Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
[...]nem o velho nem o rapaz dessa história se amam, e é bem provável que
um dia o rapaz se case e o velho venha a ser seu padrinho de casamento. Não
há nada mais terrível do que a solidão, ou a ausência total do amor, disse
também outro conhecido escritor dos nossos dias, e só a solidão ou a
impossibilidade de se viver ao lado da pessoa a quem se ama (ou então se
pensa que ama) pode reunir debaixo do mesmo teto gente de mentalidade e
idade tão diferentes (DAMATA, 1975, p. 63).
Essa antítese de personagens ocupa o mesmo espaço, um quarto de um sobrado em
ruínas, divido ao meio por um tabique de compensado, ambiente para esse relacionamento de
conveniências em que não sentimento de posse, ciúmes. Há espaço, sim, na cabeça do velho
homossexual para expressar sua intensa misoginia (poupando apenas sua mãe e a Virgem
Santíssima), inclusive respaldada em figuras femininas históricas tidas como pérfidas
(Messalina, Cleópatra, Lucrécia Bórgia). Eis sua aversão ao feminino: “Estou com essa idade,
mas graças a Deus nunca me iludi com mulher, sempre soube desde menino que mulher não é
flor que se cheire[...]Mal sabem vocês que a perdição do homem é a mulher. Que mulher quer
mesmo é sacanear o homem, ou então deixá-lo na desgraça” (DAMATA, 1975, p. 55-59).
Possivelmente, esse forte posicionamento misógino encontra ressonância na sombra e
peso da heteronormatividade que assombrou seu passado jovem, cujo conservadorismo,
machismo e homofobia exerciam um poder opressivo bem mais esmagador que na sua fase de
velhice. Não é gratuito que ele em conversa com Otávio relembra a traumática experiência de
juventude com uma prostituta. Coercitivamente, caiu nos “braços” dela por força da
circunstância, já que quando jovem integrava o corpo da marinha. E como subterfúgio para
tentar não demonstrar sua efetiva orientação sexual para os colegas de trabalho converge para
os meandros da heterossexualidade compulsória, contudo, marcante do ponto de vista
negativo. Eis a passagem:
Não estava com vontade nenhuma, mas peguei uma tal Maria “Tabaco
Louro”[...]subimos pro quarto, era uma pensão de mulheres que ficava num
sobradão. Pois bem, na hora, a tal sujeita abriu as pernas e eu me preparei
pra enfiar, não sei o que diabo me deu na cabeça, pois não é que caí na
besteira de olhar? Foi a água: meu pau baixou de repente, não houve jeito de
querer subir, por mais que a mulher se esforçasse. E a danada da mulher haja
a perguntar “Que foi, meu filho? e eu sem querer responder, encabulado, o
rosto pegando fogo. E mais depressa levantei da cama, vesti a roupa já
sentindo uma gastura por dentro, um suor frio pelo corpo. Saí escada abaixo
sem pensar em mais nada, uma vontade danada de vomitar. Não disse nem
“até logo”. Cheguei na porta da rua, corri até o escuro, me escorei num canto
do muro e vomitei até quase botar a alma pela boca (DAMATA, 1975, p.
58).
Os fios vazados pela memória desse sujeito envelhecido, que certamente, teve de se
amoldar a uma sociedade patriarcal preconceituosa, que discrimina o diferente pela orientação
sexual. Esse outro que é concebido como doente pela ciência, pecador pela religião e um
criminoso diante da lei. Convém sublinharmos esse trajeto de juventude até a velhice do
personagem como compreensão da constituição de subjetividade do sujeito homossexual face
aos embates da intolerância social. É pertinente vislumbrarmos que as experiências afetivo-
sexuais de juventude se fizeram sob o prisma da clandestinidade. E agora, no crepúsculo de
sua vida, precisa fazer arranjos relacionais, homossociais com o sujeito jovem para não ceder
por completo ao enclausuramento e exclusão social. A intercambialidade sociossexual que
estabelece com Otávio, apesar do peso da abjeção, representa o esforço para contrariar as
vicissitudes de ser gay e velho.
O fantasma da “velhice como abjeção” (POCAHY, 2012, p. 129), assombra, também,
o personagem Arthur do romance “A céu aberto” (2008), de João Gilberto Noll. Na narrativa,
o narrador-protagonista (jovem inominado) carrega consigo o irmão mais novo doente (órfãos
de mãe) às trincheiras de uma guerra insólita à procura do pai, que é militar. Podendo ser
qualquer cidade ou localidade, o cenário de guerra não é identificado, e junto ao estado de
desamparo dos dois irmãos, que são abrigados num salão paroquial, acresce um conjunto de
eventos convergentes à errância do narrador configurados numa intensa flutuação
espaciotemporal, mesclados pela simbiose entre sonho e vigília, realidade e delírio.
O narrador relata o encontro com um homem chamado Arthur, um homossexual
pianista e boêmio, acima de cinquenta anos, amigo de infância de seu pai que o encontra
numa noite de tormenta tropical, no salão paroquial junto a outros flagelados. Arthur o
convida para assistir uma apresentação numa casa noturna. Após esse episódio, eles tornam-se
amigos. Ficando por um tempo na casa do pianista enquanto a situação dos flagelados da
tormenta tropical não se resolvia. Com a proximidade entre eles, Arthur desabafa falando de
sua homossexualidade, da infelicidade de estar envelhecendo, de sua deserotização (sentindo-
se decrépito, incapaz de despertar desejo em outro homem), revelando, inclusive que paga
garotos para ter relações sexuais:
[...]olha a minha idade, vejo que nenhum homem poderá se interessar
verdadeiramente por mim, só se for pelo meu antigo rosto sem papada e
bolsas sob os olhos, só se for pelos meus braços de outrora que ostentavam
alguma malhação até pela ajuda do piano, só se for por este outro homem
que já se esboroou em mim; pois que cara em sã consciência pode vir hoje
até aqui, e escavar com sua língua a minha boca cheia de próteses dentárias
alcoolizadas[...], mas, eu continuo querendo o garotão lá no fim das minhas
madrugadas e pago ao garotão que de outra maneira não me procuraria nem
espetaria sua barba por fazer no meu pescoço como peço...(NOLL, 2008,
grifo nosso, p. 24).
De fato, Arthur, na busca por companhias fugazes assume riscos ao manejar sua libido
na fronteira entre o prazer e perigo. O narrador nos relata um episódio em que o boêmio
personagem chega tarde da noite em casa muito embriagado acompanhado por dois homens:
“Ambos com suas camisas presas em volta da cintura” (NOLL, 2008, p. 26). São esses
sujeitos desconhecidos que o personagem encontrara na rua, à beira de um rio, dois garotões,
“como sorrisos zombeteiros” (NOLL, 2008, p. 26) que se aproveitam da vulnerabilidade
etílica de Arthur para roubar a sua carteira. Essa deliberada exposição ao perigo a que se
submete o pianista, às voltas com o alvo preferencial de possíveis interações sexuais
monetariazadas (rapazes) remete à discussão de Perlongher (1987, p. 67) acerca da
predisposição de alguns clientes do mercado do sexo para se entregarem à “tentação pelo
abismo [que] pode aparecer sob a forma de um ‘gosto pelo perigo’, que conduz alguns
pederastas, se não a certo gozo masoquista, a uma intensificação mortífera das pulsões
investidas na transação, condensada na equação terror/gozo”.
Nesse ambivalente jogo de prazer e ameaça vivenciado por Arthur avulta outro
episódio narrado pela sua empregada, Aparecida, “uma velha empregada negra, trabalhava
para Arthur fazia vários anos, conhecia muito bem da vida dele” (NOLL, 2008, p. 26). Ela o
conhecera numa situação de extrema exposição após ser surpreendido, junto com outros
homens homossexuais, numa sauna que oferecia serviços sexuais de rapazes:
[...]numa noite de chuva, ele estava entre vários homens ensopados
caminhando pela calçada como se participando de um estranho grupo, depois
notei que dois PMs (um na frente outro atrás) como que conduziam a boiada
até entrarem numa delegacia de polícia[...]aqueles homens tinham sido
apanhados numa sauna de massagem gay, tempos depois Arthur me
contou[...]aqueles policiais de arma em punho a fim de prender todo mundo
que encontrassem lá dentro sob a alegação de que havia ali exploração de
menores, é caso de lenocínio lenocínio eles berravam... (NOLL, 2008, p. 27).
[...]vi que um garotão mijava, fui ali e comecei a mijar também contra o
tronco, não bem do lado oposto do garotão mas mais perto quase ao lado
para poder contemplar o pau do bicho mijando, era isso naquela ocasião que
eu queria, nada muito além, contemplar o pau do garoto mijando[...]de
súbito o garotão deu um berro feito um guerreiro japonês ou algo do gênero,
fez alguns gestos de jiu-jítsu ou coisa que o valha e vem para cima de mim e
eu consigo milagrosamente me desvencilhar de seus músculos e vou
correndo por uma aléia da praça e ele vem atrás gritando velho nojento
careca asquesoso anda por aqui olhando o pau dos caras...(NOLL, 2008, p.
32).
Apesar desse cenário disfórico, é lúcido a relativização em torno da imagem e falsa ideia
pejorativa da “bicha velha abandonada e deprimida”. A experiência da velhice gay, também,
pode ser expressa, não apenas pelo confinamento, mas também por relações fraternais sólidas
de amizade e homossocialidades convergentes ao gozo de entretenimentos e autoestima:
De acordo com Pollak apud Mota (2014), os anos 1970 constituíram um conjunto de
experiências homoeróticas que assinalaram o poder de se fazer respeitar, evidenciando um
estilo, uma identidade, um novo jeito de ser. “Houve um deslocamento da manifestação
sexual, antes restrita ao mundo privado, passa a ter expressão e visibilidade no espaço
público” (MOTA, 2014, p. 125).
A complexidade do processo de envelhecer aponta para uma série de
questões imprecisas sobre o termo velhice. Os sinais do corpo são
elaborados e apropriados simbolicamente de diferentes maneiras de uma
cultura para outra, de modo que as fronteiras etárias são relativizadas com
sentidos distintos em cada sociedade (MOTA, 2014, p. 21).