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GUIMARÃES ROSA

(Codisburgo, MG, 1908


– Rio de Janeiro, 1967)
 "Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é
suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um
crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um
homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
como o sofrimento dos homens."
BIOGRAFIA
 Formado médico, exerceu pouco a profissão. O
domínio de vários idiomas levou Guimarães
Rosa à carreira diplomática. Prestou concurso
para o Itamarati e, em 1938, já era cônsul-
adjunto na cidade de Hamburgo, Alemanha. Em
Bogotá, foi secretário da Embaixada Brasileira.
 Por ter facilitado a fuga de judeus quando morava
na Alemanha, recebeu em 1985 uma das maiores
homenagens dadas pelo governo de Israel a
pessoas que ajudaram os judeus.
 Em 1961, recebe o prêmio Machado de Assis
pela ABL; e em 1963 é eleito por unanimidade
para ingressar na Academia. Por superstição,
adiou sua posse até 1967, três dias antes de
morrer (19\11\1967). Com a voz embargada no
discurso de posse afirmou: “...a gente morre é
para provar que viveu”.
 Em 1967, João Guimarães Rosa seria
indicado para o prêmio Nobel de
Literatura. A indicação, iniciativa dos seus
editores alemães, franceses e italianos, foi
barrada pela morte do escritor. A obra do
brasileiro havia alcançado esferas talvez até
hoje desconhecidas.
OBRAS
 Contos: Sagarana (1946); Primeiras estórias
(1962); Tutaméia – terceiras estórias (1967); Estas
estórias (1969); Ave, palavra (1970).
 Novela: Corpo de baile (1956) – a partir da 3ª
edição foi dividida em três volumes: Manuelzão e
Miguilim; No Urubiquaquá, no Pinhém; Noites do
sertão.
 Romance: Grande sertão: veredas (1956).
A RENOVAÇÃO MODERNISTA
 Para Castro (1993, p. 6), “Guimarães Rosa dá um
novo alento à prosa modernista, já numa terceira fase
do movimento, porque retoma e modifica as
propostas anteriores. Dos autores do primeiro
tempo, ele retoma o traço experimental, sobretudo
no plano da expressão, da inovação da linguagem.
Dos neo-realistas, Rosa aproveita, de modo muito
pessoal, a sugestão regionalista, dando-lhe novas
dimensões e direções: cria um sertão imaginário,
inventando-o através da linguagem”.
 Ainda segundo o autor, “em sua prosa poética,
Guimarães Rosa associa preocupações filosóficas à
ousadia formal, imprimindo-lhe um sentido de
universalidade, na medida em que focaliza o
sertanejo em suas preocupações metafísicas. Esta
preocupação com a essência íntima da realidade,
com o sentido último da existência, indo além do
que mostram as aparências, torna sua obra de
interesse universal, pois a focalização de tais
aspectos sempre atrairá o ser humano,
independentemente do tempo ou da geografia em
que viva” (1993, p. 6)
CARACTERÍSTICAS:
a) Recriação da linguagem (deslocamento da sintaxe,
vocabulário arcaico, neologismos, ousadia mórfica, );
b) Linguagem poética (aliterações, assonâncias, rimas,
metáforas, etc.)
c) Transcendência do Regionalismo;
d) Reinvenção do sertão: “O sertão é o mundo”, “o sertão
está em toda parte”, “o sertão é dentro da gente”. (GSV);
e) Inserção de momentos de “epifania”;
f) Temática universalizante: Loucura, infância, violência,
misticismo, amor, etc.
SAGARANA (1946)
 Conjunto de 9 novelas (originalmente 12)
escritas em 7 meses em 1937, retrabalhadas
durante 5 meses, em 1945, e publicadas em 1946.
 A primeira versão foi por ele inscrita no
Concurso Literário Prêmio Graça Aranha, da
livraria José Olympio, sob o título de Contos, em
1938, e que assinou sob o pseudônimo de Viator.
Essa publicação foi premiada com o segundo lugar
no concurso, perdendo para Maria Perigosa, de
Luís Jardim.
 Os textos exemplificam bem o estilo do autor, sua
linguagem inovadora e seus temas, atrelados à vida rural
de Minas Gerais.
 O título Sagarana é um hibridismo: "saga", radical de
origem germânica que significa "canto heroico",
"lenda"; e "rana", palavra de origem tupi que significa
"que exprime semelhança ". Assim Sagarana significa
algo como "próximo a uma saga".
 João Guimarães Rosa combina e recombina habilmente
as informações do meio, confundindo lugares e
paisagens, mesclando o real, o imaginário e o lendário
em sua obra.
 As novelas (ou contos, segundo alguns críticos)
descortinam o universo da linguagem
regionalizante de Guimarães Rosa e recriam, na
ficção, a vida de personagens saídos do interior
de Minas Gerais. A grandeza dessas produções
narrativas não está apenas presa ao cenário, ou à
linguagem, mas à riqueza da experiência humana
traduzida através de personagens que parecem,
em certos momentos, vencer suas fraquezas
humanas para entrar para a galeria dos mitos e
heróis do sertão.
PRIMEIRAS ESTÓRIAS, 1962
 Contos: 21 estórias curtas – “primeiras” :
“histórias de iniciação”;
 Temas universais: a loucura, a infância, a
violência, fatalidade\misticismo, o amor.
 Análises dos questionamentos humanos em todos
os tempos e lugares;
 Espaço: ambiente rural, pequenos lugarejos ou
vilas.
 Para Castro, (1993, p. 20), “Sua prosa – poética,
sedutora, diversa e estranha – exige do leitor
uma cuidadosa aproximação. Para desvendar os
labirintos de suas acrobacias verbais, a fim de
que se possam decifrar os significados ocultos
em seu texto, é preciso tato, paciência,
sensibilidade e determinação. Tal preparação é
necessária, porque Guimarães Rosa dedicou-se à
pesquisa pura da palavra, explorando as
múltiplas possibilidades.”
 Estilo: Em Primeiras Estórias, conforme a pesquisa
levantada por Paulo Ronai destacam-se os seguintes
processos de invenção verbal:
❖Aglutinação de palavras: pensamor (pensamento
+ amor); terrivorosos (terríveis +vorazes+ horrorosos);
sussuruído (sussurro + ruído); personagente (persona +
personagem + gente);
❖Palavras que permutam de classes gramaticais:
“Desço em pulos saltos”; “A gente pensava num logo
lugar”.
❖Ênfase através da repetição de palavras:
“Infância é coisa, coisa?”
❖Permutação de tempo e modo verbais: “Nem
olhasse mais a paisagem” (olharia);
❖Uso do artigo definido antes de pronomes
indefinidos: “as muitas pessoas”; “a alguma alegria”;
❖Associação entre o som e o sentido”-
aliterações e assonâncias:”Miúdo, moído...”; “leigos,
ledos, lépidos”;
❖ Desarticulações ou desvios sintáticos: “A gente
fica quase presos, alojados na cozinha”.
❖Desdobramento de palavras através de sufixos
pomposos: furibundância; circunspectância;
❖Palavras de efeito grandiloquente ou pedante:
“Só vivo no supracitado”; “Aquele senhor provisoriamente
impoluto”;
❖Inversão de lugares comuns ou frases feitas: “Com
cara de nenhum amigo”; “Um deu nos sacuda”; “o feio está
ficando coisa”;
❖Citação ou criação de provérbios sertanejos: “Herói é
no que dói”; “Para os pobres, os lugares são mais longes”; “De
pobre não me sujo, de rico não me emporcalho”;
❖Prosa rimada em forma de pares justapostos: “E
entrou – de peito feito”;
❖Criação de novos substantivos abstratos: nãoezas;
vislumbrança;
❖Flexão de palavras invariáveis: “Ah... e
quase, quasinho...quasesinho, quase...”
❖Verbos formados a partir de adjetivos:
“Cabisbaixara-se. Tio Man’Antônio, no dizer essas
palavras...”
❖Abrasileiramento de palavras
estrangeiras: “Eu Reivalino Belarmino,
capisquei” (do italiano capire = compreender)

▪ Contos analisados: “A benfazeja”, “Soroco, sua


mãe, sua filha”.
A BENFAZEJA –
ATUALIZAÇÃO
DO MITO DAS
EUMÊNIDES
ANÁLISE ESTRUTURAL DO CONTO:
1. História e Discurso: Dois Aspectos de
uma Obra Literária
 Notamos duas coisas singulares na obra em
questão, e que se prendem à dicotomia, história e
discurso:
a) não se trata propriamente da história de “Mula-
marmela”, como parece, à primeira leitura.
b) a história não é narrada, e o leitor dela toma
conhecimento, de uma maneira indireta.
 Mula Marmela, Mumbungo e Retrupé que, à
primeira vista, seriam as personagens principais, não
existem, na obra, ao nível da história, mas somente ao
nível do discurso. Não agem, não falam. Não existem.
São produtos de uma mentalização, eles e os
acontecimentos em que se envolveram.
 Em “A Benfazeja”, há apenas dois personagens, ambos
anônimos. Um deles, passivo, simboliza uma
coletividade. O outro, ativo, é um locutor, destacado
desta mesma coletividade. Podemos dizer que a obra
consiste num diálogo, que é feito unilateralmente. Um
personagem interpela o outro, trazendo à baila fatos,
acontecimentos.
Resumo
 A intenção do autor foi nos transmitir uma estória. Isto é óbvio.
Uma estória que se resumiria nisto: “Um homem vem ao mundo
com o destino de matar, gera um filho ao qual parece ter
transmitido, por hereditariedade, a mesma sede de sangue. O
mesmo destino põe em seu caminho uma mulher, cuja missão é
interromper-lhe a carreira criminosa, e conter, no filho, o
desabrochar da criminalidade, libertando a coletividade do
medo e da ansiedade. Essa missão é cumprida instintiva,
inconscientemente, na íntegra. Assim, ela elimina o “marido”,
cega o enteado, mata-o mais tarde, e abandona a cidade. São três
ações “más” que seu instinto “bom” coloca a serviço da
coletividade, que, no entanto, a odeia”.
É o mal necessário?
 Como se percebe, o tema da estória equivale a um
ponto muito controvertido na vida real: o direito de
tirar a vida ao semelhante em defesa de uma causa
nobre, ou considerada assim; o direito de, pela morte,
livrar a sociedade de um indivíduo pernicioso; ou
livrar o indivíduo das dores de uma doença
supostamente incurável. A questão envolve a ética e a
moral, e o autor, como médico e como cristão, foge a
ela, através de um subterfúgio.
O NARRADOR
 O narrador é um elemento intermediário entre o
leitor e o autor da obra, com quem muitas vezes se
confunde. Guimarães Rosa, porém, elimina o risco
dessa confusão, que poderia incriminá-lo. Coloca na
obra dois personagens, das quais um será o receptor e
o outro, o emissor. O que existe de novidade nessa
colocação é o fato de o receptor da estória não ser
precisamente, diretamente o leitor; e o emissor não se
dirige diretamente ao leitor.
 A presença do personagem-receptor é o pretexto
de que se serve o autor para atingir o leitor, sem
se comprometer. E o leitor, a partir dessas
evocações, está apto a reconstituir a estória, e é
livre para formar seus próprios juízos. Nessas
condições, se identificará com o personagem-
receptor; ou, por outro lado, poderá se identificar
com o próprio personagem-emissor. Sejam quais
forem as conclusões a que chegue, elas serão de
sua inteira responsabilidade. O autor lava as mãos.
2) História e discurso
2.1. Tempo
 A história é construída por meio de
reminiscências, que aparecem bem ordenadas:
A morte do Mumbungo, o cegamento do
Retrupé, a morte de Retrupé, a partida da
Mula Marmela.
2.2. Forma complexa de narrativa
 “A Benfazeja” é uma narrativa complexa. É a
história de uma mulher, encaixada na história de
um homem que reage contra o sentimento
injusto de uma coletividade egoísta. A segunda
está subordinada à primeira. Por outro, lado,
podemos afirmar que as estórias de “Mumbungo”
e de Retrupé”, são encaixados na estória de
“Mula-Marmela”.
 Essas duas estórias são secundárias e só servem
para caracterizar as personagens e tentar
justificar as duas mortes, se não perante os
olhos da coletividade, pelo menos diante dos
leitores, ou melhor, dos receptores indiretos.
2. 3. o ser e o parecer
 Essa evocação-narrativa, perdoem-nos o neologismo, é
feita ao nível do ser. A visão do emissor, classificada por
como ‘por trás”, estaria mais bem definida se fosse
denominada “acima”. Tanto o presente como o passado,
e também o futuro não são segredos para o emissor, que
deixa transparecer sua capacidade de esquadrinhar a
alma humana e ir muito além dela, atingindo o
desconhecido, o transcendental. Sua perspectiva
quadridimensional:
 “Se eu disser o que sei e pensam, vocês inquietos se
desgostarão. Nem consintam, talvez, que eu explique,
acabe. A mulher tinha de matar, tinha de cumprir
por suas mãos o necessário bem de todos, só ela
mesma poderia ser a executora da obra altíssima,
que todos nem ousavam conceber, mas que, em seus
escondidos corações, imploravam. Só ela mesma, a
“Marmela”, que viera ao mundo com a sina presa
de amar aquele homem, e de ser amada dele; e juntos,
enviados. Por quê ? Em volta, de nós, o que há é a
sombra mais fechada – coisas gerais”.
 Como percebemos, a visão do emissor é uma
visão superior. O que ele expõe no trecho acima
transcrito não pode se basear em confidência da
“Marmela”. Ela mesma ignora essas coisas. Seu
espírito, sua consciência é demasiado acanhada
para conter reflexões tão sutis. Ela apenas
pressente sua missão e destino.
O emissor vê a “Marmela” ao nível do ser,
enquanto o coletividade a vê ao nível do parecer.
No entanto, estes dois níveis deveriam estar
mesclados, confusos, para aquela parte da
coletividade.
 Dentre os dois aspectos que a história apresenta, ela
escolhe um “a priori”, sem maiores exames. A
aceitação do outro aspecto se fundaria em razões
transcendentais, obscuras para aqueles espíritos
simples, talvez impermeabilizados pela religiosidade.
Jamais aceitariam as argumentações do personagem-
emissor. O nível aparente é para eles o mais cômodo.
As conseqüências de sua aceitação não os conduziria ao
remorso, pois se apoiam em razões religiosas.
“Marmela” matou. É passível de punição e indigna de
permanecer naquela comunidade. Não merece
piedade. Eis o que acham.
2.4. Os registros da fala
 A estória da “Marmela” está contida no discurso do
nosso personagem-emissor em forma de um
anunciado, onde ela é o sujeito. Neste enunciado se
destaca a literalidade, isto é, a capacidade de o signo
ser tomado em si mesmo, e não como remissão a
outra coisa. Dois gêneros de discursos aí se
representam: as reflexões abstratas e as figuras
retóricas. Não dizem respeito diretamente à história e
seus personagens, mas traduzem um conceito geral,
ou uma convenção.
Exemplos de reflexões (aforismos):
 “A gente não vê os que não valem a pena”
 “O amor é a vaga, indecisa palavra “
 “Há sobrepesos, que se levam, outros, e são a vida”
 “Cada qual com sua baixeza; cada qual com sua altura”
 “A gente não consegue nem persegue os fios feixes dos fatos”
 A luz é para todos; as escuridões é que são apartadas e diversas”
 “O entressentir-se entre pessoas vem de regra com exagero,
erro e retardo”
 “Ninguém entende ninguém e ninguém entenderá nada, jamais;
esta é a prática verdade”
Exemplos de figuras de linguagem:
 Alusão: “Era o punir de Deus...” (Cft Átila, o
flagelo de Deus)
 Metáfora: “...,de cortar, com um ato de
“não”, sua existência” (= matar. Há também
alusão. (Cft. as parcas e os fios da vida humana).
 Gradação: “O cego Retrupé, sedicioso, então,
insulta, brada espumas, ruge...”
O TÍTULO DA OBRA: RELAÇÃO COM AS
EUMÊNIDES, DE ÉSQUILO

 Benfazeja e Eumênides significam benignas,


aquelas que praticam o Bem.
ÉSQUILO: ORÉSTIA (TRILOGIA)
1. Agamennon: Sacrifício de Efigênia na ida à Troia e vingança de
Clitemnestra;
2. Coéforas: Orestes mata Clitemnestra e é perseguido pelas
Eríneas, representantes do matriarcado;
3. Eumênides:
 Orestes passa por muito sofrimento, expia seu erro e é levado a
julgamento em Atenas;
 As Erínias/Fúrias (que representam o Matriarcado são as
acusadoras). Apolo (representante da Pólis e das novas leis do
Patriarcado) é o advogado de defesa) e Atena preside o
julgamento.
 Como o julgamento termina empatado, Atena decide a favor de
Orestes, criando o conhecido “voto de Minerva”;
 Atena apazigua as Erínias e as transforma em Eumênides
(benfazejas), protetoras da cidade de Atenas.
Levada pelo amor a este povo,
deixo com ele as deusas poderosas
mas de trato difícil; seu encargo
é dirigir a vida dos mortais.
Quem não pautar a conduta na vida
pelos ditames destas divindades
temíveis por seu poder inconteste,
não poderá compreender a origem
dos golpes que recebe em sua vida.
(ÉSQUILO, Eumênides, 1999, p. 184-185)
Semelhanças entre as Erínias e a Mula
Marmela

(...) furibunda de magra,


de esticado esqueleto, e o
se sumir desanguexuga,
fugidos os olhos, lobunos
cabelos...”
(ROSA, 2001. p. 176-7)
A SIMBOLOGIA DO NOME DA
PROTAGONISTA
 Mula é aquela que é estéril e híbrida, mas cuja função
reside em carregar o outro, em suportar pesos que lhe
são alheios. Mula- Marmela jamais pariu um filho,
porém vida afora carregou o peso daqueles que
simbolizavam o mal para a comunidade: Mumbungo, o
marido, e Retrupé, o enteado. Marmela, feminino de
marmelo, é o fruto ácido que serve, no entanto, para
fazer doces. Mula-Marmela com golpe certeiro cortou
os rompantes dos parceiros, pai e filho, porém com
doçura antes os manteve ao seu lado.
A PRESENÇA DO TRÁGICO NA OBRA

 A vinculação da obra às tragédias antigas se dá,


sobretudo, por meio de três passagens na obra:
1º PARÁGRAFO: “Vocês todos nunca suspeitaram
que ela pudesse arcar-se no mais fechado extremo, nos
domínios do demasiado?” . É sabido que estar “nos
domínios do demasiado” é especificidade do
herói trágico.
 3º PARÁGRAFO: “Rica, outromodo, sim, pelo que do
destino, o terrível”
 Além desta afirmação, há no conto como um todo a
constante referência à determinação prévia dos atos
de Mula-Marmela, independentemente da vontade
dela. Veio ao mundo “com a sina presa de amar aquele
homem, e de ser amada dele; e, juntos, enviados. Por quê?” .
Mais adiante, o narrador continua: “Se só ela poderia
matar o homem que era o seu, ela teria de matá- lo. Se não
cumprisse assim – se se recusasse a satisfazer o que todos, a
sós, a todos os instantes, suplicavam enormemente – ela
enlouqueceria?”
 ÚLTIMO PARÁGRAFO: “Sem lhe oferecer ao
menos qualquer espontânea esmola, vocês a viram
partir: o que figurava a expedição do bode – seu
expiar”
 A palavra “bode”, assim como a palavra
“desmedida”, anteriormente apontada, remete,
mais uma vez, de forma imediata, ao universo
trágico.
SORÔCO, SUA MÃE, SUA
FILHA
TEMÁTICA:

O conto mostra a impotência do


protagonista Sorôco diante da loucura
da mãe e da filha.
Tempo:
 A história é contada depois do ocorrido:
“Foi de não sair mais da memória. Foi um
caso sem comparação” (p. 66);
 Mas há um efeito de presentificação no
texto que o aproxima do leitor: “A gente
estava levando agora o Sorôco para a casa dele,
de verdade” (p. 66)
 O tempo da história é bastante curto. Começa
pouco antes das 12h45min, horário da partida
do trem, e termina pouco depois.
 Neste horário, Sorôco embarca sua mãe e sua
filha no trem que as conduzirá ao hospício em
Barbacena:
 “Para onde ia, no levar as mulheres, era para um
lugar chamado Barbacena, longe. Para os pobres, os
lugares são mais longes” (p. 63)
Ação
 A ação do conto mostra o conflito (agon) da
personagem, cuja existência é marcada pelo
antes com a família e o depois sem a
família: “Sorôco ia trazer as duas, conforme. A
mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns
setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era
viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente
nenhum” (p. 63)
ESPAÇOS
 “Informações sociológicas: todas as circunstâncias
de lugar sublinham a exclusão social das “ loucas” .
As duas mulheres vão “ para longe, para sempre” .
O hospício é uma prisão; o vagão que deve levá-las
tem janelas com grades, “ feito as de cadeia, para
os presos” . Os “ loucos” são tratados como
animais: o vagão está “ do lado do curral de
embarque dos bois” . O destino dos“ loucos”
depende dos “ não -loucos” : o vagão irá “ atrelado
ao expresso. ” (PERRONE-MOISÉS, 2002, p. 212)
 Leila Perrone-Moisés enfatiza a ideia do
espaço como prisão, exclusão. A
marginalidade da loucura é revelada pelo
espaço reservado às loucas no vagão: “A
gente reparando, notava as diferenças. Assim
repartido em dois, num dos cômodos as janelas
sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos”
(p. 62)
Os deserdados sociais chegavam a
ARBEX, Daniela. Barbacena de vários cantos do
Holocausto brasileiro. 1. Brasil. Eles abarrotavam os vagões
ed. São Paulo: Geração de carga de maneira idêntica aos
Editorial, 2013. judeus levados, durante a Segunda
Guerra Mundial, para os campos de
concentração nazistas de Auschwitz.
A expressão “trem de doido” surgiu
ali. Criada pelo escritor Guimarães
Rosa, ela foi incorporada ao
vocabulário dos mineiros para
definir algo positivo, mas, à época,
marcava o início de uma viagem
sem volta ao inferno.
O simbolismo da loucura nos contos de Guimarães
Rosa indica que (...) um dos mais famosos escritores
do país conhecia a realidade do Colônia. O romancista
e contista foi médico voluntário da Força Pública
durante a Revolução Constitucionalista de 1932,
ingressando, um ano depois, como oficial médico, no
9º Batalhão de Infantaria, em Barbacena. No conto
“Sorôco, sua mãe, sua filha”, do livro Primeiras
estórias, lançado em 1962, o autor resgata a situação
dos trens que chegavam apinhados de gente à capital
brasileira da loucura, em busca de tratamento
psiquiátrico.
.
O escritor referia-se a Barbacena, descrevendo, por
meio do personagem principal, a angústia de um
homem na despedida das únicas pessoas que tinha no
mundo e que partiriam no trem da solidão coletiva.
Sorôco jamais voltaria a ver seus afetos. As famílias dos
pacientes do Colônia também não. Ao receberem o
passaporte para o hospital, os passageiros tinham sua
humanidade confiscada. (ARBEX,2013, n.p.).
 Outro espaço marcado seria abaixo das
árvores de cedro, que representam a
incorruptibilidade. No conto, o povo
abrigando debaixo da árvore, seria uma
forma de se proteger da sedução da
loucura: “A hora era de muito sol – o povo
caçava jeito de ficarem debaixo da sombra
das árvores de cedro. “ (p. 63)
 Além disso, é enfatizado que Sorôco
morava na “Rua de Baixo”, o que indica
que a família vem de um extrato social
baixo:”Apontavam, da Rua de Baixo,
onde morava Sorôco. “(p. 63)
O NARRADOR
 A princípio, temos um Narrador-
Testemunha, exterior aos fatos contados.O
narrador pretende uma objetividade e
imparcialidade no narrar: “As muitas
pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do
carro para esperar. As pessoas não queriam ficar
entristecendo, conversavam, cada um porfiando
no falar com sensatez...” (p. 62)
 Mas no decorrer da ação, ele torna-se um
narrador partícipe, envolvido, assim como os
demais membros da comunidade, no canto
coletivo:
 “Mas a gente viu a velha olhar para ela com um
encanto de pressentimento muito antigo – um amor
extremoso” (p. 65)
 “A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A
gente... “ (p. 66)
 “A gente estava levando agora o Sorôco para a casa
dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia
aquela cantiga” (p. 66)
PERSONAGENS
 No início, há uma oposição entre
Sorôco, a mãe e a filha em relação aos
demais da comunidade, o que se desfaz
no final com a adesão da comunidade
com o canto das loucas.
O ACONTECIMENTO
 O acontecimento do conto é o canto que
estrutura o relato numa gradação progressiva de
participação até o canto coletivo final. O canto é
iniciado pela filha, caracterizado por uma cantiga
que “não vigorava certa, nem no tom no se-dizer das
palavras – o nenhum” (p. 63). Canto inteligível,
que se torna duo quando a velha “pegou cantar,
também”. Depois das mulheres irem embora,
Sorôco continuou com o canto das loucas,
ultrapassando o limite entre racionalidade e
loucura.
 Quando a comunidade começa a cantar
também, há o rompimento entre o
limite do indivíduo e da comunidade.
No canto coletivo, incluindo o
narrador, todos os limites
desaparecem.
TUTAMÉIA – TERCEIRAS ESTÓRIAS (1967)
 Tuta-e-meia: “ninharia, quase nada, coisa vil, pouco dinheiro”.
 Quatro prefácios;
 Títulos em ordem alfabética (apenas dois contos fora da
ordem);
 40 histórias curtas: “episódios cheios de carga explosiva, retratos que
fazem adivinhar os dramas que moldaram as feições dos modelos,
romances em potencial comprimidos ao máximo”. (Paulo Ronai)
 Unidade\homogeneidade do cenário, das personagens, do
estilo (lugares: as estradas, os descampados, as matas, os
lugarejos perdidos de Minas Gerais)
 Contos analisados: “Desenredo”, “Esses Lopes”;
A angústia existencial segundo Paulo
Ronai
 “A cada volta pelo caminho suas personagens
humildes, em luta com a expressão recalcitrante,
procuram definir-se, tentam encontrar o sentido
da aventura humana: “Viver é obrigação sempre
imediata”; “Viver seja talvez somente guardar o
lugar de outrem, ainda diferente, ausente”; “A
gente quer mas não consegue furtar o peso da
vida”. Da vida sabe-se: o que a ostra percebe do
mar e do rochedo.” “Quem quer viver, faz mágica”.
ENTREVISTA A PAULO RONAI:
_ Por que Terceiras estórias – perguntei-lhe – se
não houve as segundas?
– Uns dizem: porque escritas depois de um grupo de
outras não incluídas em Primeiras estórias. Outros
dizem: porque o autor, supersticioso, quis criar para si
a obrigação e a possibilidade de publicar mais um
volume de contos, que seriam então as Segundas
estórias.
– E que diz o autor?
– O autor não diz nada – respondeu Guimarães Rosa
com uma risada de menino grande, feliz por ter atraído
o colega a uma cilada.
DESENREDO
Do narrador seus ouvintes:
– Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o
cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Como elas quem
pode, porém? Foi Adão dormir e Eva nascer. Chamando-se
Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim
apareceu.
Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás,
casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó
Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais
em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas tendo tudo
de ser secreto, claro, coberto de sete capas.
Porque o marido se fazia notório, na valentia
com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância.
Então ao rigor geral os dois se sujeitaram,
conforme o clandestino amor em sua forma local,
conforme o mundo é mundo. Todo abismo é
navegável a barquinhos de papel.
Não se via quando e como se viam. Jó
Joaquim, além disso, existindo só retraído,
minuciosamente. Esperar é reconhecer-se
incompleto. Dependiam eles de enorme milagre.
O inebriado engano.
Até que -deu-se o desmastreio. O trágico
não vem a conta-gotas. Apanhara o marido
a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais
cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e
matou-o. Diz-se, também, que a ferira, leviano
modo.
Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no
absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito
dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas,
devolvido ao barro, entre o inefável e o infando.
Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos;
chegou a maldizer de seus próprios e gratos
abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser
pseudo personagem, em lance de tão vermelha e
preta amplitude.
Ela -longe- sempre ou ao máximo mais formosa, já
sarada e sã. Ele exercitava-se a agüentar-se, nas defeituosas
emoções.
Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é
impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o
marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é
engenhoso.
Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato,
dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se
encontrou -ela sutil como uma colher de chá, grude de
engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não
fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim,
para feliz escândalo popular, por que forma fosse.
Mas.
Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou:
os tempos se seguem e parafraseiam-se.
Deu-se a entrada dos demônios.
Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em
péssima hora: traído e traidora. De amor não a
matou, que não era para truz de tigre ou leão.
Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito
poeta e homem. E viajou a mulher, a
desconhecido destino.
Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido.
Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase
criminoso, reincidente. Triste, pois que tão
calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como
formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca,
de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que
não o dela dentro. Era o seu um amor meditado,
a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.
Mais.
No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou
sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A
bonança nada tem a ver com a tempestade.
Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se
fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a
felicidade - idéia inata. Entregou-se a remir,
redimir a mulher, à conte inteira. Incrível? É de notar
que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se
desafaz. Ele queria os arquétipos, platonizava. Ela era
um aroma.
Nunca tivera ela amantes! Não um. Não
dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava
a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas.
Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por
tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso
raso, o que fora tão claro como água suja.
Demonstrando-o, amatemático, contrário ao
público pensamento e à lógica, desde que
Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil
como fritar almôndegas. Sem malícia, com
paciência, sem insistência, principalmente.
O ponto está em que o soube, de tal arte: por
antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas
escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim,
genial, operava o passado -plástico e contraditório
rascunho. Criava nova, transformada realidade,
mais alta. Mais certa?
Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e
averiguada, com convicção manifesta. Haja o
absoluto amar -e qualquer causa se
irrefuta.
Pois produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se
os pontos das reticências, o tempo secou o
assunto. Total o transato desmanchava-se, a
anterior evidência e seu nevoeiro. O real e
válido, na árvore, é a reta que vai para
cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro
que todos.
Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá
a notícia, onde se achava, em ignota, defendida,
perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem
culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao
vento
Três vezes passa perto da gente a
felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-
se, e conviveram, convolados, o verdadeiro
e melhor de sua útil vida.
E pôs-se a fábula em ata.
ANÁLISE DO CONTO
 Título: Desenredo – ele desenreda a fábula conhecida
por todos e lhe dá um novo enredo (o que lhe
interessa);
➢A ideia fabular que o conto mostra é que quando
queremos, subvertemos a verdade. Jó Joaquim “operou
o passado” da mulher amada para poder ser feliz com
ela.
“Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade – ideia inata. Entregou-se
a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar
que o ar vem do ar. De sofrer e amar a gente não se desfaz. Ele
queria apenas os arquétipos , platonizava.”
 Narrativa de cunho oral: Além da presença de
provérbios, o relato oral está sendo recontado por um
narrador ouvinte que reproduz por escrito a fala
de outro narrador (o contador de estórias da
comunidade sertaneja);
“Do narrador aos seus ouvintes:”
“E pôs-se a fábula em ata”.

 Diferença entre fábula e enredo:


➢ fábula: assunto da história;
➢ Enredo: o modo como se contam os fatos;
 “Em “Desenredo”, partindo do título da
encenação realizada em todo o texto
escrito, o autor vai
construindo/desconstruindo o enredo e,
desenredando as duas personagens diante do
público que escuta a estória, como nós”.
TEMÁTICA:
 O conto tem como tema a estória de um
homem apaixonado que levado pelo desejo de
felicidade, resolve perdoar e descaluniar a
mulher que o traíra, uma vez que resgatando-lhe
a honra, poderia ficar novamente com ela:
“Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e
contraditório rascunho. Criava nova, transformada
realidade, mais alta, mais certa?”
Segundo Rita Felix Fortes (2007, p. 152):

“O tema de “Desenredo”, superficialmente, é


o do adultério feminino, mas, em uma
dimensão mais profunda, o que está em
discussão é a capacidade humana de, a partir
de uma construção discursiva, elaborar a
maior das quimeras humanas: a felicidade”.
“Com elas quem pode?”
 A inconstância e o comportamento sedutor da
protagonista é metaforizado em diversas
passagens:
➢“Foi adão dormir e Eva nascer”.
➢“Antes bonita, olhos de viva mosca, morena
mel e pão.”
➢“Jamais a imaginava ter os pés em três
estribos”;
➢“Ela era um aroma”.
Antropônimos
 A multiplicidade de nomes dá conta da falta de unidade da
personagem:
➢ Livíria: a mulher casada de comportamento exemplar;
➢ Rivília: a mulher adúltera que zomba do marido
apaixonado;
➢ Irlívia: aquela que é desmascarada e expulsa;
➢ Vilíria: Aquela que volta isenta de culpa;
➢ “Chamando-se Líviria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação a Jó
Joaquim apareceu.”
➢ “Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria
retomaram e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua
útil vida”.
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
1. Observe a passagem: “De amor não matou, que não era para
truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se como
inédito poeta e homem.” Disserte sobre esse papel de Jó
Joaquim como “inédito poeta e homem”, levando em
conta os valores sociais e morais do contexto patriarcal
do início do século XX, no sertão mineiro, e
comparando com outras narrativas sobre a temática do
adultério feminino.
2. Observe os fragmentos: “Desejava ele, Jó Joaquim, a
felicidade – ideia inata” e “Criava nova, transformada
realidade, maia alta. Mais certa?”. Disserte , de maneira
subjetiva, sobre a busca da felicidade no conto.
3. Veja o aforismo rosiano: “O real é válido, na
árvore, é a reta que vai para cima.” . Explique
como você interpreta esse aforismo na
configuração da temática do conto e no
desenredo da estória.
ESSES LOPES

A narradora-protagonista conta a própria


história a um receptor inonimado.
A narração funciona como uma espécie de
catarse dos traumas do passado.
(SILVA, 2015).
Na concepção de Silva, em uma época que ainda
não havia leis como a “Maria da Penha” (2006),
que protegessem as mulheres “a personagem
precisa se valer de seus próprios métodos, ainda
que violentos, para se livrar da opressão, da
angústia e do sofrimento que causam sua
opressão” (SILVA, 2015, p. 15).
Por que Flausina seria uma personagem
trágica?
 Os conceitos relativos ao trágico distinguem três
momentos: o mito do destino, os componentes
externos e a vítima do destino. Especificamente,
no conto “Esses Lopes”, a heroína passa por esses três
processos: torna-se vítima de seu destino,
considerando o mito do destino sua condição de
infância pobre; o jugo dos homens que a possuíram
representa as formas dos componentes externos; e
esses fatores tornam-na, portanto, vítima do destino.
O contexto social
 Por meio de sua personagem,
Guimarães Rosa revela um mundo de
violência provocado pelo machismo e
pela intolerância que existe em nossa
sociedade, notadamente contra a
mulher.
A Heroína
 A heroína de “Esses Lopes” possui semelhanças
com a tragédia de ação (tragédia grega), porque
todos os acontecimentos desenvolvidos nesse
conto relacionam-se como uma forma de ela
vingar-se de seu destino, isto é, essa personagem
está marcada para se tornar vítima de sucessivos
casamentos sob o jugo da violência, porém reage
a essa situação alterando o curso de sua história
de vida. (Lima; Martinez, 2008)
A violência no conto
 Na violência são encontradas duas situações
antagônicas cuja ligação possibilita o
entendimento da ação social, já que “a violência
social inscreve-se num duplo movimento de
destruição e de construção” . A análise dessas
duas formas de violência permitirá a sua
compreensão, visto que “A violência construtiva
é a manifestação da fundação social e a violência
destrutiva é a manifestação da afirmação
individual” (Lima; Martinez, 2008).
 Esse aspecto da violência faz-se presente no
conto, visto que a aceitação da heroína de viver a
imposição marital arbitrária leva-a a uma
submissão lúcida, que, em essência, funciona
como uma estratégia para transformar sua
história. Assim, com sua resistência, ela destrói
um a um os homens que casam com ela,
objetivando poder viver o sonho de adolescência,
quebrado violentamente ao ser arrancada da casa
dos pais. (Lima; Martinez, 2008).
 Com a única finalidade de construção de uma
vida violentada, pode-se deduzir, mais uma vez,
que a violência utilizada pela personagem
feminina do conto rosiano funciona como um
mecanismo de negociação que,
paradoxalmente, liberta-a da submissão
imposta. Nesse sentido, podemos ver a
violência, nos termos de Maffesoli, como uma
manifestação construtiva. (Lima; Martinez,
2008).
 Essa narrativa trata a respeito da história de
Flausina, uma personagem feminina submetida,
desde a adolescência, à violência de um mundo
machista, violência esta aceita tácita e
naturalmente por sua família, que a entrega a Zé
Lopes vislumbrando, talvez, vantagens
pecuniárias, como se depreende da
rememoração da protagonista: “Eu era menina, me
via vestida de flores. Só que o que mais cedo reponta é
a pobreza. Me valia ter pai e mãe, sendo órfã de
dinheiro?” (Lima; Martinez, 2008).
 A trama toda, vista sob a ótica de Flausina, pretende
mostrar, de antemão, que ela está predestinada aos
sofrimentos que relata, independendo dela as agruras
traçadas por seu destino. Não tem a protagonista, a
princípio, o domínio dos acontecimentos, haja vista que
sua vida é determinada pelos de fora, pelos outros, como
diz no início de sua narrativa: “Mas, primeiro, os outros
obram a história da gente” Isso caracteriza-a como uma
personagem trágica, visto que “são os elementos externos
que desencadeiam os elementos do destino” (Lima;
Martinez, 2008).
 Em boa parte do conto tudo e todos parecem que
a levam para a perda de seus referenciais. Ela é
seguidamente submetida aos caprichos do
destino, ou seja, mal lhe morre um dos maridos,
de imediato outro homem da família Lopes quer
tomá-la como esposa, fato que a impede de
conceber a existência como algo que não seja
senão submissão, antecipadamente determinada
pela vida. (Lima; Martinez, 2008).
 Sua reação acaba subvertendo a ordem clássica da
tragédia, uma cadeia inexorável de acontecimentos que
não pode ser mudada, porque ela passa a engendrar um
plano para reverter a situação de mulher submissa à
violência da ordem masculina, fazendo dela um joguete,
um mero objeto ao qual cabe cumprir o caminho que
melhor aprouver aos integrantes da família Lopes. A
partir do momento em que resolve promover a
eliminação física dos homens da família Lopes, Flausina
passa a construir sua própria história, mudando aquilo
que o destino, tal qual acreditava, havia lhe reservado.
(Lima; Martinez, 2008)
 A narrativa de Flausina não só revela que as violências
às quais fora submetida iniciaram-se na ação de seus
pais, ao entregarem-na a Zé Lopes – momento que
começam seus infortúnios – como deixa patente que,
enquanto submetida aos caprichos da família Lopes, ela
não tem história própria, não passa de uma
coadjuvante, pois são os “outros” que fazem sua
história. Portanto, ela começa a se tornar sujeito da
história a partir do instante em que responde com
idêntica violência à violência de ser obrigada a conviver
com um homem que a usa sexualmente, isto é, decide
eliminar seu primeiro marido, dando a ele veneno aos
poucos até matá-lo. (Lima; Martinez, 2008).
 O aspecto utilitário dessa violência encontra-se na
necessidade de Flausina libertar-se do jugo que
interrompeu seus sonhos de moça, porquanto não aceita
pacificamente a situação de ter sido arrancada de seu lar
e violada por um homem desconhecido, por quem não
nutria nenhum sentimento de amor.
 Como ter posses significa, ali, ser a lei, a mulher
premedita o assassinato do marido, cogitando, ao
amealhar-lhe as riquezas, passar a ser ela a representação
do poder: “O que podendo, dele tudo eu para mim regrava.
Fazia portar escrituras. Sem acautelar, ele me enriquecia. Mais,
enfim que o filho dele nasceu, agora já tinha em mim a
confiança toda, quase” . (Lima; Martinez, 2008).
 Meticulosa e sem pressa, Flausina aprende a ler e a escrever,
instrumento precioso para levá-la à aquisição do poder.
Depois que tem um filho, sente-se assegurada no seu papel
social de mulher/esposa/mãe, podendo a partir daí engendrar
a melhor forma de matar Zé Lopes.
 A narradora demonstra ser minuciosa, estando consciente de
que sua vingança dispõe de uma justificativa. Assim, não
suprime informações ao leitor, mas coloca-o a par de seus
atos. Para ela, a vingança, cuja carga semântica ordinariamente
remete a dados negativos, possui traços positivos, em outras
palavras, configura-se como uma reação lenta e gradual, por
ter sido arrancada de seu lar de maneira abrupta e submetida a
situações degradantes promovidas por vários homens da
família Lopes. (Lima; Martinez, 2008).
 Como se percebe pelos comentários da narradora,
todos eles, os Lopes, representam o poder econômico.
A eliminação física da família Lopes vem junto com a
incorporação do patrimônio familiar por Flausina,
representando sua grande vingança, que não só os
matou como apagou a marca do poder que
representavam na região. Ela só não consegue aniquilar
as marcas que nela ficaram, e ainda sonha em
conquistar a inocência que possuía quando menina e
que não volta mais: “De que me adianta estar remediada e
entendida, se não dou conta de questão das saudades? Eu, um
dia, fui já muito menininha...” (Lima; Martinez, 2008).
 Os atos de Flausina, ao vingar-se de todos os
Lopes, é uma maneira de buscar a
restauração de sua humanidade destruída.
Ao preservar os filhos que tivera com os
Lopes, apesar de afastá-los de si, Flausina
busca atribuir uma esperança, uma nova vida
a esses novos Lopes. (Lima; Martinez,
2008).
A universalidade da obra rosiana
 Há de se constatar que algo de prosaico ocorre na
história de Flausina, são acontecimentos comuns que
freqüentemente acontecem no interior do país,
enchendo as páginas dos jornais sensacionalistas,
entretanto, graças à forma de Guimarães Rosa
(re)criar esses fatos comuns é que o torna singular,
somando-se a isso a inventividade, a pesquisa lexical, o
trabalho paciente de ourives em criar neologismos,
etc. (Lima; Martinez, 2008).
Uma outra leitura
 Em uma outra perspectiva, a professora Rita Felix Fortes
destaca que, apesar das razões justificáveis das ações da
protagonista, há nela uma tendência à maldade:
Sua queda para o mal, bem como uma exacerbada
vaidade, faz com que ela fuja do tradicional arquétipo
patriarcal de mulher cordata, passiva e submissa ao
domínio masculino. Ao contrário – a despeito de
parcialmente válidas suas justificativas – ela encarna o
espírito da maldade e da violência, equiparável ao de
qualquer matador facínora, distinguindo-se, apenas, na
feminil estratégia de eliminar enredando, jamais
confrontando, visto que não teria forças para tal.
(FORTES, 2007, p. 149-150).
Questões para reflexão

1. Na sua opinião, por que , à medida que Flausina passa a


dominar a leitura e a escrita, ela também passa a ser
sujeito de sua história? Disserte, exemplificando com
passagens da obra.
2. Se se pensar nas leis que regem nossa sociedade, a atitude
de Flausina de promover a morte sem perdão dos homens
que se tornaram seus maridos, certamente seria punida,
mesmo que esteja evidente que sempre foi à força, à base
de violência e do poder do dinheiro e da posição social dos
Lopes que ela foi humilhada por vários anos. Como você
analisa essa resposta que ela dá a violência sofrida?
REFERÊNCIAS
CASTRO, Dácio Antônio de. Primeiras Estórias:
Roteiro de leitura. São Paulo: Ática, 1993.
CEZAR, Adelaide Caramuru.”Vínculos entre “A
Benfazeja”, de Guimarães Rosa, e As Eumênides, de
Ésquilo’. In: IV Congresso Internacional da
Associação Portuguesa de Literatura Comparada.
CEZAR, Adelaide Caramuru & SANTOS, Volnei Edson.
Dionisismo em “Sorôco, sua mãe, sua filha”. In: Terra
Roxa e Outras Terras: Revista de Estudos Literários. V.
3. Londrina: Uel, 2003.
FORTES, Rita Felix. “Da fábula à ata” In: FORTES, Rita
Felix e ZANCHET, Maria Beatriz. Sabor e saber: o lugar
do conto na escola. Foz do Iguaçu: Editora Parque, 2007.
FORTES, Rita Felix. Algumas representações da imagem
feminina em Guimarães Rosa. Nonada, v, 10 • 2007, p.
145-156.
LIMA, Marcos Hidemi de & MATRINEZ, Márcia de
Fátima. “Flausina, a das malinas lábias: Violência e Trágédia
em “Esses Lopes””. In: Revista Trama.v.4.n.8. 2º semestre
de 2008,pp.73-84.
NASCIMENTO, José de Oliveira. Análise Estrutural do
Conto “A Benfazeja”, de G. Rosa.In:
http://members.fortunecity.com/jonascim/monografias/
benfazeja_abre.html, acesso em 09 de novembro de 2011.
OTIN, Blanca Cebollero. “Sorôco, sua linguagem, sua
Poesia”.
ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias.
(Introdução de Paulo Ronai: “Os vastos espaços”). Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras estórias.
(apêndice de Paulo Ronai). 9.ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
SANTOS, Adilson. “A atualização das Eumênides, de
Ésquilo, em “A benfazeja”, de Guimarães Rosa”. In:
Todas as Musas. Ano 3, n. 1, jul-dez de 2011.

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