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Cassandra Pamplona, Helena Melo Dias, Ana Cleide Guedes Moreira

Desamparo e masoquismo na clínica com mulheres1


Cassandra Pamplona
Helena Melo Dias
Ana Cleide Guedes Moreira

Resumo
A clínica sobre o modo psicopatológico masoquista nos remeteu, neste artigo, ao conceito de
desamparo elaborado por Freud. Na clínica com mulheres que vivenciaram na infância crueldades
e castigos infligidos pela figura materna, observa-se que diante da possibilidade de ser abandonada
pelo objeto amoroso, produz-se intenso sofrimento psíquico que as remetem ao sentimento de
desamparo. Nestes casos, esse masoquismo associado ao desamparo apresenta peculiaridades que
afetam a difícil passagem pela castração e, consequentemente, da condição de menina a mulher.

Palavras-chave
Psicanálise, Psicopatologia fundamental, Masoquismo, Desamparo.

A partir de nossa investigação clínica sobre 2008). Diante da possibilidade de ser


a relação mãe e filha e suas implicações, abandonada pelo objeto amoroso, é pro-
levantamos a hipótese de um modo de duzido intenso sofrimento psíquico que
subjetivação psicopatológico masoquista remete à revivescência do sentimento
e nos centraremos, neste artigo, no con- infantil de desamparo. Nestes casos, em
ceito de desamparo elaborado por Freud e que reiteradamente recorrem na vida
revisado por Birman (2005), para pensá-lo adulta a modos de relações amorosas
em sua articulação com o masoquismo que atualizam essa vivência marcante
feminino. Observam-se, com frequência, de sofrimento psíquico, supomos que a
na clínica com mulheres, as fantasias manifestação masoquista dessas mulheres
construídas em torno da relação mãe e pode ser compreendida à luz do desampa-
filha que reiteradamente comparecem na ro associado ao medo da perda do amor
fala dessas pacientes, com a emergência originário, entendendo-se a mãe como o
da memória infantil. A figura materna se primeiro objeto de amor tanto do menino
faz mais presente quando se configuram quanto da menina, e considerando ainda
relações amorosas conflituosas e virulen- o desamparo enquanto fonte do medo da
tas com parceiros que, em alguns casos, perda do amor daqueles que representam
tornam-se algozes, agredindo, ofendendo, proteção e abrigo (PAMPLONA, DIAS,
violentando-as moral e psiquicamente, o MOREIRA, 2009a). Como afirmou
que põe em destaque o que Freud deno- Freud, “o objeto (é) uma proteção contra
minou de masoquismo feminino (FREUD, toda situação de desamparo” (FREUD,
2007; PAMPLONA, DIAS, MOREIRA, 1996, p.192).

1. Este trabalho foi apresentado na XXX Jornada de Psicanálise do CPMG, em 21/22 de setembro de 2012,
Belo Horizonte/MG.

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Desamparo e masoquismo na clínica com mulheres

Primeiramente, é importante obser- adulta, que acabam por desencadear um


var que reconhecemos com Freud, desde sofrimento psíquico no qual a necessidade
1897, na Carta 69 a Fliess, ao identificar de punição se faz presente. Vejamos o caso
as mentiras histéricas de sedução, que não que chamaremos aqui de Roberta, que vi-
se trata de fatos concretos de maus-tratos, mos longamente investigando, e foi trata-
mas sim de construções fantasísticas ori- do anteriormente no trabalho Masoquismo
ginadas do conflito edipiano e do rochedo e maus-tratos na infância (PAMPLONA,
da castração que fomentam a difícil relação DIAS, MOREIRA, 2009b).
mãe-filha. Todavia, Freud nunca deixou
de tomar em consideração os efeitos Caso clínico
traumáticos e, ainda em 1937, em Análise Roberta tinha 28 anos, solteira, com for-
Terminável e Interminável, afirma que a base mação superior, morava com os pais, em-
da etiologia de todo distúrbio neurótico bora tivesse residido fora de seu Estado de
contém um fator de ordem constitucional origem, quando realizou Pós-Graduação.
e outro de origem traumática. Filha do meio com dois irmãos homens, já
No trabalho intitulado O Problema casados e que residiam no mesmo prédio
Econômico do Masoquismo, Freud (1927) dos pais. Ao procurar atendimento sua
vai apresentar o masoquismo sob três for- principal queixa era vivenciar reitera-
mas. Em relação ao primeiro – o erógeno damente situações conflituosas com o
– observa um prazer-derivado-da-dor, que namorado – divorciado, doze anos mais
também acompanha as duas outras formas velho –, além de agressões verbais e
do masoquismo. O masoquismo moral, constantes conflitos com sua família nu-
considerado a forma mais importante de clear. Roberta atribuía a si mesma o que
expressão masoquista, se manifesta por nomeou como “descontrole emocional”.
uma sensação de culpa, em geral, incons- Falar do pai era retratá-lo como uma
ciente. Tanto nas formas do masoquismo pessoa de pouca conversa, exigente, extre-
feminino quanto no masoquismo moral, os mamente autoritário, crítico, controlador
atos reais são apenas a execução lúdica de e prepotente, que nunca foi carinhoso
fantasias, lembra Freud: com os filhos, e do qual ela admite ter
um medo enorme. Segundo ela, o genitor
“Seus conteúdos manifestos podem ser: era um “desajeitado afetivo”, um “coronel”
amordaçado, amarrado, surrado de for- que mantinha com a esposa uma relação
ma dolorosa, ser açoitado, maltratado, de dominação. A submissão de sua mãe
obrigado à obediência inconteste, sujado a incomodava bastante e a via como
e humilhado. Em casos mais raros, e uma “Amélia”, que era constantemente
apenas com grandes restrições, também desrespeitada, tanto pelo marido quanto
incluem mutilações. É fácil interpretar pelos filhos, inclusive por ela, atitudes que
que, na verdade, o masoquista quer ser a revoltavam, mas também a levavam a
tratado como uma criança pequena, sentir-se culpada.
indefesa e dependente e, acima de tudo, Enriquez (1999) aponta o trabalho
como uma criança desobediente e má” freudiano Bate-se numa criança, como
(FREUD, 1927, p.108). inaugural sobre o masoquismo, do ponto
de vista da gênese das perversões sexuais,
Partindo dessa concepção freudiana, cuja fantasia enquanto fonte de prazer e
supomos que os maus-tratos na infância satisfação sexual (sádica e/ou masoquista)
contribuíram para a constituição de um se traduz na vergonha e na culpa que a
modo de subjetivação psicopatológico ma- acompanham. Nessa psicopatologia a
soquista, nos casos dessas mulheres na vida relação entre os sexos e as gerações é con-
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cebida apenas em termos de dominação- parece confundir o prazer de ser amada


submissão. Isso pode ser assim traduzido: com a dor de ser desprezada, como se, ao
“ser golpeado pelas palavras, tocar e ser deixar-se humilhar, manifestasse a criança
tocado pelas palavras, gozar, sofrer corpo- que ainda habitava Roberta, que gostaria
ralmente as palavras, são para o masoquista de ser tratada como desobediente e má,
meios de satisfazer seus mais indestrutíveis por suas fantasias ambivalentes com rela-
desejos inconscientes” (ENRIQUEZ, 1999, ção a seus objetos.
p.103 e 112). A conduta de sua genitora intensifi-
Na dinâmica familiar de Roberta pare- cava seus conflitos e parecia apontar para
cia existir um discurso de desqualificação uma dificuldade dessa mãe em lidar com
feminina no qual a mulher era sempre suas próprias questões edípicas, além de
colocada na posição de desmerecimento, revelar a violência a que também pode ter
de menos-valia, tanto pelo pai quanto pe- sido submetida. Roberta parece deslizar
los irmãos, o que se repetia na relação de entre identificações inaceitáveis cujos ato-
Roberta com o namorado que não a respei- res são o ‘pai-coronel’ e uma ‘mãe-Amélia’,
tava, muitas vezes mandando-a calar-se, embora negando tal evidência. Repetia
em discussões acaloradas. Sabemos que sintomas maternos dos quais parecia
“é pela inibição do pensamento imposta [por nada saber, embora já revelados durante
aqueles a quem amamos] que se efetua, com o tratamento, o que nos leva a pensar no
maior segurança, o recalque da sexualidade e que Freud chamou de ‘imitação histérica’,
a submissão moral das mulheres – mas, a que que é originada de uma semelhança de
preço!” (MILLOT, 1987, p.29). elementos conservados no inconsciente
Esse discurso cultural também bra- (FREUD, 1987, p.163) e que mais tarde
sileiro da “mulher Amélia” – mulher sub- conceituou como identificação.
missa, pronta a ceder ao desejo do outro No percurso da análise, Roberta recu-
– fez-nos refletir sobre o trabalho “Dife- perou lembranças infantis plenas de pathos
rentes momentos da evolução feminina” e violência, como a de uma ocasião em que
(FUKS, 2002), no qual a autora ressalta, a mãe estava no banho, e ela e o irmão
na reconstrução da história das mulheres começaram a brigar por causa de um resti-
ao longo dos séculos, a dominação social nho de farinha de tapioca que disputavam.
do masculino sobre o feminino e analisa Quando já se engalfinhavam, a genitora
a posição ocupada pelo homem: saiu do banheiro enrolada numa toalha e
virou na boca da menina um copo inteiro
“As atividades valorizadas são as exerci- de farinha. Nesse instante Roberta pensou
das pelos homens; o masculino é designa- que iria morrer: sem fôlego, engasgou-se,
do por valores positivos e o feminino, por teve que ser socorrida pela mãe que ficou
valores negativos. Uma única função es- muito assustada com o que, furiosa, fizera.
capa a essa desvalorização sistemática: a Mas para Roberta era difícil reconhecer e
maternidade – mas nem por isso a mulher admitir a violência materna, que efetiva-
deixa de ser uma ‘outra’, inferior e subor- mente colocou sua vida em perigo, nesse
dinada, tendo valor apenas a descendên- episódio de maus-tratos que, sem dúvida,
cia que ela gera” (FUKS, 2002, p.106). constituiu uma situação traumática de de-
samparo, no sentido freudiano (FREUD,
No complicado romance familiar e 1926-1925/1996, p.191).
nas suas relações amorosas, Roberta já Mas a violência vivida na família não
vivenciou inúmeros rompimentos, se- se restringia aos maus-tratos maternos, e
guidos de pedidos de desculpas, em uma numa cena que ela relatou com dolorosa
compulsiva repetição masoquista. Ela dificuldade, estava com uns seis anos,
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Desamparo e masoquismo na clínica com mulheres

quando foi abusada sexualmente pelo periência do desamparo. A solidão que


avô paterno, que sentado na cabeceira da esta experiência implica é insuportável
mesa, lugar de poder na família, e com ela para essas individualidades, de forma
de pé ao seu lado, por debaixo da toalha que elas preferem se agarrar à fábula
passava a mão por seus genitais, enquanto fálica do outro do que suportar o real da
ela ficava atônita e estarrecida, sem saber o angústia. Portanto, o que caracteriza a
que fazer por um período que lhe pareceu subjetividade masoquista não é o desejo
interminável, até que alguém a chamou primário de ser humilhado, ou tampouco
e ela se deslocou. Guardou isso como o desejo de sentir dor. Estes são desejos
um segredo penoso que só veio revelar que o perpassam, sem dúvida, mas de
anos depois em sua análise. Nesse ponto maneira secundárias, derivações que são
claramente identificou-se com sua mãe, da impossibilidade de suportar o desam-
revelando ainda que o avô tentara beijar paro” (BIRMAN, 2005, p.47).
sua mãe à força, razão por que foi expulso
da casa por seu pai. Considerações finais
Roberta trazia, repetidamente, um Este parece ter sido o único caminho que
sentimento de menos-valia, de pouco Roberta se permitiu seguir: submeter-se
amor próprio e inferioridade, indican- ao outro. Escolhendo casar-se, mesmo
do dificuldades na constituição de um sabendo de antemão as dificuldades e o
narcisismo que lhe permitisse entrar em sofrimento que já enfrentava nesse par,
contato com seus próprios sentimentos nada foi empecilho à sua busca de um
hostis, decorrentes das sucessivas agres- objeto para se fundir, negando a angústia
sões familiares que relatava, as quais, e o sentimento de desamparo que, para a
mesmo sob transferência, a levavam a psicanálise, são fundamentos psicopatoló-
resistir tenazmente em fazer avançar sua gicos irredutíveis da condição humana.M
análise, sempre colocando a analista no
lugar daquela que seria capaz de defendê
-la, refugiando-se na posição infantil de HELPLESSNESS AND MASOCHISM
vítima desamparada diante do outro vio- IN THE CLINIC WITH WOMEN
lento. Desse modo, Roberta evidenciava a
satisfação de um sentimento inconsciente Abstract
de culpa, que se satisfazia na injunção Our clinical work on psychopathologic
superegoica de sofrer para ser amada. Isso masochist led us to the concept of helpless-
irá repetir na relação com o namorado, ness such as developed by Freud. In clinical
quando anunciou que pretendia se casar work with women who have experienced in
e abandonar a análise, idealizando que childhood cruelties and punishments inflicted
nesse casamento iria encontrar a solução by the mother figure, we observed a intense
de sua vida. mental suffering that relates to the feeling
Birman, no capítulo intitulado “A of helplessness due to the possibility of being
sustentável leveza do psicanalista: varia- abandoned by the love object. In such cases,
ções sobre o desamparo e a feminilidade”, masochism associated to helplessness shows
ressalta: peculiarities that affect the difficult passage
through castration and hence to the condition
“Na posição masoquista, o sujeito se of becoming a woman.
agarra e se cola a um outro, oferecen-
do a este, em contrapartida, seu corpo Keywords
como objeto de gozo, para assim evitar, Psychoanalysis, Fundamental psychopathol-
custe o que custar, a tragicidade da ex- ogy, Masochism, Helplessness.
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Cassandra Pamplona, Helena Melo Dias, Ana Cleide Guedes Moreira

apresentado no 6º CONPSI - 6º Congresso Norte


Bibliografia e Nordeste de Psicologia. Belém/Pará, 2009b.

BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise


e as novas formas de subjetivação. 5.ed. Rio de R ECEBI DO EM : 17/ 09/ 2012
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. A P R OVA DO EM : 20/ 09/ 2012

ENRIQUEZ, M. Nas encruzilhadas do ódio: para- S OB RE A S AUT ORA S


nóia, masoquismo, apatia. Trad. Martha Gambini.
São Paulo: Escuta, 1999. Cassandra Regina de Amorim Pamplona
Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicologia
FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Clínica pela Pontifícia Universidade Católica
ESB, v.IV. Rio de Janeiro: Imago, 1987. de São Paulo/PUC-SP. Pesquisadora
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Janeiro: Imago, 1987.
Helena Maria Melo Dias
FREUD, S. O problema econômico do masoquismo Psicóloga. Psicanalista. Professora Adjunta III
(1924). Escritos sobre a psicologia do inconsciente, da Universidade do Estado do Pará/UEPa.
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ral da tradução Luiz Alberto Hanns; trads. Claudia pela Pontifícia Universidade Católica
Dornbusch...[et al.]; consultores da teoria da trad. de São Paulo/PUC-SP. Membro da Associação
João Azenha Jr. e Suzana Kampff Lages]. Rio de Universitária de Pesquisa em Psicopatologia
Janeiro: Imago, 2007. Fundamental/AUPPF. Pesquisadora
do Laboratório de Psicanálise
FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade e Psicopatologia Fundamental/LPPF/UFPa.
(1926[1925]). ESB, v.XX. Rio de Janeiro: Imago,
1996. Ana Cleide Guedes Moreira
Psicóloga. Psicanalista. Professora
FREUD, S. Análise terminável e interminável na Graduação e Pós-Graduação em Psicologia
(1937 [1936]). ESB, v.XXIII. Rio de Janeiro: da Universidade Federal do Pará/UFPa.
Imago, 1996. Mestrado e Doutorado em Psicologia Clínica
pela Pontifícia Universidade Católica
FUKS, L.B. Diferentes momentos da evolução de São Paulo/PUC-SP. Membro da Associação
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C.; BREYTON, D. M. [Orgs.]. Figuras clínicas do Fundamental/AUPPF. Diretora do Laboratório
feminino no mal-estar contemporâneo. São Paulo: de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental/
Escuta, 2002. LPPF/UFPa.

MILLOT, C. Freud antipedagogo. Rio de Janeiro: Endereço para correspondência:


Jorge Zahar, 1987. Rua Boaventura da Silva, 361/1404 – Reduto
66053-050 – BELÉM/PA
PAMPLONA, C.; DIAS, H.; MOREIRA, A.C. Tel.: (91)3224-0903
Masoquismo feminino e maus-tratos maternos. Tra- E-mail: cassandra.pamplona@gmail.com
balho apresentado 3º Congresso Internacional de
Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Niterói
– RJ, 2008. Publicado em <www.psicopatologia-
fundamental.org>

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Masoquismo e a noção de desamparo na clínica com
mulheres. Trabalho apresentado no Colóquio Inter-
nacional sobre o Método Clínico, em São Paulo,
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Maus-tratos na infância e masoquismo. Trabalho

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