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Franz Kafka diz que um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós.

A frase do
autor de Metamorfose (1915) certamente descreve o impacto que o novo romance de Clecius Alexandre
Duran terá sobre quem o leitor.
Assim como o pequeno protagonista de A Outra Casa, o leitor e a leitora irá perceber que o
fino tecido que encobre os nossos olhos, chamado de realidade, é apenas uma cortina de ilusão que
encobre outra camada de existência mais cruel.
E é justamente aí que reside a excelência da história de Clecius.
Ao longo das páginas, Clecius demonstra claramente porque a Literatura Fantástica se constitui
uma poderosa ferramenta no entendimento e reflexão de questões de nossa sociedade, refutando, assim,
a percepção rasteira de que a Fantasia, a Ficção Científica e o Horror, apenas para ficar nas três
expressões mais populares do Fantástico, se destinam ao mero entretenimento. Este não é o caso aqui
quando nos deparamos com uma história de abuso infantil.
Existem temas naturalmente desafiadores para quem escreve. Há uma forte tendência de que a
uma abordagem mal trabalhada leve a nau da narrativa a sair da rota do literário para ingressar nas
turbulentas águas do panfletário ou da pieguice. Para tanto, mais do que demonstrar força ao segurar o
leme da história é preciso que quem comanda essa embarcação tenha a perícia que só é obtida por meio
da experiência com a escrita e da precisa observação da natureza humana. Essas duas qualidades, que
fazem com quem rochedos sejam evitados e desviados, são bem manejadas pelo autor de A Outra Casa,
obra em que a violência perpetrada contra a infância é trabalhada por Clecius a partir da utilização do
tema da casa assombrada.
Em sua essência, a casa assombrada é definida por Steven J. Mariconda em Icons of Horror
and the Supernatural como “uma habitação que é habitada ou visitada regularmente por um fantasma
ou outra entidade sobrenatural” (2007). Neste ponto é importante lembrar que essa é uma das temáticas
mais antigas da literatura fantástica no sentido de que, desde que o ser humano vive em uma construção,
ela pode ser assolada pela presença de seres além do mundo ordinário.
Na esfera literária, já na Antiguidade podem ser encontradas narrativas dos encontros entre os
vivos e espíritos e entidades em residências e outras construções. Esses relatos dariam origem, com o
passar dos séculos, tanto ao tema da casa assombrada quanto aos contos de fantasmas e se alicerçam
em um conjunto de objetos, motivos e características que remontam ao registro por Plínio o Jovem na
obra litterae curatius scriptae, um conjunto de 247 missivas datadas dos anos 97 a 109 da era cristã.
Considerado um dos primeiros relatos do gênero, o relato do orador grego descreve a
assombração de uma casa pelo espectro de um ancião, o que leva a residência a permanecer fechada a
despeito de sucessivas tentativas de alugá-la ou vendê-la.
Esta situação perdura até a chegada do filósofo Athenodorus que consegue decifrar que o
mistério por trás da aparição está relacionada ao fato de que, quando o morto não é devidamente
enterrado e homenageado, seu espírito pode retornar a sua antiga residência ou local de morte como um
fantasma para assombrar os vivos.
A partir daí, chama a atenção como histórias em que as pessoas são perturbadas por seres
sobrenaturais já trazem no seu título a necessidade de vinculação destas manifestações com espaços
fechados. O castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole, O morro dos ventos uivantes (1847), de
Emily Brontë, “A casa assombrada” (1859), de Charles Dickens, “A casa do juiz” (1891), de Bram
Stoker, “O papel de parede amarelo” (1892), de Charlotte Perkins Gilman, A assombração da casa da
colina (1959), de Shirley Jackson e A casa infernal (1971), de Richard Matherson são apenas alguns
dos exemplos de uma longa tradição fantástica a que vem se somar A Outra Casa, de Clecius Alexandre
Duran.
A persistência do tema da casa assombrada no imaginário humano também se faz sentir em
outro conceito presente no romance que você tem agora em mãos e que é muito caro à literatura
fantástica no século 20 desde o seu surgimento: o unheimlich.
Escrito em 1919, o ensaio de Sigmund Freud que apresenta o unheimlich não existiria sem o
conceito da casa. Como o próprio Freud explica, e aqui tomamos a edição da Companhia das Letras em
que o termo é traduzido como “Inquietante”, vemos que:
A palavra alemão unheimlich é evidentemente o oposto de heimlich,
heimisch, vertraut [doméstico, autóctone, familiar], sendo natural concluir
que algo é assustador justamente por não ser conhecido e familiar. [...] O
inquietante seria sempre algo em que nos achamos desarvorados, por assim
dizer. Quanto melhor a pessoa se orientar em seu ambiente, mais dificilmente
terá a impressão de algo inquietante nas coisas e eventos dele (2010).
O sentimento de desarvoramento mencionado por Freud diante do inquietante encontra sua
perfeita representação literária no comportamento do pequeno protagonista de A Outra Casa em relação
a sua residência quando a noite cai. Neste sentido, é importante destacar que simbolicamente a casa
fornece um sentimento de contenção, abrigo, calor e proteção dos elementos, um sentimento de
intimidade e nutrição. Como tal, ela é uma extensão do arquétipo da Mãe. A casa, assim, é o centro da
existência e da segurança do indivíduo.
Essa ligação casa - inquietante - mãe se coloca como matéria prima promissora para narrativas
fantásticas, quando bem explorada, e certamente esse é o caso aqui no romance de Clecius Alexandre
Duran. Em A Outra Casa vemos como o escritor usa essas conexões para abordar o difícil tema da
violência infantil, promovendo um novo olhar sobre o assunto de forma a evidenciar a monstruosidade
dessa ação.
O inquietante explorado pelos olhos de uma criança serve como denunciador e potencializador
dos efeitos nocivos não apenas físicos, mas principalmente psíquicos sobre a formação do ser infantil,
principalmente quando nos atemos ao fato de que o inquietante parte de algo familiar, próximo a nós,
que se torna estranho e ameaçador.
Escrever mais é escrever demais. Há muitas surpresas e reviravoltas que não foram sequer
apontadas ou mencionadas aqui de forma a garantir o prazer da leitura dessa rica obra. Além de um
representante do melhor que o Fantástico nacional pode nos apresentar hoje, o que o leitor e a leitora
encontrará aqui, ao fim da leitura, é uma reflexão sobre nossa sociedade, nossa natureza e os monstros
interiores que habitam em nossa morada principal: nossa mente. Uma leitura fantástica para você.

Alexander Meireles da Silva é Professor Associado da Universidade Federal de Goiás onde leciona e
orienta pesquisas sobre Literatura Fantástica na Graduação do curso de Letras e na Pós-Graduação em
Estudos da Linguagem. É Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ e Mestre em Literaturas de
Língua Inglesa pela UERJ. Desde 2016 é produtor de conteúdo do canal do youtube Fantasticursos
(youtube.com/fantasticursos) onde ajuda quem cria, pesquisa e leciona a usar a Fantasia, o Gótico, o
Horror e a Ficção Científica para que elas tenham reconhecimento e retorno pelas suas atividades.

FONTES USADAS
FREUD, Sigmund. “O Inquietante (1919)”. In: FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil
(“O homem dos lobos”): além do princípio do prazer e outros textos. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.328-376. (Obras Completas; 14).

MARICONDA, Steven J.. “The Haunted House”. In: JOSHI, S. T. Icons of Horror and the
Supernatural: An Encyclopedia of Our Worst Nightmares. (Vol. 1 & 2). London: Greenwood Press,
2007, p.267-305.

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