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Resumo
Neste trabalho, objetivamos apontar os possíveis desdobramentos da imbricação entre relações
homoeróticas e prostituição masculina, por meio da análise dos contos “Paraíba” e “Módulo lunar
pouco feliz”, presentes na obra “Os solteirões”, de Gasparino Damata. Teoricamente, em suma, este
estudo traz contribuições de Perlongher (1987), Bourdieu (2002), Green (2002), Parker (1992),
Barcellos (2006), Lugarinho (2008), Ceccarelli (2008). As discussões empreendidas indicam que as
masculinidades representadas pelos personagens-michês derivam de constructo social, histórico e
cultural articulado à heterossexualidade compulsória que, em meio ao jogo de ambivalências,
performances sexuais e de identidade são negociadas no mercado do sexo.
Introdução
É intrínseco à prostituição masculina um duplo e pesado estigma: o da prostituição
mesmo como atividade aviltante, vinculada à devassidão, degradação moral, e a associação
direta à homossexualidade, relacionada, de modo discriminatório, à vida sexual de sujeitos
pervertidos e promíscuos. Nesse território subversivo à ordem socialmente instituída
sobressaem a condição de marginalidade e reprovação sociocultural àqueles que
intercambiam prazer sexual e dinheiro ou outras benesses, cuja imagem transgressora
Perlongher (1987b, p. 58) traduz como uma “[...]massa de homossexuais pescando no esgoto
das margens a água-viva do gozo”.
Nesse contexto, na literatura Ocidental é recorrente um quadro narrativo em que um
jovem é impelido à prostituição por necessidades econômicas, entregando-se sexualmente a
outro homem (BARCELLOS, 2006; CARBONEL, 2012). Por esse viés temático, a
compilação de contos “Os solteirões” (1975), de Gasparino Damata dialoga com outros textos
literários estrangeiros e nacionais. A obra problematiza questões no âmbito das
masculinidades que mesclam prazer e terror, vivenciados por homens, que em sua
performatividade, são marginalizados, por ofertarem seus corpos como moeda de troca
financeira a outros homens, conforme analisaremos, neste trabalho, por meio das narrativas
“Paraíba” e “Módulo lunar pouco feliz”.
Convém enfatizar que o autor da coletânea, enquanto jornalista, foi colaborador do
jornal “Lampião da Esquina” (1978-1981) - símbolo de esforço intelectual do ativismo gay na
imprensa alternativa brasileira, no momento de abrandamento da Ditadura Militar.
Sublinhamos, também, que a obra em tela foi gestada no período de emergência de
movimentos de militância e discursos afirmativos gays no Brasil, por isso, alinha-se à
denominada “literatura de subjetivação gay” por evidenciar, de forma densa e aberta, relações
homoeróticas na contramão da “literatura de representação homossexual”, em suma, calcada
na estereotipia de personagens homossexuais (LUGARINHO, 2008).
O jovem michê, “garoto que vive só de programa”, sente a pungência dramática da rua,
fazendo trottoir no centro do Rio de Janeiro. Nesse espaço, experimenta o desamparo, fome,
humilhações, bem como a incerteza na busca de clientes, a represália policial e,
evidentemente, propensão à delinquência e práticas escusas. Contudo, o personagem não cede
ao submundo da criminalidade (drogas, roubos) nem à atos inescrupulosos (chantagem a
clientes casados), ao contrário, os repele com veemência, assim como faz menção ao difícil e
“desglamourizado” universo da prostituição de rua, em que pese até haver, segundo ele, a
concorrência crescente entre garotos que se prostituem.
Face a sua orfandade - pai falecido, cuja memória afetiva é relembrada em oposição à
mãe que agia com hostilidade -, o jovem boy de programa mantém um “caso” com outro
michê mais maduro de quem recebe proteção, o ultramásculo Severino Gomes da Silva, vulgo
Pernambuco. Vejamos a sua descrição e modus operandi no mercado do sexo:
Esse personagem, no contexto dos anos 70 do século passado, pode ser lido enquanto
gênese do “profissional do sexo”, posto suas práticas sexuais constituírem atividade regular
responsável como fonte de renda exclusiva, e não trabalho ou ocupação provisórios.
Acrescendo uma rede de clientes fixos, com horários agendados, assim como a postura e
abordagem discretas no nível do profissionalismo. Este personagem-michê é representativo,
pois ele não comercializa apenas um corpo másculo. Simbolicamente, os clientes, descritos
como homossexuais efeminados pagam para realizarem a fantasia de transar com um
“heterossexual”, “macho de verdade”, dominador, já que ele “[...]incorpora os valores
tradicionalmente associados com o papel de macho na cultura brasileira - força e poder,
violência e agressão, virilidade e potência sexual” (PARKER, 1992, p. 74).
Nesse contexto, as masculinidades são uma construção histórica, social e cultural,
posto não haver uma única maneira de ser homem, mas variados modos e modelos de
vivenciar esse papel. Por meio do processo de socialização, esses modelos são transmitidos,
oscilando, também, segundo a inserção do homem, da mulher e da família na estrutura social.
“Mudam ao longo da história, mas numa mesma época podem sofrer contestação, fazendo
aparecer masculinidades alternativas ao modelo dominante, hegemônico” (SANTOS, 2013,
73).
Considerações finais
Nos contos analisados, a masculinidade é configurada numa perspectiva relacional,
significada e ressignificada contextualmente no embaralhado jogo de ambivalências. Os
personagens-michês aparecem cindidos diante do modelo de heterossexualidade compulsória
que é reconfigurado nas negociações de performances sexuais aderentes às fantasias daqueles
que financiam o sexo, no sentido de desfazer ou reforçar relações binárias acerca das
representações de gênero e sexualidade (dominador/dominado). Ganha relevo, também, o
“nomadismo sexual” como condição inerente às práticas de prostituição, seja no domínio de
“espaços de pegação” ou no domínio da rua” que ofertam a possibilidade do encontro e do
inesperado.
Depreendemos, em suma, da análise dos personagens-michês, vozes marginais que
vendem corpos e fantasias em contatos efêmeros sem amanhã, bem como o cruzamento de
relações possíveis entre sujeitos que vivenciam interações sexuais, na clandestinidade ou não,
cujo comportamento divergente obriga-os a ruptura com a “normalidade” social que impõe
severos códigos morais.
Referências
BARCELLOS, José Carlos. Literatura e homoerotismo em questão. Rio de Janeiro:
Dialogarts, 2006.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
LUGARINHO, Mário César. Nasce a literatura gay no Brasil: reflexões para Luís Capucho.
In: SILVA, Antonio de Pádua Dias da. (Org.). Aspectos da literatura gay. Joao Pessoa:
Editora da UEPB, 2008.
PARKER, Richard. Corpos, prazeres e paixões: cultura sexual no Brasil contemporâneo. São
Paulo: Best-Seller, 1992.
PERLONGHER, Néstor Osvaldo. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. 2. ed.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
______. Vicissitudes do michê. Temas IMESC, Soc. Dir. Saúde, São Paulo, 4(1), p. 57-71,
1987b.
SOUZA NETO, Epitacio Nunes. Entre boys e frangos: análise das performances de gênero de
homens que se prostituem em Recife. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação
em Psicologia. Recife, UFPE, 2009.