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Haroldo Prates
A Hora da Estrela
de
Clarice Lispector
“Entre a palavra e o silêncio, entre o que diz e o que está implícito em seu dizer, situa-se o texto de Clarice. ”
(Berta Waldman)
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Estudo da obra – A Hora da Estrela / Clarice Lispector - Parte I
Prof.: Haroldo Prates
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Estudo da obra – A Hora da Estrela / Clarice Lispector - Parte I
Prof.: Haroldo Prates
Antes de começar a contar sobre a vida de Macabéa culpada, em função das imposições morais e sociais
propriamente dita, o narrador revela uma série de coisas, transmitidas pela tia.
como se estivesse conversando com o leitor, justificando o Certo dia, Macabéa mentiu para o patrão que iria
fato dele estar escrevendo esse livro. Rodrigo conta, por arrancar um dente e que então, não poderia ir trabalhar. Na
exemplo, que sente necessidade de contar a história da verdade, deu-se o direito de ficar sem fazer nada. Neste
nordestina porque ela (a história) lhe sufoca; depois, revela mesmo dia, à tarde, ela arrumou um namorado. Estava
que escreve porque ele está desesperado, cansado, e que caindo uma chuvinha mansa, e o moço a convidou para dar
escrevendo ele alcança novidades, e sem isso, uma volta. Ele perguntou qual era a graça dela, e ela
provavelmente, ele teria morrido simbolicamente todos os respondeu: "Macabéa" (até então o leitor não tinha
dias. Rodrigo também revela que, por estar escrevendo sobre conhecimento do nome da protagonista da obra). O moço
a vida de uma pessoa tão simples, ele está de barba, achou estranho o nome, e ela explicou que sua mãe a
vestindo roupas rasgadas, e durante o período em que se escolheu como pagamento de uma promessa (se a menina
dedica a esses livros, ele nem pensa, muito menos sexo e vingasse se chamaria Macabéa).
futebol, nem lê qualquer livro, para que nada o influencie. O nome do namorado de Macabéa, que também era
Em meio às revelações que faz (inclusive alguma nordestino, era Olímpico de Jesus, mas ele se dizia chamar
foram mencionadas anteriormente), Rodrigo (narrador e Olímpico de Jesus Moreira Chaves. Ele era operário de uma
falso-autor) começa a contar sobre a vida de Macabéa. A metalúrgica, mas se dizia metalúrgico. As únicas coisas que
condição de vida dela é igual à de milhares de nordestinos os dois tinha em comum eram: a origem; a infância sofrida
que vivem no Rio ou em outras grandes cidades, sendo que tiveram; e a vida difícil que enfrentam numa terra
sufocados por elas. São pessoas completamente estranha (Rio de Janeiro). Enquanto Macabéa é introvertida
"substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam", e não tem perpectivas; Olímpio é extrovertido e ambicioso,
são pessoas que não sabe se quer reclamar da sua condição almeja se tornar deputado e fazia de tudo para subir na vida
de miséria humana e moral. (em sua terra natal ele já havia matado um homem).
Os pais de Macabéa morreram de "febre ruim" no Com mania de grandeza, um dia, Olímpico quis
Sertão de Alagoas, quando ela tinha apenas dois anos de provar o quanto era forte. Então, levantou Macabéa em um
idade. Macabéa foi criada por uma tia muito ruim, uma beata braço, mas não agüentou. Macabéa caiu de cara na lama e
que a maltratava. machucou o nariz. Olímpico nem ligou, e Macabéa se
Macabéa e a tia mudaram-se para o Rio de Janeiro, desculpou, disse a ele para não se preocupar. Por aí se
onde a beata arrumou um emprego para a sobrinha, numa percebe o quanto Olímpico era ruim e o quanto ele judiava
pequena firma. de Macabéa, mas, mesmo assim, ele era "sua única conexão
A tia de Macabéa morre. Quando isso acontece, a atual com o mundo".
pobre nordestina vai morar num quarto que divide com mais Macabéa adorava ouvir a "Rádio Relógio" num rádio
quatro moças, balconistas das "Lojas Americanas". emprestado, e sua inocência fica muito evidente neste
Macabéa morava na rua do Acre e trabalhava na rua trecho: "Ouvia na Rádio Relógio que havia sete bilhões de
do Lavradio. Ela "só tinha o terceiro ano de primário" e era pessoas no mundo. Ela se sentia perdida. Mas com a
datilógrafa. No trabalho, Macabéa datilografava muitas tendência que tinha para ser feliz logo se consolou: havia
palavras erradas, porque as datilografava de maneira como sete bilhões de pessoas para ajuda-la".
elas são pronunciadas, e em função disso, seu patrão, Seu Olímpico começa a se enteressar por Glória, colega
Raimundo, disse que ela seria despedida. Macabéa, com de trabalho de Macabéa. Ela tinha todos os atributos que
delicadeza pediu desculpas ao patrão pelo transtorno. Ao ver Olímpico e muitos outros homens desejavam: era loura
a reação da moça, Raimundo disse que ela só seria demitida (embora falsa) e tinha muita "carne".
mais adiante. Olímpico terminou tudo com Macabéa, dizendo que
Rodrigo diz que, ela "vivia em tanta mesmice que de ela era um "cabelo na sopa". Ele pediu desculpa se a
noite não se lembrava do que acontecera de manhã". ofendeu, mas quem ele queria mesmo era Glória. Por ser
Às vezes, de madrugada, quando ouvia o galo "carioca da gema" e por outros motivos, Glória representava
cantar, ela sentia saudades do sertão. De madrugada um meio através do qual Olímpico poderia conseguir
também, quando sentia fome, ela mastigava um pedaço de ascensão social.
papel pensando que era uma coxa de vaca. Por aí se percebe Com o fim do namoro a reação de Macabéa foi rir.
o estado de miséria, as condições subhumanas em que vivem "Ria por não se lembrar em chorar". Este comportamento da
Macabéa e tantos outros retirantes nos grandes centros moça foi, mais uma vez, de conformismo. Ela não sabia falar
urbanos. "Quando acordava não sabia quem era. Só depois é ou lutar pelo que queria, aliás, ela não sabia bem ao certo o
que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e que queria.
gosto de coca-cola. Só então se vestia de si mesma, passava Depois do término do seu relacionamento com
o resto do sai representando com obediência o papel de ser". Olímpico, Macabéa resolveu se dar uma festa, já que
Macabéa possuía alguns luxos: tomar café frio, o ninguém lhe dava. Ela comprou um batom vermelho e, no
qual lhe dava azia; ir ao cinema uma vez por mês; e pintar as serviço, lambuzou a boca para ficar parecida com sua ídola,
unhas de vermelho. Marylin Monroe. Quando contou à Glória que gostaria de ser
Sempre quando ia comer, Macabéa tinha enjôos, isso parecida com Marylin, Glória riu até perder o fôlego. O sonho
porque, certa vez, quando era pequena, ela descobriu que impossível de Macabéa de se tornar uma estrela de cinema
havia comido carne de gato. Então, mesmo depois de grande, parece a única fantasia que ela se permitiu.
quando ela se lembrava desse fato, era difícil dela conseguir Glória depois de ter roubado o namorado de
comer (isso quando ela tinha o que comer). Macabéa, parece tomada por um certo sentimento de culpa,
Embora a tia de Macabéa tivesse encaminhado a então se aproxima da moça.
sobrinha para a religião, a moça, logo que a tia morreu, não Na verdade, depois do término de seu namoro com
mais freqüentou a igreja. Macabéa, antes de dormir rezava Olímpico, Macabéa via em Glória sua única conexão com o
mecanicamente, mas não acreditava em Deus, porque como mundo.
ela não sabia quem era Deus, então para ela, ele não existia. Seguindo os conselhos de Glória, Macabéa vai
Portanto, a tia de Macabéa transmitiu a ela os conceitos visitar um "médico de pobre". Grosseiro, o médico receita
religiosos, mas não conscientizou a moça dos mesmos. um tônico, que Macabéa acaba não comprando. Ela achava
Às vezes, enquanto dormia, Macabéa sonhava com que indo ao médico bastava para se curar.
sexo, e mesmo tal sonho tendo sido bom, ela se sentia muito Novamente seguindo os conselhos de Glória,
Macabéa toma dinheiro emprestado da mesma e vai visitar
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Estudo da obra – A Hora da Estrela / Clarice Lispector - Parte I
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uma cartomante, Madame Carlota pede que Macabéa corte o por ela), rouba o namorado da amiga. Na página 59 do livro
monte de baralhos. A vigarista começa a falar sobre o há uma ótima descrição desta personagem: “Glória possuía
passado da moça. Madame Carlota disse que, pela vida da no sangue um bom vinho português e também era
moça ser uma tragédia, ela nem iria cobrar. Mas, Macabéa amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue
fez questão de pagar. Com o dinheiro em mãos, a cartomante africano escondido. Apesar de branca, tinha em si a força da
mudou seu comportamento: disse uma porção de coisas boas mulatice. Oxigenava em amarelo-ovo os cabelos crespos
à moça, que sua vida iria mudar para melhor e que ela cujas raízes estavam sempre pretas. Mas mesmo oxigenada
(Macabéa) iria, naquele mesmo dia, conhecer um gringo ela era loura, o que significava um degrau a mais para
muito rico, meio alourado, com o qual ela iria se casar. Nesse Olímpico. (...) apesar de feia, Glória era bem alimentada. E
ponto é importante ressaltar a intertextualidade com o conto isso fazia dela material de boa qualidade.”
"A Cartomante; de Machado de Assis".
Macabéa, quando saiu da cartomante, estava “Glória roliça, branca e morna. Tinha um cheiro
"grávida de futuro". "Sentia em si uma esperança tão violenta esquisito. Porque não se lavava muito, com certeza.
como jamais sentia tamanho desespero". Até para atravessar Oxigenava os pêlos das pernas cabeludas e das axilas que
a rua ela se sentia diferente, e justamente ao atravessar a não raspava. Olímpico: será que ela é loura embaixo
rua, Macabéa é atropelada por um luxuoso Mercedes Benz. também?” (p. 63)
Nesse momento, muitas pessoas se aglomeraram em torno
de Macabéa. Esta é "a hora da estrela", finalmente ela é Seu Raimundo Silveira: chefe da firma de
reconhecida. Com ela morre também o narrador, identificado representante de roldanas, é o responsável pela demissão
com a escrita do romance que se acaba. de Macabéa, pois ela errava demais na datilografia, além de
sujar invariavelmente o papel.
AS CRIATURAS DE CLARICE A tia: beata que cria Maca após a morte da mãe
menina, quando tinha dois anos de idade. “Muito depois fora
A caracterização das personagens é um fator com a tia beata, única parenta sua no mundo. Uma outra
secundário na obra de Clarice, pois de acordo com Benedito vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo a tia lhe
Nunes, só existem do pescoço para cima: o que elas pensam dando cascudos no alto da cabeça porque o cocoruto de uma
e sentem é muito mais importante do que aquilo que fazem, cabeça deveria ser, imaginava a tia, um ponto vital. (...)
e, por sinal, toda a “ação” é, por que não, gratuita. O crítico Batia mas não era somente porque ao bater gozava de
ainda comenta que o que a interessa a Clarice Lispector não grande prazer sensual — a tia não se casara por nojo — é
são os indivíduos em si, mas a paixão que os domina, a que também considerava de dever seu evitar que a menina
inquietação que os conduz, a existência que os subjuga. viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió
Em acréscimo, o crítico Affonso Romano aconselha a ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem.” (p.
não analisar as personagens de acordo com um critério 28)
puramente onomástico, isto é, de acordo com as implicações As quatro Marias: Maria da Penha, Maria
simbólicas de seus nomes como se deve atentar na análise de Aparecida, Maria José e Maria apenas eram as colegas de
personagens de Guimarães Rosa, por exemplo. quarto da nordestina. Uma delas trabalhava vendendo
produtos de beleza Coty.
AS PERSONAGENS Madama Carlota: a cartomante que prevê o futuro
reluzente de Maca. Trata-a com um carinho que ninguém
Com um falso livre-arbítrio, o narrador da narrativa jamais dirigiu à protagonista. “Era enxundiosa, pintava a
decide que serão “uns sete (...) e eu sou um dos mais boquinha rechonchuda com vermelho vivo e punha nas faces
importantes deles, é claro.” (p. 13) oleosas duas rodelas de ruge brilhoso. Parecia um bonecão
Macabéa: nordestina (alagoana) que migra para o de louça meio quebrado.”(p. 72). Durante a consulta, a
Rio de Janeiro, é a protagonista da narrativa. Datilógrafa, cartomante comia um bombom atrás do outro
“toda fome e deserto”, Macabéa (Maca, como o narrador compulsivamente. Trabalhara na zona e, sem poder ser
passa a chamá-la no decorrer da história) tem o heroísmo diferente da realidade que conhecemos, sustentara um
dos seus irmãos bíblicos, os sete macabeus. Seu nome é cafetão, a quem amava. Tornara-se cafetina quando
grafado quase como escreve-se “maçã”, símbolo da tentação, começara a engordar e perder os dentes. O narrador coloca
só que, como não poderia deixar de ser, sem os adornos da Madama Carlota como o ponto alto da existência de
palavra indicadora da fruta. A personagem principal do livro Macabéa, já que seria a informante do seu futuro, que
mal tem consciência de existir, mas tem um desejo: tornarse mudaria (e realmente mudou) a partir do momento em que
estrela de cinema, e admira com certa dose de melancolia Maca saísse da casa da Madama.
Marylin Monroe e Greta Garbo. No fim da trama, de certa O médico: procurado por Maca, quando, pela
forma, acaba conseguindo realizar o seu sonho: a hora da primeira vez na vida, fez a audácia de procurar um médico
estrela condiz com o momento de sua morte. Dialogando (barato) após o recebimento do salário. “Muito gordo e
intertextualmente com Os Sertões de Euclides da Cunha, a suado, tinha um tique nervoso que o fazia de quando em
autora (ou o narrador?) chega a comentar que “o sertanejo é quando ritmadamente repuxar os lábios. O
antes de tudo um paciente”(p. 79) resultado era parecer que estava fazendo beicinho de bebê
Olímpico de Jesus: imigrante nordestino assim quando está prestes a chorar. (...) não tinha objetivo
como Macabéa, Olímpico trabalhava como operário numa nenhum. A medicina era apenas para ganhar dinheiro e
metalúrgica e dizia-se “metalúrgico”. Possuidor de um dente nunca por amor à profissão nem a doentes. Era desatento e
de ouro, o qual muito estimava por ser demonstrador de achava a pobreza uma coisa feia. Trabalhava para os pobres
poder, sonhava em um dia ser deputado, mas seu desejo detestando lidar com eles. Eles eram para ele o rebotalho de
secreto era ser toureiro. Procurava ascensão social a qualquer uma sociedade muito alta à qual também não pertencia.
preço, seja do roubo ou do crime de morte. “Para mim a Sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades
melhor herança é mesmo muito dinheiro. Mas um dia vou ser clínicas mas para pobre servia. O seu sonho era ter dinheiro
muito rico, disse ele que tinha uma grandeza demoníaca: sua para fazer exatamente o que queria: nada.” (ps.67, 68)
força sangrava.” Torna-se o namorado da protagonista no O rico ocupante do Mercedez Benz: dono do
decorrer da trama. carrão amarelo, alourado e estrangeiro, é quem vai realizar,
Glória: amiga de trabalho (e a única) de Macabéa, de certa forma, as previsões
possuía todo o charme e “carnes” que a outra não tinha. de Madama Carlota.
“Carioca da gema” (razão forte pela qual Olímpico atrai-se
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Estudo da obra – A Hora da Estrela / Clarice Lispector - Parte I
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O narrador: também uma personagem, Rodrigo S. possibilidade criativa da narrativa, além de ilimitável, é
M., a questão do narrador será melhor discutida logo a surpreendente e inovadora, demonstrando a bela e sensível
seguir. capacidade inventiva de Lispector.
Dizer se o foco narrativo de A Hora da Estrela é em Como anteriormente já foi citado, a narrativa tem
primeira ou terceira pessoa é uma questão não tão simples um tom de novela, não apenas pelo número de
de ser respondida, já que é um dos pontos mais inovadores e personagens, mas também porque a descrição e a narração
estilisticamente extraordinários do livro. A autora inventa um ocupam posição privilegiada na obra.
narrador (que, portanto, é também uma personagem e se Uma “história exterior e explícita”, A Hora da
assume durante a narrativa como tal) para contar a história Estrela não deixa de ser um relato, um registro de fatos. O
de Macabéa. Assim sendo, o narrador, apesar de fazer parte narrador, a contra-gosto, apaixonou-se por fatos, mas
da história, não conta uma trama que acontecera com ele, e cansar-se-á deles por serem banais e definíveis. O
sim, com a sua personagem inventada, que poderia ser real. “sussurro”, porém, é o que predomina nos interstícios da
A narrativa desvenda a sua problemática interior e à medida narrativa: “Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um
que nos faz conhecer a protagonista, também nos mostra (e sussurro. É o sussurro que me impressiona.” (p. 31).
vai A pergunta que, de certa forma, já havia sido feita
descobrindo) a sua própria identidade. em Perto do Coração Selvagem repete-se: “Será mesmo
“A ação dessa história terá como resultado minha que a ação ultrapassa a palavra?” (p. 22) Para Lispector, por
transfiguração em outrem e minha materialização em objeto. ser o material básico da escritura a palavra, ela domina
Sim, e talvez encontre a flauta doce em que eu me enovelarei qualquer narrativa e sobrepõe-se a qualquer fato. “Assim é
em macio cipó.” (p. 20). O narrador é onipotente, pois cria que esta história será feita de palavras que se agrupam em
um destino. É onisciente, pois sabe tudo a respeito de suas frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa
personagens, apesar de não conhecer a verdade inteira, já palavras e frases.” (p. 14). E para o narrador, é como se as
que se mostra no ato de inventar. Hesita, pois não conhece o palavras tivessem realmente poder sobre a narrativa, como
final da história. Por sentir-se culpado em relação à se ele fosse impotente em relação à história que irá contar:
protagonista, suspende-lhe a morte por páginas e páginas. “Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida
Quando, finalmente, decide-se pelo “gran finale”, volta-se primária que respira,
contra si mesmo: “Até tu, Brutus?” (p. 85). Sá, em sua obra respira, respira.” (p. 13)
anteriormente citada, comenta que “Clarice sabe que todo
narrador inventa o mundo à sua imagem e semelhança e o ANÁLISE DA OBRA
‘ele’ ou ‘ela’ das fábulas é sempre um disfarce do ‘eu’ do
escritor. “Macabéa, personagem central de A Hora da
O narrador se escreve todo através de Macabéa, por Estrela de Clarice Lispector, é uma retirante nordestina que
entre seus próprios espantos. Sua onipotência se estende ao vai tentar vida nova na cidade grande (Rio de Janeiro). Filha
leitor, com o qual dialoga constantemente. A função fática é do sertão, nasceu e permaneceu raquítica. Anônima,
uma tônica dessa narrativa.” (p.212) Tanto é assim, que o desajeitada, desgarrada do mundo, tudo nela inspira
narrador morre quando morre Macabéa. E morre também descompasso e compaixão. Seus dias dividem-se entre o
Clarice Lispector. “As coisas são sempre vésperas e se ela não trabalho como datilógrafa e o pretendente, também
morre agora, está como nós na véspera de morrer, perdoai- nordestino, Olímpico de Jesus. As madrugadas, para ela, são
me lembrar-vos porque quanto a mim não me perdôo a embaladas pelos sons regulares da Rádio Relógio: hora
clarividência.” (p. 84). O narrador precisa escrever para certa, anúncios, pouca ou nenhuma música. (...) É por
poder se compreender. “Enquanto eu tiver perguntas e não intermédio dessa escuta, entretanto, que Macabéa vai
houver resposta continuarei a escrever.” (p.11) Essa é a dor lentamente construindo um certo reconhecimento sobre si e
que atravessa a narrativa, já indicada pela dor de dentes que sobre o mundo.” (AQUINO, 2000, p. 205) A rádio realmente
perpassa a história, a qual é “uma melodia sincopada e desperta na moça uma avidez por conhecimento, o que fazia
estridente — é a minha própria dor, eu carrego o mundo e a com que sua vida se tornasse menos banal, mais
falta de felicidade. Felicidade. Nunca vi palavra mais doida, importante.
inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes.” A Hora da Estrela apresenta certos momentos que
(p. 12). A tarefa do escritor é “procurar a palavra no escuro”. não podem deixar de ser comentados. Comecemos pelo
E ele não pode parar de escrever, já que “ao escrever me título:
surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino”. A HORA DA ESTRELA
Assim, vai se descobrindo ao longo da narrativa. Este escritor
só se livra de ser um acaso na vida pelo fato de escrever. Não A culpa é minha
tem classe social, “ironicamente, denuncia o escritor burguês ou
que defende a necessidade da literatura engajada, faz-se A hora da estrelas
pobre, dorme pouco, deixa a barba por fazer, anda nu ou em ou
farrapos, abstém-se do sexo e do futebol.” (Sá, 1979, p. 214) Ela que se arrange
Como ele mesmo diz, “escrevo porque sou um desesperado e ou
estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não O direito ao grito
fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria .quanto ao futuro.
simbolicamente todos os dias.” (p. 21). ou
É facilmente percebível, portanto, que a questão do Lamento de um blue
foco narrativo em A Hora da Estrela é um dos pontos altos ou
da novela. E se “os modos de articulação em uma narrativa Ela não sabe gritar
são ilimitáveis porque ilimitável é a combinatória de signos ou
possível no engendramento da teia ficcional, e a postura do Uma sensação de perda
narrador, em relação às personagens, amplia ainda mais essa ou
possibilidade criativa, oferecendo através Assovio no vento escuro
de seu ângulo de visão uma fresta por onde se pode ou
descortinar o mundo, o seu mundo” (KADOTA, s/d, p.71); a Eu não posso fazer nada
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Estudo da obra – A Hora da Estrela / Clarice Lispector - Parte I
Prof.: Haroldo Prates
ou
Registro dos fatos antecedentes
ou
História lacrimogênica de cordel
ou
Saída discreta pela porta dos fundos