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Introdução

Às vezes, somente palavras não são o suficiente para descrever aquilo que sentimos.

O termo “estranho” comporta diferentes significados. Em inglês, ele é tanto


“uncanny”, “queer”, “weird” e “eerie”. Cada um desses termos denota um significado
diferente que passa batido se os traduzirmos literalmente. Em português, esses termos não
carregam a mesma bagagem conceitual que eles têm em sua língua de origem. Eles não
expressam um mesmo significado.
Dentre esses 4 termos, em específico, o significado de Weird e Eerie, assombra os
trabalhos do filósofo e teórico cultural Mark Fisher, sendo inclusive, nome de um de seus
últimos livros. O capital e o sofrimento psíquico decorrente de, diariamente, confrontar suas
estruturas, são a causa de sua depressão, de modo que, o estranho efeito do capital passa a
permear o seu trabalho. É como se, sua obra inteira girasse em torno dessa questão: Como
lidar com uma entidade que, por mais concreto que seus efeitos sejam, possui regras tão
espectrais, efeitos tão assombrológicos, que infectam, não somente a cultura, como também,
a própria forma de nos concebermos? É nessa chave que Mark Fisher começa a análise de seu
livro “The Weird and the Eerie”.
Enquanto que o fenômeno do Weird veio a atenção de Fisher por conta de dois
simpósios que ele frequentou sobre o trabalho de H. P. Lovecraft em Goldsmith; o interesse
pelo Eerie veio à tona com a coprodução, em 2013, de um áudio-ensaio, intitulado On
Vanishing Land, que comenta o estranho sentimento que acompanha as rápidas
transformações da paisagem urbana por conta da influência do capital.
Publicado em 2016, The Weird and the Eerie, ou, o “O Estranho e o Sinistro”, é uma
série de ensaios filosóficos e estéticos que busca compreender o fenômeno do estranho em
produtos culturais. Apesar do sentimento de estranheza permear a obra de Fisher, a análise do
estranho só foi possível no último de seus livros. Isso porque, por mais que o estranho
assombrasse a vida de Fisher, havia uma certa dificuldade conceitual que impedia a
realização da análise.
O estranho e o sinistro são principalmente encontrados nos interstícios de gêneros
como terror e ficção científica, fazendo com que a natureza dos dois seja obscurecida pelo
que há de específico nesses gêneros.
Além disso, há também o fato de que a distinção conceitual entre os dois foi ofuscada
pela definição freudiana do “inquietante”.

Freud
O Inquietante, publicado em 1919, é uma tentativa de teorização do sentimento do
inquietante. Sendo escrito no contexto do fim da primeira guerra, isso justifica o porquê de
Freud não ter ido a fundo em sua pesquisa. Naquela época, os livros de estética apenas
lidavam com “estética positiva”, lidavam com o belo e as afecções boas, não havendo nada
sobre aspectos negativos de nossa experiência como o inquietante, o horror, a angústia. Tanto
que, Freud só encontrou comentários acerca desse sentimento, em tratados médicos como o
de E. Jentsch.
Para Jentsch, o sentimento do inquietante surge de uma incerteza intelectual. É no
limiar entre o real e a fantasia, que o inquietante se situa. Por isso que robôs, manequins,
bonecos, sósias, clones, cadáveres, ou até mesmo a repetição, o destino, nos provocam o
sentimento de inquietante. Contudo, como argumenta Freud, o real significado de inquietante
só se revelará quando considerarmos sua evolução gramatical.
O inquietante, em alemão unheimlich, é oposto a heimlich. Inicialmente, Heimlich é
confiável, lembra intimamente o lar, O bem estar de uma tranquila satisfação, de um
confortável sossego e segura proteção. Porém, se prosseguirmos na leitura dos verbetes de
dicionário, vemos que, Heimlich começa a ganhar os contornos de algo estranho. Em
verbetes mais recentes. Heimlich é descrito como se fosse um lago secado, uma fonte
enterrada, em que a água poderia aparecer de novo. Ele também passa a denotar segredo,
como se tivesse algo a esconder. É nesse sentido que Heimlich começa a ganhar seu duplo
aspecto de um familiar oculto, a presença de um mistério naquilo que antes parecia familiar.
Mas se, na história do emprego da palavra Heimlich, houve um momento em que ela
passou a significar tanto seu sentido usual quanto seu oposto, é nas palavras de Schelling,
citadas por Freud, que o significado de Unheimlich vêm à tona.

"[O inquietante] é tudo aquilo que deveria permanecer em segredo, oculto, mas apareceu"

Fisher

É engraçado para um psicanalista se interessar por estética, e Freud sabe disso. Se ela
vem ao interesse do psicanalista, não é por um âmbito marginal negligenciado, como ele
sugere, mas por um motivo mais insidioso. Mark Fisher diz que, o interesse pelo inquietante,
vem de um movimento duplo domesticação do estranho feito pela psicanálise. Ela estranha os
elementos da família, e para compensar, familiariza o estranho, o exterior. Tudo passa a ser
lido pela cifra familiar, com o exterior assombrando a família, mas sendo uma assombração
que a psicanálise não pode reconhecer, por conceber tudo em termos familiares.
Freud localiza a origem desse sentimento, do inquietante, como estando no medo do
complexo de castração. Seria algo reprimido que retorna, a volta de instâncias psíquicas
primitivas, que por serem superadas, nos são estranhamente familiares. E é por vê-las
retornar, que sentimos medo. O elemento exterior causador do inquietante, nada mais é que,
esse velho-reconhecido.
Não é de se espantar a decepção de Mark Fisher com essa definição. Ela é sintomática
de um recuo secular do exterior, em que, o fora é processado pelos buracos e impasses de um
interior ameaçado. O estranho e o sinistro, são justamente o contrário.
O ensaio de Freud obscurece a definição do Estranho e do Sinistro, pois ele trata
ambos como se fossem termos intercambiáveis. Além disso, é interessante notar a influência
de Freud nos estudos de ficção científica e terror. Os elementos que ele indica como
causadores do sentimento de inquietante: a duplicação, autômatos, próteses e repetições —
nos causam um certo desconforto, não por remeterem a instâncias psíquicas já superadas, mas
sim, por marcarem uma certa relação com o exterior, com aquilo que é estranho.
Mas é preciso nos atentar ao fato de que, o Estranho e o Sinistro não constituem
gêneros por si. É possível encontrar filmes que provocam esses sentimentos — como O
Iluminado de Kubrick, ou mais recente, Sob a Pele, de Jonathan Glazer — mas isso não é o
suficiente para categorizá-los como um gênero em si. Na real, o Estranho e o Sinistro, são
afetos, modos: modos de contar uma história, mas também, modos de percepção, e em última
análise, modos de ser. Essas categorias estéticas estão em direta relação com uma ideia de
sociabilidade, de um certo ser-no-mundo. Daí que deriva sua relação com o exterior.
Essa relação com o exterior é ambígua. Ela não é de toda aterrorizante e repulsiva. Se
este fosse o caso, os trabalhos de H. P. Lovecraft, um dos escritores que melhor soube
representar o Estranho em sua literatura, seriam reduzidos somente a xenofobia e racismo.
Mas, há um certo fascínio pelo exterior, pelo fora, por aquilo que ultrapassa os limites da
compreensão humana. Muitas vezes essa experiência é acompanhada de medo, mas isso não
significa necessariamente que o Estranho e o Sinistro sejam aterrorizantes.

Weird

O Estranho, propriamente dito, é sobre aquilo que não pertence. O Estranho traz ao familiar
algo que está além dele, algo que não pode ser reconciliado com a casa. Ele é a junção de
duas ou mais coisas que não podem e nem deveriam estar uma ao lado da outra. É por isso
que Fisher caracteriza o Estranho como uma perturbação. É um sentimento de que há algo
de muito errado aqui, produzido quando confrontados com um algo tão estranho, mas tão
estranho, que nos faz sentir que ele não deveria existir aqui. Porém, se esse algo se faz
presente, se ele já existe, então, o que está errado não é sua presença. Ele não pode ser errado,
justamente, por já existir. Sendo esse o caso, é nossa concepção que está errada. O Estranho é
uma negação de nossas antigas categorias de pensamento, daquelas que usávamos até agora
para fazer sentido do mundo. É um sinal que as invalida, que mostra o quão limitada é nossa
experiência, o quão limitado é nossa visão de mundo.
Mas é interessante notar que, apesar do Estranho estar relacionado ao sobrenatural, ele
não obedece rigidamente a essa categoria. Tomemos como exemplo criaturas fantásticas
como vampiros e lobisomens. Apesar de eles serem monstros, seres sobrenaturais, não há
nada de estranho neles. Apenas sua aparência é empiricamente monstruosa, mas, eles
obedecem a uma certa lista de critérios inteligíveis que, para eles serem o que eles são, eles
precisam obedecer.
Agora, tudo muda quando consideramos buracos negros. O buraco negro, apesar de
ser um fenômeno natural, é estranho, na medida em que, seus efeitos de distorção do espaço-
tempo estão além de nossa compreensão. Apesar dele pertencer a nosso universo de
referência, ele é um sinal que atesta a insuficiência de nossas categorias em face daquilo que
escapa nossa compreensão.
Essa é a intuição fundamental por trás dos contos de H. P. Lovecraft. A fundamental
premissa de seu trabalho é que, as leis humanas, nossos interesses e emoções, de nada servem
em relação ao vasto cosmos. Em uma carta escrita ao editor da revista Weird Tales, em 1927,
Lovecraft escreve:
Para alcançar a essência da verdadeira externalidade, seja no âmbito
do tempo, do espaço ou da dimensão, é necessário esquecer que
coisas como a vida orgânica, o bem e o mal, o amor e o ódio, e todos
esses atributos locais e temporários de uma raça insignificante e
passageira chamada humanidade, possuam qualquer existência de
fato.

O trabalho de Lovecraft é obcecado pelo fora: o fora que causa uma ruptura na realidade,
encontros com entidades anômalas do passado, que dobram e desdobram a estrutura do
tempo, atingindo um estado catatônico de psicose naqueles que experienciam esse encontro.
A reação das personagens é sempre marcada por um limite. É um limite da compreensão, pois
a criatura escapa a todas estruturas de entendimento humano; um limite da linguagem, que
não encontra palavras capazes descrever o encontro; e um próprio limite humano, na medida
que, o encontro é causa do fim daquele que o testemunha.
Em suma, a escrita Lovecraftiana é estranha pois nela temos uma integração
catastrófica entre o interior e o exterior que é intensificada com o borrar das fronteiras entre o
real e o fictício, que fazem com que sua ficção tenha o mesmo status ontológico que o real,
desrealizando o real, e nesse processo, realizando a ficção. É como se, as criaturas desse
passado remoto, dessa realidade incompreensível, da qual fala Lovecraft, já estivessem aqui,
ou sempre estiveram aqui.

Eerie

O sentimento invocado pelo Sinistro é radicalmente distinto do Estranho. Se o


sentimento do Estranho advém de um sentimento de erro, de um não pertencimento que
coloca em questão as nossas antigas categorias do pensamento; o Sinistro, por outro lado, se
dá na chave metafísica de uma das oposições mais estruturantes do pensamento ocidental,
sendo esta, a da presença e da ausência. Enquanto que o Estranho é marcado por uma
presença que excede nossa capacidade de entendimento, o Sinistro, pelo contrário, é uma
falha da ausência, ou uma falha da presença. O Sinistro surge, justamente, quando há algo
presente onde não deveria haver nada, e onde não há nada, quando deveria haver algo.
O Sinistro, apesar de ser provocado por formas culturais, não se origina nelas.
Histórias, filmes, romances, podem invocar o sentimento do Sinistro. Mas ele em si não é
exclusivamente fílmico nem literário. Um bom exemplo de Sinistro, é na expressão “an eery
cry” em inglês. O choro de alguns pássaros é inquietante, pois ele indica uma falha na
ausência, como se houvesse algo a mais no grito dele. Como se, seu comportamento
estivesse além de um simples reflexo natural e mecânico, fosse intencional, coisa que,
normalmente, não associamos com pássaros e com outros animais silvestres. Há suspense e
especulação no Sinistro, coisa que, não era possível no Estranho, uma vez que, estávamos
lidando com algo que excedia nossa capacidade de pensamento. No Sinistro, por outro lado,
opera na chave da falha do entendimento, na impossibilidade de representar por completo o
encontro com o objeto, gerando suspeita, dúvida e paranoia. O Sinistro invoca o
desconhecido, o mistério, e isso só pode ser causado por um sentido de alteridade, um sentido
que envolve formas de pensamento e subjetividade que estão além de nossa experiência
comum.
Esse sentimento de alteridade, também se faz presente na falha da presença. Enquanto
que a falha na ausência está marcada pelo questionamento da agência de um Outro
desprovido de subjetividade, o segundo modo do Sinistro, se dá quando algo que deveria
estar presente não está. Esse sentimento faz muito sentido quando nos defrontamos com
imagens de construções abandonadas. Cenas de destruição apocalípticas, de cidades
fantasmas, marcadas por um sinistro silêncio. O silêncio é sinistro pois, por mais que não haja
algo que imediatamente nos ameace, justamente, é essa falta que se faz presente.
Esse sentido de falta, se faz mais palpável, quando pensamos sobre espaços liminares.
Neles, a falta se faz palpável, pois justamente, as pessoas desapareceram. Os espaços
liminares são espaços de transição, espaços domésticos marcados pela efemeridade. As
pessoas vêm e vão, mas no final, sempre há pessoas transitando por esses espaços. O espaço
liminal é sinistro, não porque ele é abandonado ou assombrado, mas pelo simples fato de,
não haver ninguém ali, onde deveria haver. Nesse sentido, o espaço liminal invoca um
sentido de alteridade, na medida que, somos confrontados com a própria realidade de nossas
instituições sociais. Nossas construções e instituições, por mais sólidas que pareçam, não
podem sobreviver às marcas do tempo. No espaço liminal, ao perguntar sobre a natureza do
que desapareceu, temos a súbita realização da efemeridade, não só de nós, como também, de
nossos registros simbólicos. Ao sermos confrontados com o súbito desaparecimento, com a
presença de uma ausência, somos levados a confrontar o próprio real impalpável, a realização
de que, nossa cultura, assim que se for nosso registro simbólico, nada mais será que somente
traços. Traços de uma sinistra memória.

[música tocando e o som do slender ficando cada vez mais alto até que:]
E somos levados a perguntar: Mas o que causou essa destruição? [Silêncio, toca
música].

"Deveria ser especialmente claro para aqueles de nós [que vivem] em um mundo capitalista
globalmente interconectado, que essas [as forças do capitalismo] não estão completamente
disponíveis para nossa apreensão sensorial. Uma força como o capital não existe em um
sentido substancial, mas é capaz de produzir praticamente qualquer tipo de efeito… O capital
é, em todos os níveis, uma entidade estranha: convocado a partir do nada, no entanto, o
capital exerce mais influência do que qualquer entidade supostamente substancial.”

Conclusão

Alguns esclarecimentos. Eu disse anteriormente que há um certo aspecto de “fascínio”, uma


dimensão positiva que envolve o Estranho e o Sinistro, de modo que, não é adequado
enquadrar a experiência desses sentimentos como sendo de todo modo aterrorizante. Tais
sentimentos operam na chave de um tipo de “sedução” do exterior. Como por exemplo, o
Estranho pode ser encontrado na experiência da arte modernista. Há um certo sentimento de
“erro”, de que há algo de muito errado aqui, e esse sentimento, provocado ao contato com o
radicalmente diferente, pode ser indicativo do encontro do novo. Da mesma forma como o
Estranho em Lovecraft, o estranho novo provocado pela arte, também implica a dissolução
dos antigos moldes do entendimento. Há um estranho prazer em perceber que o que era antes
familiar e convencional foi ultrapassado, que ele foi subvertido, abrindo a possibilidade de ar
fresco, no que antes já estava velho e mofado.
No Sinistro, essa outra faceta se encontra no distanciamento das urgências de nossa
vida cotidiana. Esse distanciamento é causado menos por um choque, que é um efeito
intrínseco ao Estranho, mas mais por uma serenidade, uma estranha calma, em perceber que
no fundo, nada importa. E isso se relaciona diretamente com o problema central do Sinistro.
O Sinistro é assombrado pela questão da agência. Enquanto que na a falha da presença, o
problema gira em torno da natureza do agente (que nos leva a questionar os propósitos tanto
daqueles que desapareceram, como também, daqueles que causaram o desaparecimento); na
falha da ausência, a questão que fica é justamente sobre a agência do Outro. Esse Outro,
coloca em questão, não só a possibilidade de intenção do Outro, como também, a própria
possibilidade de agenciamento dentro de um mundo sinistro.
A realização de que as forças que dominam nossos interesses e a efemeridade de
nosso cotidiano, no fundo, nada mais são do que subprodutos dessa entidade sinistra que é o
capital, e que as urgências de certas aspirações e sonhos perdidos, são na realidade, fantasias
que sustentam esse nosso estilo de vida insustentável, revelam o fato que, o Estranho e o
Sinistro, mais que fenômenos estéticos, também são fenômenos políticos, e como políticos,
eles dizem respeito a nossos modos de ser, modos de ver, enfim, modos de partilhar o mundo.

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