Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
A autora compara a formação de sintomas na clínica psicanalítica da fobia com a verdadeira
irrupção do real vista em acontecimentos recentes, como no episódio da mina do Córrego do
Feijão em Brumadinho (MG). Lacan trata o Real pelo Simbólico, abordando o estranho familiar
[das Unheimliche] em cada um de nós. A capacidade de elaboração do estresse pós-traumático
pede não só a palavra que toca o corpo como letra de gozo, mas também a elucidação de pontos
da história de cada um que, de uma maneira estranhamente (in)familiar, se fixou em traumas
infantis. Esses pontos de real nos deixam agitados e aturdidos. E para eles faltam palavras.
1. Trabalho apresentado no X Fórum Mineiro de Psicanálise. Divinópolis (MG), 12-13 jul. 2019.
O infamiliar é o retorno de algo, prin- sim, como uma placa giratória [...] Ela
cipalmente de cunho sexual, que deveria gira mais do que comumente para as
ficar escondido e que volta a incomodar. duas grandes ordens de neurose, a his-
Da definição dos Irmãos Grimm, usa- teria e a neurose obsessiva, e também
da por Freud em O estranho ([1919] 1996), realiza a junção com a estrutura da
tiramos: heimliche é doméstico, familiar, perversão; [...] Ela é muito menos uma
caseiro, aconchegante, secreto, oculto, entidade clínica isolável do que uma
velado ao conhecimento de fora, relativo figura clinicamente ilustrada de ma-
à casa, ao lar. neira espetacular, sem dúvida, mas em
Unheimliche tem várias traduções: contextos infinitamente diversos (Lacan
estranhamento, sinistro (que ameaça), fu- [1968-1969] 2008, p. 298).
nesto (cheio de maus presságios), esquerdo
(algo que faz parte de nós, mas é visto O estresse pós-traumático
como um lado cego, reprimido) acidente O conceito de estresse pós-traumático
grave, catástrofe. é objeto de estudo tanto pela medicina
Tudo aquilo que era familiar à psi- quanto pela psicologia. Faz parte da DSM-
que foi reprimido e, ao retornar, é visto -IV (Diagnostic and Statistical Manual of
como estranhamente familiar. Freud dá Mental Disorders) e, pelo menos tempo-
o exemplo do trem, onde se assusta com rariamente, incapacita o indivíduo para
sua própria imagem no espelho da porta. exercer suas funções no trabalho (saúde
mental do trabalhador).
Assim como o retorno do totemismo na O recente episódio do rompimento da
infância origina fobias infantis e acentua barragem da mina Córrego do Feijão, da
o complexo paterno como um complexo mineradora Vale, em Brumadinho (MG),
de castração, o retorno do animismo na com quase trezentas mortes e destrui-
infância desenvolve a consciência moral, ção do Rio Paraopeba, em 25 de janeiro
a autocrítica e o sentido de auto-ob- de 2019, pôs em relevo a fragilidade e
servação. A gênese do Supereu parece a ineficácia de um sistema extrativista
depender nesse sentido, do cruzamento exercido amplamente nas Minas Gerais
entre o legado totemista e a superação e aterrorizou a todos pelas proporções do
do narcisismo animista (Dunker, 2019, acontecimento.
p. 210-211). Mais que o Schreck (susto), o tsunami
incontrolável de lama com resíduos tóxi-
A formação de sintomas fóbicos revela cos lavou parte de uma cidade, as depen-
uma enfermidade da metáfora paterna, dências da mineradora e o Rio Paraopeba,
isto é, a maneira pela qual o desejo da tornando-o impróprio à vida.
mãe não é, de forma alguma, portador do O que vimos foi uma verdadeira irrup-
valor simbólico do falo. O discurso da mãe ção do Real, ou seja, mortos, muitos deles
situa, apenas por sugestão, o lugar do pai esquartejados pela força de destruição do
como pai. Daí o sintoma fóbico ser uma rio de lama. Indizível. Faltam palavras. E
suplência da metáfora paterna. O modo quando elas vêm, também estão conta-
como o pai é falado pela mãe retira o peso minadas pela raiva, pela desorientação e
simbólico do pai na palavra da mãe. todo o imaginário fantasioso com o qual
No Seminário 16: de um Outro a outro, tentamos bordejar a pulsão de morte.
Lacan afirma: No resgate das vítimas e, trabalhando
incessantemente há quatro meses, esti-
A fobia não deve ser vista, de modo veram os bombeiros que recebem acom-
algum, como uma entidade clínica, mas panhamento médico e psicológico desde
54 Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p.53 – 58 • jun. 2020
Vanessa Campos Santoro
então. E muitos deles chegaram a nossos em que a pessoa foi confrontada com a
consultórios, na tentativa de pôr palavra morte ou grave ferimento em si, ou em
onde só havia destruição e morte. outras pessoas, com resposta de intenso
O trabalho de resgate de vítimas medo, impotência ou horror.
e de corpos foi intenso nos primeiros O evento traumático é revivido em
meses. No consultório, os bombeiros recordações aflitivas recorrentes e in-
atendidos relatavam minuciosamente trusivas, e em pesadelos. Um fenômeno
o vivido, repetindo as façanhas de sal- paradoxal é a reexposição compulsiva a
vamento e o horror das mortes. Corpos eventos potencialmente traumáticos.
despedaçados, casas, ponte, estrada, ci- A diferença principal entre o trata-
dade, tudo soterrado pelo mar de lama. mento psicanalítico e o cognitivo – com-
Tudo era falado exaustivamente. Eles portamental usado para o TEPT é o uso
estavam presos às cenas traumáticas e que se faz da linguagem. A proposta do
só falavam delas. segundo é que o estressado passe a falar
O drama dos familiares desapareci- imediatamente depois do ocorrido para
dos, a esperança de encontrar um parente ultrapassá-lo e se curar, restabelecendo
com vida, a luta para identificar corpos seu eu cognitivo.
e enterrar os mortos, tudo isso repetido Há novas pesquisas que apontam “post
inúmeras vezes por aqueles homens va- traumatic growth”.
lentes e acostumados com fogo, incêndio Na psicanálise, falar é muito impor-
e devastação. tante para conter o desamparo e o horror
Na escuta, além dos relatos, os psi- radical vivido no trauma. Mas é preciso
canalistas pinçaram pontos da história de tomar a fala pelos furos, e não pela clareza
cada sujeito. Relatos da infância, medos da comunicação. A psicanálise parte do
e outras situações traumáticas vividas pressuposto do impossível de dizer – o
começaram a aparecer e, de maneira Real. Falar do trauma é construir bordas
estranhamente (in)familiar, se fixar em em torno do impossível de dizer.
traumas infantis. O que é trauma para a psicanálise?
Esses pontos de Real retornavam O trauma é o encontro com o Real do
com força diante da catástrofe, muitos sexo e o Real da morte, ambas figuras do
deles como impressões, outros como impossível de representar no Simbólico.
traços. Todos indizíveis, trazendo muita O encontro com o Real da castração. O
angústia. À medida que se pôde pôr em trauma vem sempre a posteriori, quando,
palavras essa angústia tão antiga, houve numa repetição, já no Simbólico, a cena
uma melhora daqueles sujeitos. Passaram traumática é retomada e ressignificada,
a dormir, tranquilizavam uma agitação entrando na cadeia significante com seu
constante denominada por eles de “sempre peso de trauma, isto é, o que excede às
alerta”, diminuindo os sintomas corporais representações.
de cefaleia e dores estomacais. Para Freud, o traumático é não a cena,
Embora as buscas estejam no fim, tem mas a lembrança a posteriori da cena que
acontecido um fenômeno ainda por en- faz um efeito de gozo e da qual nos defen-
tender: muitos dos bombeiros se recusam demos fazendo sintoma.
a abandonar o local de trabalho e conti- O trauma se apresenta. O trauma
nuam a procurar na lama algum sinal de não se representa. O trauma é o que não
vida ou resgatar pedaços de corpos. pode ser ligado e integrado nos sistemas
Conforme o DSM-IV os transtornos mnêmicos. É o não representado ou o
do estresse pós-traumático (TEPT) se re- insuficientemente representado, que afeta
ferem à exposição a eventos traumáticos sempre o equilíbrio narcisista.
Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 53 – 58 • jun. 2020 55
O estranhamente infamiliar dos medos
THE STRANGELY
(UN) FAMILIAR OF FEARS Referências
CALDAS, H. Trauma e linguagem: acorda. Opção
Abstract Lacaniana online nova série. São Paulo, ano 6, n. 16,
mar. 2015. ISSN 2177-2673.
The author compares the formation of symp-
toms in the psychoanalytic clinic of phobia CESAROTTO, O. No olho do Outro. São Paulo:
with the true outbreak of the real seen in Iluminares, 1996.
recent events, such as in the episode of the
Córrego do Feijão mine in Brumadinho DUNKER, C. Animismo e indeterminação em
das Unheimlich. In: FREUD, S. O infamiliar (Das
(MG). Lacan treats the Real through the
Unheimliche) seguido de O homem da Areia /
Symbolic, approaching the familiar stranger E.T.A. Hoffmann (1856-1930). Tradução de
[of the Unheimliche] in each of us. The abil- Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares (O ho-
ity to elaborate post-traumatic stress requires mem da areia, tradução de Romero Freitas). Belo
not only the word that touches the body as a Horizonte: Autêntica, 2019. p. 199-218. (Obras
incompletas de Sigmund Freud, 8).
letter of enjoyment, but also the elucidation
of points in the history of each person, who, FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926
in a strangely (in)familiar way, has become [1925]). In: ______. Um estudo autobiográfico,
fixated on childhood traumas. These points of inibições, sintomas e ansiedade, análise leiga e outros
the Real leave us agitated and stunned. For trabalhos (1925-1926). Direção geral da tradução
de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
them, we lack words.
p. 91-167. (Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, 20).
Keywords: Trauma, Formation of symp-
toms in phobia, Unheimliche, Return of the FREUD, S. O ‘estranho’ (1919). In: ______. Uma
repressed, Letter of enjoyment, Bordering the neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918).
Direção geral da tradução de Jayme Salomão.
real by the symbolic, Post-traumatic stress.
Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 237-269. (Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud, 17).
Sobre a autora