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Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas


Departamento de Psicologia

Mateus Alves Neves Cezar


Renan Luís da Silva Marinho

Análise Nosológica:
“Memórias de minhas putas tristes”

Belo Horizonte
2023
Nos "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade," obra seminal do renomado psicanalista
Sigmund Freud, o autor desvenda aspectos intrigantes e revolucionários sobre a sexualidade
humana. Freud mergulha nas profundezas da sexualidade infantil, desafiando concepções
estabelecidas ao sustentar que os alicerces da sexualidade são lançados na infância, antes mesmo da
puberdade. Essa perspectiva inaugura uma nova era na compreensão da sexualidade, destacando a
existência de uma "sexualidade infantil" com experiências e desejos singulares. Dentro dessa
exploração pioneira, Freud aborda as chamadas "perversões sexuais," subvertendo a visão
tradicional que as considerava simples desvios da norma. Ele propõe que as perversões são
expressões sexuais com raízes na infância, variações normais do desenvolvimento humano. Essa
análise incisiva inclui uma investigação das fantasias sexuais e como influenciam o comportamento
sexual na vida adulta.
Ao esboçar seu modelo do desenvolvimento psicossexual, Freud delineia estágios
fundamentais, como a fase oral, anal, fálica, de latência e genital. Destaca-se a fase fálica como
central na discussão da teoria da sexualidade infantil, evidenciando como experiências e conflitos
nesses estágios moldam a personalidade e a sexualidade na vida adulta. Os impactos dos "Três
Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade" reverberam na psicanálise, desafiando normas sociais
contemporâneas e contribuindo para a evolução da teoria psicanalítica. Nesse contexto, a
abordagem de Freud sobre a sexualidade, embora não isenta de críticas, permanece como uma
contribuição inestimável para a compreensão da complexidade da psique humana.
Em paralelo aos desenvolvimentos pioneiros delineados por Sigmund Freud, as explorações
de Francisco Paes Barreto no capítulo A Solução Perversa, na obra Psicopatologia lacaniana volume
2: Nosologia (Orgs. Antônio Teixeira e Márcia Rosa), lançam uma luz adicional sobre o que diz
respeito à perversão. Barreto amplia e aprofunda as concepções freudianas ao destacar a perversão
como uma estrutura clínica distintiva, elevando-a ao estatuto de elemento fundamental na
compreensão das diferentes manifestações psíquicas. Ao estabelecer a tríade de estruturas clínicas
básicas - neurose, perversão e psicose - Barreto segue as pegadas de Freud, mas introduz nuances
peculiares. Ele associa a neurose ao recalque, a psicose à foraclusão e a perversão ao desmentido,
apresentando-as como diferentes estratégias de relação com a castração. No contexto da teoria da
sexualidade infantil, Barreto explora a forma como cada estrutura lida com a castração, delineando,
assim, as intricadas interações entre o sujeito e o falo.
A análise de Barreto sobre a perversão vai além da simples categorização de desvios sexuais,
adentrando o âmago da dinâmica psíquica. Ele destaca a posição perversa como uma identificação
do sujeito com o falo, envolvendo uma clivagem da posição subjetiva. O fetiche, nesse contexto, é
celebrado como um véu que protege o perverso da angústia, revelando a complexa dança entre o
sujeito, o objeto de gozo e o Outro. Ao adentrar a obra de Barreto, é crucial considerar a evolução
da perversão para além do fetiche, explorando-a sob a perspectiva do objeto "a." Essa diferenciação
da fantasia fundamental entre perverso e neurótico ressalta o papel crucial do objeto na posição
perversa, colocando-o do lado do sujeito, enquanto, no caso do neurótico, permanece no campo do
Outro. Ao alinhar as contribuições de Freud e Barreto, emergem visões complementares sobre a
perversão, oferecendo uma compreensão mais abrangente e refinada das dinâmicas sexuais e
psíquicas. Essas perspectivas entrelaçadas enriquecem o cenário psicanalítico, proporcionando
insights profundos sobre as complexidades inerentes à sexualidade humana e suas manifestações
clínicas.
Perante o elucidado até aqui, pontuamos a intervenção de Freud com os “Três Ensaios”
como um golpe ao estigma moral do termo perversão, até o momento de Freud tida por inversões e
desvios ligados à sexualidade. Trata-se, no entanto, da política das construções discursivas. O
discurso produz os sujeitos que ele procura regular. Freud aponta que no “blablablá” moral
científico estão postulados construções discursivas que delimitam uma pretensa “normalidade”,
para catalogar etiologicamente a sexualidade humana, como uma “perversão” generalizada.
Posteriormente, prova também como a polimorfia infantil deixa resíduos na sexualidade adulta.
Nessa empreitada, Freud desativa uma conotação moral. Uma peculiaridade marcante da posição
subjetiva do perverso é a transferência da angústia associada à castração para o Outro, seja o
parceiro ou a sociedade. Nesse cenário, o perverso assume a posição de objeto do gozo do Outro,
vivenciando a castração de uma maneira singular. Em síntese, a solução perversa emerge como uma
abordagem defensiva e singular para enfrentar as complexidades inerentes à castração e ao desejo
fálico, caracterizando-se por uma relação distinta com o falo, um desmentido subtil da castração e
uma identificação peculiar com o objeto do desejo.
Em uma análise sumária, devemos considerar a solução perversa como uma resposta
peculiar às intricadas questões da psique em relação à castração e ao falo. Em uma análise de
literatura, estudaremos como um “estudo de caso” as implicações dos mecanismos de perversão no
sujeito e a sua proliferação na sociedade, atrás da obra de Gabriel Garcia Márquez, “Memórias de
minhas putas tristes” O livro é narrado em primeira pessoa, cujo enredo é levado através do ponto
de vista de um velho jornalista(não possui um nome) que, ao completar seus noventa anos, decide
comemorar com uma prostituta virgem. Tratando de maneira urgente, ele liga para a dona do
Bordel(Rosa Cabarcas) de uma pequena cidade em que vivia, para que ela trate de atender esse
pedido tão “importante” que surge em sua mente. Rosas Cabarbas enfrenta uma resistência, por ser
uma tafera tão difícil encontrar uma prostituta virgem naquele momento, mas encontra uma jovem
menina, em torno dos 13 anos, para oferecer esse serviço. Delgadina, nome atribuído a menina, vive
em condições de pobreza, trabalhando já muito jovem na produção de roupas em larga escala.
Apesar de não ser tão descrito na obra, Delgadina tem esse recurso para sustentação de vida, não
existindo outra possibilidade sem ser engessar no “trabalho sexual”. Por tratar do ponto de vista
masculino na obra, Delgadina se mostra submissa, vulnerável e aberta para as vontades do velho
jornalista, demonstrando uma característica de realização dos seus desejos sem a mínima
resistência. Ao longo da história são narrados os interesses em estar junto da presença de Delgadina,
demonstrando um romance aparentemente normal e natural, como se a amplitude de idade não fosse
uma questão pessoal para esse velho, que se mostra num caráter jovial e romântico. Rosa Cabarcas
era o meio facilitador para o encontro do jornalista com a menina, cujo encontros eram sempre no
bordel presente nesta cidade. Foi ao surgir um assassinato no bordel de Rosa Cabarcas que instaura
um grande conflito na vivência do jornalista. Ele e a dona do bordel ocultam o cadáver de um
advogado famoso para não espalhar má notícias a cidade, terminando por fim escrevendo uma
manchete no jornal dizendo que o advogado morreu por um atropelamento de trem. Após esse
conflito não teve mais contato com Delgadina, partindo da história com elementos referentes a
solidão, sofrimento e angústia. Esse intenso sofrimento passado pelo velho jornalista intensifica ao,
após encontrar Delgadina por um longo tempo, vê-la novamente no bordel completamente nua,
possuindo acessórios de jóias e brilhantes. Sua impressão naquele momento não é mais da imagem
da pureza que gostava da menina, mas da visão de uma menina prostituta por carregar acessórios de
sedução comum para as prostitutas do bordel. Seu surto ao deparar-se com essa imagem é grande,
fazendo-o quebrar todo o quarto e gritar para a menina “Puta!” várias vezes, como no acesso de
raiva. Devido a essa situação, ele vende grande parte dos seus patrimônios mais valiosos para pagar
o prejuízo a Rosa Cabarcas, que defende Delgadina dizendo que as jóias foram emprestadas para
ela, já que tinha a intenção de fazer uma boa surpresa para ele. Todo o conflito é cessado, e o velho
jornalista deslumbra de algumas lembranças ao sair do bordel. Descendo a rua dos bordéis da
cidade, surge uma lembrança do momento em que seu pai o levava para o acompanhar nos bordéis
quando era criança. Solitário naquele ambiente, enquanto seu pai estava no quarto com alguma
dessas mulheres, uma mulher nua gritando obscenidades o carrega para um quarto e pratica o ato
sexual com ele. Sua lembrança era de sair chorando até a sua casa, tendo dificuldade de dormir
naquele dia por duas horas, cena que ficara cristaliza nos momentos de dormir por algumas semanas
após o ocorrido. Após todas essas lembranças, o velho pensa no futuro, e como serão os restantes
dos seus dias. Planeja suas economia e elabora viver o resto da sua vida ao lado de Delgadina.
Delgadina, personagem vítima de abuso sexual em “Memórias de minhas putas tristes”, é
uma menina colombiana inserida no contexto de vulnerabilidade social, que tem sua liberdade e
autonomia violadas por apresentar condições mínimas de subsistência, sendo atrelada aos serviços
sexuais como alterativa de vida, mesmo para um indivíduo com pouca maturidade que deveria
frequentar escola e ambientes de lazer. Essa prática, enquanto fato social, destaca a posição do
excesso de riqueza e da miséria nessas relações de abuso, que implicam na forma da organização da
sociedade. Neste quadro, uns a procuram e outros a ela se entregam como forma de sobrevivência,
onde são articulados diferentes gradientes da miséria do povo e das paixões dos ricos, conforme
assinalam Machado et al. (1978).
As crianças vítimas dos abusos carregam com esse fato na história de vida. Em qualquer
situação traumática, essa lembrança deixará cicatrizes eternas, podendo levar o sujeito ao intenso
sofrimento mental, prejudicando em várias camadas da sua vida. Gomes(1994) destaca que as
marcas desta violência são visíveis nos corpos e nas mentes, mesmo para aqueles que fazem força
para não ver. A superação desse problema é uma das barreiras mais difíceis de serem passadas,
necessitando de uma ação urgente para pôr fim a essa prática e disseminação de violência.
Vemos que essas dinâmicas perversas tanto no abuso sexual infantil quanto a proliferação na
prostituição infantil são impulsionadas pelo ciclo de violência que tem sua engrenagem ainda em
grande funcionamento. É por isso que devemos destacar a importância do estudo da estrutura
psíquica da perversão e analisar quais são seus impactos na sociedade.
A caracterização da perversão é demonstrada como toda atividade sexual desviante, seja
através de objetos ou atividade de seja lida como fora do socialmente convencional ou aceitável.
Freud associava a perversão como distúrbio sexual infantil, onde certos eventos ou experiências
podem levar numa fixação em um desenvolvimento específico, influência na preferência sexual e na
libido expressa na vida adulta. Tal fato demonstra o ciclo de violência presente na obra “Memórias
de minhas putas tristes”, cujo comportamento desviante o fazia recordar do momento da sua
infância em que fora violado. Georges Lanteri-Laura e Janine Chasseguet-Smirgel argumentam
sobre a perversão uma parada no desenvolvimento psico-sexual, onde há a exclusão do tempo e
uma fixação em um momento específico. É comum autores criminosos perversos apontar que não
veem diferença de idade, sobretudo na passagem quando Delgadina questiona porque o velho se
apaixonou por ela tão velha, e ela responde: “A idade não é a que a gente tem, mas a que a gente
sente”.
A recusa, como mecanismo de defesa apoiado na estrutura psíquica da perversão na análise
psicanalítica, é um mecanismo falho e enfraquecido. Ferraz(2005) demonstra que a recusa não está
presente apenas ao falo, mas é manifestado em outras formas, como na recusa do tempo. Relevante
para o estudo da estrutura psicopatológica da perversão, ele abarca uma percepção traumatizante da
realidade externa, somando a casos de recusa do corpo e recusa da realidade como sinais somáticas
deste mecanismo de defesa. A percepção traumática é revelada no final da obra quando o velho
jornalista recordar de uma memória da sua infância, na qual ele relata após o abuso: “Naquela noite,
desvelado na cama da minha casa pela vergonha do ataque, não consegui dormir mais que uma
hora”.
O que demonstra como uma falha na obra é ausência de tratar com moralidade e
sensibilidade um ato tão comumente presente na sociedade latino-americana, por estruturar o Sul
global como as maiores fontes de miséria e problemas sociais. A lógica da prostituição segue na
estrutura da organização hierárquica das relações de gênero, potencializada por atos violentos,
revelando o papel subalterno das mulheres presente no imaginário social (Gomes, 1994),
potencializar o imaginário através de um romance, ou tratar com mínima sensibilidade sobre o tema
pouca ajuda exterminar as práticas violentas ao tratar com banalidade um tema que é posto com
tanta brutalidade no romance “Memórias de minhas putas tristes”, de Gabriel Garcia Márquez.
Nesse contexto, o sujeito perverso se destaca por uma identificação direta com o falo,
transcendendo a simples aceitação característica dos sujeitos neuróticos. O sujeito perverso, de
maneira única, reconhece a castração, mas sua abordagem é permeada por um desmentido sutil.
Este fenômeno é muitas vezes evidenciado por meio de mecanismos como o fetiche, uma peculiar
celebração ou ocultação da falta fundamental. É importante ressaltar que esse funcionamento deve
ser objeto de estudo, e que parar frear atos violentos, sobretudo de origem perversa, é necessário a
atenção do Estado e veículos de informação para cessar com essa cultura que fera o direito de
milhares de crianças pelo Brasil. Como apontado ao longo do desenvolvimento deste trabalho,
crianças em situação de miséria são as maiores vítimas dessa violência.
A sexualidade perversa do jornalista no contexto apresentado em "Memórias de minhas
putas tristes" pode ser considerada uma expressão da chamada "solução perversa" na medida em
que envolve uma relação sexual desviante e inapropriada com uma criança, no caso, a personagem
Delgadina, uma menina de cerca de 13 anos. Para entender isso, é útil relacionar alguns conceitos
da psicanálise discutidos anteriormente. Na abordagem psicanalítica, a perversão não se refere
apenas a desvios sexuais convencionais, mas também a padrões psíquicos complexos que podem se
manifestar de várias maneiras, incluindo comportamentos sexualmente desviantes. A "solução
perversa" é uma forma de lidar com as complexidades inerentes à castração e ao desejo fálico,
caracterizada por uma relação distinta com o falo, um desmentido sutil da castração e uma
identificação peculiar com o objeto do desejo. No caso do jornalista na obra de Gabriel Garcia
Márquez, sua busca por uma prostituta virgem e sua relação com Delgadina representam uma
expressão perversa, pois ele busca satisfação sexual em uma situação que envolve uma significativa
diferença de idade e poder, além de ser moralmente e legalmente inaceitável. O jornalista projeta
seus desejos em Delgadina, tratando-a como um objeto para sua própria gratificação, sem
considerar a natureza exploradora e abusiva da situação. A recusa do jornalista em reconhecer a
realidade da idade de Delgadina, seu envolvimento em uma prática sexual inadequada com uma
menor e seu comportamento predatório se alinham com características da estrutura psíquica da
perversão discutida anteriormente. Sua resposta ao ver Delgadina no bordel, culminando em um
acesso de raiva, sugere uma ruptura na visão idealizada que ele tinha da menina, confrontando-o
com a realidade da situação.
Portanto, a pedofilia do jornalista na obra pode ser interpretada como uma manifestação da
"solução perversa", destacando a complexidade e as ramificações negativas associadas a essa
estrutura psíquica. Essa análise também destaca a importância de abordar criticamente e condenar
atos de exploração sexual infantil, reconhecendo as implicações psíquicas e sociais envolvidas.

Referências:

Ferraz, Flávio. (2005). "Perversão e Ética: Psicanálise e Criminologia". Editora: Casa do Psicólogo.

Freud, S. (2016). Obras completas, volume 6: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise
fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). (P. C. de Souza, Trad.).
São Paulo: Companhia das Letras.

García Márquez, G. (2004). Memórias de Minhas Putas Tristes. Editora Record.

Gomes, Romeu. (1994). “Prostituição Infantil: uma questão de saúde pública”. Editora SciElo5.

Teixeira, A., & Rosa, M. (Orgs.). (2021). Psicopatologia Lacaniana: Volume 2: Nosologia. (1a ed.;
1a reimp.). Belo Horizonte: Autêntica.

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