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CONTATOS EFÊMEROS SEM AMANHÃ:

VOZES MARGINAIS, CORPOS VENDIDOS E PERFORMANCES SEXUAIS


NEGOCIADAS NA FICÇÃO CURTA HOMOERÓTICA DE GASPARINO DAMATA

Dorinaldo dos Santos Nascimento


Mestre em Letras (Universidade Federal de Sergipe)
Centro Educacional Edval Calasans (Literatura Brasileira)
dori.s.n@hotmail.com
24 – Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Resumo
Neste trabalho, objetivamos apontar os possíveis desdobramentos da imbricação entre relações
homoeróticas e prostituição masculina, por meio da análise dos contos “Paraíba” e “Módulo lunar
pouco feliz”, presentes na obra “Os solteirões”, de Gasparino Damata. Teoricamente, em suma, este
estudo traz contribuições de Perlongher (1987), Bourdieu (2002), Green (2002), Parker (1992),
Barcellos (2006), Lugarinho (2008), Ceccarelli (2008). As discussões empreendidas indicam que as
masculinidades representadas pelos personagens-michês derivam de constructo social, histórico e
cultural articulado à heterossexualidade compulsória que, em meio ao jogo de ambivalências,
performances sexuais e de identidade são negociadas no mercado do sexo.

Palavras-chave: prostituição; homoerotismo; masculinidades; performatividade; identidades.

Introdução
É intrínseco à prostituição masculina um duplo e pesado estigma: o da prostituição
mesmo como atividade aviltante, vinculada à devassidão, degradação moral, e a associação
direta à homossexualidade, relacionada, de modo discriminatório, à vida sexual de sujeitos
pervertidos e promíscuos. Nesse território subversivo à ordem socialmente instituída
sobressaem a condição de marginalidade e reprovação sociocultural àqueles que
intercambiam prazer sexual e dinheiro ou outras benesses, cuja imagem transgressora
Perlongher (1987b, p. 58) traduz como uma “[...]massa de homossexuais pescando no esgoto
das margens a água-viva do gozo”.
Nesse contexto, na literatura Ocidental é recorrente um quadro narrativo em que um
jovem é impelido à prostituição por necessidades econômicas, entregando-se sexualmente a
outro homem (BARCELLOS, 2006; CARBONEL, 2012). Por esse viés temático, a
compilação de contos “Os solteirões” (1975), de Gasparino Damata dialoga com outros textos
literários estrangeiros e nacionais. A obra problematiza questões no âmbito das
masculinidades que mesclam prazer e terror, vivenciados por homens, que em sua
performatividade, são marginalizados, por ofertarem seus corpos como moeda de troca
financeira a outros homens, conforme analisaremos, neste trabalho, por meio das narrativas
“Paraíba” e “Módulo lunar pouco feliz”.
Convém enfatizar que o autor da coletânea, enquanto jornalista, foi colaborador do
jornal “Lampião da Esquina” (1978-1981) - símbolo de esforço intelectual do ativismo gay na
imprensa alternativa brasileira, no momento de abrandamento da Ditadura Militar.
Sublinhamos, também, que a obra em tela foi gestada no período de emergência de
movimentos de militância e discursos afirmativos gays no Brasil, por isso, alinha-se à
denominada “literatura de subjetivação gay” por evidenciar, de forma densa e aberta, relações
homoeróticas na contramão da “literatura de representação homossexual”, em suma, calcada
na estereotipia de personagens homossexuais (LUGARINHO, 2008).

1 A prostituição no “cinema de pegação” e no domínio da rua


No conto “Paraíba”, texto que abre a coletânea, em resposta aos arraigados e severos
valores heteronormativos, o narrador-protagonista se coloca, discursivamente, numa posição
de autodefesa, após ser flagrado por um conterrâneo do interior pernambucano, frequentando
e se prostituindo em um “cinema de pegação” carioca. O personagem responsável por
“descobri-lo”, Zé Orlando, o interlocutor dele na narrativa, também atua como boy de
programa no mesmo local.
Na clandestinidade, agindo com o máximo de discrição, voluntariamente e sem
influências de outrem, o narrador-protagonista complementa sua renda de fiscal de obras
como michê. Sua presença se faz assídua em um “espaço de pegação” (GREEN, 2002),
frequentado, em sua maioria, por homens em busca de parcerias anônimas, ocasionais e sem
compromisso. Tais espaços representam cenários “sujos” que acolhem relações sexuais e
jogos de desejos homoeróticos marcados pela interdição e transgressão (SILVA;
FERNANDES, 2007).
Na posição de acossado do protagonista diante do seu interlocutor, este, de modo
metonímico, pode representar para ele o libelo acusatório patriarcal a lhe afligir. Notamos no
narrador-personagem um sujeito que tenta justificar-se por meio de um discurso de
autodefesa, ancorado de modo subjacente num jogo de ambivalências, seja no modelo da
heterossexualidade compulsória com todas as incoerências e contradições, seja na
indissolubilidade entre os imperativos da necessidade econômica de prostituir-se e a
oportunidade de vivência do desejo homoerótico inconfessável, negado sob o argumento de
estar-se trabalhando (CECCARELLI, 2008). Tendo em mira, também, o fato desencadeador
de sua migração para o Rio de Janeiro - opção pela invisibilidade e anonimato massificador
da metrópole. Fuga de sua cidade provinciana, a qual rechaçou o episódio envolvendo um ato
de masturbação entre ele e outro homem.
Assim, é patente ao discurso do personagem-michê questões de gênero do que é ser
homem, convergentes às possíveis performances masculinas ao analisarmos, por exemplo, as
motivações para seu ingresso na prostituição. Ele dá ênfase à dificuldade de relacionamento
com mulheres (sexo eventual, namoro ou casamento) tendo em vista, segundo sua visão, que a
mulher gera dispêndios financeiros elevados, impossíveis de serem arcados ou que não valem
a pena. Para ele, na impossibilidade de sexo com uma parceira, seria legítimo satisfazer os
impulsos sexuais com outro homem, sem que isso se configure uma prática homossexual.
Pensamento corrente em populações mais humildes de regiões como Norte, Nordeste, e
núcleos periféricos de outras regiões que não questionam o ativo no intercurso sexual com
outro homem (CARBONEL, 2012).
Por isso, reproduzimos a seguinte passagem do conto: “Já fiz programas com vários,
tanto daqui como lá fora, e até a presente data só tive problema com um cara. Fomos na
hospedaria, lá ele me chupou, depois meti. E aí, ele queria que eu fizesse o mesmo. Quase dou
um soco no filho da puta...” (DAMATA, 1975, p. 11). A reação odiosa do personagem é
reveladora da condição coercitiva pela manutenção da hipermasculinidade e virilidade que
não podem ser “maculadas” com performances sexuais associadas ao feminino. Emergindo
uma problematização, conforme assinala Bourdieu (2002, p. 31) de que “O privilégio
masculino é também uma cilada e encontra sua contrapartida na tensão e na contensão
permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe a todo homem o dever de afirmar, em
toda e qualquer circunstância, sua virilidade”.
Adicionamos a essa discussão, a contingente negociação de performances sexuais
entre michê e cliente, conforme ilustra o excerto seguinte:

Outro dia esse mesmo cara apareceu aqui...terminou me fazendo uma


proposta: se eu beijasse na boca, se deixasse botar nas minhas coxas, ele me
dava cem pratas. Quase aceito... disse para ele voltar depois, ia pensar
melhor no assunto...Cem pratas é um bocado de dinheiro, já dá para o sujeito
quebrar o galho... (DAMATA, 1975, p. 12).
Depreendemos que o personagem, no âmbito do discurso, hipervaloriza sua
masculinidade, embora suas performances sexuais estejam sujeitas à negociação com o
cliente. Abre-se a perspectiva de negociar-se não somente os prazeres do corpo, mas também
as identidades subjetivas, de masculinidade e feminilidade. Sublinhando, aqui, o fato de “[...]o
dinheiro torna-se então o fator de permissividade para as possibilidades de transitoriedade e
flexibilidade exigida as performances sexuais durante o coito, sem com isso, interferir ou
ameaçar sua própria identidade” (SOUZA NETO, 2009, p. 68).
Nesse âmbito das práticas da prostituição masculina, em outro conto da mesma
compilação, “Módulo lunar pouco feliz”, Damata faz um recorte histórico e sociocultural
relevante, posto sua obra ser contemporânea ao período em que no Ocidente ocorreu a
expansão do mercado erótico e da indústria pornográfica, e no contexto da prostituição em
nosso país a visibilidade do trottoir – o espaço fecundo da rua para práticas do mercado do
sexo. Nessa vertente de exercício da prostituição, a rua e os prestadores de serviços sexuais
que nela transitam são postos no nível subalterno (SANTOS, 2013).
No conto em tela, pelo olhar de um narrador heterodigético cruzado fortemente com o
discurso indireto livre é dado corpo ao personagem-michê, um jovem de 18 anos, que
vivencia um estilo de vida errante, marcado pelo gosto da aventura, interesse pelo
imprevisível, pela desterritorialização, cujo nomadismo o impele a perambulações entre
cidades (Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro). Numa espécie de “pulsão nomádica” que
“[...]por vezes triste, mas sempre dinâmico. No caso dos michês, fuga da família, do trabalho,
de toda a responsabilidade institucional ou conjugal” (PERLONGHER, 1987, p. 63).
Podendo-se adicionar ao nomadismo territorial, o nomadismo sexual, posto que o “[...]sujeito
passa de corpo em corpo sem se fixar, numa promiscuidade sucessiva que não recusa a orgia”
(PERLONGHER, 1987, p. 204).
A performance sexual do personagem em escopo, cuja versatilidade (ativo/passivo) é
aderente às preferências e desejos dos clientes não produz conflitos nele em face de sua
masculinidade:
[...]Não era dos tais que iam logo dizendo: “Só se for pela frente”, ou “Meu
negócio é só comer”, ao contrário, deixava o cara deitar as falas, dizer o que
queria, depois agia de acordo...E nada de querer passar por machão, querer
botar banca porque o pinta estava pagando, não estava? E se estava, tinha
todo direito de dizer o prato que queria, porra! Na hora “H” se o pinta dizia:
“Vira”, virava sem se fazer de rogado...Depois que o cara terminava, ia à
privada, dava a descarga, pronto! Era ou não era o mesmo homem?
(DAMATA, 1975, p. 16).

O jovem michê, “garoto que vive só de programa”, sente a pungência dramática da rua,
fazendo trottoir no centro do Rio de Janeiro. Nesse espaço, experimenta o desamparo, fome,
humilhações, bem como a incerteza na busca de clientes, a represália policial e,
evidentemente, propensão à delinquência e práticas escusas. Contudo, o personagem não cede
ao submundo da criminalidade (drogas, roubos) nem à atos inescrupulosos (chantagem a
clientes casados), ao contrário, os repele com veemência, assim como faz menção ao difícil e
“desglamourizado” universo da prostituição de rua, em que pese até haver, segundo ele, a
concorrência crescente entre garotos que se prostituem.
Face a sua orfandade - pai falecido, cuja memória afetiva é relembrada em oposição à
mãe que agia com hostilidade -, o jovem boy de programa mantém um “caso” com outro
michê mais maduro de quem recebe proteção, o ultramásculo Severino Gomes da Silva, vulgo
Pernambuco. Vejamos a sua descrição e modus operandi no mercado do sexo:

[...]tinha braços fortes, roliços, pele clara, dentes perfeitos, cheiro de


macho.... Quando andava o material soberbo balançava de leve entre as
pernas musculosas ...e as bichas todas se voltavam para olhá-lo, ou paravam
e faziam sinal para que se aproximasse [...]. Fazia programa quase todas as
noites e contava com uma freguesia certa (sua cadernetinha de endereços
tinha para mais de 100 telefones) [...]. Mas não era de fazer concessão, não
beijava por dinheiro [...]. Sua especialidade sempre fora bicha, orgulhava-se
de fazer qualquer bicha se sentir mulher, mais mulher do que muita mulher
(DAMATA, 1975, p. 21-22).

Esse personagem, no contexto dos anos 70 do século passado, pode ser lido enquanto
gênese do “profissional do sexo”, posto suas práticas sexuais constituírem atividade regular
responsável como fonte de renda exclusiva, e não trabalho ou ocupação provisórios.
Acrescendo uma rede de clientes fixos, com horários agendados, assim como a postura e
abordagem discretas no nível do profissionalismo. Este personagem-michê é representativo,
pois ele não comercializa apenas um corpo másculo. Simbolicamente, os clientes, descritos
como homossexuais efeminados pagam para realizarem a fantasia de transar com um
“heterossexual”, “macho de verdade”, dominador, já que ele “[...]incorpora os valores
tradicionalmente associados com o papel de macho na cultura brasileira - força e poder,
violência e agressão, virilidade e potência sexual” (PARKER, 1992, p. 74).
Nesse contexto, as masculinidades são uma construção histórica, social e cultural,
posto não haver uma única maneira de ser homem, mas variados modos e modelos de
vivenciar esse papel. Por meio do processo de socialização, esses modelos são transmitidos,
oscilando, também, segundo a inserção do homem, da mulher e da família na estrutura social.
“Mudam ao longo da história, mas numa mesma época podem sofrer contestação, fazendo
aparecer masculinidades alternativas ao modelo dominante, hegemônico” (SANTOS, 2013,
73).

Considerações finais
Nos contos analisados, a masculinidade é configurada numa perspectiva relacional,
significada e ressignificada contextualmente no embaralhado jogo de ambivalências. Os
personagens-michês aparecem cindidos diante do modelo de heterossexualidade compulsória
que é reconfigurado nas negociações de performances sexuais aderentes às fantasias daqueles
que financiam o sexo, no sentido de desfazer ou reforçar relações binárias acerca das
representações de gênero e sexualidade (dominador/dominado). Ganha relevo, também, o
“nomadismo sexual” como condição inerente às práticas de prostituição, seja no domínio de
“espaços de pegação” ou no domínio da rua” que ofertam a possibilidade do encontro e do
inesperado.
Depreendemos, em suma, da análise dos personagens-michês, vozes marginais que
vendem corpos e fantasias em contatos efêmeros sem amanhã, bem como o cruzamento de
relações possíveis entre sujeitos que vivenciam interações sexuais, na clandestinidade ou não,
cujo comportamento divergente obriga-os a ruptura com a “normalidade” social que impõe
severos códigos morais.

Referências
BARCELLOS, José Carlos. Literatura e homoerotismo em questão. Rio de Janeiro:
Dialogarts, 2006.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

CARBONEL, Thiago Ianez. Homoerotismo e marginalização: construções do universo


homoafetivo masculino na literatura brasileira contemporânea. Tese de Doutorado. Programa
de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa. Araraquara, Unesp, 2012.
CECCARELLI, Paulo Roberto. Prostituição – corpo como mercadoria. Mente & cérebro –
Sexo, v. 4, dez. 2008.

DAMATA, Garparino. Os solteirões. Rio de Janeiro: Pallas, 1975.

GREEN, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX.


Trad. Cristina Fino e Cássio Arantes Leite. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

LUGARINHO, Mário César. Nasce a literatura gay no Brasil: reflexões para Luís Capucho.
In: SILVA, Antonio de Pádua Dias da. (Org.). Aspectos da literatura gay. Joao Pessoa:
Editora da UEPB, 2008.

PARKER, Richard. Corpos, prazeres e paixões: cultura sexual no Brasil contemporâneo. São
Paulo: Best-Seller, 1992.
PERLONGHER, Néstor Osvaldo. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. 2. ed.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

______. Vicissitudes do michê. Temas IMESC, Soc. Dir. Saúde, São Paulo, 4(1), p. 57-71,
1987b.

SANTOS, Maria de Lourdes dos. Da batalha na calçada ao circuito do prazer: um estudo


sobre a prostituição masculina no centro de Fortaleza. Tese de Doutorado. Programa de Pós-
Graduação em Sociologia, UFC, 2013.

SILVA, Antonio de Pádua Dias da; FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque.


Apontamentos sobre o espaço físico e o desejo gay em narrativas de temática homoerótica.
Graphos, João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007.

SOUZA NETO, Epitacio Nunes. Entre boys e frangos: análise das performances de gênero de
homens que se prostituem em Recife. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação
em Psicologia. Recife, UFPE, 2009.

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