– Rio de Janeiro, 1967) "Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens." BIOGRAFIA Formado médico, exerceu pouco a profissão. O domínio de vários idiomas levou Guimarães Rosa à carreira diplomática. Prestou concurso para o Itamarati e, em 1938, já era cônsul- adjunto na cidade de Hamburgo, Alemanha. Em Bogotá, foi secretário da Embaixada Brasileira. Por ter facilitado a fuga de judeus quando morava na Alemanha, recebeu em 1985 uma das maiores homenagens dadas pelo governo de Israel a pessoas que ajudaram os judeus. Em 1961, recebe o prêmio Machado de Assis pela ABL; e em 1963 é eleito por unanimidade para ingressar na Academia. Por superstição, adiou sua posse até 1967, três dias antes de morrer (19\11\1967). Com a voz embargada no discurso de posse afirmou: “...a gente morre é para provar que viveu”. Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prêmio Nobel de Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, foi barrada pela morte do escritor. A obra do brasileiro havia alcançado esferas talvez até hoje desconhecidas. OBRAS Contos: Sagarana (1946); Primeiras estórias (1962); Tutaméia – terceiras estórias (1967); Estas estórias (1969); Ave, palavra (1970). Novela: Corpo de baile (1956) – a partir da 3ª edição foi dividida em três volumes: Manuelzão e Miguilim; No Urubiquaquá, no Pinhém; Noites do sertão. Romance: Grande sertão: veredas (1956). A RENOVAÇÃO MODERNISTA Para Castro (1993, p. 6), “Guimarães Rosa dá um novo alento à prosa modernista, já numa terceira fase do movimento, porque retoma e modifica as propostas anteriores. Dos autores do primeiro tempo, ele retoma o traço experimental, sobretudo no plano da expressão, da inovação da linguagem. Dos neo-realistas, Rosa aproveita, de modo muito pessoal, a sugestão regionalista, dando-lhe novas dimensões e direções: cria um sertão imaginário, inventando-o através da linguagem”. Ainda segundo o autor, “em sua prosa poética, Guimarães Rosa associa preocupações filosóficas à ousadia formal, imprimindo-lhe um sentido de universalidade, na medida em que focaliza o sertanejo em suas preocupações metafísicas. Esta preocupação com a essência íntima da realidade, com o sentido último da existência, indo além do que mostram as aparências, torna sua obra de interesse universal, pois a focalização de tais aspectos sempre atrairá o ser humano, independentemente do tempo ou da geografia em que viva” (1993, p. 6) CARACTERÍSTICAS: a) Recriação da linguagem (deslocamento da sintaxe, vocabulário arcaico, neologismos, ousadia mórfica, ); b) Linguagem poética (aliterações, assonâncias, rimas, metáforas, etc.) c) Transcendência do Regionalismo; d) Reinvenção do sertão: “O sertão é o mundo”, “o sertão está em toda parte”, “o sertão é dentro da gente”. (GSV); e) Inserção de momentos de “epifania”; f) Temática universalizante: Loucura, infância, violência, misticismo, amor, etc. SAGARANA (1946) Conjunto de 9 novelas (originalmente 12) escritas em 7 meses em 1937, retrabalhadas durante 5 meses, em 1945, e publicadas em 1946. A primeira versão foi por ele inscrita no Concurso Literário Prêmio Graça Aranha, da livraria José Olympio, sob o título de Contos, em 1938, e que assinou sob o pseudônimo de Viator. Essa publicação foi premiada com o segundo lugar no concurso, perdendo para Maria Perigosa, de Luís Jardim. Os textos exemplificam bem o estilo do autor, sua linguagem inovadora e seus temas, atrelados à vida rural de Minas Gerais. O título Sagarana é um hibridismo: "saga", radical de origem germânica que significa "canto heroico", "lenda"; e "rana", palavra de origem tupi que significa "que exprime semelhança ". Assim Sagarana significa algo como "próximo a uma saga". João Guimarães Rosa combina e recombina habilmente as informações do meio, confundindo lugares e paisagens, mesclando o real, o imaginário e o lendário em sua obra. As novelas (ou contos, segundo alguns críticos) descortinam o universo da linguagem regionalizante de Guimarães Rosa e recriam, na ficção, a vida de personagens saídos do interior de Minas Gerais. A grandeza dessas produções narrativas não está apenas presa ao cenário, ou à linguagem, mas à riqueza da experiência humana traduzida através de personagens que parecem, em certos momentos, vencer suas fraquezas humanas para entrar para a galeria dos mitos e heróis do sertão. PRIMEIRAS ESTÓRIAS, 1962 Contos: 21 estórias curtas – “primeiras” : “histórias de iniciação”; Temas universais: a loucura, a infância, a violência, fatalidade\misticismo, o amor. Análises dos questionamentos humanos em todos os tempos e lugares; Espaço: ambiente rural, pequenos lugarejos ou vilas. Para Castro, (1993, p. 20), “Sua prosa – poética, sedutora, diversa e estranha – exige do leitor uma cuidadosa aproximação. Para desvendar os labirintos de suas acrobacias verbais, a fim de que se possam decifrar os significados ocultos em seu texto, é preciso tato, paciência, sensibilidade e determinação. Tal preparação é necessária, porque Guimarães Rosa dedicou-se à pesquisa pura da palavra, explorando as múltiplas possibilidades.” Estilo: Em Primeiras Estórias, conforme a pesquisa levantada por Paulo Ronai destacam-se os seguintes processos de invenção verbal: ❖Aglutinação de palavras: pensamor (pensamento + amor); terrivorosos (terríveis +vorazes+ horrorosos); sussuruído (sussurro + ruído); personagente (persona + personagem + gente); ❖Palavras que permutam de classes gramaticais: “Desço em pulos saltos”; “A gente pensava num logo lugar”. ❖Ênfase através da repetição de palavras: “Infância é coisa, coisa?” ❖Permutação de tempo e modo verbais: “Nem olhasse mais a paisagem” (olharia); ❖Uso do artigo definido antes de pronomes indefinidos: “as muitas pessoas”; “a alguma alegria”; ❖Associação entre o som e o sentido”- aliterações e assonâncias:”Miúdo, moído...”; “leigos, ledos, lépidos”; ❖ Desarticulações ou desvios sintáticos: “A gente fica quase presos, alojados na cozinha”. ❖Desdobramento de palavras através de sufixos pomposos: furibundância; circunspectância; ❖Palavras de efeito grandiloquente ou pedante: “Só vivo no supracitado”; “Aquele senhor provisoriamente impoluto”; ❖Inversão de lugares comuns ou frases feitas: “Com cara de nenhum amigo”; “Um deu nos sacuda”; “o feio está ficando coisa”; ❖Citação ou criação de provérbios sertanejos: “Herói é no que dói”; “Para os pobres, os lugares são mais longes”; “De pobre não me sujo, de rico não me emporcalho”; ❖Prosa rimada em forma de pares justapostos: “E entrou – de peito feito”; ❖Criação de novos substantivos abstratos: nãoezas; vislumbrança; ❖Flexão de palavras invariáveis: “Ah... e quase, quasinho...quasesinho, quase...” ❖Verbos formados a partir de adjetivos: “Cabisbaixara-se. Tio Man’Antônio, no dizer essas palavras...” ❖Abrasileiramento de palavras estrangeiras: “Eu Reivalino Belarmino, capisquei” (do italiano capire = compreender)
▪ Contos analisados: “A benfazeja”, “Soroco, sua
mãe, sua filha”. A BENFAZEJA – ATUALIZAÇÃO DO MITO DAS EUMÊNIDES ANÁLISE ESTRUTURAL DO CONTO: 1. História e Discurso: Dois Aspectos de uma Obra Literária Notamos duas coisas singulares na obra em questão, e que se prendem à dicotomia, história e discurso: a) não se trata propriamente da história de “Mula- marmela”, como parece, à primeira leitura. b) a história não é narrada, e o leitor dela toma conhecimento, de uma maneira indireta. Mula Marmela, Mumbungo e Retrupé que, à primeira vista, seriam as personagens principais, não existem, na obra, ao nível da história, mas somente ao nível do discurso. Não agem, não falam. Não existem. São produtos de uma mentalização, eles e os acontecimentos em que se envolveram. Em “A Benfazeja”, há apenas dois personagens, ambos anônimos. Um deles, passivo, simboliza uma coletividade. O outro, ativo, é um locutor, destacado desta mesma coletividade. Podemos dizer que a obra consiste num diálogo, que é feito unilateralmente. Um personagem interpela o outro, trazendo à baila fatos, acontecimentos. Resumo A intenção do autor foi nos transmitir uma estória. Isto é óbvio. Uma estória que se resumiria nisto: “Um homem vem ao mundo com o destino de matar, gera um filho ao qual parece ter transmitido, por hereditariedade, a mesma sede de sangue. O mesmo destino põe em seu caminho uma mulher, cuja missão é interromper-lhe a carreira criminosa, e conter, no filho, o desabrochar da criminalidade, libertando a coletividade do medo e da ansiedade. Essa missão é cumprida instintiva, inconscientemente, na íntegra. Assim, ela elimina o “marido”, cega o enteado, mata-o mais tarde, e abandona a cidade. São três ações “más” que seu instinto “bom” coloca a serviço da coletividade, que, no entanto, a odeia”. É o mal necessário? Como se percebe, o tema da estória equivale a um ponto muito controvertido na vida real: o direito de tirar a vida ao semelhante em defesa de uma causa nobre, ou considerada assim; o direito de, pela morte, livrar a sociedade de um indivíduo pernicioso; ou livrar o indivíduo das dores de uma doença supostamente incurável. A questão envolve a ética e a moral, e o autor, como médico e como cristão, foge a ela, através de um subterfúgio. O NARRADOR O narrador é um elemento intermediário entre o leitor e o autor da obra, com quem muitas vezes se confunde. Guimarães Rosa, porém, elimina o risco dessa confusão, que poderia incriminá-lo. Coloca na obra dois personagens, das quais um será o receptor e o outro, o emissor. O que existe de novidade nessa colocação é o fato de o receptor da estória não ser precisamente, diretamente o leitor; e o emissor não se dirige diretamente ao leitor. A presença do personagem-receptor é o pretexto de que se serve o autor para atingir o leitor, sem se comprometer. E o leitor, a partir dessas evocações, está apto a reconstituir a estória, e é livre para formar seus próprios juízos. Nessas condições, se identificará com o personagem- receptor; ou, por outro lado, poderá se identificar com o próprio personagem-emissor. Sejam quais forem as conclusões a que chegue, elas serão de sua inteira responsabilidade. O autor lava as mãos. 2) História e discurso 2.1. Tempo A história é construída por meio de reminiscências, que aparecem bem ordenadas: A morte do Mumbungo, o cegamento do Retrupé, a morte de Retrupé, a partida da Mula Marmela. 2.2. Forma complexa de narrativa “A Benfazeja” é uma narrativa complexa. É a história de uma mulher, encaixada na história de um homem que reage contra o sentimento injusto de uma coletividade egoísta. A segunda está subordinada à primeira. Por outro, lado, podemos afirmar que as estórias de “Mumbungo” e de Retrupé”, são encaixados na estória de “Mula-Marmela”. Essas duas estórias são secundárias e só servem para caracterizar as personagens e tentar justificar as duas mortes, se não perante os olhos da coletividade, pelo menos diante dos leitores, ou melhor, dos receptores indiretos. 2. 3. o ser e o parecer Essa evocação-narrativa, perdoem-nos o neologismo, é feita ao nível do ser. A visão do emissor, classificada por como ‘por trás”, estaria mais bem definida se fosse denominada “acima”. Tanto o presente como o passado, e também o futuro não são segredos para o emissor, que deixa transparecer sua capacidade de esquadrinhar a alma humana e ir muito além dela, atingindo o desconhecido, o transcendental. Sua perspectiva quadridimensional: “Se eu disser o que sei e pensam, vocês inquietos se desgostarão. Nem consintam, talvez, que eu explique, acabe. A mulher tinha de matar, tinha de cumprir por suas mãos o necessário bem de todos, só ela mesma poderia ser a executora da obra altíssima, que todos nem ousavam conceber, mas que, em seus escondidos corações, imploravam. Só ela mesma, a “Marmela”, que viera ao mundo com a sina presa de amar aquele homem, e de ser amada dele; e juntos, enviados. Por quê ? Em volta, de nós, o que há é a sombra mais fechada – coisas gerais”. Como percebemos, a visão do emissor é uma visão superior. O que ele expõe no trecho acima transcrito não pode se basear em confidência da “Marmela”. Ela mesma ignora essas coisas. Seu espírito, sua consciência é demasiado acanhada para conter reflexões tão sutis. Ela apenas pressente sua missão e destino. O emissor vê a “Marmela” ao nível do ser, enquanto o coletividade a vê ao nível do parecer. No entanto, estes dois níveis deveriam estar mesclados, confusos, para aquela parte da coletividade. Dentre os dois aspectos que a história apresenta, ela escolhe um “a priori”, sem maiores exames. A aceitação do outro aspecto se fundaria em razões transcendentais, obscuras para aqueles espíritos simples, talvez impermeabilizados pela religiosidade. Jamais aceitariam as argumentações do personagem- emissor. O nível aparente é para eles o mais cômodo. As conseqüências de sua aceitação não os conduziria ao remorso, pois se apoiam em razões religiosas. “Marmela” matou. É passível de punição e indigna de permanecer naquela comunidade. Não merece piedade. Eis o que acham. 2.4. Os registros da fala A estória da “Marmela” está contida no discurso do nosso personagem-emissor em forma de um anunciado, onde ela é o sujeito. Neste enunciado se destaca a literalidade, isto é, a capacidade de o signo ser tomado em si mesmo, e não como remissão a outra coisa. Dois gêneros de discursos aí se representam: as reflexões abstratas e as figuras retóricas. Não dizem respeito diretamente à história e seus personagens, mas traduzem um conceito geral, ou uma convenção. Exemplos de reflexões (aforismos): “A gente não vê os que não valem a pena” “O amor é a vaga, indecisa palavra “ “Há sobrepesos, que se levam, outros, e são a vida” “Cada qual com sua baixeza; cada qual com sua altura” “A gente não consegue nem persegue os fios feixes dos fatos” A luz é para todos; as escuridões é que são apartadas e diversas” “O entressentir-se entre pessoas vem de regra com exagero, erro e retardo” “Ninguém entende ninguém e ninguém entenderá nada, jamais; esta é a prática verdade” Exemplos de figuras de linguagem: Alusão: “Era o punir de Deus...” (Cft Átila, o flagelo de Deus) Metáfora: “...,de cortar, com um ato de “não”, sua existência” (= matar. Há também alusão. (Cft. as parcas e os fios da vida humana). Gradação: “O cego Retrupé, sedicioso, então, insulta, brada espumas, ruge...” O TÍTULO DA OBRA: RELAÇÃO COM AS EUMÊNIDES, DE ÉSQUILO
Benfazeja e Eumênides significam benignas,
aquelas que praticam o Bem. ÉSQUILO: ORÉSTIA (TRILOGIA) 1. Agamennon: Sacrifício de Efigênia na ida à Troia e vingança de Clitemnestra; 2. Coéforas: Orestes mata Clitemnestra e é perseguido pelas Eríneas, representantes do matriarcado; 3. Eumênides: Orestes passa por muito sofrimento, expia seu erro e é levado a julgamento em Atenas; As Erínias/Fúrias (que representam o Matriarcado são as acusadoras). Apolo (representante da Pólis e das novas leis do Patriarcado) é o advogado de defesa) e Atena preside o julgamento. Como o julgamento termina empatado, Atena decide a favor de Orestes, criando o conhecido “voto de Minerva”; Atena apazigua as Erínias e as transforma em Eumênides (benfazejas), protetoras da cidade de Atenas. Levada pelo amor a este povo, deixo com ele as deusas poderosas mas de trato difícil; seu encargo é dirigir a vida dos mortais. Quem não pautar a conduta na vida pelos ditames destas divindades temíveis por seu poder inconteste, não poderá compreender a origem dos golpes que recebe em sua vida. (ÉSQUILO, Eumênides, 1999, p. 184-185) Semelhanças entre as Erínias e a Mula Marmela
(...) furibunda de magra,
de esticado esqueleto, e o se sumir desanguexuga, fugidos os olhos, lobunos cabelos...” (ROSA, 2001. p. 176-7) A SIMBOLOGIA DO NOME DA PROTAGONISTA Mula é aquela que é estéril e híbrida, mas cuja função reside em carregar o outro, em suportar pesos que lhe são alheios. Mula- Marmela jamais pariu um filho, porém vida afora carregou o peso daqueles que simbolizavam o mal para a comunidade: Mumbungo, o marido, e Retrupé, o enteado. Marmela, feminino de marmelo, é o fruto ácido que serve, no entanto, para fazer doces. Mula-Marmela com golpe certeiro cortou os rompantes dos parceiros, pai e filho, porém com doçura antes os manteve ao seu lado. A PRESENÇA DO TRÁGICO NA OBRA
A vinculação da obra às tragédias antigas se dá,
sobretudo, por meio de três passagens na obra: 1º PARÁGRAFO: “Vocês todos nunca suspeitaram que ela pudesse arcar-se no mais fechado extremo, nos domínios do demasiado?” . É sabido que estar “nos domínios do demasiado” é especificidade do herói trágico. 3º PARÁGRAFO: “Rica, outromodo, sim, pelo que do destino, o terrível” Além desta afirmação, há no conto como um todo a constante referência à determinação prévia dos atos de Mula-Marmela, independentemente da vontade dela. Veio ao mundo “com a sina presa de amar aquele homem, e de ser amada dele; e, juntos, enviados. Por quê?” . Mais adiante, o narrador continua: “Se só ela poderia matar o homem que era o seu, ela teria de matá- lo. Se não cumprisse assim – se se recusasse a satisfazer o que todos, a sós, a todos os instantes, suplicavam enormemente – ela enlouqueceria?” ÚLTIMO PARÁGRAFO: “Sem lhe oferecer ao menos qualquer espontânea esmola, vocês a viram partir: o que figurava a expedição do bode – seu expiar” A palavra “bode”, assim como a palavra “desmedida”, anteriormente apontada, remete, mais uma vez, de forma imediata, ao universo trágico. SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA TEMÁTICA:
O conto mostra a impotência do
protagonista Sorôco diante da loucura da mãe e da filha. Tempo: A história é contada depois do ocorrido: “Foi de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação” (p. 66); Mas há um efeito de presentificação no texto que o aproxima do leitor: “A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade” (p. 66) O tempo da história é bastante curto. Começa pouco antes das 12h45min, horário da partida do trem, e termina pouco depois. Neste horário, Sorôco embarca sua mãe e sua filha no trem que as conduzirá ao hospício em Barbacena: “Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para os pobres, os lugares são mais longes” (p. 63) Ação A ação do conto mostra o conflito (agon) da personagem, cuja existência é marcada pelo antes com a família e o depois sem a família: “Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum” (p. 63) ESPAÇOS “Informações sociológicas: todas as circunstâncias de lugar sublinham a exclusão social das “ loucas” . As duas mulheres vão “ para longe, para sempre” . O hospício é uma prisão; o vagão que deve levá-las tem janelas com grades, “ feito as de cadeia, para os presos” . Os “ loucos” são tratados como animais: o vagão está “ do lado do curral de embarque dos bois” . O destino dos“ loucos” depende dos “ não -loucos” : o vagão irá “ atrelado ao expresso. ” (PERRONE-MOISÉS, 2002, p. 212) Leila Perrone-Moisés enfatiza a ideia do espaço como prisão, exclusão. A marginalidade da loucura é revelada pelo espaço reservado às loucas no vagão: “A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos” (p. 62) Os deserdados sociais chegavam a ARBEX, Daniela. Barbacena de vários cantos do Holocausto brasileiro. 1. Brasil. Eles abarrotavam os vagões ed. São Paulo: Geração de carga de maneira idêntica aos Editorial, 2013. judeus levados, durante a Segunda Guerra Mundial, para os campos de concentração nazistas de Auschwitz. A expressão “trem de doido” surgiu ali. Criada pelo escritor Guimarães Rosa, ela foi incorporada ao vocabulário dos mineiros para definir algo positivo, mas, à época, marcava o início de uma viagem sem volta ao inferno. O simbolismo da loucura nos contos de Guimarães Rosa indica que (...) um dos mais famosos escritores do país conhecia a realidade do Colônia. O romancista e contista foi médico voluntário da Força Pública durante a Revolução Constitucionalista de 1932, ingressando, um ano depois, como oficial médico, no 9º Batalhão de Infantaria, em Barbacena. No conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, do livro Primeiras estórias, lançado em 1962, o autor resgata a situação dos trens que chegavam apinhados de gente à capital brasileira da loucura, em busca de tratamento psiquiátrico. . O escritor referia-se a Barbacena, descrevendo, por meio do personagem principal, a angústia de um homem na despedida das únicas pessoas que tinha no mundo e que partiriam no trem da solidão coletiva. Sorôco jamais voltaria a ver seus afetos. As famílias dos pacientes do Colônia também não. Ao receberem o passaporte para o hospital, os passageiros tinham sua humanidade confiscada. (ARBEX,2013, n.p.). Outro espaço marcado seria abaixo das árvores de cedro, que representam a incorruptibilidade. No conto, o povo abrigando debaixo da árvore, seria uma forma de se proteger da sedução da loucura: “A hora era de muito sol – o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. “ (p. 63) Além disso, é enfatizado que Sorôco morava na “Rua de Baixo”, o que indica que a família vem de um extrato social baixo:”Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. “(p. 63) O NARRADOR A princípio, temos um Narrador- Testemunha, exterior aos fatos contados.O narrador pretende uma objetividade e imparcialidade no narrar: “As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro para esperar. As pessoas não queriam ficar entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez...” (p. 62) Mas no decorrer da ação, ele torna-se um narrador partícipe, envolvido, assim como os demais membros da comunidade, no canto coletivo: “Mas a gente viu a velha olhar para ela com um encanto de pressentimento muito antigo – um amor extremoso” (p. 65) “A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A gente... “ (p. 66) “A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga” (p. 66) PERSONAGENS No início, há uma oposição entre Sorôco, a mãe e a filha em relação aos demais da comunidade, o que se desfaz no final com a adesão da comunidade com o canto das loucas. O ACONTECIMENTO O acontecimento do conto é o canto que estrutura o relato numa gradação progressiva de participação até o canto coletivo final. O canto é iniciado pela filha, caracterizado por uma cantiga que “não vigorava certa, nem no tom no se-dizer das palavras – o nenhum” (p. 63). Canto inteligível, que se torna duo quando a velha “pegou cantar, também”. Depois das mulheres irem embora, Sorôco continuou com o canto das loucas, ultrapassando o limite entre racionalidade e loucura. Quando a comunidade começa a cantar também, há o rompimento entre o limite do indivíduo e da comunidade. No canto coletivo, incluindo o narrador, todos os limites desaparecem. TUTAMÉIA – TERCEIRAS ESTÓRIAS (1967) Tuta-e-meia: “ninharia, quase nada, coisa vil, pouco dinheiro”. Quatro prefácios; Títulos em ordem alfabética (apenas dois contos fora da ordem); 40 histórias curtas: “episódios cheios de carga explosiva, retratos que fazem adivinhar os dramas que moldaram as feições dos modelos, romances em potencial comprimidos ao máximo”. (Paulo Ronai) Unidade\homogeneidade do cenário, das personagens, do estilo (lugares: as estradas, os descampados, as matas, os lugarejos perdidos de Minas Gerais) Contos analisados: “Desenredo”, “Esses Lopes”; A angústia existencial segundo Paulo Ronai “A cada volta pelo caminho suas personagens humildes, em luta com a expressão recalcitrante, procuram definir-se, tentam encontrar o sentido da aventura humana: “Viver é obrigação sempre imediata”; “Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente, ausente”; “A gente quer mas não consegue furtar o peso da vida”. Da vida sabe-se: o que a ostra percebe do mar e do rochedo.” “Quem quer viver, faz mágica”. ENTREVISTA A PAULO RONAI: _ Por que Terceiras estórias – perguntei-lhe – se não houve as segundas? – Uns dizem: porque escritas depois de um grupo de outras não incluídas em Primeiras estórias. Outros dizem: porque o autor, supersticioso, quis criar para si a obrigação e a possibilidade de publicar mais um volume de contos, que seriam então as Segundas estórias. – E que diz o autor? – O autor não diz nada – respondeu Guimarães Rosa com uma risada de menino grande, feliz por ter atraído o colega a uma cilada. DESENREDO Do narrador seus ouvintes: – Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Como elas quem pode, porém? Foi Adão dormir e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu. Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas. Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel. Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano. Até que -deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que a ferira, leviano modo. Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudo personagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude. Ela -longe- sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a agüentar-se, nas defeituosas emoções. Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso. Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou -ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse. Mas. Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios. Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou a mulher, a desconhecido destino. Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se. Mais. No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade - idéia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conte inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma. Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como fritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente. O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado -plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa? Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar -e qualquer causa se irrefuta. Pois produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos. Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram- se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida. E pôs-se a fábula em ata. ANÁLISE DO CONTO Título: Desenredo – ele desenreda a fábula conhecida por todos e lhe dá um novo enredo (o que lhe interessa); ➢A ideia fabular que o conto mostra é que quando queremos, subvertemos a verdade. Jó Joaquim “operou o passado” da mulher amada para poder ser feliz com ela. “Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade – ideia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar a gente não se desfaz. Ele queria apenas os arquétipos , platonizava.” Narrativa de cunho oral: Além da presença de provérbios, o relato oral está sendo recontado por um narrador ouvinte que reproduz por escrito a fala de outro narrador (o contador de estórias da comunidade sertaneja); “Do narrador aos seus ouvintes:” “E pôs-se a fábula em ata”.
Diferença entre fábula e enredo:
➢ fábula: assunto da história; ➢ Enredo: o modo como se contam os fatos; “Em “Desenredo”, partindo do título da encenação realizada em todo o texto escrito, o autor vai construindo/desconstruindo o enredo e, desenredando as duas personagens diante do público que escuta a estória, como nós”. TEMÁTICA: O conto tem como tema a estória de um homem apaixonado que levado pelo desejo de felicidade, resolve perdoar e descaluniar a mulher que o traíra, uma vez que resgatando-lhe a honra, poderia ficar novamente com ela: “Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta, mais certa?” Segundo Rita Felix Fortes (2007, p. 152):
“O tema de “Desenredo”, superficialmente, é
o do adultério feminino, mas, em uma dimensão mais profunda, o que está em discussão é a capacidade humana de, a partir de uma construção discursiva, elaborar a maior das quimeras humanas: a felicidade”. “Com elas quem pode?” A inconstância e o comportamento sedutor da protagonista é metaforizado em diversas passagens: ➢“Foi adão dormir e Eva nascer”. ➢“Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão.” ➢“Jamais a imaginava ter os pés em três estribos”; ➢“Ela era um aroma”. Antropônimos A multiplicidade de nomes dá conta da falta de unidade da personagem: ➢ Livíria: a mulher casada de comportamento exemplar; ➢ Rivília: a mulher adúltera que zomba do marido apaixonado; ➢ Irlívia: aquela que é desmascarada e expulsa; ➢ Vilíria: Aquela que volta isenta de culpa; ➢ “Chamando-se Líviria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação a Jó Joaquim apareceu.” ➢ “Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida”. QUESTÕES PARA REFLEXÃO 1. Observe a passagem: “De amor não matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se como inédito poeta e homem.” Disserte sobre esse papel de Jó Joaquim como “inédito poeta e homem”, levando em conta os valores sociais e morais do contexto patriarcal do início do século XX, no sertão mineiro, e comparando com outras narrativas sobre a temática do adultério feminino. 2. Observe os fragmentos: “Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade – ideia inata” e “Criava nova, transformada realidade, maia alta. Mais certa?”. Disserte , de maneira subjetiva, sobre a busca da felicidade no conto. 3. Veja o aforismo rosiano: “O real é válido, na árvore, é a reta que vai para cima.” . Explique como você interpreta esse aforismo na configuração da temática do conto e no desenredo da estória. ESSES LOPES
A narradora-protagonista conta a própria
história a um receptor inonimado. A narração funciona como uma espécie de catarse dos traumas do passado. (SILVA, 2015). Na concepção de Silva, em uma época que ainda não havia leis como a “Maria da Penha” (2006), que protegessem as mulheres “a personagem precisa se valer de seus próprios métodos, ainda que violentos, para se livrar da opressão, da angústia e do sofrimento que causam sua opressão” (SILVA, 2015, p. 15). Por que Flausina seria uma personagem trágica? Os conceitos relativos ao trágico distinguem três momentos: o mito do destino, os componentes externos e a vítima do destino. Especificamente, no conto “Esses Lopes”, a heroína passa por esses três processos: torna-se vítima de seu destino, considerando o mito do destino sua condição de infância pobre; o jugo dos homens que a possuíram representa as formas dos componentes externos; e esses fatores tornam-na, portanto, vítima do destino. O contexto social Por meio de sua personagem, Guimarães Rosa revela um mundo de violência provocado pelo machismo e pela intolerância que existe em nossa sociedade, notadamente contra a mulher. A Heroína A heroína de “Esses Lopes” possui semelhanças com a tragédia de ação (tragédia grega), porque todos os acontecimentos desenvolvidos nesse conto relacionam-se como uma forma de ela vingar-se de seu destino, isto é, essa personagem está marcada para se tornar vítima de sucessivos casamentos sob o jugo da violência, porém reage a essa situação alterando o curso de sua história de vida. (Lima; Martinez, 2008) A violência no conto Na violência são encontradas duas situações antagônicas cuja ligação possibilita o entendimento da ação social, já que “a violência social inscreve-se num duplo movimento de destruição e de construção” . A análise dessas duas formas de violência permitirá a sua compreensão, visto que “A violência construtiva é a manifestação da fundação social e a violência destrutiva é a manifestação da afirmação individual” (Lima; Martinez, 2008). Esse aspecto da violência faz-se presente no conto, visto que a aceitação da heroína de viver a imposição marital arbitrária leva-a a uma submissão lúcida, que, em essência, funciona como uma estratégia para transformar sua história. Assim, com sua resistência, ela destrói um a um os homens que casam com ela, objetivando poder viver o sonho de adolescência, quebrado violentamente ao ser arrancada da casa dos pais. (Lima; Martinez, 2008). Com a única finalidade de construção de uma vida violentada, pode-se deduzir, mais uma vez, que a violência utilizada pela personagem feminina do conto rosiano funciona como um mecanismo de negociação que, paradoxalmente, liberta-a da submissão imposta. Nesse sentido, podemos ver a violência, nos termos de Maffesoli, como uma manifestação construtiva. (Lima; Martinez, 2008). Essa narrativa trata a respeito da história de Flausina, uma personagem feminina submetida, desde a adolescência, à violência de um mundo machista, violência esta aceita tácita e naturalmente por sua família, que a entrega a Zé Lopes vislumbrando, talvez, vantagens pecuniárias, como se depreende da rememoração da protagonista: “Eu era menina, me via vestida de flores. Só que o que mais cedo reponta é a pobreza. Me valia ter pai e mãe, sendo órfã de dinheiro?” (Lima; Martinez, 2008). A trama toda, vista sob a ótica de Flausina, pretende mostrar, de antemão, que ela está predestinada aos sofrimentos que relata, independendo dela as agruras traçadas por seu destino. Não tem a protagonista, a princípio, o domínio dos acontecimentos, haja vista que sua vida é determinada pelos de fora, pelos outros, como diz no início de sua narrativa: “Mas, primeiro, os outros obram a história da gente” Isso caracteriza-a como uma personagem trágica, visto que “são os elementos externos que desencadeiam os elementos do destino” (Lima; Martinez, 2008). Em boa parte do conto tudo e todos parecem que a levam para a perda de seus referenciais. Ela é seguidamente submetida aos caprichos do destino, ou seja, mal lhe morre um dos maridos, de imediato outro homem da família Lopes quer tomá-la como esposa, fato que a impede de conceber a existência como algo que não seja senão submissão, antecipadamente determinada pela vida. (Lima; Martinez, 2008). Sua reação acaba subvertendo a ordem clássica da tragédia, uma cadeia inexorável de acontecimentos que não pode ser mudada, porque ela passa a engendrar um plano para reverter a situação de mulher submissa à violência da ordem masculina, fazendo dela um joguete, um mero objeto ao qual cabe cumprir o caminho que melhor aprouver aos integrantes da família Lopes. A partir do momento em que resolve promover a eliminação física dos homens da família Lopes, Flausina passa a construir sua própria história, mudando aquilo que o destino, tal qual acreditava, havia lhe reservado. (Lima; Martinez, 2008) A narrativa de Flausina não só revela que as violências às quais fora submetida iniciaram-se na ação de seus pais, ao entregarem-na a Zé Lopes – momento que começam seus infortúnios – como deixa patente que, enquanto submetida aos caprichos da família Lopes, ela não tem história própria, não passa de uma coadjuvante, pois são os “outros” que fazem sua história. Portanto, ela começa a se tornar sujeito da história a partir do instante em que responde com idêntica violência à violência de ser obrigada a conviver com um homem que a usa sexualmente, isto é, decide eliminar seu primeiro marido, dando a ele veneno aos poucos até matá-lo. (Lima; Martinez, 2008). O aspecto utilitário dessa violência encontra-se na necessidade de Flausina libertar-se do jugo que interrompeu seus sonhos de moça, porquanto não aceita pacificamente a situação de ter sido arrancada de seu lar e violada por um homem desconhecido, por quem não nutria nenhum sentimento de amor. Como ter posses significa, ali, ser a lei, a mulher premedita o assassinato do marido, cogitando, ao amealhar-lhe as riquezas, passar a ser ela a representação do poder: “O que podendo, dele tudo eu para mim regrava. Fazia portar escrituras. Sem acautelar, ele me enriquecia. Mais, enfim que o filho dele nasceu, agora já tinha em mim a confiança toda, quase” . (Lima; Martinez, 2008). Meticulosa e sem pressa, Flausina aprende a ler e a escrever, instrumento precioso para levá-la à aquisição do poder. Depois que tem um filho, sente-se assegurada no seu papel social de mulher/esposa/mãe, podendo a partir daí engendrar a melhor forma de matar Zé Lopes. A narradora demonstra ser minuciosa, estando consciente de que sua vingança dispõe de uma justificativa. Assim, não suprime informações ao leitor, mas coloca-o a par de seus atos. Para ela, a vingança, cuja carga semântica ordinariamente remete a dados negativos, possui traços positivos, em outras palavras, configura-se como uma reação lenta e gradual, por ter sido arrancada de seu lar de maneira abrupta e submetida a situações degradantes promovidas por vários homens da família Lopes. (Lima; Martinez, 2008). Como se percebe pelos comentários da narradora, todos eles, os Lopes, representam o poder econômico. A eliminação física da família Lopes vem junto com a incorporação do patrimônio familiar por Flausina, representando sua grande vingança, que não só os matou como apagou a marca do poder que representavam na região. Ela só não consegue aniquilar as marcas que nela ficaram, e ainda sonha em conquistar a inocência que possuía quando menina e que não volta mais: “De que me adianta estar remediada e entendida, se não dou conta de questão das saudades? Eu, um dia, fui já muito menininha...” (Lima; Martinez, 2008). Os atos de Flausina, ao vingar-se de todos os Lopes, é uma maneira de buscar a restauração de sua humanidade destruída. Ao preservar os filhos que tivera com os Lopes, apesar de afastá-los de si, Flausina busca atribuir uma esperança, uma nova vida a esses novos Lopes. (Lima; Martinez, 2008). A universalidade da obra rosiana Há de se constatar que algo de prosaico ocorre na história de Flausina, são acontecimentos comuns que freqüentemente acontecem no interior do país, enchendo as páginas dos jornais sensacionalistas, entretanto, graças à forma de Guimarães Rosa (re)criar esses fatos comuns é que o torna singular, somando-se a isso a inventividade, a pesquisa lexical, o trabalho paciente de ourives em criar neologismos, etc. (Lima; Martinez, 2008). Uma outra leitura Em uma outra perspectiva, a professora Rita Felix Fortes destaca que, apesar das razões justificáveis das ações da protagonista, há nela uma tendência à maldade: Sua queda para o mal, bem como uma exacerbada vaidade, faz com que ela fuja do tradicional arquétipo patriarcal de mulher cordata, passiva e submissa ao domínio masculino. Ao contrário – a despeito de parcialmente válidas suas justificativas – ela encarna o espírito da maldade e da violência, equiparável ao de qualquer matador facínora, distinguindo-se, apenas, na feminil estratégia de eliminar enredando, jamais confrontando, visto que não teria forças para tal. (FORTES, 2007, p. 149-150). Questões para reflexão
1. Na sua opinião, por que , à medida que Flausina passa a
dominar a leitura e a escrita, ela também passa a ser sujeito de sua história? Disserte, exemplificando com passagens da obra. 2. Se se pensar nas leis que regem nossa sociedade, a atitude de Flausina de promover a morte sem perdão dos homens que se tornaram seus maridos, certamente seria punida, mesmo que esteja evidente que sempre foi à força, à base de violência e do poder do dinheiro e da posição social dos Lopes que ela foi humilhada por vários anos. Como você analisa essa resposta que ela dá a violência sofrida? REFERÊNCIAS CASTRO, Dácio Antônio de. Primeiras Estórias: Roteiro de leitura. São Paulo: Ática, 1993. CEZAR, Adelaide Caramuru.”Vínculos entre “A Benfazeja”, de Guimarães Rosa, e As Eumênides, de Ésquilo’. In: IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. CEZAR, Adelaide Caramuru & SANTOS, Volnei Edson. Dionisismo em “Sorôco, sua mãe, sua filha”. In: Terra Roxa e Outras Terras: Revista de Estudos Literários. V. 3. Londrina: Uel, 2003. FORTES, Rita Felix. “Da fábula à ata” In: FORTES, Rita Felix e ZANCHET, Maria Beatriz. Sabor e saber: o lugar do conto na escola. Foz do Iguaçu: Editora Parque, 2007. FORTES, Rita Felix. Algumas representações da imagem feminina em Guimarães Rosa. Nonada, v, 10 • 2007, p. 145-156. LIMA, Marcos Hidemi de & MATRINEZ, Márcia de Fátima. “Flausina, a das malinas lábias: Violência e Trágédia em “Esses Lopes””. In: Revista Trama.v.4.n.8. 2º semestre de 2008,pp.73-84. NASCIMENTO, José de Oliveira. Análise Estrutural do Conto “A Benfazeja”, de G. Rosa.In: http://members.fortunecity.com/jonascim/monografias/ benfazeja_abre.html, acesso em 09 de novembro de 2011. OTIN, Blanca Cebollero. “Sorôco, sua linguagem, sua Poesia”. ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. (Introdução de Paulo Ronai: “Os vastos espaços”). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras estórias. (apêndice de Paulo Ronai). 9.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. SANTOS, Adilson. “A atualização das Eumênides, de Ésquilo, em “A benfazeja”, de Guimarães Rosa”. In: Todas as Musas. Ano 3, n. 1, jul-dez de 2011.