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INFANTIL: UM DOS NOMES DO INCONSCIENTE


Márcia Rosa

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Gostaria de abordar o tema do infantil tomando como ponto de partida duas
indicações essenciais, embora heterogêneas, dadas por Freud na sua Interpretação de Sonhos.
A primeira delas concerne ao que Freud menciona como sendo o umbigo do sonho.2 Cito:
"(...) existe pelo menos um ponto em todo sonho no qual ele é insondável ⎯ um umbigo, por
assim dizer, que é seu ponto de contato com o desconhecido". Lacan retoma e esclarece esta
indicação de Freud à medida que nos permite ler o umbigo do sonho, tomado como recalque
primário, como um fenômeno significante e que, como tal, aponta o impossível de dizer.
Sendo assim a falta de um significante último, de um significante que possibilitasse ao sujeito
dizer a última palavra, leva a um ponto de carência que não permite concluir. Esta falta de um
significante no Outro Lacan a escreveu com o matema S(A) .
Se mencionamos a importância disto na direção da cura podemos dizer que um sujeito
em análise procurando responder ao "quem sou?" pela vertente do sonho na sua "arquitetura
significante" pode dizer "sou desejo". Neste sentido o cogito do sujeito poderia ser formulado
nos termos: "sonho, portanto desejo" ; entretanto se seguimos na direção do tratamento
apenas esta indicação de Freud esbarramos em um "ponto de carência" que não permite ao
sujeito concluir algo sobre o seu ser.→S(A) 3
É onde torna-se importante a segunda indicação de Freud: a da latência das cenas
infantis que estão na base da formação do sonho. Se, na vertente do umbigo do sonho, o
sujeito se revela como determinado na falta-a-ser mas indeterminado na particularidade de seu
desejo e de seu gozo, a função das cenas infantis é a de permitir que o sujeito encontre as
vias particulares de seu desejo e de seu gozo. Através do material infantil ⎯que Freud
denomina genericamente "cenas infantis"⎯ o sonho desemboca em uma cena de gozo, de
onde parece derivar tudo o que o sujeito vai ser como desejo. →'a' 4
A articulação ao gozo se faz à medida que o levantamento da amnésia infantil faz
falar a criança nas suas disposições perverso-polimorfas (Freud,1905) e a articulação ao
desejo nós a temos à medida que esta disposição perverso-polimorfa é organizada pelo falo: o
"genital" organiza o infantil. (Freud,1923) Nas raízes infantis dos desejos inconscientes
subjacentes ao sonho o Édipo cumpre a sua função.
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Manifestações do infantil: "a neurose infantil"

Se o infantil é um dos nomes do inconsciente, se ele está posto para cada sujeito de
modo latente, interessa-nos verificar como ele se torna manifesto. Assim interessam-nos, em
especial, estas duas manifestações do infantil que são "a neurose infantil "e "as cenas
infantis".
A propósito da "neurose infantil" Freud comenta que "(...)as neuroses de infância têm
a natureza de episódios regulares no desenvolvimento de uma criança, embora muito pouca
atenção ainda se dispense às mesmas. Sinais de neuroses infantis podem ser detectados em
todos os neuróticos adultos sem exceção: mas de modo algum todas as crianças que revelam
esses sinais se tornam neuróticas depois." 5(grifos meus)
No comentário de Freud a "neurose infantil" tem o estatuto de condição sine qua non,
de elemento organizador da neurose adulta, embora fique também assinalado que o fato de
que ela tenha ocorrido não implique na existência de uma neurose na idade adulta. Podemos
lembrar, por exemplo, esta neurose infantil que é a fobia e que, segundo Lacan, se constitui
em uma "placa giratória" que pode girar tanto na direção da neurose quanto na da perversão.
Podemos lembrar também o caso clínico do Homem dos Lobos que tem os sinais de sua
neurose infantil localizados por Freud e que nem por isto é estruturalmente um neurótico.
Levando tais fatos em conta não deixa de ser importante ressaltar que a indicação freudiana
segue sendo a de que todo neurótico adulto fez uma "neurose infantil" ⎯"isto é
absolutamente típico", diz ele em 1909. Se traduzimos o que surge em Freud sob a
designação de "típico" pela designação de "estrutural" a questão que se coloca é a de saber o
que a manifestação da "neurose infantil" assinala , o que é estruturado através dela?
Para responder a esta questão podemos nos remeter inicialmente à Freud em "Inibição,
sintoma e angústia" (1925), texto no qual ele toma a "neurose infantil" de Hans como
paradigmática na articulação entre a angústia e o sintoma. A conclusão a que ele chega neste
momento é a de que a angústia em jogo na formação do sintoma neurótico é a angústia de
castração. Sendo assim o sintoma neurótico é um modo que o sujeito encontra para remediar,
para evitar, para se poupar, para manter em suspenso a angústia de castração.
Não vamos nos deter aqui na releitura do caso Hans feita por Lacan em as relações
de objeto, O Seminário, Livro 4, 6 mas cabe lembrar que Lacan vai enfatizar no caso não o
fato de que Hans teme ser castrado mas o fato de que o pai de Hans se obstina em não querer
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castrá-lo, se obstina em poupá-lo da castração, deixando-o assim em angústia diante da


proximidade do Desejo da Mãe. Não resta a Hans outro recurso senão o de fazer um sintoma
como suplência ao déficit na função paterna.
Que Hans se constitua em um paradigma não só da "neurose infantil" mas também da
neurose adulta se explica à medida que, em toda neurose o Pai Real falha como agente da
castração ⎯temos aí uma definição mesma do que é a neurose. Em outros termos: "(...) a
neurose resulta de uma falha no Édipo remontável segundo os casos, aos diferentes tempos
que o constituem, correspondendo aos diferentes registros da função paterna". 7
Isto posto podemos concluir que a "neurose infantil" é uma das primeiras respostas
que o sujeito dá no que ele esbarra no desejo do Outro, é um dos primeiros modos através do
quais ele lida com a falta no Outro, por isso mesmo o que ela deixa assinalado é que a
castração está em questão. Podemos concluir também que a "neurose infantil" é a
estruturação do sintoma como suplência ao déficit na função paterna; que é a estruturação do
sintoma na sua vertente metafórica fazendo surgir aí o infantil como um dos nomes do
inconsciente estruturado como uma linguagem.

Manifestações do infantil: "as cenas infantis"

Interessa-nos agora o que surge, em Freud, sob a designação de "cenas infantis", termo
sob o qual ele inclui não apenas as lembranças como também as fantasias infantis.
Depois de constatar a existência da sexualidade infantil, Freud (1905) se mostra
surpreso de que até então não se tivesse ocorrido espanto diante da amnésia que a oculta.
Estas lembranças de "experiências impressivas" da primeira infância constituem, segundo
ele, um "núcleo de cristalização"(1900) e, sempre que a oportunidade surge, exerce sua
atração sobre o sujeito. É a este "núcleo de cristalização", como matriz fantasmática, que o
trabalho da análise chega gradativamente a partir de um conjunto de indicações. Freud o
denomina "um traço primário de perversão"(1919) ⎯algo da disposição perverso polimorfa
da criança resta da organização feita pelo falo, resta não significantizado.
Cito Freud: "Uma fantasia desta natureza, nascida, talvez de causas acidentais na
primitiva infância, e retida com o propósito de satisfação auto-erótica, só pode (...) ser
considerada um traço primário de perversão".8 O "traço" é indicado aí pelo termo 'zug' e não
pelo termo 'spur' que é utilizado por Freud para os traços mnêmicos. Podemos pensar que ele
é dito perverso não apenas à medida que "(...) essas fantasias subsistem à parte do conteúdo
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de uma neurose" 9 mas também à medida que a fantasia vincula o sujeito a um gozo que, com
Lacan, podemos nomear 'a'. Isso se levamos em conta que o objeto 'a' é, ao mesmo tempo,
causa do desejo e mais-gozar.
Assim este "núcleo de cristalização", veiculado pelas cenas infantis e denominado
"traço de perversão", condensa em si um resto de gozo que é articulado através do fantasma.
O gozo encontra aí a sua particularização através do objeto 'a', particularização esta que
corresponde a uma fixação pulsional. Se o sonho, ou mesmo as outras formações do
inconsciente, metaforiza a castração e o gozo não aparece aí senão como interdito, entretanto,
através das cenas infantis ele remete a um ponto de fixação pulsional. O trabalho, na análise,
de construção e atravessamento do fantasma se faz no sentido de dialetizá-lo de modo a que o
sujeito, mudando de posição, possa se dizer causado por 'a' . De ' S <> a' a 'a → S '
Podemos concluir que "as cenas infantis" são fundamentais na estruturação do
fantasma; elas fazem surgir o infantil como um dos nomes do inconsciente que pode ser
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definido aí como "(...)a insistência na qual se manifesta o desejo". Assim podemos
associar:
"neurose infantil"→ sintoma → inconsciente como saber
"cenas infantis" → fantasma → inconsciente como desejo.

As vias particulares do desejo

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Menciono então um caso clínico relatado por H. Deutsch e comentado por Lacan.
Trata-se do caso de um sujeito que demanda análise por volta de seus vinte anos e que relata,
no curso desta análise, uma "neurose infantil" que sofreu em torno dos seus sete anos. A
neurose infantil tomou a forma de uma fobia de galinhas.
O sintoma fóbico surgiu em um dia em que a criança estava jogando, de cócoras, no
pátio da granja na qual vivia. Neste momento o irmão mais velho pula sobre ele, monta-lhe
nas costas, imobilizando-o, e lhe diz: "eu sou o galo e você, você é a galinha!" Ele tenta
inutilmente se soltar até o momento em que, estalando de raiva e chorando, grita: "mas eu não
quero ser uma galinha!" A partir daí ele faz uma fobia de galinhas, fobia que desaparece na
mesma época em que ele perde o interesse pelo sexo feminino.
A partir do relato do sintoma fóbico surge a lembrança de uma "cena infantil" anterior
à esta experiência com o irmão. A mãe da criança tinha o hábito de se ocupar do galinheiro e
a criança compartilhava este trabalho com ela, regozijando-se por cada novo ovo posto e
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interessando-se pelo modo como a mãe apalpava o traseiro das galinhas para constatar se
havia ovos ou não. Por sua vez quando a mãe lhe dava banho a criança lhe pedia que lhe
tocasse o traseiro para saber se tinha ovos ou não.

Lacan destaca aí três tempos: um primeiro no qual temos a perversão polimorfa da


criança, um segundo no qual temos a instauração da fobia e, um terceiro, marcado pela
elaboração da posição sexuada do sujeito.
No primeiro tempo ⎯tempo em que a "cena infantil" se presentifica ⎯ constata-se
que o desejo do Outro materno não se constitui em enigma para a criança. A criança se
oferece ao gozo do Outro materno, ocultando o que no Outro é da ordem da falta. Ela o faz
como "galinha" que é cuidada pela mãe e que está apta a prover os ovos, i.é, o mais-gozar do
Outro materno. Através disto, segundo Lacan, o um do traço unário se inscreve no simbólico
⎯uma galinha. O sujeito pode atuar eficazmente mas não sabe segundo qual traço do seu ser
ele o faz.
No segundo tempo ⎯tempo de instauração da "neurose infantil"⎯ é através da
rivalidade narcísica com o irmão que se revela para o sujeito o que ele era, sem sabê-lo. Ao
nomeá-lo como "uma galinha" o irmão instala uma conjunção entre a sua imagem-especular,
⎯ i(a)⎯ imagem de menino-galinha, e o que sustenta esta imagem ⎯o ovo provido
analmente, mais-gozar da mãe. No momento em que se estabelece esta conjunção entre a
imagem de menino-galinha e o desejo da mãe pelos ovos surge a angústia, assinalando o
insuportável desta conjunção.
Há, segundo M. Safouan 12, uma diferença entre representar a galinha e ser a galinha.
O prazer está no representar; à medida que o desejo de ser a galinha da mãe tende a se
realizar, a se satisfazer, o que surge é angústia. A partir do momento em que a criança sabe o
que ela foi no desejo da mãe ela já não pode mais agir como tal. Assim como em Hans ela já
não sabe mais o que fazer com o desejo do Outro materno. Frente à angústia suscitada por
esse desejo ela faz um sintoma fóbico que assinala a presença da "neurose infantil".
No terceiro tempo temos a elaboração da posição sexuada do sujeito que, neste caso
assim como em Hans, desemboca em uma identificação à posição feminina.
Podemos localizar o caso no grafo do desejo :
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S(A) (S D)

demanda de ovos
fantasma:
(S a) d
ser uma galinha desejo do Outro
que põe ovos

sintoma: s(A) A
fobia de galinha Outro materno
m i(a)
menino - galinha irmão - galo

Uma galinha I(A) S

Comentando brevemente o caso vemos que a relação da angústia ao desejo evidencia


que "(...)o desejo é desejo enquanto sua imagem suporte é o equivalente do desejo do Outro".
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Neste caso a imagem que suporta o desejo do Outro, na interpretação fantasmática que a
criança faz deste desejo, é a imagem da galinha que põe os ovos e é se identificando à essa
imagem que ela tenta dar suporte ao desejo da mãe.
É só quando o traço unário, traço simbólico ⎯ uma galinha⎯ se manifesta no campo
narcísico do eu, que temos a emergência da angústia e a formação do sintoma. O que aparece
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no campo do imaginário é o jogo perverso do objeto pequeno 'a' como aposta do sujeito ,
revelando-se que é neste objeto que se sustenta a imagem-especular. Isso poderia ser escrito
S  i(a) mostrando que há uma relação ao mesmo tempo homologa e distinta entre o desejo
e a identificação.
Sendo assim podemos pensar que o trabalho, em análise, deste sujeito seria o de
simbolizar a falta no Outro materno, o que lhe permitiria , indo além da identificação,
sustentar o desejo sem se angustiar.
Conclui-se, portanto, que se o infantil é um dos nomes do inconsciente, trata-se de
fazer falar a criança.
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Bibliografia e nota

1- Retomo neste trabalho parte de um texto apresentado nas VIIIº Jornadas de Trabalho do
Simpósio do Campo Freudiano e publicado no Caderno de Textos daquela Jornada sob o
título: "Algumas notificações sobre as cenas infantis".
2 - Freud, S. -A interpretação de sonhos.In: ESB IV, RJ: Imago,1969, p.119.
3 - Soler ,C. "Acerca del sueno". In:Finales del analisis. Bs.As.: Ed. Manantial, 1988.
4 – ibid..
5 - Freud, S. "Inibição, sintoma e angústia". In: ESB XX, RJ: Imago,1969, p. 172.
6 - Lacan, J. as relações de objeto. In: O Seminário, livro 4. RJ: Jorge Zahar Editor,1995.
7 - Millot , C. Nobodaddy . R..J.: J.Z.E., 1989, p. 49.
8 - Freud, S. "Uma criança é espancada".In: ESB XVII, RJ: Imago, 1969, p. 228.
9 - ibid.,p.230.
10 - Lacan, J. Télévision. Paris: Éditions du Seuil,1974, p.19.
11 - Lacan, J. De um outro ao Outro. In: O Seminário, livro 16 (lição de 07/05/69). Inédito.
12- Safouan, M. Angústia- sintoma- inibição. Campinas, S.P.: Papirus,1986, p.53.
13- Lacan, J. a angústia. In: O Seminário, livro 10 (lição de 21/11/1962). Inédito.
14- Depetris, F.J. "Fobia y suplencia". In: Hacia una clinica de las suplencias, Revista Lazos,
I.D.E.P.(Instituto de Estudios Psicanaliticos),1997, Ed. Fundação Ross, pp. 60 a 63.

OBS. Texto publicado em Alétheia, publicação do Inconsciente, Centro de Estudos


Freudianos, Governador Valadares, n.º 2, 1998.

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