças e levado pra casa dele. Eu resisti o quanto
pude até que, não tendo mais jeito e me sentindo muito ameaçada, entrei num
refúgio das Nações Unidas com todos eles»204.

As embaixadas brasileiras, não só no Chile mas em todos os países onde os


exilados viveram, se recusavam a registrar os filhos de exilados nascidos no exterior.
No Chile, o governo da Unidade Popular os reconheceu como chilenos, mas a junta
militar, que assumiu o poder com o golpe, anulou todos estes registros. Poucos
embaixadores enfrentaram o governo militar e tomaram a iniciativa de reconhecer o

202 - Cf. entrevista com Reinaldo Guarany, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, 31 de agosto de
1995.
203 - Cf. entrevista com Tomás Togni Tarquínio, concedida a DRC, em Paris, 17 de janeiro e 26 de
fevereiro de 1995. Cf. entrevista com Pedro Vianna, concedida a DRC, em Créteil e Paris, 22 e 25 de
março de 1995. Cf. relato de Didi Rabêlo, filho de José Maria e Therezinha Rabêlo, na entrevista com a
família Rabêlo, no Pasquim, 10 (473): 12-15, 21/27 de julho de 1978.
204 - Relato de Therezinha Rabêlo, na entrevista com a família Rabêlo, no Pasquim, 10 (473): 12-15,
21/27 de julho de 1978. p. 4.

72
direito das crianças à nacionalidade, como foi o caso de Ítalo Zappa, embaixador em
Moçambique205.
As embaixadas, muitas vezes, não renovavam o passaporte de quem saíra do
Brasil com o documento. Luiz Hildebrando Pereira da Silva partiu em 1969 com
passaporte e, em 1973, conseguiu renová-lo em Londres através de um simpatizante
do PCB, no consulado. Mas em 1976, ficou com o documento vencido, o que lhe
criava problemas para viajar e participar de congressos internacionais na condição de
cientista do Instituto Pasteur. Luiz Hildebrando jamais solicitou o estatuto de
refugiado, sob o argumento de que ele limitaria a sua liberdade de expressão206.
Luís Eduardo Prado de Oliveira também sofreu constrangimentos com a
diplomacia brasileira na França. Em 1972, declarou no consulado a perda do
passaporte com o qual saiu do Brasil em 1969, conseguindo sem problemas outro
válido por quatro anos. Em 1974, solicitaram a sua presença no consulado, quando o
cônsul exigiu a devolução do passaporte, sob a alegação de que era procurado pela
justiça brasileira. Vencido o passaporte em 1976, Luís Eduardo só conseguiu outro
depois da anistia. Como o visto de permanência havia sido renovado na França, Luís
Eduardo ficou cinco anos sem poder sair do território francês.
O papel dos serviços diplomáticos em relação aos exilados, durante a ditadura,
permanece um tema de pesquisa a ser investigado.

V - O trabalho

A atividade profissional no exílio teve um peso importante na maneira como a


experiência foi vivida, uma vez que a inserção e a adaptação social estiveram
diretamente ligadas ao tipo de trabalho exercido.
Os países latino-americanos abriram a muitos exilados, sobretudo a
profissionais liberais já formados e experientes, a possibilidade de exercerem
atividades qualificadas, em instituições de pesquisa e universidades. A ONU, através
de projetos especiais, também absorvia estes profissionais.

205 - Cf. entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, 04 de junho de
1997; trascrição da fita 8, pp. 32 e 33.
206 - Entrevista com Luiz Hildebrando Pereira da Silva, concedida a DRC, em Paris, 07 de dezembro
de 1995. Cf. também HILDEBRANDO, Luiz, 1990.

73
No Chile, a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO),
também ligada à ONU, recebeu muitos intelectuais. Mesmo os estudantes que
deixaram o Brasil antes de concluir a graduação encontravam trabalho em suas áreas,
principalmente na administração do governo da Unidade Popular. Aliás, exilados de
toda a América Latina compunham o quadro de funcionários dos órgãos
especializados do Estado. Parece que os menos escolarizados não tiveram muita
dificuldade para encontrar trabalho como operários e o governo Allende chegou a
abrir uma rede de financiamento para quem quisesse se estabelecer como pequeno
comerciante, beneficiando, inclusive, refugiados políticos estrangeiros.
Entretanto, na primeira fase, para os exilados ainda comprometidos com a
idéia da volta, a preocupação com trabalho nem estava em pauta. Neste contexto,
muitos se envolveram no aprendizado de um ofício operário que facilitaria a inserção
no Brasil entre a população pobre, onde seria desenvolvido um «trabalho de massas».
Assim, Heliana Bibas e Carlos Henrique Vianna instalaram-se em Maipul, cidade
perto de Santiago, onde havia um centro metalúrgico. Lá fizeram cursos de ajustador
mecânico e torno. A vida austera, sem luxo, seguindo a disciplina fabril de acordar
cedo e trabalhar oito horas por dia, não assustava os dois jovens de classe média
saídos do movimento secundarista. Prevalecia a lógica do desprezo pelos «valores
pequeno-burgueses» e a idealização da «classe operária». Daniel Aarão Reis Filho,
também nesta perspectiva, passava parte dos dias no Chile, em uma carpintaria
tentando se familiarizar com a profissão 207. Esta orientação revela o esforço para
preservar o projeto revolucionário.
Na Europa, o quadro mudou radicalmente. Apenas uma minoria conseguiu
trabalho em nível equivalente a sua qualificação. Ao contrário, o rebaixamento
profissional foi o mais comum, quando pessoas escolarizadas tiveram que exercer
atividades desprezadas pelos europeus, transformando-se em empregados domésticos,
babás, faxineiros de fábricas, porteiros de hotéis, operários na construção civil etc. O
exilado e o refugiado confundiam-se com o migrante econômico. A classe média
urbana, maior parte dos exilados, entrava em contato com uma realidade distante. O
significado da experiência está no relato de César Benjamin:

207 - Entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, 10 de maio de
1997; transcrição da fita 5, pp. 25 e 26.

74
«Trabalhei até semana passada numa escola e num jardim de infância como
faxineiro, ganhando por um total de 8 horas diárias mas fazendo o trabalho
em 5, isto é, das 3 às 8. Ao repetir todos os dias o mesmo trabalho braçal numa
escola, ambiente que eu conheço bem como estudante e, na fantasia, desde
criança, como provável professor, eu me lembrava sempre das reflexões do
Sinclair quando, no início do Demian, ele se surpreende com a descoberta de
um outro mundo que não era o seu, um mundo “obscuro” (sic) que começava
mesmo na sua casa (quarto de empregada, entrada de serviço, trabalho
assalariado, alienação etc.), com o qual convivia sem ver e do qual dependia
sem perceber para o bom andamento de seu mundo “luminoso” de burguês. E
não podia deixar de me ver naquelas pessoas que, como eu quando estudante,
certamente jamais pararam para pensar porque encontravam as salas sempre
limpas e arrumadas, e que havia uma pessoa por trás disto. Achava muito
simpático o gesto de uma professora que mandava a turma deixar as 40
cadeiras já sobre as mesas, na posição inicial da faxina, e limpava sua sala
com cuidado especial, embora nunca tenha identificado quem era ela entre as
professoras da escola»208.

As circunstâncias, a conjuntura de derrota e a necessidade de sobrevivência


material impunham o desempenho de funções que, não só nada tinham a ver com as
expectativas, mas que subvertiam papéis, em um processo profundamente
desorientador. César Benjamin, mais uma vez, traduziu o descompasso entre o que se
esperava ser e o que se tornou de fato:

«A sociedade sueca quer de mim que eu seja um vaktmastare* eficiente, e só.


Bluftahkapumbt. E em troca me dá conforto. Como dizem os locutores de
rádio: “que perigo, Deni!”. É, por mais que o goleiro se esforce, há bolas que
não dá pra pegar. Aliás, só o fato de ser goleiro já não dá pé, e o que eu queria
é ser ponta-de-lança, “infernizando a zona do agrião do adversário” - e a
grande área deste jogo se chama Brasil, onde falam a língua que falo»209.

208 - Carta de César Benjamin a sua mãe, Iramaya Benjamin. Estocolmo, 31 de maio de 1977. p. 6.
209 - Carta de César Benjamin a sua mãe, Iramaya Benjamin. Estocolmo, 23 de setembro de 1977, p.1.
Vaktmastare: função que exercia numa escola, realizando todo tipo de pequenas tarefas (cf. carta a I.B.,
de 6 de julho de 1971. p. 1)

75
Ou ainda:

«Nossa inserção social não tem nada a ver com aquilo que pensamos ser nossa
identidade, que deveria derivar daquela. Mas segue-se vivendo. Sobreviver
não é problema por aqui: tem até calefação. Mas dar um sentido às coisas sem
abrir mão nem da honestidade nem da inteligência... Sem fazer o jogo das
burocracias... Sem se perder o sentido de quem se é... Sem perder os pontos de
referência...»210.

Se, ao que parece, as diferenças culturais afligiram, sobretudo, os exilados das


camadas pobres, as condições materiais elementares, facilitadas a quem ganhava o
estatuto de refugiado em países capitalistas desenvolvidos, ou a quem era recebido
por países socialistas, tinham um inestimável valor para quem sempre vivera privado
destes direitos. Nestes casos, o exílio significou, muitas vezes, a melhoria do padrão
de vida e a volta ao Brasil implicava uma perda. Ainda assim, o desejo de voltar
permanecia. No depoimento de Damaris de Oliveira Lucena, trocada pelo cônsul
japonês sequestrado em 1970, o entusiasmo com o acesso a saúde, educação, moradia,
alimentação asseguradas pelo governo cubano:

«A mudança foi total, começando que eu era semi-analfabeta. Sou de uma


família pobre do Norte, fui operária têxtil durante vários anos, fui também
empregada doméstica e trabalhei em tarefas agrícolas. Não havia podido nem
terminar o curso primário, não dominava meu próprio idioma. Como mulher
pobre, jamais tivera acesso à instrução. Cheguei a Cuba doente, traumatizada
pelo brutal assassinato de meu esposo e pelas torturas que sofri, com três
crianças, uma de três anos e duas de nove. Fui internada no hospital, recebi
todo o tratamento necessário e meus filhos também. Comecei a aprender meu
próprio idioma e o espanhol também. Abriu-se para mim o campo do saber. E
eu, com quarenta e três anos, completei a escola primária, fiz a secundária e
ingressei no curso pré-universitário. (...). Aqui também as crianças receberam

210 - Carta de César Benjamin a sua mãe, Iramaya Benjamin. Estocolmo, 30 de dezembro de 1977.
p.3.

76
tudo o que uma mãe pode aspirar para seus filhos: as melhores escolas, livros,
brinquedos, tratamento médico quando adoecem, enfim, tudo o que uma
criança normal precisa ter para seu desenvolvimento»211.

Para os exilados de classe média, ocorria, na maior parte das vezes,


exatamente o contrário, ou seja, a queda no padrão de vida na Europa. É verdade que
esta situação já era conhecida dos militantes da luta armada, quando estiveram em
aparelhos ou na área rural. Contudo, tratava-se de um contexto muito específico do
enfrentamento, supostamente, decisivo da revolução. No exílio europeu, poucos
conseguiram manter o nível correspondente ao que teriam no Brasil.
A advogada Anina de Carvalho lembra as condições do início do exílio:

«No começo, morei como todo mundo, em quarto de empregada. Os dois


primeiros onde vivi não tinham nem água quente, nem privada e nem
banheiro. Havia uma piazinha de água fria no quarto, mas sem aquecimento
central, além dos sete andares para subir a pé. Era uma luta para conseguir
ticket de restaurante universitário, não tinha dinheiro mesmo»212.

A sua primeira experiência de trabalho foi «dramática», em desfiles de moda:

«... a minha obrigação era ajudar os modelos a pôr os cintos e os suspensórios,


a vestir as calças. Num clima psicológico de começo de exílio, em que você
perdeu tudo o que era importante, você estava na fossa em todos os sentidos,
passando problemas econômicos, não tendo muitas vezes dinheiro para comer.
Você se sentia assim aniquilada, tendo que desempenhar tarefa de ajudar o
modelo a enfiar a calça»213.

É conhecido o caso de uma banida que, em Paris, alimentava-se de carne para


cachorros e que acabou morrendo, logo depois da anistia, de câncer no estômago.

211 - Depoimento de Damaris de Oliveira Lucena, em 1977, em Memórias das mulheres do exílio,
1980. p. 235.
212 - Depoimento de Anina de Carvalho, em Memórias do exílio, 1978. p. 64.
213 - Depoimento de Anina de Carvalho, em Memórias do exílio, 1978. p. 64

77
Os refugiados, segundo Nanci Marietto, eram vistos pelos italianos como
mão-de-obra para trabalhos domésticos. Nanci chama a atenção para as desigualdades
entre os exilados, que corresponderam a oportunidades diferenciadas: «os políticos de
um certo nível» encontravam muito apoio nas organizações criadas por ocasião do
golpe de 1973 e nos partidos de esquerda, como o PC e o PS. Os demais tiveram que
se virar como pudessem. Diante das limitadas ofertas de trabalho na Itália, Nanci,
estudante de enfermagem, foi empregada doméstica durante boa parte do exílio214.
Entretanto, a Europa abria a perspectiva do estudo patrocinado por bolsas.
Muitos concluíram cursos universitários e seguiram fazendo pós-graduação.
Profissionais experientes aproveitaram a ocasião para se doutorarem, frequentando
universidades e bibliotecas. Na Suécia, o Estado concedia empréstimo a quem
estivesse na universidade, a ser pago em parcelas, ao longo dos anos seguintes à
formatura. Como refugiados políticos, os exilados podiam recorrer a este direito. Em
outros países, como a Alemanha ocidental, a França e a Suíça, por exemplo,
instituições da sociedade civil, em geral ligadas às Igrejas, concediam bolsas de
estudo a refugiados. Às vezes, foram usadas apenas como um meio para a
sobrevivência imediata, sem maiores desdobramentos. A opção pelo estudo,
frequentemente, não excluiu o exercício de trabalhos desqualificados, uma vez que as
bolsas nem sempre cobriam todas as necessidades materiais. A formação acadêmica
capacitou os exilados para o exercício de atividades qualificadas na África ou, mais
tarde, na volta ao Brasil, e demonstrava a redefinição do projeto de vida.
Os tipos de ajuda em relação a trabalho variaram. A Cimade (Comité Inter-
Mouvements Auprès des Évacués), além de bolsas, pagou cursos técnicos ou
profissionalizantes e, depois ajudava o refugiado a encontrar emprego 215. A ONU,
através do Alto Comissariado para Refugiados (ACNUR), patrocinou iniciativas de
exilados que quisessem estabelecer algum tipo de negócio, concedendo empréstimos.
Foi assim que Enoir de Oliveira Luz, conhecido como Juca, sindicalista no Rio
Grande do Sul e membro do PCB, abriu um restaurante de comida brasileira, em

214 - Entrevista com Nanci Marietto, concedida a DRC e Daniel Aarão Reis Filho, em Rocca Priora,
Itália, 20 de janeiro de 1996.
215 - Cf. entrevista com Ricardo Vilas, concedida a DRC, em Paris, 30 de novembro de 1995. Quando
chegou à França em 1969, vindo do México ao ser trocado com outros presos pelo embaixador
americano, Ricardo fez um curso de informática pago pela Cimade, que em seguida lhe conseguiu um
emprego técnico de 8 horas diárias.

78
Lisboa em 1978, o Brasuca, que ainda hoje pode ser encontrado 216 . No entanto,
parece que os exilados brasileiros não recorreram muito a este apoio do ACNUR.
Talvez porque representasse uma redefinição da identidade em um nível diferente da
que vinha ocorrendo até então. Com esta iniciativa, o ACNUR diluía as fronteiras
entre o refugiado e o migrante econômico e, no caso dos exilados brasileiros, os
descaracterizaria daquilo que lhes conferia identidade, ou seja, o político. A
transformação em comerciante redefiniu Juca radicalmente. Ele mesmo reconhece
que jamais quis se envolver em política no país, colocando-se contrário até a fundação
do comitê pela anistia, em Lisboa: «Nunca tive atividade política aberta em Portugal.
Não quero ter problemas com o governo português. Me mantive reservado»217.
Os exemplos de exilados brasileiros que conseguiram se inserir, na Europa,
como profissionais qualificados são minoritários e trata-se de pessoas do mais alto
nível no meio acadêmico e científico. Alguns casos são mais conhecidos: o do
professor Luiz Hildebrando Pereira da Silva, demitido da USP pelo AI-1, em 1964, e
da Universidade de Ribeirão Preto pelo AI-5, pesquisador de renome internacional,
seguiu a carreira no Instituto Pasteur, em Paris; o professor Paulo Freire, convidado
para trabalhar em vários países, estabeleceu-se durante muitos anos em Genebra, no
Conselho Mundial das Igrejas; o então sociólogo Fernando Henrique Cardoso,
professor na Universidade de Paris X, entre 1967 e 1968. Mas até Mário Pedrosa,
figura histórica da esquerda, reconhecido crítico de artes, para quem as portas
abriram-se no Chile, onde foi convidado para ensinar no Institito de Arte Sul-
Americana dois dias depois de chegar ao país e, em seguida, para organizar o Museu
de Arte Moderna, que logo se transformou no Museu da Solidariedade, encontrou
dificuldades para se manter na França218.
A descolonização das colônias portuguesas na África e o processo de
reconstrução dos países, a partir de meados da década de 1970, criou um amplo
campo de trabalho, em função da carência de pessoal qualificado. Muitos exilados
que nos anos anteriores haviam se formado nas universidades européias migraram
para o continente africano, o que já caracterizava uma terceira fase do exílio

216 - Entrevista com Enoir de Oliveira Luz/Juca, concedida a DRC e Daniel Aarão Reis Filho, em
Lisboa, 27 de janeiro de 1996.
217 - Entrevista com Enoir de Oliveira Luz/Juca, concedida a DRC e Daniel Aarão Reis Filho, em
Lisboa, 27 de janeiro de 1996.
218 - Cf. entrevista com Mário Pedrosa, no Pasquim, 9 (469): 4-8, 23/29 de junho de 1978.

79
brasileiro. Os programas das Nações Unidas na África também viabilizaram a ida de
brasileiros para diversos países, integrados a projetos de educação, comunicação etc.
Tratava-se de uma saída para exilados subaproveitados na Europa, onde,
revalorizados, puderam exercitar suas especialidades, aprendendo e aperfeiçoando-se
como profissionais e adquirindo experiência. Ao optar pela migração, os exilados
confirmavam a reconstrução de um projeto de vida.
A África não foi um mercado de trabalho apenas para a classe média que
havia passado por universidade, mas também para quem acumulara experiência
profissional na Europa. José Barbosa Monteiro, negro, filho de camponeses
analfabetos, ele mesmo tendo frequentado a escola primária apenas três meses,
trabalhou em uma fundação que dava assistência a adolescentes marginalizadas, em
Genebra, a maioria filhas de migrantes econômicos. Após um longo exílio na Suíça,
José Barbosa foi para a Guiné-Bissau, para trabalhar como educador219.
As circunstâncias do exílio impuseram a redefinição e a reconstrução de
identidades. Ainda que o vínculo com o projeto passado pudesse ser mais ou menos
mantido, a revisão dos valores foi inevitável, num processo decisivo na reorientação
dos rumos da esquerda brasileira.
Até o golpe do Chile, em 1973, a perspectiva da revolução latino-americana
prevaleceu e foi fundamental na definição da identidade dos exilados. No entanto,
mesmo na primeira fase, já havia indícios de transformações em curso, que se
aprofundaram na segunda. Muitos buscaram outros caminhos. Alguns não
conseguiram encontrar alternativa. A terceira fase esteve marcada pelo afastamento
ainda maior do projeto passado e pelo comprometimento mais consequente com a
realidade do país onde se vivia.
Como nas metamorfoses narradas por Ovídio, os exilados passaram por
transformações essenciais, mas mantendo sempre a marca primordial de exilado, que
«...ficava “colada” na gente como a pele» 220 . Envolvidos pelas circunstâncias de
tempo e de lugar, do destino, na interpretação de Ovídio, houve, no entanto e sempre,
espaço para a liberdade da «vontade ou iniciativa dos seres»221.

219 - Depoimento de José Barbosa Monteiro, em Memórias do exílio, 1978. pp. 113-143.
220 - Entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, concedida a DRC, no Rio de Janeiro, 04 de junho de
1997; transcrição da fita 8, p. 24.
221 - Cf. o conceito de Metamorfose de Gilberto Velho, a partir de Ovídio, em VELHO, Gilberto,
1994. «Introdução», pp. 7-9; citação, p. 8.

80
Entre raízes e radares [Conclusão da tese]

«...ninguém poderá jamais me compensar desses dez


anos perdidos... (...)
Eu não vejo a mínima razão de nós estarmos fora do
Brasil. Não dou pra isso nenhuma desculpa intelectual,
de abertura para o mundo, nada, nada, nada tem
desculpa. Isso é uma insolência, é um desaforo, é
indesculpável, historicamente é indesculpável».
Maricota da Silva222.

«Raízes?! Eu não quero raízes! Eu quero radares!».


Thiago de Oliveira223.

O exílio foi a tentativa de eliminação da vida política das gerações 1964 e


1968. Significou o desenraizamento das referências que lhes davam identidade
política e pessoal. A derrota de um projeto. O constrangimento ao estranhamento. A
perda do convívio com a língua materna, o afastamento das famílias, as separações. A
interrupção de carreiras, o abandono de empregos. A ruptura física e psicológica. A
desestruturação.
Muitos o viveram, fundamentalmente, como luto, como um naufrágio sem
salvação, como uma experiência que deixou seqüelas irreparáveis.
O exílio, entretanto, também foi vivido como ampliação de horizontes.
Impulsionou a descoberta de países, continentes, sistemas e regimes políticos,
culturas, povos, pessoas. Através dele, os exilados entraram em contato com outras
trajetórias históricas, com outras referências. A América Latina, a Europa, a África.

222 - Depoimento de Maricota da Silva, em abril de 1978, em Memórias das mulheres do exílio, 1980.
p. 38.
223 - Thiago de Oliveira, filho de exilado brasileiro, nascido na França.

81
Os países socialistas e capitalistas. O dia-a-dia em Cuba, o Estado de bem-estar social
sueco, a experiência socialista chilena, a revolução dos cravos, em Portugal, os
projetos de construção do socialismo em países africanos. Formaram-se
profissionalmente, experimentaram trabalhos qualificados e não-qualificados.
Conviveram com o legado do maio de 1968, o feminismo, a liberação sexual, as
drogas, o questionamento dos códigos morais, as lutas das minorias, a crítica às
vertentes do socialismo contemporâneo: a social-democracia e o socialismo realmente
existente.
Neste processo, os exilados conservaram a dificuldade de compreender as
complexas relações da sociedade com a ditadura e, portanto, continuaram isolados,
agora não mais no que se refere à estratégia de luta. Segundo uma dupla lógica, que
explicava e justificava a existência da vanguarda e que permitia a sobrevivência
política, psicológica e emocional no exílio, predominou a interpretação segundo a
qual o povo era simplesmente vítima do regime que o oprimia e o enganava. Seus
valores não se identificavam com os dos militares. O povo, como que por definição,
se opunha à repressão e à política econômica baseada na concentração da renda que
agravava as desigualdades sociais. Os documentos, os artigos da imprensa publicados
no exílio, os depoimentos da época e mesmo os relatos recentes o comprovam. Assim,
eram tarefas urgentes a denúncia e o esclarecimento da realidade - desmascarar a
ditadura.
Mesmo que sejam considerados o controle dos meios de comunicação, a
censura, a suspensão dos direitos civis, a reforma partidária, os ilimitados poderes do
regime, de que o AI-5 foi a maior expressão, a política econômica concentradora da
riqueza, a repressão à liberdade de expressão, a prisão política, a tortura e o
assassinato, a reforma da educação baseada na desvalorização do pensamento crítico,
tentando formar uma geração a partir do civismo e do patriotismo, o fato de se tratar
de uma ditadura não implica que não atendia, em dado momento, aos anseios de
considerável parte da sociedade. A prática e o caráter democráticos estavam longe de
ser uma tradição no Brasil, e não apenas das elites.
Antes mesmo do início da maior vaga rumo ao exílio, a partir de 1968/1969, a
luta no país estivera isolada. A resistência à implantação e à consolidação do regime
militar limitou-se a grupos precisos ou se diluiu em gritos surdos e ações
marginalizadas. Esta realidade não se deveu apenas às formas de luta empregadas -
luta armada, por exemplo -, mas também às propostas da oposição. Concentradas nas

82
críticas ao regime político e/ou capitalista, não seduziam a maioria, que associava os
resultados sócio-econômicos mais imediatos ao governo militar.
Na verdade, os efeitos da resistência foram mais o de manter a capacidade de
agir, afirmando uma identidade política que recusava a passividade. Em um quadro
profundamente desigual, talvez tenha sido a resistência possível, sob um regime
intolerante a vozes dissonantes, que exigia o aplauso da unanimidade, alheio à lei ou
criando-a segundo interesses próprios. Contudo, não se pode dizer que a resistência ao
regime ou o seu enfrentamento tenha sido uma característica dos anos de ditadura,
envolvendo parcelas significativas da sociedade, como imaginaram muitos exilados.
Após duas décadas, assistia-se à retirada dos militares sem que houvesse um
movimento social contundente para derrubar o regime. A anistia e, consequentemente,
a volta dos exilados e a libertação dos presos políticos, eram parte de um processo de
abertura que, mesmo diante das pressões internas e externas, jamais escapou ao
controle dos militares e políticos comprometidos com a ditadura.
No exílio, permanecia ainda a dificuldade para perceber o projeto
modernizador do regime instaurado em 1964. Os militares não passavam de gorilas,
com funções meramente repressivas, a serviço do imperialismo.
Esta interpretação da relação de uma sociedade com um regime autoritário foi
um fenômemo recorrente em outras experiências de exílio. Expressa a recusa do
exilado em aceitar o acordo, a cumplicidade ou a omissão da sociedade com o regime
que o expulsou224. Além disto, a distância, ela mesma, também contribui para uma
certa idealização, obscurecendo aspectos nada compatíveis com uma imagem que se
deseja verdadeira.
Ao chegarem, os exilados traziam uma visão do país e da sociedade um tanto
desfocada da realidade, o que vai agravar o impacto da chegada, impondo uma
revisão do país.
Para além das continuidades e dos dois pólos - naufrágios e descobertas -, o
exílio foi, essencialmente, a metamorfose. A princípio pensado como curto, foi longo.
A volta revolucionária, na clandestinidade, para enfrentar o regime virou uma volta
consentida, no contexto da aprovação de uma lei formulada pela ditadura, já no
crepúsculo, mas que ainda conseguiu fazer valer a sua anistia sobre a desejada pelo

224 - Jean-Michel Palmier revelou a força desta «ilusão», entre muitos exilados alemães anti-nazistas,
nos anos 1930. Cf. PALMIER, J.M. 1988.

83
movimento social. Organizações e partidos políticos - reformistas e revolucionários -
transformaram-se ou mesmo se dissolveram. A militância ganhou outro significado. A
maneira de lidar com o cotidiano foi reavaliada. Os valores mudaram. As mulheres
reconsideraram seu papel na sociedade, questionando o machismo e a opressão das
tradições. De uma cultura política basicamente autoritária, transitou-se para a
valorização, na verdade muito desigual, da democracia. O Brasil passou a ser visto de
fora. As estreitas fronteiras nacionais se ampliaram. O provincianismo cedeu lugar ao
cosmopolitismo. Os exilados que, no início, tão orgulhosamente ostentavam esta
condição, passaram a aceitar a de refugiado. O tempo passou. Os velhos ficaram mais
velhos, os jovens procriaram e já não eram mais tão jovens. A diversidade e a
intensidade das experiências levaram a imprevistas transformações. Assim, o exílio
tornou-se essencial na redefinição das gerações 1964 e 1968. Os conceitos
tradicionais de revolução foram repensados e uma outra questão veio para o centro do
palco: a democracia.
Entre raízes e radares, os exilados reavaliaram o projeto que havia sido
vencido, abandonaram alguns de seus aspectos centrais, agregaram outros,
reconstruíram caminhos e concepções de mundo, redefinindo-se a si mesmos. Entre o
que deixavam para trás e o que viam diante de si, as contradições, as tradições do
passado e as novidades do presente. O futuro.
No embate, desde que não houvesse naufrágios, os exilados viveram a
dolorosa e a maravilhosa experiência da metamorfose, tornando-se outros, sem perder
de todo traços da condição anterior. Sem renegarem o passado, renasceram para o
presente. Como raízes que saíssem da terra e se espalhassem pelo ar: «As raízes têm
que ser aéreas», sintetizou Pedro Vianna225.
Assim, o exílio foi, simultaneamente, a eliminação e o afastamento das
gerações 1964 e 1968, e a sua sobrevivência, o lugar da liberdade de pensamento e
crítica, de aprendizado e enriquecimento, o lugar da resistência e da metamorfose, a
negação da negação.

225 - Entrevista com Pedro Vianna, concedida a DRC, em Créteil e Paris, 22 e 25 de março de 1995.

84

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