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2 (Velho)corpo homossexual & intercâmbios sociossexuais

A inexorabilidade do tempo, que traz em seu bojo a finitude e decrepitude do corpo,


parece ser o grande adversário para o protagonista da narrativa “O inimigo comum”. É
possível pensarmos no próprio título da história como síntese do modo como o personagem
central absorve as representações sociais da velhice. Para ele, um homossexual idoso acima de
sessenta anos (na década de 70 do século passado), o tempo denota um sentido de
antagonismo, uma espécie de inimigo, oponente face aos efeitos evidenciados pela
degradação corpórea, bem como, pela discriminação sofrida por jovens homossexuais.
O risível preludia a narrativa por meio de sua epígrafe através de um diálogo
envolvendo dois sujeitos envelhecidos (duas bichas velhas) que, mutuamente, desejam ser
mais jovens recorrendo a referências cinematográficas. A primeira afirmando que a outra é do
tempo da Theda Bara, uma das atrizes norte-americanas mais populares do cinema mudo de
sua era, consagrada no filme "A Fool There Was" (1915), enquanto a segunda bicha, em
vocativo irônico, no intento de evidenciar sua juventude, assevera que é do tempo de “Flash
Gordon no planeta dos macacos”, um seriado estadunidense de 1938, gênero de ficção
científica, baseado nas histórias em quadrinhos sobre Flash Gordon, que reúne suas aventuras
em cenários estranhos, criaturas fantásticas e personagens de outros mundos. Contudo, esse
tom cômico, de brincadeira inicial acerca da recusa em envelhecer não encontra ressonância
no enredo do conto que é dominado pela distopia e pela representação da velhice como
abjeção.
O sentido corrente de abjeção indica a posição de degradação, aviltamento, de
desvalorização do sujeito. De acordo com Paiva (2009), a estudiosa Judith Butler realizou um
aprofundamento das discussões acerca do abjeto e da abjeção em interloção ao pensamento
derridiano via conexão estreita aos “esquemas classificatórios sociossexuais binaristas” e aos
“correspondentes esquemas de constituição de subjetividades”. Eis o conceito da filósofa
norte-americana:
O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “inóspitas” e “inabitáveis
da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que
não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do “inabitável”
é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. Essa zona de
inabitabilidade constitui o limite do domínio do sujeito; ela constitui aquele
local de temida identificação contra o qual – e em virtude do qual – o
domínio do sujeito circunscreverá sua própria reivindicação de direito à
autonomia e à vida. Neste sentido, pois, o sujeito é constituído através da
força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior
constitutitvo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal,
“dentro” do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio (BUTLER, 2001,
p. 155-156).

A velhice como abjeção é exemplar quando recortamos o protagonista do conto em


tela. O leitor toma contato com o inominado velho da história. Sendo relevante destacarmos
que o narrador heterodiegético não o nomeia, em toda narrativa chama-o de “velho”, reduz o
personagem ao seu estágio etário/sociobiológico, despersonaliza-o do ponto de vista da
identidade de nome. Sob a condição de aposentando da marinha, portanto, integrante do grupo
social “improdutivo” para os pressupostos de uma sociedade capitalista e utilitária, o
homossexual idoso da história consegue manter laços de homossociabilidade com amigos, na
Cinelândia, (no idílico Rio de Janeiro dos anos 70 do século passado) fazendo-se parte de um
“grupo de senhores idosos” que mantém o hábito de ficar até tarde da noite na praça
conversando. Segundo o narrador, eles constituem-se de “sujeitos que já tiveram seu tempo e
hoje vivem da saudade e da recordação (e nada para eles presta)” (DAMATA, 1975, grifo
nosso, p. 51). Esse sujeitos, metonimicamente, reduzidos a repositórios de memórias,
prisioneiros nostálgicos de um tempo irrecuperável, jogados na obsolescência e exclusão
social, sentindo a experiência da velhice como um fardo, uma vida completamente
insatisfeita, tolhidos assim de:
[...]uma nova atitude em relação ao tempo e ao envelhecimento, que dá ênfase
às possibilidades de lutar manter a identidade própria, descobrir novas fontes
de poder pessoal e, assim, ser triunfante e feliz, social e psicologicamente,
mesmo tendo as capacidades biológicas reduzidas (SIMÕES, 2004, p. 421).

A passagem do texto de Damata, enquanto produção discursiva sobre o


envelhecimento também é, saliente, sobretudo, no sentido de interpelarmos a respeito do lugar
social do velho gay, do olhar que esse sujeito velho constrói sobre si, bem como os efeitos do
olhar do outro. “O diferencial é que este “outro”, muitas vezes, são seus pares identitários,
pois a segregação aos velhos gays também está sobre o crivo do próprio circuito gay em
determinados territórios que os impulsionam para maior invisibilidade no espaço social”
(MOTA, 2014, p. 15).
Isso é verificável no conto, tendo em vista que homossexuais mais jovens,
frequentadores do mesmo espaço, com o intuito de insultar, depreciar o grupo de senhores
idosos deram-lhes a zombeteira alcunha de “as damas da madrugada”, os quais revidaram
chamando os jovens de “fanchones de braguilha” e “mão furada”. Advindo desse cruzamento
tenso, considerando a periodização da vida, uma hostilidade mútua entre novas e velhas
gerações. “A partir de então os dois grupos passaram a se hostilizar e a dizer um do outro
cobras e lagartos” (DAMATA, 1975, p. 51). Avulta desse embate iniciado pelos jovens
homossexuais, “a turma mais moça, moderna” (p. 51), que evidenciam uma das faces da
abjeção, manifesta pela zombaria, pela ridicularia aos mais idosos, um sentimento de repulsa
à velhice bastante corrente nos circuitos gays. Nesse sentido, segundo Eribon (2008, p. 167):
O ódio pelos “velhos”, por exemplo, parece ser um dos esquemas
estruturantes das conversas no interior do meio gay na medida em que a
sexualização potencial das relações entre indivíduos leva a falar em termos
depreciativos e insultuosos de todos aqueles que não têm mais valor sobre o
que é preciso chamar de mercado sexual. Aliás, devemos nos interrogar
sobre o fato, bem impressionante, de que a participação nesse mundo gay,
nessa “cena gay” é, afinal, quase sempre provisória.
O filósofo francês lança luz sob dois aspectos que se imbricam nessa discussão acerca
da velhice como abjeção: as exigências de um “mercado sexual” com prazo de validade
definido, portanto, transitório, que, simultaneamente, eleva ao triunfo o corpo jovem e repele,
de modo contundente, o corpo velho. Nessa perspectiva, vejamos a descrição do protagonista
idoso que pela voz do narrador heterodiegético acompanha a visão do personagem Otávio, o
parceiro dele na narrativa:

Encostado [Otávio] na parede, imóvel, seus olhos grandes e parados seguiam


com desinteresse os movimentos do velho preparando o café no pequeno
fogão de duas bocas. Assim de costas, via-se que era atarracado e cheio de
banhas, tinha os quadris muitos largos e um traseiro redondo, seus
movimentos eram lentos e pesados como os de um elefante decrépito de
circo que só espera pela morte (DAMATA, 1975, grifo nosso, p. 61).

Afigura nesse excerto, de modo explícito, a descrição do corpo em decrepitude, da sua


debilidade motora manifesta em gestos lentos, do acúmulo de tecido adiposo, em suma, do
corpo velho abjeto cumprindo sua perenidade material. Esse mesmo corpo repulsivo a
caminho da morte assinala o “desinteresse” do personagem Otávio, posto que o portador dele
se configura deserotizado, não se constitui como sujeito desejável e desejante. É nesse cenário
distópico, também, que o protagonista homossexual com mais de sessenta anos da narrativa
em análise tenta não se enquadrar na prototípica figura da “tia velha” solitária e deprimida,
assumindo um relacionamento sociossexual e afetivo com o jovem Otávio, rapaz que “Tinha
um ar decidido, adulto, e também dois olhos grandes e expressivos que o tornavam de certa
maneira bonito[...] [possuía genitália avantajada] nos mictórios e em bares, mais de uma vez
fora abordado por bichonas velhas que lhe ofereciam vantagens (DAMATA, 1975, grifo
nosso, p. 54).
Nessa passagem, depreendemos a busca pelo corpo jovem como o desejo em
potencial despertado em sujeitos idosos, caracterizados como homossexuais afeminados, cujo
comportamento pode oscilar entre a monetarização das relações sexuais (pagar para transar)
até o estabelecimento de relações ancoradas em intercambialidades sociossexuais que não se
esquivam de uma configuração paterna, tal como ocorre na história entre Otávio e o
protagonista. Conforme ilustra esse excerto do conto, numa fala do personagem idoso
preocupado com a escolha do rapaz em conseguir uma parceira capaz de zelar por ele. “Já
estou velho, cansado. Qualquer dia desses bato a bota, vou pro outro mundo, como se diz. E
como é que você vai ficar, vamos, me responda? Sem ter quem tome conta de você, quem
faça as coisas pra você” (DAMATA, 1975, p. 62). Apesar de haver a presença do sexo como
componente desse relacionamento, a homorrepresentação literária aponta para outros
fenômenos sociais, conforme explana Mota (2014, p. 141):

A relação sexual apresenta-se, assim, com várias faces, representações


simbólicas e modalidades, pois estes encontros, que vão da sauna ao
intercâmbio com gigolôs, não se restringe à atividade sexual, mas incluem,
entre outras fantasias, a existência de afetividade. Desse modo, coaduana-se
situações com quem procura manter vínculos subsidiados a partir de
benefícios. Além dos serviços sexuais prestados, os jovens entram no jogo da
“adoção”.
É o que ocorre entre o personagem Otávio e o homossexual idoso do conto em tela. O
velho assume um papel de quase paternidade em relação ao rapaz, “adotando-o”; ele, a
propósito não possui trabalho fixo, vive “de biscate, do que aparece” (DAMATA, 1975, p.
56). E nesse “jogo de adoção” que acontece entre os personagens, Otávio confessa estar
apaixonado por uma garota com a qual marcou um encontro e ela não apareceu. Embora seja
estabelecida uma relação de enlace sexual entre os dois, “um caso”, parece predominar um
código de homossociabilidade entre eles por meio do qual é facultado ao jovem ter contatos
com outras mulheres ou mesmo uma namorada. O narrador, sem meias palavras, traduz o
sentido de os personagens estarem juntos, apesar de todas as discrepâncias:

[...]nem o velho nem o rapaz dessa história se amam, e é bem provável que
um dia o rapaz se case e o velho venha a ser seu padrinho de casamento. Não
há nada mais terrível do que a solidão, ou a ausência total do amor, disse
também outro conhecido escritor dos nossos dias, e só a solidão ou a
impossibilidade de se viver ao lado da pessoa a quem se ama (ou então se
pensa que ama) pode reunir debaixo do mesmo teto gente de mentalidade e
idade tão diferentes (DAMATA, 1975, p. 63).
Essa antítese de personagens ocupa o mesmo espaço, um quarto de um sobrado em
ruínas, divido ao meio por um tabique de compensado, ambiente para esse relacionamento de
conveniências em que não sentimento de posse, ciúmes. Há espaço, sim, na cabeça do velho
homossexual para expressar sua intensa misoginia (poupando apenas sua mãe e a Virgem
Santíssima), inclusive respaldada em figuras femininas históricas tidas como pérfidas
(Messalina, Cleópatra, Lucrécia Bórgia). Eis sua aversão ao feminino: “Estou com essa idade,
mas graças a Deus nunca me iludi com mulher, sempre soube desde menino que mulher não é
flor que se cheire[...]Mal sabem vocês que a perdição do homem é a mulher. Que mulher quer
mesmo é sacanear o homem, ou então deixá-lo na desgraça” (DAMATA, 1975, p. 55-59).
Possivelmente, esse forte posicionamento misógino encontra ressonância na sombra e
peso da heteronormatividade que assombrou seu passado jovem, cujo conservadorismo,
machismo e homofobia exerciam um poder opressivo bem mais esmagador que na sua fase de
velhice. Não é gratuito que ele em conversa com Otávio relembra a traumática experiência de
juventude com uma prostituta. Coercitivamente, caiu nos “braços” dela por força da
circunstância, já que quando jovem integrava o corpo da marinha. E como subterfúgio para
tentar não demonstrar sua efetiva orientação sexual para os colegas de trabalho converge para
os meandros da heterossexualidade compulsória, contudo, marcante do ponto de vista
negativo. Eis a passagem:
Não estava com vontade nenhuma, mas peguei uma tal Maria “Tabaco
Louro”[...]subimos pro quarto, era uma pensão de mulheres que ficava num
sobradão. Pois bem, na hora, a tal sujeita abriu as pernas e eu me preparei
pra enfiar, não sei o que diabo me deu na cabeça, pois não é que caí na
besteira de olhar? Foi a água: meu pau baixou de repente, não houve jeito de
querer subir, por mais que a mulher se esforçasse. E a danada da mulher haja
a perguntar “Que foi, meu filho? e eu sem querer responder, encabulado, o
rosto pegando fogo. E mais depressa levantei da cama, vesti a roupa já
sentindo uma gastura por dentro, um suor frio pelo corpo. Saí escada abaixo
sem pensar em mais nada, uma vontade danada de vomitar. Não disse nem
“até logo”. Cheguei na porta da rua, corri até o escuro, me escorei num canto
do muro e vomitei até quase botar a alma pela boca (DAMATA, 1975, p.
58).
Os fios vazados pela memória desse sujeito envelhecido, que certamente, teve de se
amoldar a uma sociedade patriarcal preconceituosa, que discrimina o diferente pela orientação
sexual. Esse outro que é concebido como doente pela ciência, pecador pela religião e um
criminoso diante da lei. Convém sublinharmos esse trajeto de juventude até a velhice do
personagem como compreensão da constituição de subjetividade do sujeito homossexual face
aos embates da intolerância social. É pertinente vislumbrarmos que as experiências afetivo-
sexuais de juventude se fizeram sob o prisma da clandestinidade. E agora, no crepúsculo de
sua vida, precisa fazer arranjos relacionais, homossociais com o sujeito jovem para não ceder
por completo ao enclausuramento e exclusão social. A intercambialidade sociossexual que
estabelece com Otávio, apesar do peso da abjeção, representa o esforço para contrariar as
vicissitudes de ser gay e velho.
O fantasma da “velhice como abjeção” (POCAHY, 2012, p. 129), assombra, também,
o personagem Arthur do romance “A céu aberto” (2008), de João Gilberto Noll. Na narrativa,
o narrador-protagonista (jovem inominado) carrega consigo o irmão mais novo doente (órfãos
de mãe) às trincheiras de uma guerra insólita à procura do pai, que é militar. Podendo ser
qualquer cidade ou localidade, o cenário de guerra não é identificado, e junto ao estado de
desamparo dos dois irmãos, que são abrigados num salão paroquial, acresce um conjunto de
eventos convergentes à errância do narrador configurados numa intensa flutuação
espaciotemporal, mesclados pela simbiose entre sonho e vigília, realidade e delírio.
O narrador relata o encontro com um homem chamado Arthur, um homossexual
pianista e boêmio, acima de cinquenta anos, amigo de infância de seu pai que o encontra
numa noite de tormenta tropical, no salão paroquial junto a outros flagelados. Arthur o
convida para assistir uma apresentação numa casa noturna. Após esse episódio, eles tornam-se
amigos. Ficando por um tempo na casa do pianista enquanto a situação dos flagelados da
tormenta tropical não se resolvia. Com a proximidade entre eles, Arthur desabafa falando de
sua homossexualidade, da infelicidade de estar envelhecendo, de sua deserotização (sentindo-
se decrépito, incapaz de despertar desejo em outro homem), revelando, inclusive que paga
garotos para ter relações sexuais:
[...]olha a minha idade, vejo que nenhum homem poderá se interessar
verdadeiramente por mim, só se for pelo meu antigo rosto sem papada e
bolsas sob os olhos, só se for pelos meus braços de outrora que ostentavam
alguma malhação até pela ajuda do piano, só se for por este outro homem
que já se esboroou em mim; pois que cara em sã consciência pode vir hoje
até aqui, e escavar com sua língua a minha boca cheia de próteses dentárias
alcoolizadas[...], mas, eu continuo querendo o garotão lá no fim das minhas
madrugadas e pago ao garotão que de outra maneira não me procuraria nem
espetaria sua barba por fazer no meu pescoço como peço...(NOLL, 2008,
grifo nosso, p. 24).

A autoimagem depreciativa do personagem velho, que pode ser sintetizada no


sentimento de esboroamento, ou seja, de autoestima deficitária, da imensa sensação de
desvalorização pelo outro é resultante da perda de capital erótico que o lança na sombria
“velhice como abjeção”. Esta, é evidenciada na busca monetarizada do personagem pelo
corpo jovem (“garotão”); busca que pode ser avaliada enquanto desqualificação e conexão
moralizante de que o triste fim dos gays velhos e os “feios em geral”, ou seja, aqueles que são
alijados pelo severo e hedonista mercado sexual entre gays, é o recurso à prostituição,
conforme discute Simões (2012, p. 418):
[...] nesse cenário marcado pelo hedonismo complacente e pela obsessão
com atributos físicos capazes de suscitar atração e desejo, em que tudo
parece girar em torno de um mercado sexual hierarquizado por critérios de
juventude e beleza, não haveria lugar para pessoas de mais idade, que
carregariam os estereótipos derivados da depreciação de sua atratividade
como parceiros sexuais desejáveis e da decorrente marginalização pelos mais
jovens. Aos mais velhos, restaria pagar para desfrutar de companhia fugaz e
arriscada.

De fato, Arthur, na busca por companhias fugazes assume riscos ao manejar sua libido
na fronteira entre o prazer e perigo. O narrador nos relata um episódio em que o boêmio
personagem chega tarde da noite em casa muito embriagado acompanhado por dois homens:
“Ambos com suas camisas presas em volta da cintura” (NOLL, 2008, p. 26). São esses
sujeitos desconhecidos que o personagem encontrara na rua, à beira de um rio, dois garotões,
“como sorrisos zombeteiros” (NOLL, 2008, p. 26) que se aproveitam da vulnerabilidade
etílica de Arthur para roubar a sua carteira. Essa deliberada exposição ao perigo a que se
submete o pianista, às voltas com o alvo preferencial de possíveis interações sexuais
monetariazadas (rapazes) remete à discussão de Perlongher (1987, p. 67) acerca da
predisposição de alguns clientes do mercado do sexo para se entregarem à “tentação pelo
abismo [que] pode aparecer sob a forma de um ‘gosto pelo perigo’, que conduz alguns
pederastas, se não a certo gozo masoquista, a uma intensificação mortífera das pulsões
investidas na transação, condensada na equação terror/gozo”.
Nesse ambivalente jogo de prazer e ameaça vivenciado por Arthur avulta outro
episódio narrado pela sua empregada, Aparecida, “uma velha empregada negra, trabalhava
para Arthur fazia vários anos, conhecia muito bem da vida dele” (NOLL, 2008, p. 26). Ela o
conhecera numa situação de extrema exposição após ser surpreendido, junto com outros
homens homossexuais, numa sauna que oferecia serviços sexuais de rapazes:
[...]numa noite de chuva, ele estava entre vários homens ensopados
caminhando pela calçada como se participando de um estranho grupo, depois
notei que dois PMs (um na frente outro atrás) como que conduziam a boiada
até entrarem numa delegacia de polícia[...]aqueles homens tinham sido
apanhados numa sauna de massagem gay, tempos depois Arthur me
contou[...]aqueles policiais de arma em punho a fim de prender todo mundo
que encontrassem lá dentro sob a alegação de que havia ali exploração de
menores, é caso de lenocínio lenocínio eles berravam... (NOLL, 2008, p. 27).

Essa circunstância passada corrobora para a leitura do personagem configurado sob a


figura do “velho tarado”, socialmente, concebida como repugnante, capaz de atacar
subitamente qualquer jovem incauto. Numa passagem da narrativa quando Arhur, de
madrugada, perambulando pela rua, explora sua face voyeur tentando observar o pênis de um
“garotão” enquanto urinava em um tronco de árvore:

[...]vi que um garotão mijava, fui ali e comecei a mijar também contra o
tronco, não bem do lado oposto do garotão mas mais perto quase ao lado
para poder contemplar o pau do bicho mijando, era isso naquela ocasião que
eu queria, nada muito além, contemplar o pau do garoto mijando[...]de
súbito o garotão deu um berro feito um guerreiro japonês ou algo do gênero,
fez alguns gestos de jiu-jítsu ou coisa que o valha e vem para cima de mim e
eu consigo milagrosamente me desvencilhar de seus músculos e vou
correndo por uma aléia da praça e ele vem atrás gritando velho nojento
careca asquesoso anda por aqui olhando o pau dos caras...(NOLL, 2008, p.
32).

A reação truculenta do rapaz que nota ser observado por um sujeito


velho/nojento/careca/asqueroso dá a dimensão da repulsa ao duplo estigma de marginalização
social em relação ao indivíduo gay e velho, fundidos no personagem Arthur, assinalando,
assim, que os homens homossexuais idosos representariam, segundo Simões (2012, p. 418-
419) “uma das formas mais salientes da alteridade abjeta e excluída dentro da própria
experiência moderna e “positiva” da homossexualidade masculina visível”. Convém,
sublinharmos, que velho voyeur dessa narrativa nolliana é espancado pelo garoto, o pianista
tem o braço fraturado, impedindo-o de trabalhar na noite, inclusive, passando um período de
recuperação numa casa de praia até sanarem os hematomas e fratura.

Apesar desse cenário disfórico, é lúcido a relativização em torno da imagem e falsa ideia
pejorativa da “bicha velha abandonada e deprimida”. A experiência da velhice gay, também,
pode ser expressa, não apenas pelo confinamento, mas também por relações fraternais sólidas
de amizade e homossocialidades convergentes ao gozo de entretenimentos e autoestima:

No âmbito da representação mais positiva do envelhecimento entre homens


homossexuais, convém aludir o cruzamento tenso e móvel entre novas e velhas convenções
sobre a periodização da vida. Isso nos leva aos possíveis arranjos, combinações e variações
entre a figura da “tia velha” o solitária e deprimida e “coroa” bem-disposto e acompanhado:
O ‘coroa’ é um personagem de idade indefinida, mas portador dos sinais
visíveis da ‘máscara do envelhecimeto’: o cabelo grisalho, as rugas, a cintura
grossa, os movimentos um tanto mais lentos. O ‘coroa’, tipicamente, parece
ser o homem maduro de modos viris, que tem saúde, disposição física,
apresentação pessoal e dinheiro suficiente para frequentar alguns espaços do
chamado ‘circuito gay’, encontrar amigos, beber, se divertir e também tentar a
sorte no mercado da paquera (SIMÕES, 2004, p. 420).

De acordo com Pollak apud Mota (2014), os anos 1970 constituíram um conjunto de
experiências homoeróticas que assinalaram o poder de se fazer respeitar, evidenciando um
estilo, uma identidade, um novo jeito de ser. “Houve um deslocamento da manifestação
sexual, antes restrita ao mundo privado, passa a ter expressão e visibilidade no espaço
público” (MOTA, 2014, p. 125).
A complexidade do processo de envelhecer aponta para uma série de
questões imprecisas sobre o termo velhice. Os sinais do corpo são
elaborados e apropriados simbolicamente de diferentes maneiras de uma
cultura para outra, de modo que as fronteiras etárias são relativizadas com
sentidos distintos em cada sociedade (MOTA, 2014, p. 21).

A experiência do sexo pago ocupa um lugar privilegiado nos discursos


normativos como um destino reservado aos perversos, aos homens
miseráveis, solitários e um tipo físico aberrante, ou seja, algumas práticas
desobedientes no interior das formas dissidentes da sexualidade agonizam
entre as permanências tributárias de representação de alguma coisa
vergonhosa, suja e/imoral, sobretudo para muitos gays. Pocahy (2012, p.
141

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