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Redação interpretativa desenvolvida através da leitura do artigo “O estranho” de

Freud e do conto literário “O homem de areia” por E.T.A. Hoffmann


Por Maria Luísa Magalhães Leite

Por meio da leitura do conto literário “O homem de areia”, percebe-se como


uma imagem construída pelo imaginário infantil pode criar traumas e, de certa forma,
acompanhar o sujeito ao longo de sua vida. Como dito por Freud, ao longo do texto, o
sentimento do “infamiliar” nos acompanha, pois a vivência do personagem Nathaniel é
relatada e ele parece acreditar com convicção no que experiencia, mas outras
percepções são mostradas com o intuito de causar o sentimento de dúvida. No decorrer
do conto de Hoffmann, essa dúvida flutua, como percebemos, na medida em que o
escritor quer nos deixar ver por meio dos óculos ou do binóculo do demoníaco ótico,
uma vez que ele, talvez, ele mesmo tenha olhado por um instrumento desses (FREUD,
1919, p. 63). Ao mesmo tempo em que o autor traz explicações racionais para as
fantasias de uma criança, o fato de Nathaniel supostamente reconhecer o “Homem de
Areia” no ótico Coppola já na idade adulta tem a ideia de confundir e trazer
questionamentos.
Através de uma perspectiva psicanalítica, Freud afirma que o “medo de perder
os olhos” do personagem pode estar fortemente ligado ao complexo de castração.
Segundo Mello (2007), “é a angústia do sujeito de deixar de ser o desejo da mãe, pois a
lei (Nome-do-Pai) barra esse sujeito e o retira do lugar de objeto do gozo do Outro.
Logo, a castração é definida como um efeito da separação entre o bebê e a mãe”. No
conto, por exemplo, o pai é aquele homem ocupado e que destina um determinado
momento para ficar com a família, mas a socialização entre eles é logo interrompida,
sempre às 21 horas, com a chegada do “Homem de Areia”. De toda forma, é o pai quem
interrompe o momento em família, ou seja, coloca limites e manda todos para a cama. A
morte do pai, em determinada parte da história, acaba por representar o sumiço do
personagem que dá nome ao conto.
Ainda de acordo com Freud, “infamiliar seria tudo o que deveria permanecer em
segredo, oculto, mas que veio à tona”. Portanto, ao analisar o termo por tal definição, a
própria movimentação de uma análise pode ser considerada como o surgimento de
diversas questões que estão relacionadas ao infamiliar, estranho e desconhecido. Se a
ideia é que tenhamos acesso aos conteúdos inconscientes dos analisandos por meio da
associação livre, é possível associarmos as questões recalcadas com o conceito
discutido.
Para exemplificar, trago um caso clínico de uma paciente que tem dificuldade
em reconhecer as suas conquistas e, na maior parte do tempo, age de acordo com o que
os outros esperam dela. Ao longo das sessões, fui tentando compreender melhor o seu
contexto familiar e, a partir disso, a moça começou a associar a sua dificuldade à visão
que o seu pai e os seus vizinhos construíram sobre ela desde cedo. No caso, eles sempre
a taxaram como “preguiçosa” e não a levavam a sério quando esta se mostrava
incomodada com determinadas atitudes. Logo, as movimentações da paciente estão
frequentemente voltadas a impressão que os outros podem ter sobre ela.
Apesar de conseguir tal validação de algumas pessoas – como é o caso dos seus
colegas de graduação, que a enxergam como uma pessoa disciplinada e comprometida -,
não consegue se enxergar dessa maneira. A visão que tiveram sobre ela desde a infância
reflete nas suas relações e, por isso, acaba afetando na forma como a minha paciente dá
valor às suas realizações, sejam elas consideradas grandes ou pequenas. O fato de não
reconhecer o seu mérito e conseguir associar tal questão com o olhar do pai e dos
vizinhos, para mim, pode ser considerado como o surgimento de uma informação
“desconhecida” e que passou a fazer sentido a partir do momento em que foi
relembrada. É o reconhecimento de algo familiar que foi reprimido, ou seja, castrado.
Segundo Freud (1919, p. 72), de sentimento, de qualquer espécie, transforma-se em
angústia por meio do recalque, entre os casos que:
provocam angústia deve haver então um grupo no qual se mostra que esse
angustiante é algo recalcado que retorna. Essa espécie de angustiante seria
então o infamiliar e, nesse caso, seria indiferente se ele mesmo era,
originariamente, angustiante ou se carregava algum outro afeto consigo. Em
segundo lugar, se isso é mesmo a natureza secreta do infamiliar, então
entendemos por que o uso da língua permitiu que o familiar deslizasse para
seu oposto, o infamiliar, uma vez que esse infamiliar nada tem realmente de
novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e
que foi afastado pelo processo de recalcamento.

No conto, o personagem Nathaniel, no final das contas, é retratado como um


sujeito em adoecimento psíquico e que a sua ideia imaginária sobre o “Homem de
Areia” pode corresponder a sua dificuldade em aceitar a realidade como ela é. O seu pai
morreu em um acidente ao lado do advogado que, na sua percepção, era o personagem
assustador contado pela mãe para que os filhos fossem dormir. Ainda segundo Freud
(1919), “O infamiliar é, então, também nesse caso, o que uma vez foi doméstico, o que
há muito é familiar. Mas o prefixo de negação “in-” [Un-] nessa palavra é a marca do
recalcamento. Por fim, é importante concluir que o personagem do conto, assim como a
minha paciente, tem algo em comum: o recalcamento de determinadas questões
traumáticas e o retorno do recalcado, que são revividos por meio de uma impressão ou
quando crenças primitivas superadas parecem novamente confirmadas.

Referências Bibliográficas
SIGMUND, FREUD. O infamiliar. Edição Bilíngue. Autêntica, 1919-2019.
SBARDELOTTO, L.; FERREIRA, D.; PERES, M. I. L.; OLIVEIRA, A. M. M. de. A
Constituição do sujeito na psicanálise. Akró-polis Umuarama, v. 24, n. 2, p. 113-129,
jul./dez. 2016.

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