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1.0 O Autor:
O romancista, diplomata e médico brasileiro
JOÃO GUIMARÃES ROSA nasceu na cidade de
Cordisburgo/MG, em 27 de Junho de 1908.
Primogênito dos sete filhos do casal Florduardo
Pinto Rosa e D. Francisca Guimarães Rosa, aos
sete anos, o futuro escritor começou estudar
francês por conta própria. Anos depois, o escritor declarava em entrevista: “Falo:
português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo;
leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns
dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do
polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês;
bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e
o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma
nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.” Essa
paixão pelas línguas, demonstrada desde cedo, vai atravessar toda a vida e obra de
Rosa. Em 1930 casou-se com Lígia Cabral, com quem teve duas filhas: Vilma e Agnes.
Formado em Medicina, exerceu a profissão até 1934, quando ingressou na carreira
diplomática, tendo servido na Alemanha, Colômbia e França, ao lado de sua segunda
esposa, Aracy de Carvalho (a quem o autor dedica a obra GSV funcionária do Itamaraty,
junto da qual prestou grande serviço ao povo judeu na perseguição nazista. Sua primeira
obra literária foi Magma, livro de poemas com o qual obteve prêmio pela Academia
Brasileira de Letras – essa obra permaneceria inédita até a década de 90. Mas a estreia
de Rosa para o público só aconteceu, de fato, em 1946 com os contos de Sagarana. Em
1952, o autor realizou um velho sonho: viajou por nove dias através do Sertão de Minas
Gerais, carregando um caderno no qual anotava nomes de bichos e plantas, raças e
cores de gado e canções populares, acompanhado por um grupo de vaqueiros
comandados pelo mítico Manuelzão. Sua consagração definitiva viria em 1956 com o
romance Grande Sertão: Veredas. Nesse mesmo ano publicou Corpo de Baile, uma
reunião de seis novelas, entre as quais figurava “Campo Geral”. Eleito para a Academia
Brasileira de Letras em 1963, só tomaria posse em 16 de Novembro de 1967, morrendo
1
três dias depois. No seu discurso de posse, Rosa disse: “A gente morre é para provar
que viveu. [...] As pessoas não morrem, ficam encantadas. [...] O mundo é mágico.”
2.0 A Obra:
O romance GRANDE SERTÃO: VEREDAS [que a partir de agora será referido
pela sigla GSV], do prosador mineiro JOÃO GUIMARÃES ROSA, é certamente um dos
maiores clássicos da literatura brasileira de todos os tempos. Adaptado para o cinema,
televisão (com uma versão famosa exibida na Rede Globo na década de 1980), teatro e
para o formato das histórias em quadrinho, essa fabulosa e inventiva trama continua e
continuará sendo exemplo máximo de qualidade estética e profundidade temática.
Seguindo as propostas estilísticas que marcaram a obra anterior de Rosa – o livro de
contos Sagarana (1946) –, GSV apresenta características estéticas e conteudísticas que
singularizaram o autor na cena literária nacional: o uso de neologismos, a cadência
ritmada das frases, as construções sintáticas originais, o caráter poético da narrativa, o
temário filosófico-existencial e a universalização das vivências identificadas no ambiente
regionalista.
O romance é dedico à segunda esposa de Guimarães Rosa, Aracy de Carvalho:
“A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro. Curiosamente o apelido afetuoso
empregado por Rosa, “Ara”, à imagem da pedra de altar, elemento sagrado1”, o que
carrega uma interessante alegoria em uma obra marcada pela sugestão estética,
carregada de referenciais simbólicos para falar dos sentimentos humanos, sobretudo, o
amor.
Nas palavras da Profª Drª. Jô Drummond, a ficção roseana, apontada pela crítica
como uma “ilha literária”, tem em GSV seu ponto mais alto, um marco divisor-de-águas
em nossas letras e delineador de novos caminhos para a escrita literária nacional.
“Trata-se de uma revolução linguístico-estrutural-metafísica que, logo de imediato
causou ao mesmo tempo ora admiração, ora repulsa, nos leitores desavisados, devido à
seu estranho linguajar, sua narrativa labiríntica, seu monólogo dialógico e sua
arquitetura inteiriça. Trata-se de uma obra que não se enquadra nos moldes literários
tradicionais”, pontua Drummond. Um texto que pode causar (e causa!) um certo
estranhamento no leitor – seja pela linguagem ou pelas reflexões apresentadas –, GSV é
um livro para ser enfrentado, pois, logo que nos envolve, essa obra nos leva em seu fluir,
com sua magia, a surpresa da linguagem, pronta para irradiar cores novas e movimentar
o pensamento para fora de sua morada conhecida, ampliando horizontes tão vastos
como o sertão sem limites da obra de Guimarães Rosa.
1
A imagem da pedra, inclusive, é muito importante no enredo de GSV, pois, ao longo de grande parte
da trama, Riobaldo carrega consigo uma pedra – que ora é identificada como topázio, ora como ametista e
ainda como safira – a qual pretende, inicialmente, dar para Diadorim e depois para Otacília, sua futura
esposa.
2
No tocante ao ambiente social e geográfico explorado por Rosa, é importante
pontuar que o autor de GSV parte de um enredo de caráter regionalista, que explora o
espaço do Grande Sertão (região mítica do imaginário roseano que abarca parte do
interior do Norte de Minas Gerais, Sul Bahia e Goiás) para abordar assuntos que
tangem a reflexões existenciais, sentimentais e psicológicas que são universais e
atemporais. Em diálogo com diversas tradições literárias e filosóficas, GVS mescla o
clássico e o moderno, o arcaico e o moderno, o tradicional e o experimental, a
oralidade e a sofisticação letrada. Já do ponto de vista filosófico, Rosa bebe de várias
fontes, da cultura judaico-cristão à filosofia à mitologia greco-romana passando pela
sabedoria oriental e o espiritismo kardecista, da literatura antiga à escrita modernista, da
cultura erudita (filosofia neoplatônica e outras referências ilustradas) à sabedoria
popular, traçando experiências humanas que dizem a respeito todos nós.
E aqui a trama recontextualiza, em pleno sertão mineiro, dois mitos que se
conectam às tradições literárias universais (o que faz com que GSV pendule entre um
microcosmo regional e um macrocosmo universalista): [1] o pacto fáustico [numa
referência ao personagem da famosa lenda alemã2, o Dr. Fausto], oscilando entre o real
e o fantástico; e [2] o mito da Donzela Guerreira [de que o mito Hua Mulan3 é o maior
exemplo] que se disfarça de homem e entra na guerra para defender o pai sem filho
varão.
Segundo o Prof. Ms. Marcio Moraes, esse regionalismo de Rosa “deixa de dar
ênfase naturalista à paisagem para focalizar o ser humano em conflito com o meio social
em que está inserido e consigo mesmo”, pois não há, a despeito do caráter regional, a
pretensão da regionalização, mas da universalização do temário apresentado. Assim,
por mais que haja essa referência à “cor local” do sertão das Gerais (a apresentação
poética da fauna e da flora dessa região, bem como a referência aos costumes da gente
que ali habita – presentes nas muitas anotações que Rosa registrava em seus
caderninhos durante suas peregrinações pelo interior de Minas Gerais), Rosa transcende
ao “localismo” (ao apego excessivo àquilo que é “típico” de um determinado espaço
geograficamente delimitado), explorando esse espaço para levar o leitor a abordagens
que tangem aos “grandes problemas do homem”.
Ainda nas palavras de Moraes: “Suas estórias (...) extraem do regional a
elaboração de temas universais, revelando uma visão global da existência: indagações
sobre o destino, o significado da vida e da morte, Deus, a existência ou não de do Diabo,
a manifestação do mal no homem, os sentimentos mais íntimos e conflituosos, bem
como os comportamentos mais extremados: amor, ódio, adultério, loucura, infância,
violência, vingança, solidariedade, comoção, saudade, sensibilidade, alegria e tristeza”.
2
Fausto é o protagonista de uma popular lenda alemã, centrado na vida de um homem que fizera um
pacto com o diabo (Mefistófeles). A narrativa popular se baseia na vida no médico, mago e alquimista
alemão Dr. Johannes Georg Faust (1480-1540). Esse personagem foi revistado por vários textos literários,
com destaque para o drama do escritor romântico Johann Wolfgang von Goethe [1832] e para o romance
de Thomas Mann [1947]. Curiosamente, um dos personagens de GSV se chama Faustino e se envolve em
uma história de pacto místico com um certo Davidão.
3
Personagem do famoso poema narrativo chinês A Balada de Mulan, que data possivelmente do século
VII.
3
A partir do cenário histórico do jaguncismo no sertão brasileiro (entre o final do
século XIX e as primeiras décadas do século XX), em meio às mudanças que a
embrionária modernização apresenta, o romance entrelaça temas importantes como o
amor, a vingança e a guerra, ao mesmo tempo em que evidencia a violência estrutural e
a desigualdade social que marcam a formação do país.
Conforme explica Yudith Rosenbaum, professora de Literatura Brasileira na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Riobaldo
centraliza a narrativa por meio da reconstituição/revista ao passado: “Pela palavra dita
ao outro, Riobaldo deseja entender o sentido de sua travessia, desde a paixão que
sentiu na pré-adolescência pelo amigo Reinaldo (que será mais tarde o jagunço
Diadorim, guerreando ao lado de Riobaldo), até os atos que o levaram à chefia do bando
do líder Joca Ramiro, pai de seu amado”.
À parte do enredo criativo e denso, a obra ainda se destaca pela singularidade da
escrita de Guimarães Rosa, que fez uso de todas as potencialidades do português e de
línguas estrangeiras para atingir um estilo particular – repleto de neologismos,
arcaísmos, estrangeirismos, aglutinações e novas construções linguísticas. Na entrevista
que concedeu ao crítico alemão Günter Lorenz, Guimarães Rosa explica que seu
método de escrita “implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de
nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-las a seu sentido
original”.
Essa trama fictícia de amor, ódio, violência, vingança, bem como embates
existenciais e espirituais é apresentada por Riobaldo (também conhecido pelos
codinomes Tatarana e, mais tarde, de Urutu Branco), um ex-jagunço e agora
próspero fazendeiro, que relata para um certo senhor (um interlocutor que nada diz e
apenas ouve o narrador-personagem) sobre sua vida de jaguçagem ao lado do amigo
Reinaldo/Diadorim e de outros membros do bando liderado primeiro por Joca Ramiro
(o pai de Diadorim) e depois por Medeiro Vaz, que seria sucedido por Marcelino
Pampa, Zé Bebelo e, por fim, pelo próprio Riobaldo.
O núcleo central dessa “estória” (termo cunhado por Rosa para se referir a uma
enredo fictício) é uma saga em busca de vingança: o bando de jagunços de que
Riobaldo faz parte se embrenha pelo sertão atrás de Hérmogenes (um homem tão mau
que é comparado ao diabo: “Esse Hermógenes – belzebu.”) e Ricardão. Riobaldo e
seus companheiros querem matar aqueles “dois judas traidores”, que planejaram a
cilada que resultou no assassinato de Joca Ramiro, o pai de Diadorim. Nessas páginas
poéticas, vertiginosas e violentas, aventura, tiroteio, morte, conflitos de interesse,
articulações políticas, os arranjos do “ethos4” da jaguçagem e o contato com os
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“Ethos” – termo de origem grega que deu origem ao vocábulo ética – diz respeito ao comportamento que
resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos ao ponto de o sujeito ou uma comunidade passar a
pontuar o que, dentro de um dado contexto, é visto como certo ou errado, bom ou mau, louvável ou
reprovável (ainda que isso se dê apenas em um ambiente social bastante específico, bem peculiar). Ethos
pode ser entendido, nesse sentido, como costume, ou, na sua realidade histórico-social, o princípio e
norma dos atos que irão plasmar os hábitos e práticas sociocomportamentais. Segundo o Prof. Dr. Flávio
Leal, autor de um rico ensaio sobre a novela A hora e a vez de Augusto Matraga (narrativa que fecha o
livro Sagarana, a obra inaugural de Guimarães Rosa), a origem etimológica de ethos “designa a morada
do homem (e do animal em geral)”. O ethos é a casa do sujeito social, e esse homem habita sobre a terra
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mistérios da vida dão ritmo e energia para a travessia existencial de homens e
mulheres, que são levados como por um rio caudaloso pelo “correr da vida” que
“embrulha tudo”, pois: “O senhor já sabe: viver é etcétera...”.
Publicado no mesmo ano em que Guimarães Rosa havia lançado Corpo de Baile,
GSV revela toda maestria do autor na articulação poética da linguagem e no
tratamento de temáticas metafísicas, comportamentais e morais do homem
sertanejo – que é uma metonímia de todos os homens, independente do contexto
cultural ou do período histórico em que esteja inserido afinal. Isso tudo se comprova
pelas colocações (aforismos ou considerações filosóficas) de Riobaldo sobre o conceito
de sertão: “O sertão está em toda parte” ou “Compadre meu Quelemém diz: que eu sou
muito do sertão? Sertão: é dentro da gente”. Assim, o sertão roseano é o campo onde se
desenrola a travessia humana em meio às vicissitudes existenciais de nossa
caminhada ou, como pontua, o personagem Zé Bebelo, esse “mundo à revelia”, isto é,
fora do controle humano: “‘... É, é o mundo à revelia!...’ – isso foi o fecho do que Zé
Bebelo falou.” Enquanto em Graciliano Ramos – autor de Vidas Secas [1938], outra obra
indicada para o Vestibular Tradicional da Unimontes – o sertão é marcado pela seca,
pelas disparidades sociais, revelando uma literatura claramente engajada com as causas
sociais; em Rosa o sertão é humano, mítico e transcendente.
Entre o tempo da enunciação (o presente onde se encontra o narrador Riobaldo
quando relata para um certo “senhor” o seu passado) e o tempo enunciado (o passado
referido: de sua infância à idade adulta, bem como os “causos” envolvendo outros
personagens), Riobaldo vai tecendo textualmente a sua travessia, cruzando com a
estória central da trama outras estórias paralelas. Essa conexão entre estórias dá a
GSV o caráter de narrativa em abismo ou narrativa em encaixe (como o clássico da
literatura oral árabe As Mil e Uma Noites, protagonizada por Sherazade) – isto é, uma
trama principal que vai se desdobrando em outras acontecimentos (como
pequenos contos, causos), como as “veredas” aludida pelo título do romance. Como
uma conversa informal, Riobaldo vai conduzindo o seu interlocutor como um rio, assim
como a vida vai nos conduzindo por seus cursos imprevisíveis – entre recuos e avanços
temporais do percurso narrativos.
Na condução narrativa de Riobaldo não interessa apenas os acontecimentos (o
factual, o visível, o explícito ao mundo exterior), mas a subjetividade dos indivíduos
envolvidos nesse fatos e os possíveis sentidos mítico-místicos-simbólicos dos
acontecimentos, pois como ele mesmo afirma o próprio Riobaldo: “Aprendi um pouco foi
com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso
inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa. Agora, neste dia nosso, com o senhor
mesmo – me escutando com devoção assim – é que aos poucos vou indo aprendendo a
contar corrigido”. Ou: “Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário
acolhendo-se ao recesso do ethos. Esse sentido de um lugar de estada permanente e habitual constitui a
raiz semântica que dá origem à significação do ethos como costume, esquema praxeológico durável, estilo
de vida e ação”. Em GSV, os jagunços têm o seu peculiar código de conduta – as noções de honra, justiça
– que nem sempre coaduna com as leis vigentes no país. Violentos, machistas, vingativos, cruéis, esses
jagunços criam uma espécie de mundo paralelo, onde o homem chega ao extremo de si mesmo.
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do que assim não seja. Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima –
o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe. Conto ao senhor é
o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei,
e que pode ser que o senhor saiba.” Entre a razão e a intuição/sensibilidade/senso
místico, Riobaldo – entre certezas, incertezas, bem como a espontânea (desmascarada)
e demasiadamente humana expressão de suas contradições e inseguranças (“O jagunço
Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quer ser. Deus esteja! ”) –
vai conduzindo o “senhor” e os leitores-ouvintes, pelo factual e também por algo que
transcende ao que é explícito, escancarado, conspícuo, ao olhar racional.
Segundo a Profª Drª Kathirn Holzermayr Rosenfield, um dos temas principais de
GSV é o da travessia, que “desdobra-se, desde o início, em três processos”: a travessia
geográfica; a travessia literária e a travessia da leitura/audição. Na primeira se liga à
aventura de Riobaldo pelo Sertão de Minas, o plano diegético, a “estória em si”. Na
segunda, está a experiência estética, a experiência vivida que se converte em
experiência discursiva, o que se conta e o como se conta. Sobre essa segunda
travessia, Rosenfield pontua: “Nesta travessia, o seguinte problema surge diante do
autor: Qual é o discurso que dá conta da realidade? O do homem simples e ‘ignorante’, o
do poeta ou do homem erudito, ‘instruído’ e lido?”. Riobaldo, para além de estereótipos
reducionistas (que idealizassem ou discriminassem o homem do sertão), é uma figura
intrigante e complexa, que transcende ao regionalismo pitoresco, pois, mescla o popular
e o erudito, o racional e o místico (isto é a crendice no sobrenatural e a formulação
racionalista), o olhar para as realidade material/visível/tangível e a percepção metafísico,
envolvendo, assim, o leitor/ouvinte em sua experiência de vida e de escrita/discurso.
“Essa coexistência”, defende Rosenfield, “de modos heterogêneos de expressão,
em um mesmo romance, cria a necessidade de um trabalho ativo de reconciliação e de
recomposição de fragmentos muitas vezes contraditórios: o que diz a teologia é
frequentemente contestado e negado pela filosofia, o cientista considera inaceitável as
formulações do poeta e assim por diante”.
Já na terceira travessia, a travessa da leitura/audição, o leitor está literalmente
presente dentro do romance por meio da figura do “senhor”, o interlocutor silencioso de
Riobaldo. Esse interlocutor – que é de fora, que não pertence ao sertão, que vem da
cidade grande, da cultura uniformizadora do ambiente urbano – tem a capacidade não
apenas de compreender a realidade apresentada por Riobaldo, mas também
compreender o enredamento social, existencial e metafísico significante que está à sua
disposição, o que torna essa travessia significativa não só para o sertanejo, mas todo e
qualquer homem.
Assim, Rosa cria o seu sertão pessoal (tanto na linguagem quanto na realidade
apresentada) e mítico: o “Grande Sertão” que é o palco das travessias humanas, dos
conflitos sociocomportamentais, existenciais, identitários e místicos, da complexidade do
ser. E esse “Grande Sertão”, após os dois-pontos do título (um convite à reflexão sobre o
que virá depois deles), é também marcado pelas “veredas”, as trilhas sinuosas,
caminhos, atalhos, que serpenteiam o sertão, que reforça a complexidade de nossas
caminhada e de nosso caráter. Com isso Rosa apresenta o grande painel da caminhada
humana em meio a temáticas como amor, vingança, a relação do homem com os
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mistérios existenciais e metafísicos (Deus, o Diabo, o Destino, o conflito entre fé e
razão, entre outras assuntos místicos), a manifestação do lado mau/perverso do ser
humano, as vicissitudes da vida, preconceito, interditos sociais, violência,
condição da mulher em uma sociedade dominada pelo machismo/patriarcalismo,
entre outros.
Nessa narrativa nenhum elemento enredístico (os acontecimentos e os
personagens) ou construção frasal (o estilo da escrita) está ali à toa, pois nada é
aleatório, nada é gratuito na prosa roseana. Por conta disso, o leitor deve estar sempre
atento a tudo o que está escrito e como está escrito nas páginas de GSV. Destarte,
o som das palavras, a grafia com que alguns vocábulos são registrados, o uso inusitado
de certos sinais de pontuações, as construções sintáticas nada convencionais, os
neologismos, tudo está casado com o sentido do texto. Arquitetado de forma magistral
por um estilista de rara grandeza, esse romance foi concebido e executado nos mínimos
detalhes, com a perícia de um verdadeiro artesão da palavra. Em carta endereçada a
seu tradutor alemão, o escritor Curt Meyer-Clason, Rosa dissera que “quase toda frase
minha tem de ser meditada”, pois até mesmo aquelas frases “aparentemente curtas,
simplórias, comezinhas, trazem em si algo de meditação e aventura”.
Entre o narrativo, o lírico e o dramático, esse romance poético, violento e
comovente é um mergulho no Brasil Profundo – o Brasil das Gerais –, que é também
um Brasil Universal. Aqui mergulhamos em um rio em transe, revolto e liberto, capaz de
unir em suas águas a dinâmica caótica de um mundo diabolicamente dividido em
margens antagônicas (o mundo do bem e do mal, de Deus e do Diabo), Rio-baldo
emerge como portador da energia poética que move o Ser, a corrente contínua da
essência da ação: a poiesis (poesia). A turbulência discursiva de Riobaldo é motivada,
sobretudo, pelas recorrentes lembranças dos sofridos tempos de jagunço. Nas memórias
do presente fazendeiro Riobaldo, inúmeras dúvidas ainda perfazem imperiosa morada.
Nas veredas do Grande Sertão, o narrador é lançado numa busca catártica pelo sentido
da vida e dos próprios atos. Por meio de profundo e conturbado processo especulativo
de apreensão da realidade, o jagunço transforma continuamente a antiga visão de si –
isto é, a visão de seu mundo interior e essencial – e, consequentemente, a visão de seu
mundo exterior e existencial.
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suicídio (1954) de Getúlio Vargas trazem muitas consequências e mudanças políticas e
sociais. O desenvolvimento econômico e a democratização política marcam um novo
período histórico. Juscelino Kubitschek assume a presidência em 1955, incentivando as
indústrias automobilística, siderúrgica e mecânica e iniciando a construção de Brasília,
que seria inaugurada em 1960, com a eleição de Jânio Quadros como presidente da
República.
Nesse período, novas tendências artísticas surgem na vida cultural brasileira, no
cinema, música, teatro, artes plásticas e literatura. Especificamente na arte literária, a
chamada “Geração de 45” renova os meios de expressão a partir de pesquisas em torno
da linguagem – garantindo sofisticação estética, impressionante e incontestável riqueza
estilística ao que era oferecido ao público. Além disso, os autores dos anos 1940
prolongaram o tratamento de questões sociopolíticas e das reflexões psicológicas da
literatura da década anterior, bem como intensificaram ainda o viés existencialista das
obras. As produções apresentam, assim, uma realidade nacional com personagem que
vivenciam situações universais. O traço formalizante caracteriza a geração de vários
poetas da época, com destaque para João Cabral de Melo Neto e, mais tarde, as
propostas da Poesia Concreta, capitaneada por Haroldo Campos, Augusto de Campos e
Décio Pignatari. Ainda dentro da poesia surgem movimentos como o Neoconcretismo, a
Poesia Práxis e o Poema Processo. Também dentro da produção lírica, surgem os
trabalhos de poetas formalistas como Gilberto Mendonça Telles, Ledo Ivo, Péricles
Eugênio da Silva e Ramos, Darcy Damasceno, entre outros.
Quanto à produção em prosa, os leitores brasileiros conhecem a literatura
intimista e introspectiva de Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles; os contos ousados
de nomes como Dalton Trevissan e Murilo Rubião; e o regionalismo universalista de
João Guimarães Rosa. Segundo professora Claudia Campos Soares, no ensaio O olhar
de Miguilim, a obra de Rosa, que começa a ser elaborada ainda na década de 30,
desempenha um papel muito importante em uma geração que se voltava para
experimentações estéticas e na qual o meio intelectual buscava uma atitude crítica
diante da realidade nacional e também de formas mais adequadas para representá-la.
Mas não se trata aqui, em hipótese alguma, de querer rotular a obra de Rosa
associando suas características estéticas ou temáticas aos traços formais e ideológicos
das obras de outros autores dessa mesma geração. Sabemos que é uma postura
reducionista e equivocada associar o termo “geração” à mesma ideia de “escola literária”
(relacionada aos autores dos períodos/correntes literárias anteriores ao Movimento
Modernista iniciado em 1922), que foi superada desde as novas propostas estéticas e
produções dos primeiros modernistas. Isso porque, pensando principalmente na
expressão “Geração de 45” ou no termo “Pós-Modernismo” (empregado com recorrência
pelos estudiosos e artistas a partir da segunda metade do século XX), trata-se de
denominações genéricas que servem apenas como denominações didáticas ou meras
balizas cronológicas, empregadas muito mais por questões de ordem historiográfica do
que por ser referência a uma possível matriz doutrinária que viria a delimitar ou
determinar as características deste ou daquele autor.
Sobre a ideia de “Geração de 45”, na qual inseriam a sua produção literária, o
poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, citando o espanhol Ortega y Gasset,
afirmou, certa vez, em um entrevista, que “pertencer a uma geração é um fenômeno
biológico, [pois] não se pode mudar o ano do nascimento”. Para Cabral “uma geração é
menos o comportamento de seus membros do que o condicionamento sociocultural que
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todos sofrem ao se interessarem por literatura”. O mesmo Cabral, em uma série de
quatro artigos englobados sob o título de “A Geração de 45”, publicado na década de 50,
afirma que, por mais que muitos autores insistissem, não havia, naquele momento, um
direcionamento estético ou temático claro que apontasse para unidade da mesma ordem
na produção dos anos 40 e 50. Ou, como ironiza o poeta Gilberto Mendonça Telles
(escritor também associado a essa geração) no texto que serve de epígrafe para este
tópico, essa denominação de “Geração de 45” é uma “porta sem trinco”.
Com uma obra multifacetária e ímpar, Rosa vai além dos moldes de uma época,
ou de qualquer rótulo que queiram fechar o amplo escopo de sua prosa. É como
podemos identificar na carta que o escritor mineiro escreve para o amigo e crítico
literário João Condé sobre o processo de composição de Sagarana (1946): “Rezei, de
verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem
existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas,
tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições — no tempo
e no espaço. Isso, porque: na panela do pobre, tudo é tempero. E, conforme aquele
sábio salmão grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe. Aí,
experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. De certo que eu amava a
língua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas como a bela amante e
companheira. O que eu gostaria de poder fazer (não o que fiz, João Condé!) seria
aplicar, no caso, a minha interpretação de uns versos do poeta francês Paul Éluard: “... o
peixe avança n’água, como um dedo numa luva”... Um ideal: precisão, micromilimétrica.
E riqueza, oh! riqueza... Pelo menos, impiedoso, horror ao lugar-comum; que as chapas
são pedaços de carne corrompida, são pecados contra o Espírito Santo, são taperas no
território do idioma”.
Desse modo, partindo dos referenciais regionalistas, fruto de suas vivências na
infância e durante as pesquisas feitas em 1952, no seu “Grande Sertão”, Guimarães
Rosa cria um universo original e inventivo, que não restringe ao regionalismo rasteiro de
muitos dos seus contemporâneos, dando uma dimensão universalista a esse “mundo-
sertão”, que se torna um espaço (o lugar utópico – ou melhor, o “não-lugar”) mítico,
fabuloso, lírico, mágico e abismal, longe das uniformizações do meio urbano. Como
afirma na carta escrita ao crítico e amigo João Condé, Rosa confirma que poderia
ambientar seus enredos em qualquer região do Brasil ou do mundo – pois suas
abordagens de questões comportamentais ou existenciais (como afirmamos no tópico
introdutório) são universais –, mas que optou pelo sertão mineiro, pois ali, exposto aos
extremos da vida, o homem se mostra como ele realmente é, em seus extremos
comportamentais ou existenciais, abertos ao mundo, às experiências sociais e
metafísicas.
A prosa de Guimarães Rosa, iniciada ainda nos anos 1930 (mas só revelada ao
grande público a partir dos anos 1940), é o melhor exemplo de uma literatura que
explora o local e, simultaneamente, o cosmopolita. Tanto em seus contos quanto em
suas novelas e em seu romance GSV, Rosa constrói personagens típicas do interior do
Brasil, mas que também possui dilemas metafísicos que qualquer pessoa de diversas
partes do mundo e de várias épocas também teria. Nas palavras do próprio Guimarães
Rosa, em entrevista a uma rede de TV alemã, a obra combina o “fundo telúrico [a
referência ao sertão mineiro] real” de uma estória com “uma transcendência que, visando
até o metafísico, seria quase uma espécie de um Fausto sertanejo”. E apesar dos dados
verossímeis sobre o sertão mineiro (fauna, flora, costumes, linguagem, geografia,
topônimos e zoônimos típicos da região), o que está em jogo, segundo Marcio Moraes, é
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a apresentação de personagens aparentemente rudes,
simples sertanejos, vivenciando em si conflitos que
assolam todos os seres humanos, os “grandes dramas
metafísicos e existenciais da humana”, indo do realístico
ao fantástico, do arcaico ao moderno.
2.2 Enredo:
“O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com
as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha
armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...” (In:
Grande Sertão: Veredas – J. Guimarães Rosa)
10
[1] Primeira Sequência:
(I) Início do narrar/tecer:
A abertura do romance caracteriza-se pela fala
evocativa e por permanentes deslizes associativos. Riobaldo
parece estar tateando o território a ser trilhado, construindo
um tecido narrativo que foge às convenções narrativas
racionais. Em sua propriedade próxima ao rio Urucuia (no
Noroeste de Minas), ele vive com sua esposa Otacília sua
“barranquice” (velhice). Ali ele é recebido pelo “senhor” a
quem contará a estória que se seguirá.
Durante mais de cinquenta páginas, em lugar de um
enredo articulado cronologicamente, o narrador fornece um
inventário de episódios, aparentemente, fora de lugar, ou
seja, sem pontos de referências fixos. Nesse caos de
fragmentos (memórias, reflexões, confissões, contradições e
hesitações) de uma estória-por-vir está inserida uma série de
onzes causos – pequenos relatos que envolvem terceiros
(outras personagens que não participam da trama central) –
que se ordenam segundo as convenções narrativas habituais. A justaposição desses
dois modos do contar – o do aparente caos das divagações reflexivas de Riobaldo e o da
ordem convencional dos causo – aponta para a pergunta: “Qual a maneira certa de
narrar?”. Sem que haja uma resposta definitiva, Riobaldo vai seguindo o seu
narrar/tecer. Riobaldo faz referência a Deus e a outros personagens (Joca Ramiro, Zé
Bebelo, Medeiro Vaz, Selorico Mendes) que remetem à figura paterna, em relação a qual
o protagonista parece apresentar algum tipo de carência afetiva pelo fato de não ter sido
criado por seu genitor, seu pai biológico.
Durante essa primeira sequência, o narrador fala sobre si mesmo (tanto no
passado mais remoto quanto no momento em que está vivendo enquanto narra) e reflete
sobre as vicissitudes da vida (os mistérios sobre os quais não temos controle e nem
sempre temos pleno conhecimento de seus significados), sobre Deus, sobre a
inexistência (ou não) do Diabo, sobre o conceito que definiria o lugar-Sertão (“Esses
gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou
pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.”) e a manifestação do
mal na vida e nas ações das pessoas.
O Grande Sertão é uma terra aberta ao diverso, um espaço que – alheio a
determinadas leis que regem a vida nos grandes centros urbanos – é palco de situação
animalescas, violentas, comoventes, trágicas, enfim, situações-limite: “O senhor tolere,
isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a
fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os
de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar
sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze
léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus,
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arredado do arrocho de autoridade”. Mas também é nesse Grande Sertão que os
personagens se mostram naquilo que realmente são, sem máscaras/poses, o que os
torna favorável a seres protagonistas de verdadeiras alegorias sobre o caráter humano.
Nesse relatar impreciso, Riobaldo faz referências às crendices populares,
principalmente no tocante às ações do Diabo (o demo, o Coisa-Ruim, o Rincha-Mãe, o
Pai do Mal, o Tisnado, o Côxo, o Arrenegado, o Pé-Preto, o Não-sei-que-diga, O-que-
nunca-se-ri, entre outros epítetos). Nesses momentos, Riobaldo transita entre o
ceticismo crítico (“Não tenho abusões.”) que colocar em xeque as superstições
exageradas do povo, e um certo temor, um medo (vocábulo que aparece pelos menos
treze vezes nessa Primeira Sequência e que forma um sugestivo anagrama com o termo
“demo”: o demo e medo revelam a matéria-vertente de parte da trama) íntimo e talvez
inconsciente, dessa entidade cuja existência ele questiona: “O diabo existe e não existe?
Dou o dito.”
Evocando à vida de jagunçagens, Riobaldo vai fazendo referência às
personagens que fazem ou fizeram parte de suas vivências: Diadorim, Zé Bebelo, Joca
Ramiro, Medeiro Vaz, Hermógenes (o homem-diabo, o monstro, o “belzebu”), Otacília (a
esposa de Riobaldo, que se faz presente tanto nos relatos do passado quanto nas
referências ao presente do narrador), o Padrinho Selorico Mendes, Bigrí (sua mãe), o
Compadre Quelemém (que mora longe da residência do narrador, na Jijujã, Vereda do
Buriti Pardo), entre outras. O interessante é que, durante esses primeiros relatos, não
sabemos o nome do narrador, que só será apresentado quarenta páginas depois do
início da narrativa, quando Diadorim vai dizer: “Riobaldo, escuta, pois então: Joca
Ramiro era o meu pai...”. Ou seja – assim como em A Hora da Estrela, de Clarice
Lispector –, o nome do sujeito está atrelado ao diálogo/encontro com o outro.
Por meio das onze estórias que, nessa primeira sequência, cruzam-se com a
estória principal, Riobaldo retrata situações que ilustram os mistérios metafísicos da vida
(situações que fogem a explicações racionais), as contradições do comportamento
humano e, principalmente, as várias manifestações da crueldade insana de homens e
mulheres (obra do demônio ou simples revelação da perversidade contida em nós?) que
mostram as monstruosidades a que os seres humanos são capazes de protagonizar:
# o causo do Aleixo: O Aleixo era um homem cruel que matava sem qualquer razão
justificável (chegou a matar um velho mendigo pelo simples prazer de tirar a vida alheia).
No entanto, esse homem se redime após os filhos adoecerem e ficarem cegos –
possivelmente punição do destino pela maldade do pai.
# o causo de Pedro Pindó e do menino Valtei: Pindó e sua esposa eram pessoas boas
que tiveram um filho, o Valtei, que era extremamente perverso: “– ‘Eu gosto de matar...’ –
uma ocasião ele pequenino me disse.”. Antes permissivos, os pais passam a castigar o filho,
impondo-lhe punições que visam a salutar regeneração. Acontece que os castigos não
geraram o efeito esperado e o jovem continuou sendo o mesmo rapaz maligno que
sempre fora. E aí, em vez de sanarem esse mal, os pais passam a sentir um sádico
prazer em maltratar o filho. Nesse momento, Riobaldo, que diz beber de várias religiões
(“No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco
ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é
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pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as
preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque.”), resgata as crenças
de seu compadre Quelemém para dizer que, talvez, a maldade de Valtei, fosse resultado
de pecados das vidas passadas dos pais.
# o causo do delegado Jazevedão: O delegado Jazevedão cruza no caminho de
Riobaldo durante uma viagem de trem que o protagonista fizera para “Sete-Lagoas”. O
tal Jazevedão era cruel no seu tratamento com jagunços (como Riobaldo já fora) e
demais criminosos. Riobaldo chega a desejar matar o tal Jazevedão, no entanto, ele
mesmo reconhece que o tal delegado era um “mal necessário” em um ambiente tão cruel
como aquele em que vivera: “Tanto, digo: Jazevedão – um assim, devia de ter,
precisava? Ah, precisa. Couro ruim é que chama ferrão de ponta. Haja que, depois –
negócio particular dele – nesta vida ou na outra, cada Jazevedão, cumprido o que tinha,
descamba em seu tempo de penar, também, até pagar o que deveu – compadre meu
Quelemém está aí, para fiscalizar. O senhor sabe: o perigo que é viver... Mas só do
modo, desses, por feio instrumento, foi que a jagunçada se findou.”
# o causo de Joé Cazuzo: Companheiro de Riobaldo, o jagunço Joé Cazuzo e seus
comparsas trocavam tiros com as tropas do Coronel Adalvino e seus aliados (liderados
pelo Tenente Reis Lemes) quando viu a aparição da Virgem Maria (– “Eu vi a Virgem
Nossa, no resplandor do Céu, com seus filhos de Anjos!...”). Em meio a um violento
tiroteio, Cazuzo se ajoelhara ao chão em gesto de devoção à santa. Curiosamente, os
seus inimigos – os soldados a serviço do coronel Adalvino – respeitaram o agora devoto
Joé Cazuzo e não quiseram mata-lo. Segundo Riobaldo, Cazuzo se tornara “fabricador
de azeite e sacristão, no São Domingos Branco”.
# o causo de Firmiano: Já o Firmiano (conhecido como Piolho-de-Cobra) fora diferente
do Joé Cazuzo. Firminiano contraíra uma grave doença que o fizera “desarrear da
jaguçagem”. No entanto, nem a lazeira (uma ação punitiva de Deus que o pudesse levar
à redenção espiritual, ao arrependimento de seus pecados) nem a “aposentadoria” da
vida de crimes não tiraram dele o instinto assassino: “Pois, uma ocasião, algum esteve
no rancho dele, no Alto Jequitaí, depois contou – que, vira tempo, vem assunto, ele
dissesse: ‘Me dá saudade é de pegar um soldado, e tal, pra uma boa esfola, com faca
cega... Mas, primeiro, castrar...’ O senhor concebe?.”
# o causo da moça que faz milagres: Uma moça do Barreiro-Novo desistira de comer e,
por dia, só ingeria três gotas de água de uma pia benta. Daí que ela começou a fazer
milagre, ao que vinha gente de todos os cantos para ser curado por ela. Segundo
Riobaldo, muitos dos que ali apareciam (“[...] milhares desses, para pedir cura, os
doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis formas, feridentos, os
cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo:
criaturas que fediam.”) não queriam virtudes espirituais, apenas benefícios materiais:
“[...]desesperavam de fé sem virtude – requeriam era sarar, não desejavam Céu
nenhum”. Tudo acabou, porém, quando o delegado regional mandou internar a moça em
um hospício. Durante, esse relato, Riobaldo deixa transparecer seus preconceitos que
não condiziam com os valores virtuosos que ele queria alcançar: “Senhor enxergasse
aquilo, o senhor desanimava. Se tinha um grande nojo. Eu sei: nojo é invenção, do Que-
NãoHá, para estorvar que se tenha dó.”
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# o causo do casamento entre primos carnais: Essa sétima estória é exemplo dos
ímpetos animalescos que levam os homens a atitudes extremas e também das possíveis
punições pelo rompimento de certos limites morais. Em Rio Borá, um casal de primos
carnais se casaram e os quatro filhos do casal nasceram apresentando más-formações:
“[...] vieram nascendo com a pior transformação que há: sem braços e sem pernas, só os
tocos... Arre, nem posso figurar minha idéia nisso!”
# o causo do incesto entre mãe e filho: O oitavo causo também fala de transgressão
moral. Um filho resolve se casar com a própria genitora e acaba se vingando do Padre
que não consentira com aquele matrimônio proibido. Segundo as crenças dos locais o
fogo-fátuo que emergia de um “brejo matador” era sinal de uma espécie de manifestação
da ira divina por conta do crime cometido contra o sacerdote: “[...] que o mundo ia se
acabar naquele ponto, causa de, em épocas, terem castrado um padre, ali perto umas
vinte léguas, por via do padre não ter consentido de casar um filho com sua própria mãe.
A que, até, cantigas rimaram: do Fogo-Azul-do-Fim-do-Mundo. Hê, hê?...”
# o causo de Rudugério Freitas: Esse nono causo revela o estranho “ethos” do sertão e
dos jagunços. Rudegério Freitas obrigou um “filho dele” a matar um outro filho – isto é,
o pai obrigou um de seus filhos a cometer fratricídio. No entanto, em vez de executar a
ordem paterna, um irmão se aliou ao outro e juntos resolveram matar o pai, que foi
assassinado a golpes de foice. Estranhamente, antes de matarem seu genitor, os jovens
enfeitaram suas foices com cordões de embira e flores em homenagem à Virgem Maria,
para que Nossa Senhora lhes perdoasse o pecado que iriam cometer. Os jovens foram
capturado pelo bando de jagunços comandados por Zé Bebelo e foram julgados. No
entanto, Zé Bebelo entendeu que os rapazes deveriam ser absolvidos já que mataram
um pai que queria a morte de um deles.
# o causo de Davidão e Faustino: Davidão e Faustino [possivelmente numa referência ao
personagem Fausto] eram jagunços do bando de Antônio Dó (conhecido como o
Lampião das Gerais). Como Davião desenvolvera um terrível medo de morrer, ele
resolvera fazer um pacto – em forma de feitiçaria – com o companheiro Faustino:
Davidão daria dez contos ao Faustino para que este morresse em lugar daquele, caso o
destino quisesse que Davidão morresse primeiro: “[...] o Davidão dava a ele dez contos
de réis, mas, em lei de caborje – invisível no sobrenatural – chegasse primeiro o destino
do Davidão morrer em combate, então era o Faustino quem morria, em vez dele”.
Quando Riobaldo contara esse curioso causo para um rapaz da cidade grande, este
resolver inventar um final impactante para essa história: durante um duelo travado entre
Davidão e Faustino, este, tentando ferir Davidão com uma faca, acabava,
acidentalmente, ferindo mortalmente a si mesmo: “A fino, o Faustino se provia na faca,
investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão
dele, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia...” Apesar de apreciar aquela
invencionice, Riobaldo afirma que Davidão e Faustino abandonaram a jagunçagem e
foram viver uma vida tranquila como sitiantes: “Quem sei. Soube somente só que o
Davidão resolveu deixar a jagunçagem – deu baixa do bando, e, com certas promessas,
de ceder uns alqueires de terra, e outras vantagens de mais pagar, conseguiu do
Faustino dar baixa também, e viesse morar perto dele, sempre. Mais deles, ignoro. No
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real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar
por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso...”
# o causo do rapazinho do Nazaré: Um rapaz do povoado de Nazaré assassina um
homem e o pai fica feliz com o homicídio cometido pelo filho, pois aquele gesto, espécie
de rito de passagem, garantia ao pai a existência de um filho que poderia defendê-lo:
“Matou, correu em casa. Sabe o que o pai dele temperou? – ‘Filho, isso é a tua
maioridade. Na velhice, já tenho defesa, de quem me vingue...’”. Diferente de Jesus
Cristo, que pregava o amor, o perdão e a longanimidade, esse rapaz encarna o ódio, a
insanidade assassina.
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Ao falar de Nhorinhá, Riobaldo também apresenta as primeiras informações sobre
Otacília (a mulher com quem ele iria se casar e a quem daria a bonita pedra que havia
trazido de Araçuaí para dar para Diadorim – ver segmento “[VI] Ataques executados pela
polícia e pelos coronéis da região contra o bando de Medeiro Vaz”). Como
descobriremos mais à frente, os fatos referentes à passagem de Riobaldo pela
Aroeirinha (onde ele estivera com Nhorinhá) são posteriores à estadia do narrador na
Fazenda Santa Catarina (ver segmento “[XV] Riobaldo e Otacília”), onde o protagonista
conhecera Otacília.
Tempos depois, Riobaldo receberá uma carta escrita por Nhorinhá, a qual só
chegaria nas mãos do protagonista oito anos depois de ter sido enviada pela filha de Ana
Duzuza. Na ocasião, em que recebera aquela missiva, o narrador-personagem já estava
casado com Otacília.
Na ocasião, Riobaldo conhece Ana Duzuza, a mãe de Nhorinhá. Ana Duzuza filha
de ciganos que tinha fama de ser vidente. Durante sua conversa com Riobaldo, Ana
Duzuza revela que Medeiro Vaz estava querendo atravessar o Liso do Sussuarão, região
desértica, adversa, de difícil acesso e sobrevivência, para chegar na região do Alto
Carinhanha (Bahia), onde o Hermógenes possuía uma propriedade. Riobaldo fica irritado
com aquela novidade, pois Medeiro Vaz não lhe informara sobre aqueles planos.
Quando o protagonista conta para Diadorim sobre o plano de Medeiro Vaz,
Riobaldo toma conhecimento de que Diadorim não só já sabia daquela decisão como
fora ele mesmo quem aconselhara Medeiro Vaz a aventurar no Liso do Sussuarão.
Medeiro Vaz concordara com a sugestão de Diadorim e estava decidido a concretizar o
plano. Isso deixa Riobaldo bastante aborrecido, sentindo-se enciumado pela relação de
confiança entre o amigo Diadorim e pelo líder do bando: “E veja: eu vinha tanto tempo
me relutando, contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se
pertence gostar; e, agora aquela hora, eu não apurava vergonha de se me entender um
ciúme amargoso. Sendo sabendo que Medeiro Vaz depunha em Diadorim uma
confiança muito maior do que em nós outros todos, de formas que com ele externava os
assuntos”.
Ao tomar conhecimento da atitude de Ana Duzuza, o primeiro intento de Diadorim
foi o de matar aquela “leleira” (bisbilhoteira e fofoqueira), que poderia entregar aqueles
planos para outras pessoas, inclusive, para inimigos do bando. Possivelmente, o desejo
de matar Duzuza também era motivado pelo ciúmes que Diadorim sentia de Nhorinhá,
com Riobaldo. A princípio Riobaldo concorda com o intento do amigo (“As vontades de
minha pessoa estavam entregues a Diadorim. A razão dele era do estilo acinte. Só previ
medo foi de que ele falasse para eu mesmo ir voltar lá, por minhas próprias acabar a
Ana Duzuza. Eu não sojigava tudo por sentir.”), mas quando ele entende que a morte da
mãe incluiria também a morte da filha (a meretriz de quem Riobaldo tanto se afeiçoara),
o protagonista dissuade Diadorim do plano homicida. “E veja: eu vinha tanto tempo me
relutando, contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se
pertence gostar; e, agora aquela hora, eu não apurava vergonha de se me entender um
ciúme amargoso.” Ou: “Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por
debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele – os gostares...”
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Nessa fase já sabemos do afeto que Riobaldo nutre por Diadorim, um amor que
parece extrapolar o mero afeto fraternal. Ele resiste a esse sentimento, pois a
homossexualidade era vista como algo vil (diabólico, coisa do Tinhoso), um
comportamento reprovável, naquele contexto social. Entre as referências ao presente e
as lembranças do passado, Riobaldo diz: “De mim, pessoa, vivo para minha mulher, que
tudo modo-melhor merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me
auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também –
mas Diadorim é a minha neblina... Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o
Tinhoso; chega.”
Diadorim parece corresponder ao mesmo tipo de sentimento que Riobaldo nutria
por ele. No entanto, assim como Riobaldo ele não se entrega àquele amor considerado
proibido. E a resistência e o desejo de se entregar àquele estranho sentimento
perseguirá o protagonista por grande parte da trama como um intenso conflito interior.
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cumprir essa missão. Era de se esperar que Riobaldo escolhesse o amigo Diadorim,
mas o narrador-protagonista (talvez para negar a si mesmo a existência daquele
sentimento visto como proibido ou para não levantar maliciosas suspeitas entre os
jagunços ou ainda por um infantilidade estúpida) escolhe Sesfrêdo: “Por que era que eu
estava procedendo à-toa assim? Senhor, sei? O senhor vá pondo seu perceber. A gente
vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro
galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos
assombros...”. No momento em que Riobaldo se despede de Diadorim, o narrador é
tomado por sentimentos contraditórios, entre os quais o de angústia por ter que se
afastar do amigo. “Despedir dá febre”.
(V) Missão de Riobaldo e Sêsfredo: Por meio do jagunço aliado, o João Goanhá,
Riobaldo toma conhecimento de que alguns companheiros foram presos, outros mortos
e outros estavam fugidos pelo sertão: “Era para vir alguém, quem veio foi João Goanhá,
próprio. E as descrições que deu foram de todas as piores. Só Candelário? Morto em
tiroteio de combate, metralhadoras tinham serrado o corpo dele, de esguelha, por riba da
cintura. O Alípio, preso, levado para a cadeia de algum lugar. Titão Passos? Ah,
perseguido por uma soldadesca, tivera de se escapar para a Bahia, pela proteção do
Coronel Horácio de Matos. Só mesmo João Goanhá era quem ainda estava.
Comandava saldo de uns homens, os poucos. Mas coragem e munição não faltavam. –
‘E os Judas?’ – perguntei, com triste raciocínio: por que era que os soldados não
deixavam a gente em paz, mas com aqueles não terçavam? – ‘Se diz que eles têm uma
proteção preta...’ – João Goanhá me esclareceu: – ‘O Hermógenes fez o pauto. É o
demônio rabudo quem pune por ele...’”
(VI) Ataques executados pela polícia e pelos coronéis da região contra o bando de
Medeiro Vaz: Ao lado de João Goanhá e seus homens, Riobaldo Sesfrêsdo enfrentam
os ataques de policiais da região: “Mas não pudemos. Mal a gente se tocou, para a
Cachoeira do Salto, e esbarramos com tropa de soldados – tenente Plínio. Foi fogo.
Fugimos. Fogo no Jacaré Grande – tenente Rosalvo. Fogo no Jatobá Torto – sargento
Leandro. Volteamos. Sobre aí, me senti pior de sorte que uma pulga entre dois dedos.
No formato da forma, eu não era o valente nem mencionado medroso. Eu era um
homem restante trivial.”
Fugindo dos inimigos, Riobaldo e Sesfrêdo vão parar no Córrego Cansação,
próximo à Araçuaí, onde um doutor – que se dizia ateu – trabalhava com extração de
minério. Trabalhando para o tal o doutor, aqueles desertados ficam por um tempo
naquela região. É ali que Riobaldo encontra a pedra (que será primeiro identificada como
topázio, depois como ametista e também por safira) que ele planeja dar para Diadorim.
Nesse momento, Riobaldo se lembra de sua infância com a mãe Bigrí, do
padrinho Selorico Mendes (com quem ele moraria depois da morte de Bigrí), do alemão
identificado como Emiliano Wuspes (comerciante que viajava pelo sertão com seus
produtos e que é referido por outros nomes pelo narrador: Vupes, Wúpsis ou Vupses),
de seus namoricos (como a Miosótis e a Rosa’uarda – filha de um comerciante turco –
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com quem Riobaldo se iniciara sexualmente), todos personagens com quem Riobaldo
conviveu na época em que viver entre a Fazenda São Gregório, do Selorico Mendes, e
Curralinho (ver segmento “[X] A formação escolar de Riobaldo e encontro com Joca
Ramiro” na Segunda Sequência).
(VII) Morte de Medeiro Vaz e a liderança de Marcelino Pampa: Riobaldo (que, nessa
época, é também referido pelo codinome de Tatarana [zoônimo da lagarta-de-fogo])
retoma para o bando dos “medeiros-vazes”. Quando reencontra os companheiros,
Riobaldo toma conhecimento da morte de Medeiro Vaz, que falecera de causas naturais.
A partir daí, e por um curto espaço de tempo, quem se exerceria a função de líder do
bando seria o Marcelino Pampa, o mais velhos entre os jagunços. No entanto, um
momento de tensão antecede essa escolha.
Inicialmente, o nome de Riobaldo é cogitado para ser o chefe em lugar de Medeiro
Vaz, mas o protagonista se recusa a aceitar aquela incumbência. Logo em seguida,
Diadorim se apresenta para suceder ao comando de Vaz. Riobaldo discorda e se
prepara para matar quem resolvesse discordar dele: “Num nu, nisto, nesse repente,
desinterno de mim um nego forte se saltou! Não, Diadorim, não. Nunca que eu podia
consentir. Nanje pelo tanto que eu dele era louco amigo, e concebia por ele a vexável
afeição que me estragava, feito um mau amor oculto – por mesmo isso, nimpes nada,
era que eu não podia aceitar aquela transformação: negócio de para sempre receber
mando dele, doendo de Diadorim ser meu chefe, nhem, hem? Nulo que eu ia estuchar.
Não, hem, clamei – que como um sino desbadala”.
Para impor-se, Tatarana feriria mortalmente qualquer um que o afrontasse,
menos, obviamente, o amigo Diadorim: “Torci vontade de matar alguém, para pacificar
minha aflição; alguém, algum – Diadorim não – digo. Decerto isso em mim eles
perceberam. Os calados.”). No entanto, todos cedem para a decisão de promover
Marcelino para tal missão.
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(IX) O garoto Riobaldo, o Menino e a travessia do Rio São Francisco:
Opera-se, então, na narrativa um extenso Flashback/Analepse: Riobaldo resgata
sua infância pobre ao lado da mãe, a dona Bigrí. Riobaldo não conhecera o pai. Ele e
sua mãe viviam em terras alheias, na Serra das Maravilhas, na propriedade que
pertencia aos Guedes. Depois se mudaram para o território baixio do Sirga. Ali, aos
quatorze anos, Riobaldo contraíra uma doença e sua mãe fizera uma promessa, cuja
paga carecia de dinheiro. Para cumprir essa promessa (que incluía a celebração de uma
missa e o despacho de uma cabaça com dinheiro pelo rio São Francisco acima até
chegar ao Santuário de Bom Jesus da Lapa, na Bahia), o garoto Riobaldo precisou pedir
esmola pela região onde morava.
E é justamente nessa época que Riobaldo conhece o Menino, que, mais tarde, será
identificado como Diadorim. Primeiro, o tal garoto é referido como “um menino”
(desconhecido: um substantivo comum acompanhado de um artigo indefinido); depois,
ele é tratado como “o menino” (substantivo comum que é antecedido por um artigo
definido, expressando uma maior valorização desse garoto se comparada à nomeação
anterior); e, por fim, ele se torna “o Menino” – que, por mais que não tenha um nome
próprio que sacramente sua individualização (seu status de “ser especial”), singulariza o
garoto em questão na vida do narrador. Como saberemos mais adiante (ver segmento
“[XI] Riobaldo e Zé Bebelo e o reencontro com o Menino”) esse Menino é Diadorim.
Menino bonito, de olhos verdes, mãos macias e quentes, provoca em Riobaldo um
fascínio, uma paixão inexplicável: “Fui recebendo em mim um desejo de que ele não
fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem
parolagem miúda, sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido”.
À margem do rio referido como o Rio-De-Janeiro (do latim, “Janus”, deus romano
ligado às mudanças de estações, dos ritos de passagem – algo muito significativo para
esse momento na vida do narrador), que era afluente do Rio São Francisco, ou, o Rio-
do-Chico, Riobaldo vivencia uma poética experiência com esse personagem que lhe
será marcante pelo resto de sua vida. Encantado, Riobaldo atravessa o de-Janeiro com
suas águas mansas e depois o do-Chico com suas águas escuras e poderosas. Essa
experiência será uma espécie de rito de passagem: o encontro de um com o outro, a
descoberta e a entrega àquele que não sou (para além de minha zona de conforto), que
se torna uma experiência homoerótica5 (e que não é de natureza sexual, pois não busca
5
A essa admiração suspeitosamente homossexual pelo corpo masculino, chamamos de homoerotismo,
que não pode ser confundido com a ideia imediata de homossexualidade propriamente dita. Embora, a
homossexualidade esteja entre as manifestações do homoerotismo, esse conceito não pode ser
restringindo à temática da atração sexual por alguém do mesmo sexo. O Prof. Dr. Osmar Pereira Oliva, em
sua tese “O Corpo e a Voz”, analisa a representação do corpo masculino na literatura de Eça de Queirós,
pontuando o seguinte: “Por um lado, a nudez é um dos terrenos onde se avulta o erotismo, devido ao seu
caráter de interdição, se levarmos em consideração que quanto mais interdições houver, maior será o
desejo de romper as barreiras e conquistar o objeto de desejo. Nesse sentido, contemplar um corpo nu é
violar uma regra. É descobrir o que estava coberto, é revelar o mistério que se esconde por baixo das
vestimentas. A nudez tanto provoca êxtase, por conhecer o que se havia ocultado, como provoca
escândalo, ao revelar por completo o que era interdito”. A relação de Diadorim e Riobaldo passa pela
admiração pelo outro que parte do amor fraternal para um tipo de amor homoerótico (mas não fisiológico
ou sexual) que sofre diante das interdições sociais, as quais, no entanto, não são capazes de destruir o
sentimento genuíno que brotara no coração de ambos. Enquanto Riobaldo acredita amar um homem belo,
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o prazer carnal e imediatista), bem como uma experiência existencial, tendo o de-Janeiro
(o curso menor) e o do-Chico (o grande-rio) como palco.
Para Rosenfield, a personagem Diadorim “não pode ser vista apenas como a
pessoa amada, mas como figura quase que alegórica que introduz Riobaldo no caminho
do conhecimento, tanto intelectual como sensual de si e da condição humana”. A marca
dessa mediação que é a função textual da personagem em questão anuncia desde o seu
nome: “Dia-dorim” [dia – do grego “através de”, “mediante” – + dor – sofrimento –] seria
“a travessia da dor”, ou “conhecimento por meio do sofrimento”, das adversidades da
vida.
A travessia na canoa – conduzida por um outro menino que remava – é prazerosa
e ao mesmo tempo perigosa, seja pelo que o rio representa ou pela experiência de
entrega ao outro (alguém supostamente do mesmo sexo do narrador): “O vacilo da
canoa me dava um aumentante receio. Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos,
botados verdes, de folhudas pestanas, luziam um efeito de calma, que até me
repassasse. Eu não sabia nadar. O remador, um menino também, da laia da gente, foi
remando. Bom aquilo não era, tão pouca firmeza. Resolvi ter brio. Só era bom por estar
perto do menino. Nem em minha mãe eu não pensava. Eu estava indo a meu esmo.”
Ou: “Eu tinha o medo imediato. E tanta claridade do dia. O arrojo do rio, e só aquele
estrape, e o risco extenso d’água, de parte a parte. Alto rio, fechei os olhos. Mas eu tinha
até ali agarrado uma esperança”.
Os dois desembarcam em uma área afastada e vão se sentar entre uma pedras e
um bambual. Quando os dois amigos recém-conhecidos se encontravam sozinhos em
comunhão de amizade, aparece um homem moreno que aparentava ter entre dezoito e
vinte anos. O tal rapaz insinua que Riobaldo e o Menino estariam tento um encontro
homossexual. E é aí que o rapaz revela o desejo de manter relação sexual forçada com
o Menino. Este, no entanto, saca um punhal e fere o rapaz nos órgãos genitais.
No retorno dos amigos, dona Bigrí já esperava por Riobaldo no porto do de-
Janeiro. Riobaldo é levado por sua mãe e nem tem tempo de lhe perguntar o seu nome.
Riobaldo só reencontraria o Menino anos depois.
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fazenda que pertenciam ao padrinho (ver segmento “[XXIX] Riobaldo, o narrador-
fazendeiro”, a última seção da Sétima Sequência).
E é nessa época, que, pela primeira vez, Riobaldo se encontra com Joca Ramiro.
A imagem de Joca Ramiro causa uma forte impressão em Riobaldo: “E o senhor sabe
quem era esse? Joca Ramiro! Só de ouvir o nome, eu parei, na maior suspensão. (...)
Dele, até a sombra, que a lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na
imponência, pojava volume. E vi que era um homem bonito, caprichado em tudo. Vi que
era homem gentil.”
Joca Ramiro, que era fazendeiro (da propriedade rural de São João do Paraíso)
e chefe de jagunços, estava naquela região envolvido em questões políticas que diziam
respeito a um conhecido de Seo Selorico Mendes, o fazendeiro Alarico Totõe. Alarico,
que solicitara o “auxílio amigo dos jagunços”, precisava de alguém que desse abrigo
àqueles homem e viera solicitar de Selorico aquele favor. Riobaldo seria o guia de Joca
Ramiro e seus homens até o “reconditório” oferecido por seu padrinho aos jagunços e
depois ajudaria os “ramiros” (termo para se referir aos homens do fazendeiro de São
João do Paraíso) em outras demandas.
Na ocasião, Riobaldo também conhece o Ricardão e o Hermógenes. E já nesse
dia – primeira (e má) impressão! –, o narrador não vê o Hermógenes com bons olhos:
“Aquele homem se arrepanhava de não ter pescoço. As calças dele como que se
enrugavam demais da conta, enfolipavam em dobrados. As pernas, muito abertas; mas,
quando ele caminhou uns passos, se arrastava – me pareceu – que nem queria levantar
os pés do chão. Reproduzo isto, e fico pensando: será que a vida socorre à gente certos
avisos? Sempre me lembro dele, me lembro mal, mas atrás de muitas fumaças. Naquela
hora, eu estava querendo que ele não virasse a cara. Virou. A sombra do chapéu dava
até em quase na boca, enegrecendo.”
Também foi nessa ocasião que o Riobaldo conhece o Siruiz, que entoava várias
cantigas, entre as quais uma se destaca, pois seus versos acompanharão o narrador e
surgirá na narrativa em três ocasiões:
“Olererêêê, baiana... Eu ia e
não vou mais: Eu faço
que vou lá dentro, oh baiana, e volto
do meio p’ra trás...”
Tempos depois Riobaldo toma conhecimento que aquele Siruiz morrera durante
um tiroteio travado na região entre o Morcego e o Suaçuapara.
Riobaldo ainda vive um tempo sob os cuidados do padrinho até o dia em ouve o
boato de que Selorico poderia ser seu pai – o que pode ser verdade e possivelmente
seja confirmado pelo fato de Selorico ter dito a Riobaldo em certa ocasião: “– ‘De não ter
conhecido você, estes anos todos, purgo meus arrependimentos...””.
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Riobaldo foge da Fazenda São Gregório. Após a fuga, o protagonista fica sem um
lugar fixo para viver. Algum tempo depois, por indicação do Mestre Lucas, Riobaldo se
torna professor na fazenda Nhanva, propriedade de Zé Bebelo.
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(XII) Riobaldo no bando de Joca Ramiro: Riobaldo se engaja no bando de Joca
Ramiro. Sacudido por contradições morais, o narrador se divide entre o ser um “bebelo”
e ser um “ramiro”: “Eu, quem é que eu era? De que lado eu era? Zé Bebelo ou Joca
Ramiro? Titão Passos... o Reinaldo... De ninguém eu era. Eu era de mim. Eu, Riobaldo.
Eu não queria querer contar.”. Embora se comprometesse a auxiliar os jagunços de Joca
Ramiro, curiosamente, Riobaldo evitava qualquer situação que lhe fizesse parecer um
“judas” que prejudicasse o Zé Bebelo, seu antigo aliado: “Tudo o que eu falasse, podia
ajudar. O saber de uns, a morte de outros. Para melhor pensar, fui mal-respondendo, me
calando, falando o que era vasto. Como eu ia depor? Podia? Tudo o que eu mesmo
quisesse. Mas, traição, não.”. Nessa fase, o primeiro comandante da tropa de que
Riobaldo fez parte foi o Hermógenes.
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Menino-Moço, eu tivesse acertado de encontrar, para o todo sempre, as regências de
uma alguma a minha família.”).
Assim, se Riobaldo – que fora criado apenas pela mãe e, em seus primeiros anos
de formação, não tivera contanto com a figura paterna – apresenta essa condição mais
submissa; Diadorim, que fora conduzido pela altaneira figura de Joca Ramiro, tem uma
atitude mais firme, uma segurança aparentemente inabalável, como se vê na cena da
travessia do rio São Francisco (segmento “[IX] O garoto Riobaldo, o Menino e a travessia
do Rio São Francisco”), na qual Diadorim controla “o medo imediato” que subjuga
Riobaldo. Nas palavras de Diadorim, seu pai dizia que carecia de ele, Diadorim, “ser
diferente”, revelando como as palavras firmes de um pai ecoam no comportamento
másculo do filho: “– ‘Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu careço de ser
diferente, muito diferente...’”.
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“Nem contava valentias, vivia dizendo que não era mau. Mas, outra vez, quando um
inimigo foi pego, ele mandou: – ‘Guardem este.’ Sei o que foi”. E, na sequência, vem a
descrição do terror visto nos olhos de um dos inimigos que fora feito prisioneiro, bem
como da “alegria pior” reluzindo nos olhos do chefe-Hermógenes do acampo, que passa
horas afiando a faca. Para desviar-se da expressão fisionômica do seu superior,
Riobaldo olhava para o seu pé – “enorme, descalço, cheio de coceiras, frieiras de
remeiro do rio, pé-pubo” – e depois para as mãos, que percebe como as únicas capazes
de executar “tanta ruindade”.
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pertencente ao bando de Joca Ramiro enfrenta o grupo de Zé Bebelo. O confronto se dá
na região das Matas da Jaíba. Durante essa batalha, todos os grupos de jagunços
(incluindo o grupo comandado por Sô Candelário) de Joca Ramiro se unem naquela
missão: combater o “caçador de jagunços”.
No retrato do cotidiano dos jagunços, Riobaldo revela todo caráter animalesco
daquele estilo de vida: os raptos, os estupros de mulheres (com os quais ele, Riobaldo,
não concordava), os urros guturais primitivescos nos momentos de raiva (como os de
Hermógenes), as matanças/chacinas, ou a estranha prática de serrarem os dentes
(“aperfeiçoando os dentes em pontas”, deixando a arcada dentaria com a aparência da
dentição das piranhas do São Francisco) com o intuito de parecerem mais assustares a
seus inimigos.
E foi justamente nesse período que Diadorim revelou a Riobaldo seu verdadeiro
nome: “– ‘Riobaldo, pois tem um particular que eu careço de contar a você, e que
esconder mais não posso... Escuta: eu não me chamo Reinaldo, de verdade. Este é
nome apelativo, inventado por necessidade minha, carece de você não me perguntar por
quê. Tenho meus fados. A vida da gente faz sete voltas – se diz. A vida nem é da
gente...’ [...] ‘– “Pois então: o meu nome, verdadeiro, é Diadorim... Guarda este meu
segredo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve de me
chamar, digo e peço, Riobaldo...’”. Assim, só Riobaldo chamava Diadorim por aquele
nome (o que só acontecia quando os dois estavam a sós), enquanto os outros jagunços
sempre tratariam o filho de Joca Ramiro pelo antropônimo de Reinaldo.
Enquanto, ao lado dos jagunços-aliados, ele troca com os homens de Zé Bebelo,
Riobaldo (Tatarana ou Cerzidor – famoso por ser um exímio atirador) está sempre
pensando em Diadorim, temendo pela vida do amigo.
Após o fim daquele combate, Riobaldo se desencontra de Diadorim. O narrador
não sabe do paradeiro do amigo e se sente atormentado pela angústia e pela saudade.
Tempos depois, Diadorim reaparece e conta que ele se ferira e precisou se resguardar
em uma “brenha” para curar o ferimento de bala.
Nessa fase, Riobaldo revê o famoso Joca Ramiro. Homem de imponente
aparência, Joca Ramiro é o símbolo da masculinidade paternal que Riobaldo venera.
Joca Ramiro presenteia Riobaldo com um rifle ao tomar conhecimento das qualidades do
narrador como bom atirador.
Durante essa fase, tomamos conhecimento da estória de Maria Mutema – um
outro causo que se cruza com a estória central e que fora contado pelo jagunço Jõe
Bixiguento–, outro episódio que revela as monstruosidades de que os homens são
capazes e os reveses da vida. Maria Mutema era casada com um homem muito ordeiro,
que, certa feita, falecera misteriosamente. Após o passamento do marido, Maria Mutema
se tornou uma beata muito devota, que estava sempre se confessando para o Padre
Ponte – homem de meia-idade, muito gordo e simpático. Esse padre gerara três filhos
com uma outra Maria (alcunhada Maria do Padre), que cozinhava para o pároco.
Estranhamente, após o período em que Maria Mutema passara a se confessar para o
Padre Ponte, o clérigo começara a emagrecer misteriosamente, foi ficando cada vez
mais adoentado, e veio a falecer. Passados anos, chegaram ao arraial alguns
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missionários estrangeiros, que, por obra de vidência espiritual, descobriram as maldades
de Maria Mutema: ela – sem qualquer motivo – matara o próprio marido despejando
chumbo derretido no ouvido do seu cônjuge. Depois disso, Mutema passara a
atormentar o Padre Pontes, dizendo ao confessor que ela matara o marido porque
estava se sentido atraída sexualmente pelo sacerdote. Como era segredo de
confessionário, o Padre Pontes guardou consigo aquela revelação aterradora (inventada
por Mutema, que só queria “enjoar” o Padre Pontes com aquela história de paixão: “Tudo
era mentira, ela não queria nem gostava [do Padre Pontes]”) e foi se definhando até
morrer. Maria Mutema foi levada a julgamento, mas o povo, por acreditar, que ela estava
sinceramente arrependida de suas maldades, pediram a absolvição da mulher – que
também fora perdoada pela Maria do Padre e os três filhos do falecido sacerdote.
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região. É quando ele vai parar no Guararavacã do Guaicuí, lugar muito bonito,
aprazível. Em meio àquele paraíso, protagonista dorme e quando acorda se surpreende
com a presença de Diadorim, que o seguira. Aquele lugar edênico, remete ao momento
de felicidade daqueles amigos antes da tragédia que será anunciada. Embora não se
entreguem àquela paixão supostamente homossexual, os amigos vivenciam uma
experiência poética de comunhão afetuosa: “E de repente eu estava gostando dele, num
descomum, gostando ainda mais do que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e
dele o tempo todo eu tinha gostado. Amor que amei – daí então acreditei. A pois, o que
sempre não é assim?”
(XXI) Ataque dos “hermógenes" na Fazenda dos Tucanos: Agora, sob o comando de
Zé Bebelo (que se autodenomina Zé Bebelo Vaz Ramiro – numa referência a Joca
Ramiro e Medeiro Vaz), Riobaldo, Diadorim e seus companheiros estão à cata de
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Hermógenes e Ricardão. Nessa passagem, o bando pousa na Fazenda dos Tucanos
(fazendão que estava abandonado), onde os “hermógenes” (termo utilizado por Riobaldo
para se referir aos aliados de seu maior inimigo) cercam o bando dos “zé-bebelos”
(termos utilizado para se referir, naquele momento, a ele e seus aliados). Longas
páginas de tiroteia marcam esses momentos tensos, nas quais não só os “bebelos”
como também os seus cavalos são mortalmente feridos.
Os cruéis aliados do “diabo-Hermógenes” acertam os equinos6 dos “bebelos”
que, assim, perdiam muito mais do que um meio de transporte, perdiam um animal
que era símbolo da identidade e da dignidade sertaneja. O curioso, é, naquele
momento, os “bebelos” parecem sofrer muito mais com a morte dos cavalos do que com
a morte de outros seres humanos: “O Fafafa chorava. João Vaqueiro chorava. Como a
gente toda tirava lágrimas. Não se podia ter mão naquela malvadez, não havia remédio.
À tala, eles, os Hermógenes, matavam conforme queriam, a matança, por arruinar.
Atiravam até no gado, alheio, nos bois e vacas, tão mansos, que, desde o começo,
tinham querido vir por se proteger mais perto da casa. Onde se via, os animais iam
amontoando, mal morridos, os nossos cavalos! Agora começávamos a tremer. Onde
olhar e ouvir a coisa inventada mais triste, e terrível – por no escasso do tempo não
caber.”
Riobaldo, apesar de ainda sentir fortes dores no braço ferido (resultado do tiro que
levara na passagem pelo Riberão-do-Galho-Da-Vida [topônimo sugestivo para nominar
o lugar onde o protagonista poderia ter pedido sua vida]), honrava a fama de exímio
atirador. Mas enquanto trocava tiros com o inimigo, Riobaldo não desviava o
pensamento de Diadorim, que se encontrava em uma área diferente da de Riobaldo,
mais uma vez temendo pela vida de seu grande amigo.
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Em um dado momento, Riobaldo questiona: “– ‘A pois... Por que é que o senhor
não se assina, ao pé: Zé Bebelo Vaz Ramiro... como o senhor outrora mesmo
declarou?...’ – eu cacei contra, reperguntando.” Riobaldo deseja matar Zé Bebelo ou
denunciar o que ele acredita ser um ardil daquele homem que poderia ser um traidor
“pago estipendiado pelo Governo”. Para Riobaldo, como a polícia era inimiga dos
jagunços, não fazia sentido reivindicá-la naquele momento. O contundente diálogo entre
eles é reproduzido em uma estrutura formal que remete aos textos do Gênero
Dramático – revelando a tenso que geralmente é associado aos textos dramáticos ou o
caráter teatral (farsesco) da cena – e exacerba um complexo jogo de interesses que o
contexto social em questão abarca:
Ele disse: – “Tenho amigo nenhum, e soldado não tem amigo...”
Eu disse: – “Estou ouvindo.”
Ele disse: – “Eu tenho é a Lei. E soldado tem é a lei...” Eu disse: – “Então, estão
juntos.”
Ele disse: – “Mas agora minha lei e a deles são às diversas: uma contra a outra...”
Eu disse: – “Pois nós, a gente, pobres jagunços, não temos nada disso, a coisa
nenhuma...”
Ele disse: – “Minha lei, sabe qual é que é, Tatarana? É a sorte dos homens
valentes que estou comandando...”
Eu disse: – “É. Mas se o senhor se reengraçar com os soldados, o Governo lhe
repraz e lhe premeia. O senhor é da política. Pois não é? Ô gente – deputado...”
Ah, e feio ri; porque estava com vontade. Aí pensei que ele fosse logo querer o a
gente se matar. A sorte do dia, eu cutucava.
Mas ruim não foi. Zé Bebelo só encurtou o cenho, no carregoso.
Fechou a boca, pensou bem.
Ele disse: – “Escuta, Riobaldo, Tatarana: você por amigo eu tenho, e te apreceio,
porque vislumbrei tua boa marca. Agora, se eu achasse o presumido, com certeza, de
que você está desconcordando de minha lealdade, por malícias, ou de que você quer
me aconselhar canalhagem separada, velhaca, para vantagem minha e sua... Se eu
soubesse disso, certo, olhe...”
Eu disse: – “Chefe, morte de homem é uma só...”
Curiosamente, apesar das desconfianças, Riobaldo não age contra Zé Bebelo e
vai deixando a situação se desenrolar. Cúmplice e ao mesmo tempo antagonista do que
poderia ser uma grave e aleivosa tramoia, Riobaldo se deixa levar pela
situação.Enquanto homens são feridos e mortos (e muito são os “zé-bebelos que
morreram nessa batalha!) e os sons de tiro ecoam pela Fazenda dos Tucanos, Riobaldo
escreve aquelas inusitadas missivas em nome de Zé Bebelo.
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Ao longo da narrativa, não podemos saber se Zé Bebelo tinha algum plano escuso
(se ele se revelaria um “judas” dos homens que lhe confiaram a vida) ou se tudo não
passava de simples de desconfiança de Riobaldo. No entanto, Riobaldo não deixa de
desconfiar daquele homem famoso pelos ardis e por ter aparentemente um caráter mais
“anfíbio” (duas-caras, vira-casaca, vendável) que ainda tinha grandes pretensões
políticas.
As cartas são expedidas. E tempos depois, a polícia chega em auxílio dos “zé-
beblos”. Os “hermógenes" se veem acuados entre os “bebelos” e as tropas do Governo.
Para surpresa dos jagunços aliados de Riobaldo, alguns “hermórgenes” aparecem
propondo um período trégua. Zé Bebelo e seus aliados fogem às escondidas. Sem seus
cavalos, os jagunços-“bebelos” precisam partir a pé.
Durante essa passagem, Riobaldo oferece para Diadorim a pedra que guardara
desde que passara pela região de Araçuaí. Diadorim, entretanto, se recusa a receber
aquele mimo e sugere que Riobaldo dê a pedra para Otacília como presente de noivado.
Desse modo, Diadorim parece agora ser favorável ao romance entre Otacílio e Riobaldo.
Nos Currais-dos-Padre, os jagunços encontram os cavalos que pertenciam a
Medeiro Vaz. O cavalo de Riobaldo é nomeado de “Padrinho Selorico”.
As visíveis indecisões de Zé Bebelo, a falta de efetividade das andanças do atual
chefe, incomoda Riobaldo e outros jagunços que começam a questionar o poder da
autoridade de Bebelo. O “vagavagar” – as andança sem fim e sem finalidade preciso
pelo sertão – parecem confirmar que Bebelo já não é o líder de que os jagunços
precisavam àquela altura da missão. Era a hora de lugar para um novo “cabeça”.
(XXIII) Passagem do bando pelo território dos catrumanos: Guiados por Zé Bebelo,
os jagunços passam pelas Veredas Mortas, onde encontram um povoado de
catrumanos (caipiras do sertão norte-mineiro que surgem quase nus e armados de
foices, simbolizando uma realidade social quase primitiva). Essa gente, estranha aos
olhos dos jagunços, tentam alertar os viajantes sobre o povoado do Sucruiú, cujos
moradores padeciam de grave e contagiosa doença.
Ali, próximo à propriedade de um certo Sêo Habão (ex-Capitão da Guarda
Nacional e proprietário do Valado e do retiro Coruja), o bando de jagunços encontra
alguns dos moradores do Sucruiú (comunidade de negros, certamente descendentes de
quilombolas), entre os quais, destacam-se o cego Borromeu e o menino Guirigó.
Gurigó e Borromeu são alguns dos de Sucruiú que irão seguir com os jagunços a partir
dali.
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A sexta sequência marca um dos pontos cruciais da obra: o suposto pacto que
Riobaldo fizera com o Diabo. Ora o fato de esse episódio se dá na Sexta Sequência do
romance não é à toa: o número seis (referente ao sexto dia da criação) é o número do
homem, da limitação característica dos seres humanos, as fraquezas humanas, as
perversidades que habitam o coração do homem e que podem ser associadas a
ações demoníacas.
Ainda sob o comando de Zé Bebelo, os jagunços estão de passagem pela
Veredas Mortas, uma região conhecida como Coruja – propriedade de Sêo Habão, que
submete os moradores de Sucruiú a um regime de trabalho análogo à escravidão. Seo
Habão é a figura do coisificador, a força que reifica o outro, que “reduzia tudo a
conteúdo”. Curiosamente, o poder exercido por Seo Habão é invejado por Riobaldo, que
também deseja ser poderoso como um rio entrando e destruindo a casa de seu
padrinho, Selorico Mendes, indefeso.
Nessa fase, nota-se que o protagonista – duvidando do poder de autoridade de Zé
Bebelo – já vai revelando uma atitude de liderança entre os jagunços. E, como veremos
a seguir, um nove codinome começa a ser associado ao protagonista: Urutu-Branco
[cobra perigosa, traiçoeira].
No Coruja, os jagunços padecem de doenças várias e por ali ficam por um bom
tempo. É nessa fase também que se dá o reencontro entre João Goanhá e Zé Bebelo.
Os dois grupos de jagunços agora se unem.
Querendo seguir os sombrios caminhos supostamente trilhados por Hermógenes,
Riobaldo parte no meio da meio da noite para uma encruzilhada onde sacramenta um
pacto com o Coisa-Ruim. Riobaldo queria ser grande, ser chefe, obter bom sucesso
nas demandas em que se envolvesse, destruir Hermógenes, abraçar o mundo com as
mãos – ou outra coisa, que nem ele mesmo sabe o que é, pois não há palavra que
defina: “Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma
coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!”.
Riobaldo buscar alcançar coragem e a habilidade necessárias para enfrentar seus
inimigos, principalmente o Hermógenes. E o protagonista acreditava que aquilo só
poderia lhe ser proporcionado pelos poderes do Tal. Esse fato atormentará Riobaldo
daqui para frente, pois, apesar de o narrador-Riobaldo questionar a existência do Diabo,
a ideia de que o Mal pode vigorar no ser humano aponta para a possibilidade de que o
Pai-da-Mentira poderia fazer de personagem-Riobaldo um instrumento das muitas
ruindades: “Vi: o que guerreia é o bicho, não é o homem”. A tensão e o desejo, o medo e
o prazer (contradições que são referendadas pelas imagens que rementem às trevas da
noite e ao brilho do céu estrelado, que está ligado às signos contraditórios que marcam a
figura de “Lúcifer”, que é anjo-de-luz e demônio-das-trevas) marcam esse momento:
– “Lúcifer! Lúcifer!...” – aí eu bramei, desengolindo.
Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia feito grilos e
estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão. E que termina num queixume borbulhado
tremido, de passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono.
– “Lúcifer! Satanás!...”
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Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.
– “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!”
Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não
existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que
ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que
medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto. Ao
que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranqüilidades-de
pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas. Arquei o
puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A peta, eu querer saldar: que isso
não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho
da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!”
Por seis vezes (notem, mais uma vez, a presenta simbólica do número do
homem – que compõe, por exemplo, o cabalístico número 666 citado em Apocalipse
18:13: “Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta,
pois é número de homem. Seu número é seiscentos e sessenta e seis”.) por seis vezes
Riobaldo invoca o Das-Trevas. E apesar do “Não. Nada” que segue à cena do pacto,
algo de ruim paira no ar.
Segundo Kathrin Holzermayr Rosenfield, o pacto em GSV representa o ponto
“culminante do despojamento progressivo do sujeito de seus atributos (razão, vontade,
liberdade)”. O pactário é aquele que se entrega ao mal e por isso perde a liberdade de
fazer o bem ao outro e a si mesmo. É o homem que se lança no “nada” (e curiosamente
o termo “Nonada” é empregado seis vezes durante toda a a obra), no vazio de seu
egoísmo.
(XXV) Riobaldo se torna o chefe do bando: Após o suposto pacto, Riobaldo já não é o
mesmo. Nessa fase, o protagonista resolve se torna o líder dos jagunços. Durante sua
declaração de chefia, o protagonista mata dois jagunços que eram irmãos, o Rasga-em-
Baixo e o José Félix. Aparentemente esses dois homens queriam contestar sua
liderança. Diante da nomeação de um novo líder, o Urutu-Branco, Zé Bebelo resolve
partir:
- “Não, Riobaldo...” – ele me atalhou. – “Tenho de tanger urubu, no m’embora. Sei
não ser terceiro, nem segundo. Minha fama de jagunço deu o final...”
Daí, riu, e disse, mesmo cortês: - “Mas, você é o outro homem, você revira o
sertão... Tu é terrível, que nem um urutu branco...” O nome que ele me dava, era um
nome, rebatismo desse nome, meu. Os todos ouviram, romperam em risos. Contanto
que logo gritavam, entusiasmados: - “O Urutu-Branco! Ei, o Urutu-Branco!...””
O agora Urutu Branco se comporta de forma estranha, arrogante, sedento de
sangue e querendo impor respeito. Diadorim reprova as atitudes do amigo e deixa isso
bem claro pelo seu olhar e por suas poucas falas.
Riobaldo incumbe Sêo Habão da missão de entregar a pedra de topázio para
Diadorim e dar um recado para o Padrinho Selorico Mendes (a quem Riobaldo se refere
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como sendo seu pai). E é das mãos de Sêo Habão que Riobaldo recebe o possante
cavalo a que chama de Siruiz.
O vaidoso e soberbo Urutu-Branco se eleva em condição e orgulho: “A poeira
subia, a dar que dava escuro, no alto, o ponto às voltas, folharada, e ramaredo
quebrado, no estalar de pios assovios, se torcendo turvo, esgarabulhando. Senti meu
cavalo como meu corpo. Aquilo passou, embora, o ró-ró.” A imagem do “redemonho” (o
redemoinho) que surge em seguida é o sinal da ação do “Demo” na vida de Riobaldo:
“Mas Diadorim e o Caçanje se estavam lá adiante, por me esperar chegar. –
‘Redemonho!’ – o Caçanje falou, esconjurando. – ‘Vento que enviesa, que vinga da
banda do mar...’ – Diadorim disse. Mas o Caçanje não entendia que fosse: redemunho
era d’Ele – do diabo. O demônio se vertia ali, dentro viajava. Estive dando risada. O
demo! Digo ao senhor. Na hora, não ri? Pensei. O que pensei: o diabo, na rua, rio meio
do redemunho... ”.
Riobaldo arrebanha para seu bando alguns moradores de Sucruiú e os
“catrumanos escuros” do Pubo. Eles querem alcançar a região do Chapadão-do-Urucúia.
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(XXVII) Riobaldo com “diabo” no corpo:
Entretanto, Riobaldo/Urutu Branco parece ter o diabo dentro do corpo. Marcam as
próximas páginas do romance o medo, a tensão, o drama, o clima sombrio da tentação e
do conflito interior. Revela-se nessa passagem a luta entre o bem e o mal no
personagem principal: seu lado mau, perverso, cruel, em luta moral com as noções
de moral, humanidade, empatia. “Influenciado” pelo Tentador, uma insana sede de
sangue, de se impor, leva o protagonista-narrador ao limite de quase cometer três
injustiças, que são também três “provações” para o protagonista. Em Riobaldo se revela
em uma íntima lutar moral e metafísica: ceder ou não ceder ao mal que o inclina para
matar, destruir, liquidar o outro indefeso.
Primeiro, foi desejo (insano – no poder da “luz de Lúcifer?”) de matar um certo
Nhô Constâncio Alves, que se dizia conterrâneo de Riobaldo e que só não foi
assassinado porque respondeu corretamente a um pergunta feita pelo protagonista.
Depois disso, Urutu Branco faz a promessa de mataria o primeiro indivíduo que
cruzasse o caminho do bando. É quando o protagonista-cobra avista um homem que
vinha montado em uma égua acompanhado de sua cachorra – e tanto o homem quanto
os dois animais foram cogitados como alvo da sanha assassina de Riobaldo. Entretanto,
por interferência de Alaripe os três se livraram do tiro certeiro e mortal.
A terceira injustiça (e última tentação) que fora evitada envolveu um homem
tomado pela lazeira (lepra) que estava tocaiado no alto de uma árvore. Esse “Lázaro”
(como se referem ao doente) só não foi morto por Riobaldo por conta da intervenção de
Diadorim.
O interessante é que enquanto planeja executar essas maldades, Riobaldo está
ciente do caráter reprovável daquelas atitudes e luta contra elas. É o bem e o mal dentro
do homem – a luta entre o certo e o errado que tem como palco a alma humana.
Foi por esses dias também que – seja como forma de autocompensação, ou por
buscar alguma espécie de redenção ou ainda para impressionar Diadorim –, o Urutu-
Branco auxilia uma mulher que estava tentando dar à luz seu filho às margens do
Urucuaia. Como a senhora estava tendo dificuldade para parir, Riobaldo a auxilia e ainda
lhe dá uma quantia em dinheiro. E naquele momento, numa atitude narcisista, o
protagonista dá ao rebento recém-nascido o seu próprio nome: Riobaldo.
Foi nessa época que Riobaldo resolvera escrever uma carta para Otacília. Uma
carta escrita pela metade e que nunca fora enviada.
Após aquelas “provações” (as tentações do “demo”, que, nada mais é, do que o
lado perverso se impondo ao “homem-humano”), o Urutu-Branco atravessa o Liso do
Suassurão com seus homens. A região inóspita por que passaram aqueles homens sob
o comando de Medeiro Vaz (ver o segmento “[IV] A odisseia pelo Liso do Sussuarão”, na
Primeira Sequência), agora é o palco de uma segunda travessia, dessa vez sob a
liderança de Riobaldo. É nessa passagem, Riobaldo mata o Treciziano, que, num ato de
loucura (talvez em virtude dos efeitos psicológicos da passagem por aquele lugar
inóspito ou por conta de alguma influência demoníaca), quis tirar a vida do chefe.
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Atravessado o Liso do Suassuarão, os homens chegam ao Estado da Bahia (no
Alto-Carinhanha), onde invadem a fazenda que pertencia ao Hermógenes, toca fogo na
propriedade, matando muitos homens que ali estavam, e sequestram a esposa do “judas
pactário”. A esposa de Hermógenes vai ser referida pelo narrador como “a Mulher”. O
intuito do Urutu Branco era utilizar aquela senhora como “isca” para atrair o
Hermógenes.Dali eles retomam para Minas Gerais, onde Urutu-Branco pousa no Verde-
Alecrim e se relaciona sexualmente com as prostitutas Hortência e Maria-da-Luz.
Diadorim continua a reprovar os desmandos de Riobaldo, mas o amor que os une
e a missão de vingança em que estão engajados impedem um rompimento. Em um dado
momento, Diadorim promete a Riobaldo que após tudo aquilo acabar, ele iria lhe contar
um segredo – o segredo que jamais seria revelado em vida por Diadorim.
O procedimento “bagunçado” – tão incerto como a condução de Zé Bebelo, antes
criticada por Riobaldo – e maluca da campanha de Urutu-Branco é criticado por
Diadorim, que reprocha ao seu amigo querer apenas “dansação e desordem”.
37
entre Diadorim e o diabo-Hermógenes. Nesse momento, o protagonista já não é mais
referido pelo nome de Urutu-Branco, ele volta a ser o Riobaldo, com suas inseguranças,
exposto aos seus mais humanos sentimentos.
Quando retoma do desmaio, Riobaldo recebe a notícia de que Hermógenes
morrera, mas Diadorim também morrera ferido pelo “judas pactário”. Quando avisam à
Mulher do Hermógenes sobre a morte do marido, ela revela o ódio que sentia pelo agora
falecido. E é justamente a Mulher do “judas traidor” que vai levar o corpo de Diadorim e
descobre que o grande amigo de Riobaldo, na verdade, era uma mulher: “Eu
dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o
mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um
suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse...
Diadorim – nu de tudo. E ela disse: – ‘A Deus dada. Pobrezinha...’
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu – não contei ao senhor – e
mercê peço: – mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo,
sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de
uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice
d’arma, de coronha...”
Desesperado, Riobaldo, que uivava de dor pela consciência de uma dupla
tragédia (a morte de Diadorim e a descoberta da identidade feminina da pessoa que ela
tanto amara: “Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor
não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha...”) coloca diante do corpo
de Diadorim e por não saber com que nome se dirigir a ela apenas diz: “– ‘Meu amor’...”
Agora que Diadorim se encontra morta é que Riobaldo entende a dimensão do amor que
ela tinha por ele. O amor a que ele, Riobaldo, não se entregou por medo de ser julgado
pelas pessoas: “Ela tinha amor em mim.
E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No
que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.
Aqui a estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui a estória acaba”.
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Bebelo na Barra do Abaeté. Zé Bebelo agora se dedica a ganhar dinheiro com venda de
gados e conta que iria estudar para advogado na capital, onde poderia relatar para os
jornais suas aventuras no sertão. É Zé Bebelo quem encaminha Riobaldo para o
Quelemém, que, futuramente, seria o compadre de Riobaldo e o primeiro ouvinte da
estória vivida pelo narrador.
Otacília, vinda da Fazenda Santa Clara com sua família, vai ao encontro de
Riobaldo para se casar com ele.
A narrativa termina com Riobaldo afirmando que o diabo não existe – ainda que
cogite a possibilidade de essa verdade ser questionável: “O diabo não há! É o que eu,
digo se for....” –, pois o que existe é o “homem humano”, com suas más ações
(apresentadas nos mais diversos acontecimentos relatados nas páginas que antecedem
o fechamento do romance):
“E me cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de um relatar passagens de sua vida,
em toda admiração. Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras. Cerro. O senhor
vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e
trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco – que de tão grande se
comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu,
minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem
soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se
for... [a forma verbal “for” e as reticências apontam para o fato de que, embora se negue
a existência do diabo, o protagonista acena para a possibilidade de que, tendo em vista
os mistérios que escapam ao controle/entendimento humano, o demo poder “vigorar em
existência”]... Existe é homem humano. Travessia.”
E o romance se encerra acenando para a ideia de que a vida, a travessia humana
continua em seu constante devir, seu “ir” e “vir” constantes, pois ao substantivo
“Travessia” formado um curto período sintático vem a lemniscata, o símbolo do infinito,
da travessia existencial, de nosso caminhar-caminhando: “Mire e veja: o mais importante
e bonito, do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda foram
terminadas – mas que elas vão sempre mudando”. Ou: “O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O
que ela quer da gente é coragem.”
2.3 “Personagentes”:
# Riobaldo/ Tatarana/ Urutu-Branco:
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Protagonista-narrador de GSV, Riobaldo apresenta, ao longo da narrativa, nomes
diferentes que podem elucidar as várias fases por que ele passa e também a
complexidade de seu caráter. Herói problemático, essa personagem é “gente como a
gente”: passional; centralizador da narrativa; manipulador; narcisista; vaidoso;
soberbo; perverso; marcado por ímpetos violentos; preconceituoso em certos
momentos; carente de aprovação alheia; por vezes egoísta; amante dos prazeres das
vida e das mulheres; inconstante; temperamental; culto e ao mesmo tempo rústico;
latifundiário que já fora pobre-miserável. Os nomes com que ele é identificado ao longo
da trama podem ser bastantes significativos.
Primeiro, ele é o Riobaldo, seu nome de batismo, que pode estar associado aos
seguinte significados: “rio que segue inutilmente” (em uma referência às más escolhas
que fizera ao longo da vida); a contradição entre o “rio” que flui e o “baldo” (paredão que
barra as águas de um açude) que represa o fluir das coisa; ou o “rio que balda”, o rio que
engana” (dado seu caráter inconstante, volátil); ou ainda rio + baldanza, termo de origem
italiana que, conforme sugerira o próprio autor, sugere a ideia de “saborear preguiçoso”,
ou seja, “rio que flui passivamente”, que se deixa levar pela vida, sem convicções (o que
o leva a fugir em vários momentos de sua vida), seguidor do curso que lhe conduz. Aliás,
a existência de Riobaldo está também ligada aos rios: o de-Janeiro, o Verde Grande,
Carinhanha, o Urucuai e, principalmente, o do-Chico (com suas águas barrentas e
perigosas, que dividiu a vida Riobaldo em dois momentos: antes e depois do encontro
com o Menino). Riobaldo, portanto, está ligado à existência imprevisível a que estamos
submetidos, que segue e represa, que prende e afrouxa. Mas é também um nome sem
sobrenome que indica sua sina de filho sem pai.
Depois ele é Tatarana (do tupi guarani “semelhante ao fogo”), a lagarta que
queima, a lagarta de fogo. Segundo Dulcineia Santos no artigo “Mire e veja: o grau zero
da escrita?”, o nome Tatarana carrega uma mensagem anagramática, pois o epiteto
remete ao anda “atarantado, estonteado, aturdido pelos sertões, assim, sem aceitar
comando, chefia, tal como expressa neste dito”: “Homem anta como anta: viver vida.
Anta é o bicho mais boçal... e eu, soberbo exato, de minha vitória!”. Ou: “Sei quem é
chefe? Só o gatilho de arma-de-fogo e os ponteiros do relógio”. Ou ainda: “Sou de ser e
executar, não me ajusto de produzir ordens...”. Nessa fase, destacam-se as
inconstâncias, indecisões, seja quando está sob o comando de Hermógenes ou sob o
comando de Zé Bebelo. Essa lagarta-de-fogo também pode ser uma metáfora da fase
que precede o nascimento de um novo homem que será o Urutu-Branco.
Mas antes de ser Tatarana, o protagonista-narrador também é conhecido como
Cerzidor, o que costura na narrativa e preciso nos tiros que despacha. Ele é o atirador
exímio admirado pelo alemão Vupes: “– ‘Senhor atira bem, porque atira com espírito.
Sempre o espírito é que acerta...’”. Vaidoso, o Cerzidor se compraz do elogio que
recebe.
Depois ele é o Urutu-Branco, a cobra ardilosa e perigosa. Como Urutu-Branco, ele
se assume como rei – o chefe dos jagunços – construindo sua nova identidade nesse
novo nome. Esse “virada de chave” talvez seja o motivo que também o leva a trocar o
nome de seu cavalo: “É o cavalo Siruiz - graúdo, farto e manteúdo...” Na encruzilhada,
Veredas Mortas, ele se torna sumo tenente – réptil venenoso com cruz na cabeça
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matando o ódio, dominando o medo, daí correndo pelos Gerais: “Nasci para ser.
Esbarrando aquele momento, era eu, sobre vez, por todos, eu enorme, que era, o que
mais alto se realçava. E conheci: ofício de destino meu, real, era o de não ter medo. Ter
medo nenhum. Não tive! Não tivesse, e tudo se desmanchava delicado para distante de
mim, pelo meu vencer: ilha em águas claras.... Conheci. Enchi minha história. Até que,
nisso, alguém se rio de mim, como que escutei. O que era riso escondido, tão exato em
mim, como o meu mesmo, atabafado. Donde desconfiei. Não pensei no que não queria
pensar: e certifiquei que isso era idéia falsa próxima; e então, eu ia denunciar nome, dar
a cita: ... Satanás! Sujo!... e dele dissesse somente – S... – Sertão.... Sertão....”.
Riobaldo, no alto da “madura idade”, aceitava diversas religiões e reflete sobre a
existência ou não do diabo, ente que lhe atormentaria por quase toda a sua vida. O
personagem ficou marcado pela frase: “Viver é muito perigoso”. Aos sessenta anos, ele
resolve contar toda a sua história a um doutor da cidade, que queria conhecer o sertão e
passou três dias (número simbólico – que sugere confirmação de uma travessia) em sua
fazenda ouvindo sua saga.
Ao final da trama, o protagonista volta a ser Riobaldo, o homem reduzido à sua
humanidade, com falhas e limitações, temores e dilemas.
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reflexões sobre o mal e o bem, sobre o verdadeiro e o falso. Numa ultrapassagem da
dialética do bem e do mal o narrador de Diadorim descobre a Maria Deodorina da Fé.
Cheia de graça.
Diadorim, a “donzela guerreira” (como a personagem da trama chinesa) nutria
uma oculta paixão por Riobaldo. Ficou-se sabendo que Diadorim era mulher, somente
após a sua morte no Paredão, ocasião em qual ela matou o Hermógenes à faca, e foi
também morta por ele. “Jagunço” claro, bonito, nariz fino, olhos verdes, usava calças de
vaqueiro em couro de veado macho, curtido com aroeira-brava e campestre e jaleco.
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aos padrões católico-cristãos) e que, o entanto, é mulher devota que ensina a Riobaldo
como “beijar uma estampa de santa, dita meia milagrosa”. Ao lado de Diadorim e
Otacília, ela também vai representar um dos três tipos de amor que vão marcar a vida do
protagonista-narrador. Ela é uma prostituta que foge dos arquétipos estereotipados e
sela, na relação sexual com Riobaldo, uma espécie de “casamento” atípico: “Recebeu
meu carinho no cetim do pêlo – alegria que foi, feito casamento, esponsal.”
# Joca Ramiro:
“Um nome rodeante: Joca Ramiro – José Otávio Ramiro Bettancourt Marins, o
Chefe”. José Otávio Ramiro Bettancourt Marins, o pai de Diadorim, é um fazendeiro
próspero que se tornou chefe de jagunços. Joca [que pode também ser uma referência
ao antropônimo “Joaquim” – “aquele que Deus elevou”, que o Senhor elegeu para ser
“cabeça”[ Ramiro [que significa “grande juiz”, “poderoso protetor”] é uma espécie de líder
medieval (cercado de seus “cavaleiros-jagunços”, como o Rei Arthur e os cavaleiros da
Távola Redonda ou o Carlos Magno e seus “12 pares da França”). Esse personagem é
apresentado por Riobaldo como um “grande homem príncipe!”.
Com seus cabelos anelados e pretos, tinha o rosto e a testa grande, impondo
respeito, reverência. Compadre de Sô Candelário, João Goanhá, Ricardão e do
Hermógenes. Foi morto na Jerara, por traição de Hermógenes e Ricardão. Ciente das
“leis” do ambiente social em que vive, Joca Ramiro segue o “ethos” do sertão, o código
de honra peculiar daquele meio, o que faz dele um exemplo de honradez – como vemos
na cena do julgamento da Fazenda Sempre-Verde.
No entanto, Ramiro é também apresentado como homem de ardis, de estratégias
ilegais, envolvido nos jogos de poder do sertão: “Joca Ramiro – grande homem príncipe!
– era político”. O homem idealizado pela filha Diadorim e pelo protagonista-narrador,
Joca Ramiro pode ser questionado em sua suposta perfeição por comandar uma tropa
de fora-da-lei que agiam de forma violenta pelo sertão adentro. É bem verdade que
Ramiro lutava por alguma justiça possível por aquelas paragens violentas (“Joca Ramiro
era único homem, par-de-frança, capaz de tomar conta deste sertão nosso, mandado
por lei, de sobregoverno”) e tentava fazer articulações políticas que evitassem uma
selvageria maior, mas, segundo Riobaldo, ele só agia em “favor de amigos perseguidos;
e sempre conservava seus bons haveres”, sugerindo que ele lucrava com essas ações.
Joca Ramiro também foi o homem que expôs a própria filha a uma situação que
suplantou a feminilidade a que Diadorim teria direito. Ele transformou a filha em “ser
diferente” – a filha que se tornou uma espécie de “fantasma”, já que, apesar de haver
uma certidão de nascimento provando o seu nascimento, ninguém se lembra mais
daquela menina, como se ela jamais tivesse existido. Segundo Rosenfield, a narrativa
nos mostra um pai simbólico que deveria ser o ordenador das coisas e que falhou nessa
missão. As contradições que marcam a construção do personagem Joca Ramiro podem
ser notadas na forma ambígua com que o chefe é referido na passagem em que
Riobaldo relaciona o desejo de vingança expresso por Diadorim à criação que ela tivera
ao lado do pai: “Aquilo de chumbo era. Mas Diadorim pensava em amor, mas Diadorim
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sentia ódio. Um nome rodeante: Joca Ramiro – José Otávio Ramiro Bettancourt Marins,
o Chefe, o pai dele? Um mandado de ódio. No que eu sabia.”
# Medeiro Vaz: Chefe jagunço, ele liderou o grupo de homens durante parte da odisseia
em nome vingança pela morte de Joca Ramiro. No passado, Medeiro Vaz fora
fazendeiro rico, herdeiro de grandes posses. No entanto, depois das guerras que
marcaram o sertão naqueles tempos e ao notar os desmandos dos jagunços – “tudo era
morte e roubo, e desrespeito carnal das mulheres casadas e donzelas” –, ele incendiou
sua propriedade e partiu pelo sertão ao lado de homens armado para promover a justiça
em que ele acreditava. Ao conhecer Joca Ramiro, Medeiro se aliou ao fazendeiro de São
João do Paraíso por ver em Ramiro o senso mínimo de justiça que ainda era possível
por aquela região. Não gostava de maltratar ninguém, não tomava nada à força e não
permitia a seus homens fazê-lo. Em seus derradeiros momentos de vida, ele deu a
entender que passaria a chefia do bando para Riobaldo.
# Zé Bebelo: Personagem moralmente “anfíbio”, ele dança conforme a música e em
benefício próprio. Inicialmente idealizado pelo narrador, ao longo da trama vemos
atitudes questionáveis ou fragilidades por parte de Bebelo que comprometem essa visão
idealizada do personagem em questão. Referindo-se aos quatro elementos simbólicos
(terra, água, fogo e ar), Zé Bebelo se apresenta como aquele que não se apega à terra,
portanto, ele é aquele que está de acordo com o que a vida o leva e que,
convenientemente, se conduz:
“– ‘O senhor não é do sertão. Não é da terra...’
– ‘’Sou do fogo? Sou do ar? Da terra é é a minhoca – que galinha come e cata:
esgaravata!’”
José Rebêlo [seu sobrenome sugere “rebelião”, “revolta] Adro Antunes, natural do
Carmo da Confusão (topônimo que revela o caráter desse personagem). Proprietário da
fazenda Nhanva, esse homem ardiloso, vaidoso, pragmático, inquieto, inconstante (como
a vida o é), queria combater a jagunçagem e ser deputado. Foi preso pelos inimigos,
julgado e exilado para o Goiás. Tempos depois, retornou para vingar a morte de Joca
Ramiro, chefiando o grupo de jagunços. Perdeu o poder de chefia para Riobaldo. Finda a
jagunçagem, Riobaldo o reencontrou no Porto-Passarinho, queria agora ser comerciante
na capital, estudar advocacia e vender as histórias de jagunçagem para os jornais das
grandes cidadees.
# Compadre Quelemém: Quelemém de Góis. Seu nome vem de “Clemente”,
antropônimo que sugere “indulgência”, “paciência”, “acolhimento”, perdão. É ao
Compadre Quelemém que Riobaldo tem a liberdade de contar sua estória – história de
amor, suposto homoerotismo, vingança, dramas, virtudes e vícios –, disposto a se
assumir naquilo que era. Homem raro, espiritualizado, Quelemém era kardecista e
costumava compartilhar com Riobaldo sua visão de mundo, seus conselhos sobre os
dois planos da vida. Como confessor de Riobaldo, ele ajuda o protagonista em sua
travessia moral e espiritual. Morador da Jijujã – Vereda do Buriti Pardo – é cultivador de
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várias espécies de algodão e também de cana, produtos que remetem à ideia de pureza,
lhaneza, acolhimento e doçura.
# Ricardão: Parceiro de perversidade de Hermógenes, Ricardão (do germânico, “duro”,
“forte”, “dominador” – o que é maximizado pelo aumentativo “-ão”) é um jagunço cruel e
sanguinário. Jagunço nascido no Verde Pequeno, rico, dono de fazendas, amigo de
políticos importantes, compadre de Joca Ramiro, Hermógenes e do Nhô Lages. Junto ao
Hermógenes traiu Joca Ramiro matando-o na Jerara. Foi morto por Riobaldo no
Tamanduá-tão.
# Senhor: O interlocutor de Riobaldo. Ele não se apresenta verbalmente na narrativa.
Esse senhor representa a cultura da grandes cidades, o universo letrado, que se coloca
diante do homem do sertão.
# Selorico Mendes: O Padrinho Selorico Mendes é um fazendeiro rico e avarento.
Padrinho de Riobaldo e possivelmente pai do protagonista-narrador. Possuía três
fazendas de gado, uma delas a São Gregório, que ficava próximo ao Curralinho e ao
Bagre. Acolheu Riobaldo em sua casa quando o protagonista ficou órfão. Deixou duas
fazendas de herança para Riobaldo.
# Marcelino Pampa: Jagunço, chefiou os “ramiros” após a morte de Medeiro Vaz e
passou a chefia para Zé Bebelo, quando este retornou do exílio no Goiás, tendo o apoio
de todo o grupo. Foi morto durante a Batalha do Paredão.
# Dona Bigrí: Mãe de Riobaldo. Representa as mães pobres do sertão que, entregues à
própria sorte, têm de cuidar, sozinhas, de seus filhos em meio a várias adversidades.
Possivelmente tivera um relacionamento com Selorico Mendes do qual teria nascido
Riobaldo.
# Sêo Candelário: Jagunço baiano, alto, forte, usava bigodes amarelados, fumava todo
o tempo e bebia muita cachaça. Era homem impaciente. O personagem tinha um
comportamento autodestrutivo: segundo Riobaldo, ele buscava a morte por acreditar
sofrer de lepra, doença que seu pai e seus irmãos padeceram. Defendeu Zé Bebelo no
julgamento da Fazenda Sempre-Verde. Morreu em combate contra soldados do
Governo.
# Titão Passos: Jagunço-chefe de um dos sub-grupos de Joca Ramiro. Homem simples
de bom coração, cara redonda, bom parecer. Amigo de Joca Ramiro. Bisneto de Pedro
Cardoso e também parente de Maria da Cruz. Presente no grupo que foi buscar
munições na casa do senhor Malinácio. Grupo este que Riobaldo seguiu, iniciando a sua
vida de jagunço. Defendeu Zé Bebelo no julgamento da Fazenda Sempre-Verde.
# Alaripe: Cearense, cabeça chata, sério, olhar vivo. Esse foi um dos amigos a quem
Riobaldo cedeu terras, próximas a sua fazenda, para estabelecer moradia após o tempo
dos jagunços. Esteve com Riobaldo na busca por Otacília e na busca das origens de
Diadorim. Foi junto de Joca Ramiro e outros jagunços na Fazenda São Gregório, quando
Riobaldo ainda era rapaz, pedir apoio à Selorico Mendes.
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# Quipes: Jagunço ligeiro e gastador. Ele outro jagunço-amigo a quem Riobaldo cedeu
terras próximas a sua fazenda, para estabelecer moradia após o tempo dos jagunços.
Esteve com Riobaldo na busca por Otacília e na busca das origens de Diadorim.
# João Goanhá: Jagunço de grito grosso, gordo, forte, barbudo, ar de sonso, quase tolo,
analfabeto, usava variedades de anéis nos dedos. Chegou a chefiar um dos sub-grupos
de jagunços de Joca Ramiro. No julgamento da Fazenda Sempre-Verfe, ele foi o último a
se pronunciar e foi um dos que defendeu Zé Bebelo.
# Mestre Lucas: Foi o professor de Riobaldo em Curralinho (localidade para onde
Riobaldo se mudou ainda jovem, a mando do seu padrinho Selorico Mendes, a fim de se
alfabetizar).
# Diabo: Entidade associada ao mal pela cultura judaico-cristã, o Diabo é referido no
romance GSV por vários denominações: demônio, o Draõ, o Tal, o demo, o demonião, o
Sempre-Sério, o Tranjão, o Tentador, o Solto-Eu, o Ele, o Morcegão, o Maligno, o
Malino, o Outro, o Pai do Mal, o Tendeiro, o Figura, o debo, o Muitos-Beiços, o
Arrenegado, o Cão, o cramulhão, o Indivíduo, o Coisa-Ruim, o Rincha-Mãe, o Galhardo,
o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o grão-
tinhoso, o Tinhoso, o cão-miúdo, o Pé-Preto, o Canho, o Rapaz, o Tristonho, o Pai da
Mentira, o Bode Preto, o Xú, o Sangue-d’Outro, o Muitos-Beiços, o Das-Trevas, o
Rasgaem-Baixo, o Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre, o Mafarro, o
Dado, o Danado, Manfarro, o Oculto, o que-não-existe, o Carôcho, o Mal-Encarado, o
Sem-olho, o Que-Não-Ri, o Que-Não-Fala, o Rapaz, o diacho, o Careca, Satanás, o
Satanão, o satanzim, Lúcifer, o Dubá-Dubá, o Barzabúl, o Ocultador, Doa-Fins, o
Austero, o Severo-Mór, o Hermógenes, entre outros. Embora (como veremos mais
adiante) sua existência seja negada pelo narrador, a imagem do “mal absoluto” a que
esse personagem, pertencente ao plano espiritual, é associado perpassa toda a trama.
# Gurigó: Menino do Sucruiú. Negro, magro, olhos pretos externados. Filho de Zé
Câncio. Foi pego pelos jagunços depois de roubar o sítio do senhor Habão. Riobaldo o
levou com o grupo de jagunços. Depois da Batalha do Paredão, o próprio Riobaldo o
levou de volta às suas terras.
# Sêo Habão: Fazendeiro e ex-capitão da Guarda Nacional. Ele é o dono do retiro
chamado Valado, próximo ao Sucruiú. Ele encarna a figura do latifundiário que ainda
persiste em práticas que beiram ao regime escravocrata. Sêo Habão deu a Riobaldo um
belo cavalo que foi chamado de Siruiz. Após o tempo dos jagunços, levou a Riobaldo
mais um cavalo e a notícia da morte do seu padrinho Selorico Mendes.
# Seo Ornelas: Josafá Jumiro Ornelas é o Sêo Ornelas. Homem bom e ordeiro, esse
sexagenário é o proprietário da Fazenda Barbaranha, no Pé-da-Serra, onde Riobaldo foi
bem recebido e passou uma noite com o seu grupo de jagunços. Sêo Ornelas ofereceu
um jantar a Riobaldo e a outros jagunços dentro da sua própria casa. Cedeu cavalos ao
grupo de jagunços a pedido de Riobaldo.
# Siruiz: Jagunço cantador. Presente no grupo que Riobaldo conduziu ao Cambaubal, a
mando do seu padrinho Selorico Mendes. Ele morreu, conforme informava Garanço, em
tiroteio entre o Morcego e o Suaçuapara.
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# Garanço: Jagunço são-franciscano, ele é um homem simples de coração. Marcado
por posturas infantis, ele colocava nomes em suas armas, contava e recontava longas
passagens de sua vida. Morreu próximo a Riobaldo, em combate contra os Bebelos.
# Borromeu: Matuto do Pubo. Cego, o qual Riobaldo levou junto ao grupo de jagunços,
colocando-o em um cavalo manso. Depois da Batalha do Paredão, foi levado de volta às
suas terras pelo próprio Riobaldo. Seu nome pode ser uma referência ao Cego Bartimeu
(personagem referido na passagem bíblica narrada em Marcos 10:46-52), que foi alvo da
misericórdia de Jesus Cristo, assim como Borromeu foi auxiliado por Riobado.
# Mulher de Hérmogenes: Esposa do Hermógenes. Seu nome não é revelado na obra.
Riobaldo a usou como prisioneira para chamar a atenção do Hermógenes, até a batalha
do Paredão. Ela cuidou do corpo de Diadorim, depois que esta foi morta pelo
Hermógenes e ao mesmo tempo o matou.
# Rosa’uarda: Moça de família, olhos pretos bonitos, moradora do Curralinho, turca,
filha do comerciante Assis Wababa e de Dona Abadia. Namorou Riobaldo e o chamava
de “meus olhos”. Foi com ele que o protagonista teve a sua primeira experiência sexual.
Noivou-se com Salino Cúri, negociante turco.
# Maria-da-Luz: Meretriz moradora de um pequeno povoado chamado Verde-Alecrim.
Ela tivera mantivera relação sexual com Riobaldo. Maria-da-Luz tinha uma casa grande,
caiada, de telhas e com alpendre. Morava com a sua companheira Ageala. Possuía
terras boas e roças de milho e feijão.
# Sertão: Espaço-personagem, o Sertão é o espaço mítico, onde o homem faz sua
travessia em meio às adversidade, descobertas, encontros e desencontros, em toda sua
complexidade, contradições, veredas. Uma terra apartada da lei que rege as civilizações
urbanas modernas, o Sertão de Rosa – que é a terra dos jagunços (e com eles se
confunde) e onde o “onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de
autoridade” (pois nem sempre a lei convencional do alcança) – é uma simbologia do
mundo, do palco onde se desenrolam os dramas universais. Esse espaço-gente recebe
várias definições ao longo da trama:
“Jagunço é o sertão”.
“Sertão é o sozinho. Sertão é dentro da gente”.
“Sertão é a dura natureza do jagunço, lá onde quem moi no asp’ro não fantaseia”.
“Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do
lugar. Viver é muito perigoso”.
“O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus
mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedaçozinho de metal”...
“O sertão é sem lugar”.
“O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito
governa o sertão, ou o sertão maldito nos governa”.
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“Sertão não é malino nem caridoso... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao
senhor, conforme o senhor mesmo”.
“O sertão é bom... tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado”.
“O sertão é do tamanho do mundo”.
“Sertão é isso: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o
senhor pelos lados. Sertão é quando menos se espera” (p.219). “Sertão é uma
espera enorme.”
“Cidade acaba com o sertão. Acaba?”.
“Sertão é o sozinho. Sertão: é dentro da gente”.
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Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e
só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de
atenção.”
Nesse aspecto, a trama roseana se aproxima da novela A Hora da Estrela, de
Clarice Lispector, no que diz respeito ao retrato trajetória ontológica do homem nessa
vida de mistérios, vicissitudes, adversidades, reveses. Assim, a trama roseana nos
carrega como rio para uma realidade repleta intempéries (morte, traições, desencontros,
as frustrações e adversidades – como as da passagem pelo Liso do Sussuarão), de
dualidades, crenças paixões, onde o homem vai ao melhor e ao pior de si, em meio a
tragédias, desencontros, e a busca por tentar entender tudo o que se lhe apresenta: “Ah,
porém, estaquei na ponta dum pensamento, e agudo temi, temi. Cada hora, de cada dia,
a gente aprende uma qualidade nova de medo!”.
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para nos oferecer: “Se pode? Vem horas, digo: se um aquele amor veio de Deus, como
veio, então – o outro?... Todo tormento. Comigo, as coisas não têm hoje e anfontem
amanhã: é sempre. Tormentos. Sei que tenho culpas em aberto. Mas quando foi que
minha culpa começou? O senhor por ora mal me entende, se é que no fim me
entenderá. Mas a vida não é entendível.” Ou: “Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que
não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe”. Essa situação é
assustadora, o “não saber” é uma verdade que nos oprime: “Queria entender do medo e
da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder.
O que induz a gente para más ações estranhas é que a gente está pertinho do que é
nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!”
E esse não-saber também pode estar ligado a relação do sujeito com a
complexidade do caráter humano, na busca pelo entendimento do outro ou do
entendimento sobre si mesmo (a travessia identitária). No viver a vida e no tentar
enxergar essas vivências (a leitura crítica da situação), a certeza de que não detemos o
pleno conhecimento: “O senhor vai ver. Eu era dois, diversos? O que não entendo hoje,
naquele tempo eu não sabia.” Nessa última frase, além da questão do saber [tomar
conhecimento da realidade], Riobaldo nos coloca o problema do entender [apreender a
razão de as coisas serem como são e aceitar o que nos acontece].
Nessa relação complexa com a realidade que passa pela relação com a
linguagem com que essa realidade é apresentada, Rosa utiliza do paradoxo para
dimensionar a realidade do labirinto do existir. Operando uma linguagem nova,
diferente, inusual (reforçada pelo paradoxo e por construções semânticas e sintáticas
inusitadas), Rosa nos faz pensar sobre uma realidade outra. Assim, é por meio da
linguagem poética que vemos, com novos olhos, a vida em sua complexidade: “[...] Eu
sabia disso, mas sabia sem saber, e saber não queria”. Do ponto de vista lógico a
sentença de Rosa (“sabia sem saber”) não faz sentido. Já do ponto de vista da
expressão literária, contudo, faz todo sentido, pois o “não-saber” resulta em uma forma-
outra, diferente, de “saber” sobre a vida, que é uma percepção intuitiva, sensível e
metafísica de relacionarmos com aquilo que está além do racionalismo materialista e
reducionista: — “A gente só sabe bem aquilo que não entende”.
Assim, por conta desses mistérios que rondam a vida, paradoxalmente, também
somos surpreendidos com alguma experiência epifânica que pode nos permitir a intuir
sobre “aquilo que há”. E essa intuição não pressupõe um entendimento da vida em sua
plenitude (dentro de uma perspectiva racionalista ou pretensiosa, arrogante), mas uma
relação (às vezes inconsciente) “daquilo que é”. Desse modo, por meio de paradoxos
(como o socrático “Só sei que nada sei”), Riobaldo tenta mostrar que algo sempre nos é
revelado, pois, é no “não sabendo”, que passamos a entender sensivelmente as tramas
da vida: “A gente não sabe, a gente sabe. Calei a boca toda. Desencurtamos os
cavalos.” Ou: “Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo... Eu quase que nada não
sei. Mas desconfio de muita coisa.”
Nesse aspecto, o romance GSV se aproxima de A Hora da Estrela, de Lispector,
pois tanto Riobaldo quanto Rodrigo S. M. acenam para a esse saber que transcende às
racionalidades e às pretensões: “Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive
sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que
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imaginam e estão fingindo de sonsos.” – afirma o narrador do romance clariceano.
Assim, seja no que diz respeito aos mistérios da vida ou à complexidade do caráter
humano, o sujeito transita, contra sua própria vontade ou para além de seu esforço,
entre o não-saber e um saber que não explicado por formulas racionais.
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Essa personagem se fará marcante na vida do protagonista, pois lhe envia uma carta e
ainda o presenteia com uma dente de jacaré e a imagem de uma santa católica.
O segundo amor é o de Otacília, o amor singelo, que remete aos padrões
católicos: o amor ordeiro, sereno, longe do turbilhão que representaria o amor por
Diadorim. Otacília, a esposa do narrador, era a “moça bonita, branca e delicada”, em
oposição às moças “morenas”, “cor-de-canela” (a cor da sensualidade), como a
prostituta Maria-da-Luz. A ela é entregue o topázio – a pedra do equilíbrio, da união
pacífica – que é também ametista – a pedra da proteção e da vitalidade – que seria de
Diadorim. Otacília é a esposa que ganha, apesar de envolver o dado erótico, é, antes de
tudo, a companheira-irmã-em-Deus que se efetiva em tempos de paz: “Se pode? Vem
horas, digo: se um aquele amor veio de Deus, como veio, então – o outro?... Todo
tormento”.
O terceiro amor foi Reinaldo/Diadorim/Maria Deodorina, o amor-neblina, que o faz
romper os códigos machistas e reconhecer que amara alguém que acreditava ser um
representante do sexo masculino. Sem que haja a entrega a uma relação sexual – que é
evitada por Riobaldo cônscio de sua masculinidade, sua heterossexualidade –, esse
amor é proibido e platônico (pois não implica a obrigatoriedade do prazer físico).
Diadorim é a neblina, pois leva Riobaldo ao extremo de seu egoísmo, o amor ágape.
Como ser ambíguo (homem e mulher), Diadorim leva Riobaldo a uma relação com a vida
para além do previsível. Diadorim é o amor vindo da parte do “outro” (o demo), mas
também é o amor poderia ser obra de Deus. É o amor estranho às convenções, o amor
caótico, que funde a existência do sujeito.
Diadorim é o amor que não poderia ser (que não foi plenamente realizado!), mas
poderia ter sido. Atormentado pelo medo de ser julgado pelos outros, Riobaldo assume
seu amor, mas resiste a se entregar: “Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era
ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e
eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim.
Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que
ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo,
quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei
insensatamente – tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava”.
Assim, Nhorinhá, Otacília e Diadorim, são as facetas que se digladiam na alma de
Riobaldo. O primeiro, carnal e sensual; o segundo sublimado e espiritual; o terceiro
caótico e ancestral. Seguindo a trilha de Benedito Nunes, autor do ensaio “O amor na
obra de Guimarães Rosa”, podemos a traçar uma linha ininterrupta entre estas três
personagens; linha que naturalmente conduziria ao amor por Otacília como o cume da
trajetória erótica que movimenta o ser de Riobaldo, ou, como afirma Nunes, a “trajetória
ascensional e expansiva, que integra o prazer físico ao dinamismo da alma e converte o
desejo sexual, sem extingui-lo, em anelo de identificação com o objeto amado”.
Por outro lado, é preciso entender que o ponto fundamental da travessia de
Riobaldo nesse é mesmo Diadorim, pois é ela que causa o caos que vai alterar o
caminhar de Riobaldo e fazê-lo enxergar suas limitações, suas maldades, seu ego
problemático em sua relação com os outros e consigo mesmo.
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Para Rosenfield, a personagem Diadorim “não pode ser vista apenas como a
pessoa amada, mas como figura quase que alegórica que introduz Riobaldo no caminho
do conhecimento, tanto intelectual como sensual de si e da condição humana”. A marca
desta mediação que é a função textual da personagem em questão anuncia desde o seu
nome: “Dia-dorim” [dia – do grego “através de”, “mediante” – + dor – sofrimento –] seria
“a travessia da dor”, ou “conhecimento por meio do sofrimento”, das adversidades da
vida. A personagem Diadorim também é responsável por fazer o narrador olhar para a
vida com mais sensibilidade, mais poesia, mais profundidade filosófica, como vemos na
passagem da travessia do Rio São Francisco ou no período da prazerosa estadia no
Guararavacã do Guaicuíu.
Ao entrar na vida de Riobaldo, Diadorim (o “Meu amor...”) expõe o personagem às
intempéries da existência, ao viver perigoso, onde Eros (amor) e Tanatos (Morte) se
encontram, já que, como afirma Riobaldo, “Artes que morte e amor têm paragens
demarcadas”. Segundo Tatiana Machado Boulhosa, por meio da relação entre Riobaldo
e Diadorim, GSV apresenta uma “história de amor” (o amor manso ou o amor
impossível) e também uma “história de mortes” (“mortes violentas, melancólicas,
anunciadas, honrosas e estendidas”) que revelam a vida em seus cruéis afazeres.
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e agiam por conta própria (autônomos), roubando, saqueando ou matando; os jagunços
eram funcionários de alguém muito poderoso e tinha seu soldo (a paga por seu trabalho)
bancado pelos latifundiários ou lideranças locais. Esses jagunços geralmente eram
homens livres e pobres que viviam nas zonas rurais como agregados dos fazendeiros ou
residiam em regiões vizinhas a dos mandatários. Cooptados para esses trabalhos
escusos por quem detinha o poder econômico, esses criminosos resgatam algo de
feudal/medieval e selvagem.
Joca Ramiro era um desses proprietários de terra que tinha o seu exército de
jagunços e agia em favor de seus aliados e de quem lhe desse uma boa paga pelos
serviços prestados – geralmente trabalhos que envolvia violência, mortes. Esses fora-da-
lei fortemente armados promoviam o terror por onde chegavam, invadiam cidades,
saqueavam, desafiavam as autoridades do Estado, estupravam mulheres, matavam
seus desafetos, promoviam, enfim, o caos em nome dos interesses pessoais de quem os
comandava.
E GSV cita homens poderosos que contavam com seus jagunços (seus
“agregados valentes, turmas de cabras do trabuco e na carabina escopetada”). Além do
famoso Joca Ramiro, são citados personagens reais e fictícios que mandavaM e
desmandavam no Grande Sertão por meio de seus capatazes: Antônio Dó, Andalécio,
Ricardão, Medeiros Vaz, Neco, Horácio de Matos, João Duque, entre outros.
Com um código de ética bem peculiar (como vemos na passagem do julgamento
da Fazenda Sempre-Verde em que Zé Bebelo foi réu; ou na passagem em que o próprio
Bebelo “absolveu” os filhos que mataram o próprio pai), esses homens “desassistidos de
si” (como dizia Riobaldo) viviam em constante guerra com a polícia e com outros grupos
de jagunços inimigos. Aqui se identifica o guerreiro selvagem, bestial, quase animal, sob
a regência de um “ethos” estranho à civilização urbana moderna, lutando e matando pela
sobrevivência a todo custo como em uma “selva cultural”. Diz Riobaldo: “Jagunço não se
escabreia com perda nem derrota – quase que tudo para ele é o igual. Para ele a vida já
está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar e o fim final... Jagunço já é
homem meio desistido de si”. Ou: “Jagunço: a gente é bravo d’armas, para o risco de
todo dia, para tudo o miúdo do que vem do ar”. Ou ainda: “Conheci que fazendeiro-mor é
sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório”.
No entanto, para além do pitoresco, da caricatura ou da romantização, a obra de
Rosa mostra esses bandidos como seres complexos, que moldados por
circunstâncias extremas estão expostos aos perigo da vida. Sem idealizar esses
jagunços e fazendo uma leitura para além do superficialismo maniqueísta, a narrativa de
Rosa encara esses fora-da-lei como entes violentos que são frutos do meio violento em
que vivem, em uma travessia dolorosa, onde o homem vive seus dramas pessoais,
morais e existenciais. Nesse sentido, ao mesmo tempo que apresenta uma leitura
sociológica determinista desse cenário, Rosa também aponta, em uma leitura
filosóficas, psicológica ou existencial, para as “veredas” (os labirintos) complexas
da realidade dos jagunços, que a complexidade do homem como um todo.
Nesse “mundo cão”, Zé Bebelo se torna um ser “anfíbio”, que transita entre a lei e
a desordem da jagunçagem, dançando conforme a música rústica do sertão lhe dita,
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mas sempre querendo capitalizar com suas decisões e ações. O dono da fazenda
Nhanva, ciente do contexto social problemático em que estava inserido, tenta extirpar a
jagunçada da face do sertão e se beneficiar politicamente. No entanto, seus planos se
frustram e ele, refém das vicissitudes de um ambiente onde vale a “lei do mais forte”, é
capturado e exposto diante das revelias da vida. Mas é ali que Bebelo vai se valer dos
recursos daquele meio animalesco que ele, como homem do sertão, bem conhecia, com
intuito de sobreviver à barbárie jagunça – e ele alcança sucesso. Já em outro momento,
por uma questão de gratidão à benevolência de Joca Ramiro (seu salvador), ou, quem
sabe, por novas ambições, ele retoma para o sertão agora na condição de jagunço, ou
seja, encarnando o tipo que ele quis combater para combater o mal maior que agora é
Hermógenes. Porém, em sua última aparição na obra, quando reencontra Riobaldo, Zé
Bebelo quer partir para a cidade grande (o espaço por que Riobaldo nutria grande
aversão) para lá capitalizar algo em seu favor, valendo das vivências sertanejas no
mundo dito civilizado.
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nasce do “meio em que [ele] vive”, fazendo-o “acreditar em diversas religiões, crenças e
ritos, tentando estabelecer entre eles o equilíbrio entre o sagrado e o profano”.
Assim, Deus, a força ordenadora de tudo, é a lei moral suprema, que não permite
que a desordem desumana, animalesca, vigore em sua plenitude. Na passagem por
Araçuaí, Riobaldo trabalha com um doutor que se dizia não acreditar em Deus. Riobaldo
se indigna – no plano na narrativa – com aquele tese ateísta, pois, para o narrador, se
Deus não existe tudo seria permitido, o mundo estaria entregue ao mal: “Refiro ao
senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do
Araçuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencama, por progresso
próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo,
tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem
Deus, há-de a gente perdidos no vaivem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes
e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é
menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus,
então, a gente não tem licença de coisa nenhuma!”.
Obviamente, que o autor de GSV não deseja criar uma obra de cunho religioso,
instrumentalizada em favor de uma crença mística específica. No entanto, a obra em
questão aponta para um plano místico/metafísico que se encontra em uma instância que
supera as simples explicações racionalistas que se baseiam apenas do plano físico –
pois, como afirma o próprio Guimarães Rosa, seus livros são “anti-intelectuais”
[antirracionalista], pois defendem o “altíssimo primado da intuição, da revelação, da
inspiração, sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva da razão, a megera
cartesiana”. E nesse sentido, Deus é o mistério ordenador, que transcende a realidade
limitada do plano material: “Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A
força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não
vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo,
se economiza.”
Deus é a força que o entendimento humano não consegue apreender em
sistematizações racionais que possam questionar Sua existência: “Dor não dói até em
criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói sem precisar de se ter razão nem
conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte,
mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado
do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir
para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O
inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer
um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas,
o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos.
O que eu invejo é sua instrução do senhor...”
Deus também é a possibilidade de o homem se redimir de suas maldades,
perversidades, ruindades-muitas, sair da zona de seu egoísmo para alcançar a
transcendência: “Por isso dito, é que a ida para o Céu é demorada. Eu confiro com
compadre meu Quelemém, o senhor sabe: razão da crença mesma que tem – que, por
todo o mal, que se faz, um dia se repaga, o exato. Sujeito assim madruga três vezes, em
antes de querer facilitar em qualquer minudência repreensível... Compadre meu
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Quelemém nunca fala vazio, não subtrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente
nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio – essa é que é a regra do rei! ”. Ou: “O
correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é
ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda
mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer,
de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.” Ou
ainda: “Mas ninguém não pode me impedir de rezar; pode algum? O existir da alma é a
reza... Quando estou rezando, estou fora de sujidade, à parte de toda loucura. Ou o
acordar da alma é que é?”
Quando à figura do Diabo (que surge já nas primeiras páginas do livro), essa
entidade marcante do imaginário cristão é alvo de uma postura mais ambígua por parte
do narrador. De um lado o personagem-Riobaldo, em um dado momento de sua vida
teme o Demo (o Tal, o Coisa-Ruim), crendo que o Tal existe em suas maldades e
sortilégios. Entre as “provas” da existência do Tinhoso, o povo do sertão cita o José
Simplício: “E um José Simpilício – quem qualquer daqui jura ele tem um capeta em casa,
miúdo satanazim, preso obrigado a ajudar em toda ganância que executa; razão que o
Simpilício se empresa em vias de completar de rico. Apre, por isso dizem também que a
besta pra ele rupeia, nega de banda, não deixando, quando ele quer amontar...
Superstição. José Simpilício e Aristides, mesmo estão se engordando, de assim não-
ouvir ou ouvir.”
Crendo no Tinhoso, em um ato de insegurança e levado pelo que de ruim já o
habitava, Riobaldo vai em busca de se tornar tão cruel e hábil na maldade quanto o
Hermógenes – que figura como um demônio-humano. Assim, Riobaldo vai invocar o
Diabo, vai chamar “pauta” com o Morcegão, o Maligno. Isto é, para vencer o mal
imediato (o monstro sanguinolento que lhe tirara a vida do chefe-Joca Ramiro), Riobaldo
se alia ao Mal (ao Demo, o Tisnado), ele apela para o Mal. Assim, surge um dos dramas
espirituais vividos por Riobaldo: O pacto foi consumado? Quais os benefícios concretos?
Se consumado foi, qual será o pagamento exigido do pactário? Qual o preço da pauta?
E o diabo, o Coisa-Ruim, existe mesmo? Ou é uma invenção dos homens?
Nesse ponto, Riobaldo vai acenar para a possibilidade (defender a tese e tentar
manipular seu interlocutor para essa tese) de que o Diabo não existe (“O diabo não há”),
e que, por isso, não seria possível vender a alma para o que “não há”: “ Se tem alma, e
tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira. Não é
vendível. O senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe agradeço. Se vê que o
senhor sabe muito, em idéia firme, além de ter carta de doutor. Lhe agradeço, por tanto.
Sua companhia me dá altos prazeres”. Curiosamente, parece que Riobaldo tenta
manipular seu interlocutor, o “senhor”, para que este confirme a tese ali defendida, pois,
só assim, o narrador ficará em paz consigo mesmo ante a possibilidade do pacto que
fizera.
Nesse sentido, se o “diabo não há”, a maldade que vigora no mundo é culpa dos
homens (seja ele Hermógenes ou Riobaldo): “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do
homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos.
Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor
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aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido.
Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não
fosse...”. Assim, Hermógenes não seria o pactário que se aliou, mas o próprio Demo, o
Tentador em pessoa. E, se assim for, foi Diadorim (uma mulher-macho!) quem matou o
Diabo na luta final, mas que pagou um preço caro pela audácia, pois foi também
levada/ceifada nesse embate físico e metafísico.
E essa ambiguidade vai perpassar toda a obra, até mesmo no final da narrativa,
pois, como já afirmamos, embora diga que o “Diabo não há”, Riobaldo acena para o
contraditório (“É o que eu digo, se for”). Assim, se o que existe é o “homem humano”,
essa maldade também está em Riobaldo, que vai ser outro a pagar um preço caro
por por ter se deixado levar pelo “demônio interior”, já que perde o amor de sua
vida no embate com o Cão. Embora haja alguns elementos maniqueístas na obra –
que separe os perversos Hermógenes e Ricardão de personagens como Riobaldo e
Diadorim –, GSV tenta superar um maniqueísmo reducionista, pois o mal em geral vigora
no homem, que pode ou não lutar com esse mal – tanto que umas das alcunhas com
que o Diabo é referido é o de “Solto-Eu”.
Desse modo, ainda que não negue a existência do plano místico, a obra tenta nos
mostrar que as forças que antagonizam no “Grande Sertão” – o bem e o mal – é fruto da
percepção e da ação humana, ou seja, o homem é o palco onde convivem em embate
Deus e o Diabo. Destarte, se, em grande parte da trama, Hermógenes é um homem-
Demo, que figura como a representação do mal; esse mal também se manifesta em
Riobaldo.
A diferença é o que protagonista toma consciência dessa inclinação perversa e
luta contra ela – como vemos na passagem em que é “tentado” a mantar um homem que
vinha montado em uma égua na companhia de uma cachorra: “Com isso, desgostei de
mim. Ah, no final da vez, o que ria o riso principal era ele, o demo. O Tisnado! Assim, por
causa da judiação que eu, mesmo por querer salvar a vida dele, eu tinha procedido de
demorar assim, com aquele homem. Antes tivesse logo matado. Como é que se podia
desrespeitar tudo desse jeito, numa desgraçada pessoa, roupeada? Como é? E o
homem não tinha vislumbrado de espiar para trás, para saber de sua cachorrinha. E a
cachorrinha estava ali, bem amarrada na dignidade. Tanto ela não latia mais, que todos
tinham se esquecido dela. Agora eu colhi em mim um estado de desânimo. A ser, que,
por conta daquele homem, por meus desmandos, quem sabe eu ia ter, mais para
adiante, de pagar, com graves castigos?”
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[1] Narrar para (re)viver [registros da e reinvenção da realidade]:
Enquanto narra, Riobaldo revive o que “já viveu” e revisa essa vida. Afinal, se a
gente vai “existindo” e “mudando” nesse existir, o ato da linguagem também é um
viver/reviver constante e revisar igualmente constante: “Só senti e achei foi em
recordação, que descobri, depois, muitos anos.”. Ou: “Mas eu estou repetindo muito
miudamente, vivendo o que me faltava. Tão minhas coisas, eu sei. Morreu a lua? Mas eu
sou do sentido e reperdido. Sou do deslembrado. Como vago vou. E muitos fatos miúdos
aconteceram. Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha ponto .” Ou ainda: “Falo por
palavras tortas. Conto minha vida, que não entendi. O senhor é homem muito ladino, de
instruída sensatez. Mas não se avexe, não queira chuva em mês de agosto. Já conto, já
venho – falar no assunto que o senhor está de mim esperando. E escute.”
O sujeito que fala abre para si e para o ouvinte/leitor a oportunidade de (re)viver e
se “ver” de novo no que está localizado no passado. Riobaldo, que já havia contado toda
sua estória ao Compadre Quelemém, agora se abre para o “senhor”, o sujeito vindo da
civilização urbana e da cultura letrada tradicional, e faz sua autoanálise, suas
ponderações em busca do melhor entendimento de si e do mundo.
Entre recuos, avanços, reiterações, ponderações, arrependimento, negociações,
Riobaldo vai seguindo um curso sinuoso como a própria vida: “Tão minhas coisas, eu
sei. Morreu a lua? Mas eu sou do sentido e reperdido. Sou do deslembrado. Como vago
vou. E muitos fatos miúdos aconteceram. Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha
ponto”. Assim como acontece em acontece em A Hora da Estrela, de Lispector, o
discurso/arte-literária/arte-de-dizer se confunde com a vida, se confunde com o viver.
E se viver é perigoso, dizer também é perigoso, sinuoso, labiríntico, sujeito às
vicissitudes pois até o mesmo o passado, quando resgatado, pode nos revelar algo
novo, até então insuspeito: “Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! –
só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor
sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num
ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é
muito perigoso?”
O interessante perceber também que é a linguagem é índice do comportamento
psicológico do sujeito em sua relação com os fatos. Muitas vezes, Riobaldo se mostra
confuso, com uma narrativa mais emendada e imprecisa (marcada por paradoxos,
antíteses, elipses ou, pelo contrário, períodos e parágrafos mais alongados), o que
reflete seu comportamento psicológico diante de determinados acontecimentos: “Sei que
estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De
grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. O senhor é
homem de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de pôr denúncia. E
meus feitos já revogaram, prescrição dita. Tenho meu respeito firmado. Agora, sou anta
empoçada, ninguém me caça. Da vida pouco me resta – só o deo-gratias; e o troco.
Bobéia.” Ou: “Não. Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e
batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte.” Ou ainda: “O senhor sabe?: não
acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço,
querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero
enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não
houve. As vezes não é fácil. Fé que não é.”
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[2] Costurando a linguagem [Riobaldo-Cerzidor]:
Por outro lado, a linguagem também pode ser uma forma de manipulação ou
de afirmação de poder, pois o sujeito que “diz” é um ser empoderado e pode acabar
dizendo, em uma dada circunstância, defendendo seus interesses – como vemos, por
exemplo, na forma Riobaldo como tenta convencer o “senhor”/interlocutor da inexistência
do Diabo, pois precisava dessa confirmação para se sentir melhor consigo mesmo em
seus tormentos existenciais.
De “boa lábia” (“anta empoçada que ninguém caça”), Riobaldo encanta a
assistência com sua retórica: “O senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe
agradeço. Se vê que o senhor sabe muito, em idéia firme, além de ter carta de doutor.
Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos prazeres.” O narrador manipula o
visitante letrado, visivelmente um forasteiro. Fala repetitiva e paradoxal como a de Maria
Mutema, o ex-jagunço consegue conduzir seu interlocutor, que fica mudo face ao fluxo
de palavras do narrador. Riobaldo envolve seu interlocutor numa teia de informações
que às vezes se contradizem ou se misturam numa constelação verbal densa e
emaranhada, fio da meada difícil de se desenrolar.
É bem verdade que Riobaldo se abre até mesmo em seus defeitos, em seus
sentimentos mais íntimos – ou seja ele não nega a se mostrar em suas possíveis
invirtudes. Mas ainda assim, não devemos ter o protagonista de GSV como alguém que
esteja acima de qualquer suspeita. Isso porque, se no plano da vida, ele agiu, em alguns
momentos, de forma moralmente questionável, sabemos que, no plano discurso, isso
pode também ocorrer. E Riobaldo (ardiloso, ladino, sedutor, o Cerzidor que costura o
tecido narrativo), como um centralizador da narrativa, é um homem vivido e esperto,
que tenta, eventualmente, conduzir a estória conforme os seus propósitos – reprováveis
ou não.
E essa possibilidade é aventada, indiretamente, quando Riobaldo fala do rapaz
que modificou arbitrariamente o final do causo envolvendo Davião e Faustino: “Apreciei
demais essa continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de
alta instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros movimentos, sem os
erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça? (...) No real da
vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por
exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso.” Ou seja, se a vida
em si não pode ser contornada, modificada segundo a vontade humano, temos o recurso
escapista do discurso que pode alterar essa realidade no plano psicológico como forma
compensação.
Mas a palavra é também instrumento de libertação, dizer é se curar na catarse
do exercício verbal. Falar cura, expurga, redime. Por isso Riobaldo fala – e como fala! –,
expõe em um turbilhão de palavras, um rio caudaloso de palavras. O outro que me ouve
é meu canal de conexão comigo mesmo e com o mundo para que eu possa tentar curar
minhas feridas, resgatar meus traumas, trabalhar o meu caráter na travessia da vida.
60
Por outro lado, paradoxalmente, Riobaldo também reflete sobre a inutilidade da
palavra (a pretensão humana de apreender o inapreensível por meio da linguagem
verbal) para expressar o inefável ou para expressar alguma camada mais
complexa/recôntida da alma humana. A palavra seria, nesse aspecto, um instrumento
débil para dar conta do inapreensível, o não redutível – e, em mais esse aspecto,
encontramos um ponto de intersecção entre a prosa de Rosa e a novela A Hora da
Estrela, de Clarice Lispector. E assim diz Riobaldo: “E eu não tinha medo mais. Eu? O
sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute
desarmado. O sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe contei eu
não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.”
Por conta desse novo aspecto, a prosa roseana experimenta e extrapola os níveis
da linguagem convencional – construído frases que fogem às convenções, empregando
neologismos ou lançando mão do paradoxo – buscando alcançar, por meio de uma
verbo novo/anormal/místico o que o racionalismo da palavra comum não daria conta.
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um nome, ver o quê. Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe. Da razão
desse encoberto, nem resumi curiosidades. Caso de algum crime arrependido, fosse,
fuga de alguma outra parte; ou devoção a um santo-forte. Mas havendo o ele querer que
só eu soubesse, e que só eu esse nome verdadeiro pronunciasse. Entendi aquele valor.
Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade
dele, ele me dava. E amizade dada é amor.” Ou: “Assim foi que, nesse arraiar de
instantes, eu tornei a me exaltar de Diadorim, com esta alegria, que de amor achei.
Alforria é isso. Sobre mesmo a pé, e com o peso completo, caminhar pelos Gerais
parecia que pouquinho me cansava. Diadorim – o nome perpetual. Mas os caminhos é
que estão se jazendo em tudo no chão, sempre uns contra os outros; retorce que os
falsíssimos do demo se reproduzem. O senhor vá me ouvindo, vá mais me entendendo.”
E assim não só antropônimos, como também os topônimos, zoônimos, vocábulos
empregados na narrativa, construções neológicas ou construções frasais estilizadas,
tudo guarda um sentido, uma conexão com as questões psicológicas, existenciais ou
metafisicas que o autor deseja tratar. Em Rosa, portanto, a essência da estória não está
apenas nas questões humanas, sociais ou existenciais retratadas, mas também (em
grande potência) está na linguagem literária criativamente trabalhada e que nos elucida
e nos mergulha esteticamente na realidade retratada.
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mulher e filhos. Todos estes homens aparecem apenas como progenitores de filhos
ilegítimos ou secretos, se não é que se destacam como defensores de uma castidade
guerreira que desvia todas as forças para o combate. Medeiro Vaz abandona a vida
sedentária e queima sua fazenda, Zé Bebelo segue o exemplo de Joãozinho Bem-Bem –
o tema “sempre sem mulher e valente em qualquer combate”.
A percepção de Diadorim, ao ver os estupros promovidos pelos jagunços
(incluindo o próprio Riobaldo, que chega a poetizar uma ação de estupro), mostra a
consciência crítica da filha de Joca Ramiro sobre a condição da mulher nesse Grande
Sertão: “E eu era igual àqueles homens? Era. Com não terem mulher nenhuma lá, eles
sacolejavam bestialidades. – ‘Saindo por aí’, – dizia um – ‘qualquer uma que seja, não
me escapole!’ Ao que contavam casos de mocinhas ensinadas por eles,
aproveitavelmente, de seguida, em horas safadas. – ‘Mulher é gente tão infeliz...’ – me
disse Diadorim, uma vez, depois que tinha ouvido as estórias. Aqueles homens, quando
estavam precisando, eles tinham aca, almiscravam. Achavam, manejavam. Deus me
livrou de endurecer nesses costumes perpétuos”. Embora diga que não queria se
endurecer nesses costumes, Riobaldo, como se pode ver na cena que se segue,
também lança mão da violência sexual para saciar sua sanha sexual – e chega a
poetizar tal ato: “Tanto gritava, que xingava, tanto me mordia, e as unhas tinha. Ao cabo,
que pude, a moça – fechados os olhos – não bulia; não fosse o coração dela rebater no
meu peito, eu entrevia medo. Mas eu não podia esbarrar. Assim tanto, de repente vindo,
ela estremeceuzinha. Daí, abriu os olhos, aceitou minha ação, arfou seus prazeres,
constituído milagre. Para mim, era como eu tivesse os mais amores! Pudesse, levava
essa moça comigo, fiel. Mas, depois, num sítio perto da Serra Nova, foi uma outra, a
moreninha miúda, e essa se sujeitou fria estendida, para mim ficou de pedras e terra.
Ah, era que nem eu nos medonhos fosse – e, o senhor crê? – a mocinha me agüentava
era num rezar, tempos além.”
Esse “lugar” de submissão a que a mulher é relegado pode ser ilustrado pela
condição de Diadorim, que precisou abrir mão de sua feminilidade para viver com um pai
que quis fazer dela um ser diferente: “O menino estava molhando as mãos na água
vermelha, esteve tempo pensando. Dando fim, sem me encarar, declarou assim: – “Sou
diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito
diferente...” Embora o pai fosse alguém amado e respeitado por Diadorim, não podemos
deixar de problematizar a criação a que ele submeteu a própria filha, suprimida de seu
“ser mulher”.
E diante dessa situação vivida por Diadorim: fica algumas perguntas que não se
respondem: Por que essa menina-moça foi convertida em menino-guerreiro? Por que
Maria Deodolina se sentiu obrigada a sacrificar seu ser-feminino a fim de obedecer à
palavra paterna de “ser diferente, muito diferente”? Como ela foi criada pelo pai na
Fazenda de São João do Paraíso? Quem é a mãe dessa garota? Como ela lidava com
sua sexualidade feminina? Diadorim é, portanto, um símbolo dessa mulher “forjada” por
esse meio machista que a transformou em “donzela guerreira” tão empenhada em
desempenhar esse papel que a fez abrir mão do amor que ela sentia por Riobaldo: “O
senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de
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guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor... Reze o senhor
por essa minha alma. O senhor acha que a vida é tristonha?”
Por outro lado, foi na condição de “donzela guerreira” que ela pode protagonizar a
grande conquista da obra: pois foi essa mulher quem matou o Diabo-Hermógenes,
que pode, com suas próprias mãos, vinga a morte do pai. Embora, essa conquista lhe
custe a vida, Diadorim se consagra como o “guerreiro” que pode vencer o Mal e
restabelecer a ordem e a justiça.
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idioma de que faz uso: “A língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam
apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a bênção eclesiástica e científica.
Entretanto, como sou sertanejo, a falta de tais formalidades não me preocupa. Minha
amante é mais importante para mim.” Assim, conforme o próprio autor afirma na
entrevista que a Günter Lorenz, seu método de escrita “implica na utilização de cada
palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da
linguagem cotidiana e reduzi-las a seu sentido original”.
Segundo a Profª. Drª. Amanda Teixeira da Silva em sua Dissertação de Mestrado
“Cronos acorrentado: cultura histórica, tempo e memória nos contos de João Guimarães
Rosa”, o autor pontuava que havia dois componentes importantes em sua relação com o
idioma: “O primeiro era o fato de ele considerar a língua como elemento metafísico, e o
segundo se referia às singularidades filológicas do português e do espanhol, que,
segundo Rosa, seriam formadas por processos de origem metafísica, ‘muitas coisas
irracionais, muito que não se pode compreender com a razão pura’”. Assim, para Rosa
escrever é uma experiência que transcende ao uso convencional da língua: “Mas, o mais
importante, sempre, é fugirmos das formas estáticas, cediças, inertes, estereotipadas,
lugares comuns etc. Meus livros são feitos, ou querem ser pelo menos, à base de uma
dinâmica ousada, que se não for atendida, o resultado será pobre e ineficaz” – escrevera
Rosa para tradutora norte-americana, a escritora Harriet De Onis.
Por conta disso, o leitor, ao se enveredar pelos caminhos roseanos, deve estar
atento não só aos aspectos conteudísticos (o enredo, os personagens e as temáticas
abordadas), mas também aos aspectos estéticos/formais, em um texto extremamente
poético e inventivo, onde a forma se casa com o conteúdo. Assim, é preciso mergulhar
nessa obra e se abrir para os desafios, os labirintos e as riquezas formais e temáticas
que ela apresenta, pois, o autor, que jamais procurou uma “linguagem transparentes”
(palavras do próprio Guimarães Rosa na carta para De Onis), quer desafiar o leitor,
despertá-lo de “sua inércia mental, da preguiça, dos hábitos”, para ele tome “consciência
viva do escrito, a cada momento”.
Nessa “alquimia da palavra”, Rosa, parte dos referenciais regionais para um
processo original de recriação linguística, que não tem como intuito descrever o real por
intermédio da linguagem, antes, pretender desfigurá-lo, fazendo com que o leitor vá além
do sertão como espaço físico, para transformá-lo, a partir dos signos linguísticos, em um
novo mundo, o mundo em texto – no qual a linguagem instaura uma espécie de caos
primitivo/mítico, o “caos anterior” (remetendo poeticamente à origem dos homens, da
humanidade – o caráter mitopoético) no qual o sujeito vive sua trajetória fundadora, o
mito da travessia humana.
Como em uma “Babel” linguística (o mundo originário, um caos mitológico, onde
tudo parece se misturar), na prosa roseana o erudito se funde ao popular, os arcaísmos
convivem com os neologismos, onomatopeias se tornam instrumento de relação entre
forma e sentido, o poético se casa com o prosaico/narrativo e o elemento regional se
mescla ao cosmopolita.
Os personagens de Rosa vivem, desse modo, sob a constante possibilidade de
subverter o bom-senso da linguagem comum, rompendo com as normas lógicas tanto na
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dimensão gramatical, quanto semântica ou discursiva. Assim, a linguagem roseana,
ainda que fortemente marcada por componentes regionalistas, não se caracteriza como
reprodução de um dialeto específico de uma ou outra região, mas transcende ao estilo
inventivo e pessoal do autor.
Obviamente que Guimarães Rosa se inspira no falar do interior do sertão, mas
desarticula-o pinçando-os para o status da construção literária. Daí os jogos de palavras,
de ritmos, as metáforas, os neologismos, enfim, a reinvenção da linguagem que remete
a uma proliferação de sentidos. Segundo Raquel de Castro dos Santos, na dissertação
“Veredas de Sagarana: Linguagem, Memória e Verdade”, “O vigor da linguagem permeia
todos os contos, sem exceção. A sua eminência fomenta o nascedouro de novas
palavras e o revigoramento de outras, usadas longinquamente de seu sentido
esteriotipado pelo uso da língua. O neologismo, considerado como marca do autor de
GSV, trata do viço da linguagem, o vigor nomeador, e não indica, somente, aumento
lexical na narrativa”.
Rosa, portanto, faz com que a linguagem deslize do convencional, encontre novas
veredas, imprevisíveis caminhos, com construções sintáticas, ortográficas (veja, por
exemplo, como ele grafa o vocábulo “dança”: “Você quer dansação e desordem...” –
como se a letra “s” sugerisse o ato de dançar), sonoras e rítmicas originais, acentuações
e grasuais, neologismo, que emprestam um caráter bastante poético e inventivo à sua
prosa. Segundo o poeta e crítico Augusto de Campos, “embora revele um notável e
incomum domínio artesanal, a linguagem de Guimarães Rosa também não se confunde
com a dos estilistas da língua, poetizando e musicalizando sua prosa. O seu palavreado
diferente não é constituído propriamente de vocábulos “difíceis” ou desusados, como no
caso de Euclides da Cunha ou Coelho Neto, mas de recriações e invenções forjadas a
partir das virtualidades do idioma, que levam o leitor a constantes descobertas”. A seguir,
apontamos algumas características dessa linguagem:
Interessado na riqueza da poética roseana, neste tópico iremos analisar as
características formais de GSV (a estruturação dos fatos, os recursos estilísticos, a
relação entre Gêneros Literários distintos, entre outros elementos estéticos) e sempre
relacionar com o sentido que ali se descerra.
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vaqueira... e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom era ouvir o mom das
vacas devendo seu leite. Mas, passarinho de bilo no desvéu da madrugada, para toda
tristeza que o pensamento da gente quer, ele repergunta e finge resposta. Tal, de tarde,
o bento-vieira tresvoava, em vai sobre vem sob, rebicando de vôo todo bichinhozinho de
finas asas; pássaro esperto. Ia dechover mais em mais”.
# “A boa surpresa, Diadorim vindo feito um milagre alvo”.
# “Arrepio que fuxicava as folhagens ali, e ia, lá adiante longe, na baixada do rio,
balançar esfiapado o pendão branco das canabravas. Por lá, nas beiras, cantava era o
joão-pobre, pardo, banhador. Me deu saudade de algum buritizal, na ida duma vereda
em capim tem-te que verde, termo da chapada. Saudades, dessas que respondem ao
vento; saudade dos Gerais. O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos buritis todos,
quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí, no
intervalo, o senhor pega o silêncio põe no colo. Eu sou donde eu nasci. Sou de outros
lugares”.
# “Daí, se desceu mais, e, de repente, chegamos numa baixada toda avistada, felizinha
de aprazível, com uma lagoa muito correta, rodeada de buritizal dos mais altos: buriti –
verde que afina e esveste, belimbeleza. E tinha os restos de uma casa, que o tempo
viera destruindo; e um bambual, por antigos plantado; e um ranchinho. ”
# “Antes palavras que picaram em mim uma gastura cansada; mas a voz dele era o
tanto-tanto para o embalo de meu corpo. Noite essa, astúcia que tive uma sonhice:
Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele – os
gostares...”
# “[...] a formosa cidade de São Francisco – que é a que o Rio olha com melhor amor”.
# “Se viam bandos tão compridos de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou
vermelho, desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente.”
[2] quanto no ritmo/musicalidade de algumas frases:
# “Cara de gente, cara cão: determinaram – era o demo.”
# “Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: pão, vem a mão, vem o são, vem o cão.”
# “De campos e matas, vargens e grotas, em cada ponto para trás, dos lados e adiante
da gente, ei eram só soldados, montão, se gerando. Furado-Meio. Serra do Deus-
MeLivre. Passagem da Limeira. Chapada do Covão.”
# “ – Ah, a vida vera é outra! (...) Mesma coisa no barranco do rio, e se descer esse São
Francisco, que aprova, cada lugar é só de um grande senhor, com sua família geral,
seus jagunços mil, ordeiros: ver São Francisco da Arrelia, Januária, Carinhanha, Urubu,
Pilão Arcado, Xiquexique e Sento-Sé.”
[3] plasticidade no registro das paisagens ou na descrição de cenas (ainda que sejam
cenas violentas):
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“Olhava para as costas do Garanço, ela, a mancha, estava ficando de outra cor... O suor
vermelho... Era sangue! Sangue que empapava as costas do Garanço – e eu entendi
demais aquilo. O Garanço parado quieto, sempre empinado com a frente do corpo,
semelhando que o cupim ele tivesse abraçado. A morte é corisco que sempre já veio”.
Nessa trama, o autor também se apropria de características do Gênero
Dramático. Como na cena em que Riobaldo conversa com Diadorim após a passagem
pela fazendo de Sêo Ornelas ou no diálogo entre Zé Bebelo e Riobaldo na passagem
pela Fazenda dos Tucanos:
Ele disse: – “Tenho amigo nenhum, e soldado não tem amigo...”
Eu disse: – “Estou ouvindo.”
Ele disse: – “Eu tenho é a Lei. E soldado tem é a lei...” Eu disse: – “Então, estão
juntos.”
Ele disse: – “Mas agora minha lei e a deles são às diversas: uma contra a outra...”
Eu disse: – “Pois nós, a gente, pobres jagunços, não temos nada disso, a coisa
nenhuma...”
Ele disse: – “Minha lei, sabe qual é que é, Tatarana? É a sorte dos homens
valentes que estou comandando...”
Eu disse: – “É. Mas se o senhor se reengraçar com os soldados, o Governo lhe
repraz e lhe premeia. O senhor é da política. Pois não é? Ô gente – deputado...”
O diálogo com o texto dramático reforça tanto o caráter tenso (dramático) da
cena como o caráter farsesco dessa cena.
[C] Tempo: Ao definir seu estilo de narrador, afirma Riobaldo em certo momento: “A
lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e
sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado,
só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de
alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente
pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto.” Ora, essa fala
determina a predominância do Tempo Psicológico na trama. Embora haja certa
cronologia em uma parte da obra, o condutor da trama é o fluxo de consciência do
personagem-narrador, em seus avanços e recuos (Flashaback/Analepse) no curso
enredístico.
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[1] Discurso Direto:
“Com isso, apertei aquela Ana Duzuza, e ela não agüentou a raiva em meus olhos. –
‘Seô Medeiro Vaz, pois foi ele mesmo próprio quem me contou...’ – ela teve de falar.
Soturnos”.
[2] Discurso Indireto:
# “E a Ana Duzuza me disse, vendendo forte segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar
passar de banda a banda o liso do Sussuarão”.
[3] Discurso Indireto Livre (para mostrar revelar a complexidade e do fluir do
pensamento, o fluxo de consciência, do narrador-Riobaldo, a narrativa faz uso do
Discurso Indireto Livre, mesclando o passado com o presente do personagem-narrador):
# “Com isso, apertei aquela Ana Duzuza, e ela não agüentou a raiva em meus olhos. –
‘Seô Medeiro Vaz, pois foi ele mesmo próprio quem me contou...’ – ela teve de falar.
Soturnos. Não era possível!”
# “Estudei uma dúvida. Ao que será que seria o ser daquele homem, tudo? Algum tinha
referido que ele era casado, com mulher e filhos. Como podia? Ai-de vai, meu
pensamento constante querendo entender a natureza dele, virada diferente de todas, a
inocência daquela maldade. A q”ual que me aluava. O Hermógenes, numa casa, em
certo lugar, com sua mulher, ele fazia festas em suas crianças pequenas, dava
conselho, dava ensino. Daí, saía. Feito lobisomem?”
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culta são alteradas pelo narrador. Nesse sentido, a obra apresenta, do ponto de vista
formal, um dado quase que antropofágico, por misturar o nacional e o estrangeiro, o
erudito e o popular, o oral e o escrito. Identificamos esse dado estilístico em casos como:
“estúrdio asco”; “Eu não era pascácio”; “E ali era um povoado só de papudos e
pernóstico”; “Guardei os olhos, meio momento, na dele, guapo tão aposto [...]”; “De como
primeiro ele, sortuno, não se sobressaía [...]”; etc.
# Intertextualidade: Citação de provérbios/axiomas, ditados populares, bem como
cantigas/parlendas populares da região de Minas Gerais, Bahia e Goiás; Paráfrase de
preceitos filosóficos e provérbios populares; Alusões a personagens e fatos
históricos (Antônio Dó, Neco, Maria da Cruz e a Coluna Prestes), bem como à Bíblia
Sagrada e a literatura alemã (Fausto, de Goethe e Thomas Mann).
# Aforismos: “Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é
questão de opiniães... O sertão está em toda a parte [...]”; “Viver é muito perigoso.”;
“jãdelãfo”
# Aliterações: “Povo práscóvio”; “E eu paga preda”; “Molhei mão em mel, regrei minha
língua [...]”; etc.
# Pleonasmo ou repetição estilística: “Muito demais muito”; “Existe é o homem
humano”; “Eu gostava dele, gostava, gostava, gostava.”etc..
# Estrangeirismos (o sertão mineiro se configura como uma babel – uma cafarnaum de
línguas): emprego de vocábulos pertencentes a outros idiomas (alemão, turco, latim,
inglês) ou o aportuguesamento de alguns termos estrangeiros: “esmarte”, “jãdelafã”, etc.
# Neologismos: “desendoidecer”; “Antesmente”; “refe”; “dansação”; “desarrear”; “Jàjá”;
“despoder”; “diversêia”; “brisbrisa”; “tintipiava”; “olhalão”; “deslúa”; “leleira”; “descovenho”;
“belimbeza”; “tresfuriado”, “estadonho”.
# Frases que apresentam uma ritmicidade que remete ao texto poético em versos.
# Inversões sintáticas: “Mor que depois eu sou – que, a idéia de se atravessar o Liso
do Suassuras, ele Diadorim era que a Medeiro Vaz tinha aconselhado”.
# Metáfora: “Já estou quase barranqueiro”; “jagunço nunca dilata”; “Lei é asada para as
estrelas”; “Não sou homem de meio-dia com orvalho (...).”; “A morte é corisco que
sempre já veio.”; etc.
# Alegoria: “Melhor arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas
não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora,
o senhor já viu uma estranheza? A mandioca doce pode de repente virar azangada –
motivos não sei [...]”; “Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa;
mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que
primeiro se pensou.”
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# Paradoxo/Oxímoro (recurso estilístico que dimensiona as complexidades existenciais
e as contradições humanas): “O senhor ache e não ache.”; “É, e não é.”; “a ida da
vinda”; “Contente, tanto, e descontente, comigo, era que eu estava”.
# Antíteses: “A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois
desinquieta”; “Do ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio que se tem
a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte”.
# Onomatopeias: “[...] já está no blimblim”; “Burumbum!: o cavalo se ajoelhou em queda
[...]”;; “O vento aeiouava”; etc.
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