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1
37 C.F.R. §201.14 2018
.
tb
tempo brasileiro

104

CLARICE LISPECTOR

HELENE CIXOUS, LUCIA HELENA, MARIA INES DE


ALMEIDA, ROBERTO CORREA DOS SANTOS, LUCIA
CASTELLO BRANCO, MARA NEGRON, RITA TEREZI-
NHA SCHMIDT, RUTH SILVIANO BRANDAO, SYLVIA
PAIXAO, VERA QUEIROZ, WILMA AREAS.
SUMÂRIO

Apresentardo: Clarice e o Feminino 5


VERA QUEIROZ

Aproximardo de Clarice Lispector. Deixar-se ler (por) Clarice


( Lispector - A Paixdo segundo C.L. 9
HELENE CIXOUS

V A Literahura segundo Lispector 25


LUCIA HELENA

Clarice e a estrela 43
MARIA INES DE ALMEIDA

Discurso feminino, corpo, arte gestual, as margens recentes 1l


ROBERTO CORREA DOS SANTOS

Todos os sopros, o sopro 6


LUCIA CASTELLO BRANCO

A genese de um pensar-sentir - mulher em A Mara no Escuro 73


MARA NEGRON

Pelos caminhos do corardo selvagem, sob o signo do desejo 83


RITA TEREZINHA SCHMIDT
i
Feminina arde imperfeita 101
RUTH SILVIANO BRANDÂO

Um sopro de vida na hora da estrela — Uma leitura das crônicas de


Clarice Lispector 111
SYLVIA PAI?CÂO

Triptico para Clarice 121


VERA QUEIROZ

O sexo dos clowns 145


WILMA AREAS
APRESENTAÇAO

CLARICE E O FEMININO

Vera Queiroz

Os estudos sobre a questào do feminino em Literatura, aqui e no


exterior, tomam recorrentemente a obra de Clarice Lispector como
paradigma privilegiado quando se trata de focalizar tanto as personagens
femininas, que comporiam determinadas imagens de muffler, quanto um
discurso corn possíveis marcas de um feminino.
Em "As varias faces do feminino", apresentaçào que fizemos para
o número 101 da Revista Tempo Brasileiro, diziamos: "Se a questSo
enunciada pode ainda suscitar polémica — o fato de existir urna literatura
feminina — ndo ha como negar o interesse dentro da area académico-
-universitaria pelo tema, seja do ponto de vista da produçao ficcional
de mulheres-escritoras, seja do ponto de vista da critica dessa produçäo."
(p. 5). Agora, a polémica nos parece de outra ordem, sobretudo no Brasil,
a saber: inscrever a obra clariceana no recorte do feminino nSo seria

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perdé-la no que ela tem de intransigentemente plurfvoca; no que ela
acena como projeto de absoluta liberdade; no que ela encerra de desafio
em sua estranheza e delicada aspereza?
Parece que a obra de Clarice, em especial, suscita tais questionamen-
tos por ocupar um lugar particularíssimo no conjunto da Literatura
Brasileira. Sua fortuna critica, jíi imensa, é uninime no reconhecimento
de que o universo ficcional da autora tem corno ponto fulcral o modo
como nele o mundo das sensaçòes subjetivas, das atividades corriqueiras,
atualizadas sobretudo por personagens mulheres, e das pequenas cenas
flagradas em sua banalidade abrem-se para um incessante questionamento
sobre o(s) sentido(s) da existéncia humana — a paixâo, a gloria e a dor de
viver inerentes a todos, homens e mulheres. Também é consenso da critica
o reconhecimento de que esse processo se dd em Clarice através de urna
luta corn a palavra tematizada de forma obsessiva e exasperante, corn a
palavra, fazendo igualmente dessa luta urna das linhas de força de sua
genialidade como escritora.
O que a critica femmina vai fazer, tornando embora corno aceite a
universalidade desse projeto, é pontuar seu caminho inverso; acentuar e
fazer emergir — construir, enfim, como o faz todo projeto critico — o
lugar -ocupado nessa literatura pelas imagens de mulher, pelo seu modo
de constituir-se. Ela vai recuperar a leveza de seul movimentos, pressionar
os lugares discursivos onde se tensions o minimo, o pouco, o flébil para
situa-los enquanto força, no sentido nietzscheano. Um pouco como a
imagem de Clarice a proposito do ato de escrever ("Nâo tern pessoas
que cosem para fora? Eu coso para dentro"), compreendendo nessa frase
urna atividade femmina por exceléncia, sua banal mas fatal necessidade.
O.ato critico feminino seria o de expor o avesso dessa costura e afirmâ-lo
como positividade.
A técnica de Clarice, igualmente, oferece-se como emblemr tics
do feminino no uso que faz de urna linguagem "do excesso": excessiva-
mente lacunar e proliferante; hesitante e contundente; alusiva e exterior,
colando sua boca no sopro do inaudível, do mau-gosto, do incapturavel,
onde coisa e palavra transmudam-se e "um é o outro" — obscuros objetos
do desejo, fenda onde o discurso critico feminino constrói sua produtivi-
dade. Porque é, também ele, um lugar que se procura, um projeto cuja
horizontalidade espraia-se nesse momento histórico, sem que se divise
ainda o alcance de seu corpus.

6 Rev. TB, Rio de Janeiro, 104:5/8, jan.-mar., 1991


Os textos reunidos nesta Ediçào da Revista Tempo Brasileiro de
algum modo refletem tais questóes. Pedimos aos colaboradores um ensaio
sob o título geral Clarice e o feminino. As respostas — nào sendo definiti-
vas — constituem um conjunto heterogêneo de visóes — que esperamos
originais — tanto no modo de compreender o feminino, como na explicita-
çâo do lugar que a obra de Clarice ocupa nesse contexto.
A ordern de distribuiçâo do material segue o critério do geral ao
particular: textos que teorizam sobre o feminino e/ou sobre a obra de
Clarice precedem aqueles que tomam por objeto determinada(s) obra(s)
da autora. Em seguida, prevalece a ordern alfabética de nomes.

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APROXIMACAO DE CLARICE LISPECTOR
Deixar-se ler (por) Clarice Lispector
A Paixâo segundo C.L.'

Hélène Cixous

Copyright: Éditions des Femmes


6, Rue Méaietés
75.006 — Paris

Como "ler" Clarice Lispector: Na paixào, segundo ela mesma:


segundo C.L.: a escrita-uma-mulher. O que seria "ler", quando um texto
extravasa do limite-livro para vir a nosso encontro, entregando-se ao viver?
Was heisst lesen?
No começo da Paixdo,2 Clarice nos adverte, se estamos prestes a
continuar, nos retém, pbe-nos em (sob sua) guarda, nestes termos, inquie-
tantes — trangiiilizantes:

A POSSIVEIS LEITORES AUX LECTEURS POSSIBLES

Este livro é como um livro quai- Ce livre est comme un livre


quer. Mas eu ficaria contente se comme les autres, mais je serais
fosse lido apenas por pessoas de contente qu'il frit lu unique-

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alma jâ formada. Aquelas que ment par des personnes à l'âme
sabem que a aproximaçäo, do que déjà formée. Celles qui savent
quer que seja, se faz gradualmente que l'approche de toute chose
e penosamente — atravessando se fait progressivement et pé-
inclusivé o oposto daquilo de niblement — et doit parfois
que se vai aproximar. Aquelas passer par le contraire de ce
pessoas que, so elas, entenderäo que l'on approche. Ces personnes,
bem devagar que este livro nada elles seules, comprendront tout
tira de ninguém. A mim, por doucement que ce livre n'enlève
exemplo, o personagem G.H. foi rien à personne. A moi, par
dando aos poucos urna alegria exemple, le personnage G.H. m'a
dificil; mas chama-se alegria. peu à peu donné une joie difficile
mais elle s'appelle joie.
C.L.
C.L.

Indo-se em direçao a um infinitamente Pequeno, ensina Hölderlin,


pode-se chegar a um grande começo. Clarice nos conduz a esse Infinita-
mente Pequeno, para começar.
Deixei-me ler segundo C.L., sua paixäo me leu, e na corrente incan-
descente e umida do ler, vi como textos familiares e desconhecidos, de
Rilke, ou de Heidegger, ou de Derrida, ja estavam lidos, levados, respon-
didos, no escrever-viver de C.L.
O que se segue corresponde a um momento de leitura de C.L.: feita na
correspondéncia C.L. e gtralquer mulher.3
Aqui estou, corn C.L., agora, no quarto da Paixdo e ja, aqui, agora,
na agitaçao de sua Agua Viva. 4

Claricewege

Aprendemos, na escola de Clarice Lispector, a aproximaçäo. Temos


"liçòes de coisas". LiçOes de chamar, de deixar-se chamar. Liçóes de
deixar vir, de receber. As duas grandes liçóes de vida:a lentidâo e a f eiúra.
A voz-Clarice nos indica o caminho. O medo nos assalta. Nos chama:
"säo so caminhos". Nos d5-torna a mäo. Medo comovido, escandaloso
— nos o tomamos. Nos conduz. Fazemos os caminhos.

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Nos dao infinito: a vida presente. Vida muito longa, pois cada
instante é. Agora. Cada agora é: um mundo, uma vida. Toda a vida, inclusi-
ve seus fins, sens extremos cansaços, suas fomes, seus beber. Nos arrasta a
amar — conhecer, ver, ouvir —, corn nossas infàncias, por tris dos codigos,
das grades, dos habitos, chamar, por tris dos nomes, pensar, por tris dos
pensamentos.
Nos faz ouvir o apelo das coisas. O apelo que ha nas coisas: ela o
recolhe. A voz clarice colhe. E nos oferece a laranja. Nos devolve a coisa.
Precisamente o que diz a laranja diante do apelo de sua voz, seu Buco de
lua, nos da para bebermos.
A Voz-Obst nos da para lermos: as palavras nessa voz sào frutos.
Clarice lé: Obst-Lese: leitura lispectolaranja.
Clarice olha: E o mundo vem à sua presença. Faz renascer as coisas
nascidas. E recolhe. Pois, de certa forma, Lispector é sinonimo de "Legere",
ou seja, "ler", ou seja, "colher".

Par là on entend d'habitude, dit Heidegger, le simple fait de


saisir et de parcourir une écriture, un écrit. Or, cela se fait
de telle façon que nous rassemblons les lettres. Sans un tel
rassemblement, c'est-à-dire sans la récolte (die Lese) au sens
de moisson et vendange, nous ne serions jamais capables de
lire (lesen) un seul mot, mëme par une observation rigoureuse
des caractères.5

As frases em sua voz sào jardins onde cresço. Florestas. Panteras


passam. Suas frases corn passo de pantera doce. Sua voz povoada, selva -
gem, escuta. Nos da a liçâo da .lentidTo. A lentidào: o tempo lento de
que precisamos para nos aproximarmos, deixar aproximar, tudo, a vida,
a morte, o tempo, a coisa; toda a lentidào do tempo que a vida deve ter
para se dar sein nos machucar demais, todo o tempo que devemos levar
para atingir a coisa, o outro, para conquista-lo sem assustar, para chegar
até ele.
Sua aproximaçào é politica, a aproximaçào (— de —) Clarice: é o
espaço vivo, o entre-nos, que devemos preservar corn cuidado. Ter a
humildade, a generosidade de nào saltar por cima, de nào evitar. A preci-
pitaçào anula. Vivemos na época do pensamento-tela, do pensamento-
-jornal, que mio nos da o tempo de pensar a mais infima coisa segundo seu
modo de vida. Temos que salvar a aproximaçào que abre e da lugar ao

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outro. Mas vivemos mass-mediatizados, apressados, imprensados, chanta-
geados. A aceleraçâo é um dos ardis da intimidaçào. Precipitamo-nos,
atiramo-nos sobre, apoderamo-nos de. E nào sabemos mais receber.
Receber é urna ciéncia. Saber receber é o melhor dos dons. Clarice nos
da o exemplo: trata-se de receber a Iiçäo das coisas: Se soubermos pensar,
em direçâo da coisa, deixarmo-nos chamar até ela, a coisa nos conduzirâ
a um espaço composto pela coisa e por nos, pela coisa e por todas as
coisas. A liçào de Clarice é: ao deixar a coisa nos lembrar algo, nào esquecer
mais, desesquecer, lembrar o outro imenso, que se chama vida. Clarice nos
ensina a nos dar o tempo de nâo esquecer, nâo matar.
Saber "ver" antes da visdo, saber compreender antes da compreen-
sào, para manter abérto o espaço da espero. — Em sua lingua, o verbo é
"esperar". *
O que esta aberto pertence ao tempo: nào para absorver a coisa, o
outro, mas para deixar que as coisas se apresentem. Deixar que produzam
suas vinte e quatro faces.
Chams-la sem rufdo, pedir-Ihe que venha, estender-Ihe a Indo, a
palavra, das Wart,

Das Wart lässt das Ding als Ding anwesen. Dieses lassen
heisse die Bedignis. 6

Clarice deixa: 7
Para que chegue a primavera, seria preciso que soubéssemos o
bemvir: Ja era maio, ontem, e me parecia nâo mais saber como se compòe
um dia vivo. Basta abrir Clarice. Olhar através dela: e um laranjal que antes
nâo existia passa a existir. Diante de seu jeito clarice de se abrir, as coisas
nào se fazem de rogadas. A primavera se instala. Clarice da presentes.
Da, da e da. Da para urna paisagem. Da porto seguro. E ha. E da lugar a.
Ao que havíamos perdido. Ao que nunca tivemos. Ao que ja rido sabfamos
mais ter. Ao que ignoravamos que existisse. Vem.
Cada olhar clarice: invisível doce lavor, rebocadura de amor.
Clarice be -dingt das Ding zu Ding.
Tudo aquilo que é preciso saber convocar para que o desvendamento
de urna mulher se torre possfvel, para que pensar em deixar um vocé
desvendar-se seja necessario — Clarice faz corn que venha, faz-nos sentir,

* Em portugués no original. referindo-se i traduçiio do verbo "attendre" (N.T.)

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saber. Para que uma mulher venha a ela, nela; porque ela a quer; para que
urna mulher va, por si mesma, e cada coisa, por si mesma, a nosso encon-
tro. Clarice se faz janela. Boa seja a janela.
E logo a laranja, como um passaro, entra pela janela de meu peito.
Tudo aquilo que é preciso saber deixar acontecer, saber sobre si
mesmo, para que as coisas aconteçam, em seu espaço, a seu tempo, sem
que nossa cega impaciéncia nos leve a apressa-las, a apressar-lhes o aconte-
cimento, sob risco de atormentâ-las, de deporta-las, de romper-lhes a
ténue casca, aprendemos na escola de Clarice.

O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e nào um fim,


tem-me dado a mais maliciosa das liberdades. s

Temos que aprender as coisas e delas, temos tudo a aprender.


Como deixar que as coisas se desvendem por si mesmas, antes de
qualquer traduçâo, do jeito clarice, a seu jeito de ser janela aberta, de ser
mai) cheia d'alma, de ser diante de cada uma das vidas infinitas, de chegar
docemente aberta, escancarada, para receber as coisas, de nos devolver as
primeiras vezes perdidas.
Das Wort, das Gebende.9
Apelos clarices partem, vào buscar a coisa, que esta la, quase sem
existir, no espaço sem janela, que erra, quase sem rosto, no espaço sem
olhar; dào-lhe todos os nomes que a fazem estremecer fora do espaço
sem presença, que a fazem voltar-se para si mesma, recolhe-se em si
mesma, petala-se, cria corpo a partir de seu proprio cornait, enrubesce,
As pressas, urn primeiro rosto. E vem a ser rosa.
Os nomes sâo maos que ela colora no espaço, cour uma ternura
tao intensa que por fim corri um rosto, o, tu, e a aproximaçào de seus
labios, e no copo bebe, sorrindo.
Tocar no coraçao das rosas: é o jeito-mulher de trabalhar: forar o
cornac, vivo das coisas, ser tocada, ir viver no infinitamente prOximo,
ir, através de ternas atentas lentidóes até a regiào do tato, deixar-se lenta-
mente levar, pela força de atraçào de uma rosa, atraída ao seio da regiào
das rosas, ficar, por um longo tempo, no espaço do perfume, aprender a
receber das coisas o que sào, no mais vivido de si mesmas.
Esquecrmos que o mundo existe antes de nos. Esquecemos como
as coisas nos precederam, as montanhas se elevaram antes do nosso olhar,
esquecemos como se chamam as plantas antes que pensemos em chama-

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-las e em reconhecé-las, esquecemos que sào as plantas que nos chamam,
que precedem nosso corpo em eclosào.
Nesses tempos violentos e preguiçosos, em que mio vivemos o que
vivemos, somos lidas, somos vividas à força, longe de nossas vidas essenci-
ais; perdemos o dom, mio mais ouvimos o que as coisas ainda querem nos
dizer, traduzimos, traduzimos, tudo é traduçào e reduçào, nada mais resta
do mar a mio ser uma palavra sem aguas: pois tamhém traduzimos as
palavras, esvaziamo-las de seu sentido, secas, reduzidas, embalsamadas e
ja fiat) podem mais nos lembrar como outrora surgiam as coisas, como o
brilho de seu riso essencial, quando, de alegria, chamavam-se umas às
outras, exultavam seu nome-perfume; e "mar", "mar" tinha cheiro de
algas, sussurrava sal, e saboreavamos a amada infinita, lambíamos a
estrangeira, o sal de sua palavra em nossos labios.
Mas basta que urna voz clarice diga: o mar, o mar, para que rompa -se
minha casca, o mar se chama, mar! me chama, aguas! me lembra, e vaga,
you, me lembro, de encontro a ele.
"Para deixar entrar urna coisa, corn sua estranheza", é preciso pdr,
em cada olhar, a luz da alma, e confundir a luz exterior corn a luz interior.
Urna aura invisível se forma em torno dos seres re-vistos. Ver antes da
visào, ver para ver e ver, antes da narrativa do olhar, nào é magica. É a
ciéncia do outro! Toda urna arte; e todas as formas de deixar entrar,
próximo a nos, todos os seres, corn suas diversas estranhezas, sào regióes
de que devemos nos aproximar corn urna paciència apropriada.
Ha uma paciéncia para o ovo, urna paciéncia para urna rosa; uma
paciència para cada animal particular; ha unis paciència para as espécies,
todos os tipos de paciéncia que devemos praticar, desenvolver; tenho
algumas pacièncias quase maduras, outras germinando, outras que nào
pegaram; e acho que algumas clarices trabalharam tao profundamente sua
terra de seres que, nela, todas as pacièncias floresceram. As paciéncias sào
parteiras.
Urna paciència presta atençao. Urna atençao tensa, ativa, discreta,
morna, quase imperceptive!, imponderavel, como um ténue aquecer de
olhares, regular, vinte e um dias e vinte e urna noites, na janela da cozinha,
e por fim, um ovo existe. Elas prestam atençao: mio fazer vada, mio se
agitar, preencher, substituir, ocupar o espaço. Mas deixar o espaço em paz.
Pensar corn delicadeza em. Dirigir a mistura de olhares sabios e luz amoro-
sa a. Um rosto. Rodei-lo de um discreto questionamento, confiante,
atento, conceder, vigia-lo, por muito tempo, até a penetraçào da esséncia.

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E As vezes só temos urna paciéncia — e depois mais nada, esquece-
mos, nào damos o mundo para ser vivido, começamos e nào acabamos,
e o mundo sem flores, sem animais, sem geologia, sem coisas, é um tédio
sem fim.
Precisamos de tudo. De todas as coisas: de todo o tempo. De tudo o
que aconteceu, de tudo o que pode acontecer. Precisamos do tempo das
presenças, para nos aproximarmos das coisas, até que fiquem perto de nés,
nos corn elas, diante delas, dâdiva.
"Quando começamos a pensar, forma-se tempo". Temos medo de
nunca ter tempo. Mas hi tempo: ele esta là em cima, em urna quantidade
incomensurâvel, na medida de nossas exigéncias: basta pensar e pensar,
e pensar, e alcançamos o topo. Pensar di o tempo. E todos os seres, até
as menores coisas, estäo repletos de tempo: basta pensar raeles.
Clarice pensa: e, em primeiro lugar, hi a cozinha. E nela, urna
maçà. E Clarice chama a maça corn tal inteligéncia de tudo o que a maçà
significa, content, para nés, que ha, ao mesmo tempo, na maya, a sustenta-
ç3o prometida. E verificamos a maçà de todo nosso ser. E entai) hi essa
maç3.
Todas as coisas ainda sem nome, ela a atrai, a fior, o fruto, todas as
coisas anónimas, intactas, n5o-ainda chamadas, cada toisa em seu tempo,
ela faz corn que apareçam, diante de nés, e no mesmo instante verificamos
como existera, como apareceram aqui, e como, daqui por diante, conti-
nuam aqui.
Na cozinha; e no texto inteiro maos e paisagem, e na paisagem da
palma; no texto de frases-janelas: cada frase aberta, dando para nova
maravilha.
Cada frase: janela efémera, olhar: poema encontrado, colocado
diante de nôs.

A confecçQo do ovo de arte.

Iodas as coisas que vêm de muito longe, e as que nos vém de outro
longe,-o do infinitamente próximo, das duas distancias, ela as convoca.
Ela salva o ovo do infinitamente próximo. Ela o trazao perto demais.
Em geral, passamos anos sem ver entrar um ovo. É por isso que
(larice nos conduz, em primeiro lugar, à escola do mais-perto, na cozinha:
Para nos fazer descobrir o esplendor de um ovo, em toda sua estra-
nheza, é preciso uma força muito major do que para nos fazer admirar
Rev. TB, Rio de Janeiro, 104:9/24, jan.-mar., 1991 15
urna montanha: na primeira liçào do ovo, aprendemos a dar a um ovo de
galinha a atençâo que nos inspiraria urna montanha. A abordagem do
ovo esta camuflada por uma verdadeira cadeia de habitos calcarios.
Houve o dia do ovo. A festa simples. Dizer o ovo é urna arte quase
japonesa. E preciso urna voz corn reservas atléticas. Urna voz para cada
coisa. Para o ovo, uma voz acrobata: para lança -lo, pega-lo, arriscâ-lo e
protege-lo. Urna voz capaz de cercar o ovo de sons delicados. De colher
o canto primeiro das coisas, seu apelo sem palavras: de dizer: ovo, como
digo: amor, corn espanto e amor; de contemplaçâo. Quem souber contem-
plar um ovo sabera contemplar um sorriso.
Ela tem o jeito de chamar esse objeto, naquele momento, corn essa
cor de voz que permite o acontecimento; pois é possível fazer com que
um ovo olhado de certa forma seja uma obra de arte. 10
E ver um ovo é impossível para o ver comum.

De manhâ na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.

Essa frase é impossível. Clarice so a escreve para retira-la, na batida


da escrita.
Mal vejo um ovo e ja se torna ter visto um ovo ha très milénios.
Ver? Nao é sempre ja ter visto? Ver é o ovo em si, cuja casca vai
explodir. Clarice nos ensina o sobrever. "Nunca soube ver sem logo preci-
sar mais que ver." 12 Nào posso escrever "vejo" ao ver, sem ter percorrido
o longo trabalho de paixâo executado em cada texto, a cada agora, para
chegar ao Ver: a promessa de conseguir, um dia, "ver" o ovo, esta é a
paixâo segundo C.L. Urn dia: havera o ovo e "meus olhos (que) termina-
ram nâo se diferenciando da coisa vista." 13 Entào, nesse dia, ha o ovo.
Nesse dia-ovo, no presente do instante.
Tente entender o que pinto e o que escrevo agora. Vou expli-
car: na pintura como na escritura procuro ver estritamente
no momento em que vejo — e nao ver através da memoria de
ter visto num instante passado. O instante é este. O instante
é de urna iminéncia que me tira o fólego. O instante é em si
mesmo iminente. Ao mesmo tempo que eu o vivo, lanço-me
na sua passagem para outro instante. (Agua Viva — p. 77)

Lima noite quente choca: e as seis horas de urna manhâ, uma clarice
eclode: acorda espantada, de forma nova. O quarto esta repleto de excita-
16 Rev. TB, Rio de Janeiro, 104:9/24, jan.-mar., 1991
çòes que entram e saem. Acorda pronta, cheia de ignoràncias atentas, no
fundo de si mesma, e sua alma-atençâo da, sob a memoria, sob o sabido,
por tris do agora, sob os pensamentos, di diretamente para o caminho
dos espantos.

Atris do pensamento atinjo um estado. Recuso-me a dividi-Io


em palavras — e o que lido posso e näo quero exprimir fica
sendo o mais secreto dos meus segredos. Sei que tenho medo
de momentos nos quais näo uso o pensamento e é um momen-
taneo estado difícil de ser alcançado, e que, todo secreto,
näo usa mais as palavras corn que se produzem pensamentos.
(Âgua Viva — pp. 72-73).

E de espanto em espanto, às vezes totalmente espantada e sem


nenhum espanto, Clarice infància deixa-se levar, conduz-nos ao jardim
de tempo primario, onde crescem todas as variedades de instantes. E ha
nele o tesouro dos acontecimentos. Basta-nos amar, ficar à espreita do
amor, e todas as riquezas nos seräo confiadas. A atençäo é a chave.
A atençao de Clarice faz desabrochar. Sob seu espanto, precipi-
taçòes se acalmam, o tempo se deixa capturar, momentos duram, crescem,
e vent à Iuz inesperados nascimentos. E Encontros se produzem: hd um
quarto e dentro dele, urna barata. E Clarice entra, passando pela barata,
em sua paixäo segundo — o Vivo.
E hd urna gruta, corn urna noite em torno. E ha na gruta urna aten-
çào täo livre, que acontece, ao apelo de Clarice, que cavalos respondam,
à atençäo de seu ouvido, a galope, e cavalos entram e saem como passaros
pela janela dos fundos. E hi, no fundo de Clarice, a atençäo magica: a
atençào é matéria magica. A alma é a magia da atençào. E o corpo da
alma é feito de urna substancia ultra sensual, fma, fma, täo finemente
impressionàvel que é capaz de captar o ruído de todos os desabrochares,
a infima música das partículas que se chamam, para compor-se em perfu-
me. Hi uma atençäo para cada nascimento. Ha atençòes frageis e poderosas
como retinas eletrónicas que refletem longamente, para deixar nascer no
que se anuncia por tris da aparéncia das coisas, atençòes imponderaveis
que deixam chegar ou näo chegar, corn seu movimento proprio, antes de
seus nomes, diante, adiantando-se a nossos pensamentos de rapina, antes
de suas imagens, adiantando-se a nossas visòes sepultantes, atençòes que
esperam pacientemente e se abandonam à inspiraçào — para que as coisas

Rev. TB, Rio de Janeiro, 104: 9/24, jan. -mar., 1991 17


que sempre estiveram presentes, mudas, consigam se faner ouvir. Nào hà
siléncio. A música das coisas ressoa sempre, espera que a ouçamos fiel-
mente, corn os ouvidos, corn a pele, corn as narinas, corn a respiraçào,
sobretudo, corn o peito.
As atençaes se movem, de preferéncia, como peixes na lentidào.
Mas Clarice tem certas atençòes audaciosas que vém aos encontros como
feras suaves.

Estava atenta, eu estava toda atenta. (. . .) nesta espera atenta


eu reconhecia todas as minhas esperas anteriores, eu reconhe-
cia a atençào de que também antes vivera (. . .) e que em
última anâlise talvez seja a coisa mais colada à minha vida —
quem sabe aquela atençào era a minha própria vida. 14

E ficam, trémulas, no trémulo infinitamente próximo do outro.


Entào a mulher é: a mulher-e-o-outro. Conjunto vivo, impessoal,
que net se pode resumir. Nem historiar. Mas vive. Acontece.
Clarice pensa em um domingo. E acontece um domingo. Ela pensa:
e acontece uma noite; e urna maçà, e urna maçà na noite; e urna mào
pensa em direçào à maçà. E no caminho, o pensamento-clarice pensa em
urna fior. E esse pensamento se recoihe, e acontece um crisantemo, como
jamais o havíamos olhado. E temos urna liçào de flores improvisada:
aprendemos, corn Lodo nosso corpo, que mais nada sabíamos da maioria
das flores, a nào ser seus nomes de flores fotografadas.

A imitaçßo da rosa 15

Ha um jeito de dizer tulipa que mata qualquer tulipa. Ha um jeito


clarice de fazer-tulipa, e do caule à pupila vejo como essa tulipa é verda-
deira. E vejo que ainda nào havia visto o jasmim.
Ha urna forma de pegar urna rosa que torna qualquer rosa impossf-
vel: urna forma brusca cega de olhar que a enferruja, queima, des-rosa.
E dizer que até ontem eu havia realmente esquecido o amor das
flores. E me tornara muito se). Foi entào que recebi um buqué de flores-
-vistas. Por mim mesma, 'tao as teria ra. _bido, teriam permanecido
indecisas, quase nào-flores em meu campo de nào-visào. Mas, por terem
sido olhadas corn tao refinado respeito, por terem sido tao delicadamente
conhecidas, iluminadas por Clarice, cada urna ainda visivelmente se recor-

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dava, desfrutava de um imperceptível reavivar. E assim aureoladas subiam-
-me aos olhos e, vinham ainda úmidas de olhar, erguiam-se, olhadas,
mais visíveis. Saber ver as flores: saber vivé-las. Era um buqué 'de flores
sabidas, que resplandecia, em minha mesa, em meus livros, nas folhas de
pape!, e compreendi de repente que estava lendo à luz das flores, soube
que as flores-vistas dao, por algumas horas, urna luz de leite transparente.
E mais: as flores vistas despertam flores para se ver, e sentimo-nos impe-
lidos a buscar nos dicionârios, nos campos, nas estufas, e correm para nos,
braços estendidos, nossas amigas encarnadas sob outra forma (pois, como
sempre se soube, as flores sâo mulheres, todas nos vivemos urna ou dual
flores).
Em um primeiro tempo, nào é difícil chamar as flores. Porque as
flores gostam de vir. Respondem naturalmente a um convite.
Mas o problema das flores é o mesmo das mulheres maternais e
indispensâveis: estao presentes. Estao tao presentes.

"É seu erro":

o erro de Abelone, de Malte Laurids Brigge. Tao presente que jamais esta
presente para Malte, tao presença para o outro, a quern se consagra, que
se faz esquecer.

Abelone war immer da. Das tat ihr grossen Eintrag. Abelone
war da, und man nutzte sie ab wie man eben konnte (. ..)
Aber auf einmal fragte ich mich: Warum ist Abelone da? 16

Tomemos urna rosa: desde o primeiro segundo, urna rosa nos cativa.
Parece-nos, em nossa superficialidade, que nos a pegamos. Porque segura-
mo-la em possa mio. Pensando assim, estamos no caminho errado. Foi
essa rosa que. corn um gesto infinitamente seguro, corn um sinal de rosa
quase carmim, entregou-se a nos.
Clarice mantém: No quarto a rosa se espalha em presença. Ela rosa.
Entra no transe de sua propria presença e existe, corn toda sua força,
corn todas suas rosas contidas, faz a rosa, para nés, abandons-se a seu
eu-sou -rosa no fluxo de sua propria vitalidade. Se a observarmos em
camara lenta, veremos que a cada segundo a rosa, aparentemente imovel,
se desenvolve, do alto de sua presença, em direçio a nosso amor, e resplan-
dece.
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Mas Heidegger dirla:

A manutençao entrega o pre-sente à sua pre-sença, ou seja,


à sua permanència. A manutenç -o confere ao pre-sente a
partilha de sua permanencia. A permanéncia assegurada
a cada vez consiste no ajuste que dispöe, de forma transitâvel,
o presente entre a dupla au-sència (proveniéncia e declínio).
O ajuste da permanéncia confina e delimita o pre-sente
enquanto tal. O presente que a cada ves permanece, Ta €ó.ta
desdobra-se em um limite.' 7

Nao foi por acaso que Clarice teve essa história corn urna certa rosa.
Dentre todas as plantas, é a rosa a que oferece sua presença para ser
compartilhada, no momento de seu desabrochar, de forma mais humana:
o suave dar-se de urna rosa ajuda-nos hoje a receber qualquer presença.
Por seu jeito de conter ao se expandir, de nos fazer sentir a rosa da rosa,
de nos oferecer à reflexào, em seu desabrochar, o mistério do nascimento
do ser vivo em cada momento que na() esquecemos de partilhar. De receber
em partilha. Nossas aimas de amor descendem de rosas. A rosa Clarice
é ofertante. A rosa nos dg mais que urna rosa?
A rosa que se deu para ser colhida por Clarice foi tao bem colhida
que Ihe ofereceu, ao mesmo tempo, um segredo: sobreviveu para dar a
prova da força produzida pela aliança que une dois seres em torno da
mesma necessidade de chamar, de responder, de retomar a origem. De dar
origem à origem.
"Die Rose aus Bewegung". De urn pâssaro ergue-se o céu. De urna
rosa o tempo escapa. A rosa nos da ainda o movimento da presença. Rilke
escreve vinte e quatro pomas sobre a rosa. Mas Clarice di à vida o silencio-
so respirar de urna rosa: "A realidade nào tern sinernimos".
Para chegarmos ao coraçào da rosa, basta seguir o caminho da rosa,
chegar a ela por suas vias. Aproximar-se corn tal auséncia de si, corn tal
delicadeza, sem perturbar sua proximidade, entrar corn passos de perfume
na âgua de seu perfume, sem perturba-la. Agora ha urna rosa no quarto.
No espaço desdobrado por sua chegada, habitamos. E as tartarugas?
Agora, corn os mesmos dados, a mesco., ternura, o mesmo respeito,
Clarice pode substituir urna rosa por urna tartaruga. Mas Rilke só poderia
substituí-la por um unicOrnio ou urna anémona. Mas Clarice, por urna

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barata. Mas Rilke nâo. Mas Clarice, por urna ostra. Mas Rilke, só corn
rendas.

Vejo as flores na jarra. Sao flores do campo e que nasceram


sem se plantar. Sao amarelas. Mas minha cozinheira disse:
que flores feias. Só porque é difícil amar o que é franciscano.
No atras do meu pensamento esta a verdade que é a do mundo.
A ilogicidade da natureza. (Agua Viva — p. 86)

Porque na escola de Clarice aprendemos a mais bela das liçòes: a


liçào da feitira:

Terei enfim perdido todo um sistema de born gosto? Mas sera


este o meu ganho único? Quando eu devia ter vivido presa para
sentir-me agora mais livre somente por nâo recear mais a fatta
de estética... Ainda nao pressinto o que mais terei ganho.
Aos poucos, quem sabe, irei percebendo. Por enquanto o
primeiro prazer timido que estou tendo é o de constatar que
perdi o medo do feio. E essa perda é de urna tal bondade.
É urna doçura. 1 s

Hi Rilke: mas hi Clarice. Hi apenas: Hi culto, ha medo, ha limites,


hi a contida vastidào da Weltinnenraum: o mundo-na-intimidade-do-eu-
-Rilke. Hi encerramento; a mâo segura, a escrita e/lege e conteur. Mas ha
Clarice, ha audacia, vertigem sem limites, hi sim,

Quero o inconcluso. Quero a profunda desordem organica que


no entanto da a pressentir urna ordern subjacente. A grande
poténcia da potencialidade. Estas minhas frases balbuciadas
sào feitas na hors mesma em que estào sendo escritas e crepi-
tam de tao novas e ainda verdes. Etas sào o ja. Quero a experi-
éncia de urna fatta de construçào. Embora este meu texto seja
todo atravessado de ponta a ponta por um fragil fio condutor
— qual? (Agua Viva — p. 27)

Hi o risco-Clarice. Clarisco: através do horrível até a Alegria. Pois


Clarice tern o terrivel esplendor de ousar o real, que nâo é belo, que nâo
é organizado, de ousar o vivo, que nâo é simbolizado, que nâo é pessoal,

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de ser no cerne do é que é sem mim, de escrever ao correr dos signos,
sem historia.
Ousa, quer, o cliché, o pobre, o Infimo, o efémero, de cada instante.
Nào tern medo, quer verdade, vida, que näo tern sentido; a infinita resis-
téncia do que esta vivo. Só tem medo de ter medo. Vai. Näo se protege.
Se perde. Protege-se apenas da mentira.

Mas é que a verdade nunca me fez sentido. A verdade näo me


faz sentido! É por isso que eu a temia e a temo. Desamparada,
eu te entrego tudo — para que faças disso urna coisa alegre.
Por te falar eu te assustarei e te perderei? mas se eu näo falar
me perderei, e por me perder eu te perderia. (A Paixäo Segun-
do G.H., p. 17)

A Pa:xâo Segundo G.H.: a paixäo de ser na posse impessoal, viva,


com a enorme barata brasileira imemorial, nossa ancestral:

parece que alcanço um plano mais alto de humanidade. Ou da


desumanidade — o it.
O que faço por involuntârio instinto näo pode ser descrito.
Que estou fazendo ao te escrever? estou tentando fotografar
o perfume. (...)
Escrevo-te este fac-sfmile de livro, o livro de quem n10 sabe
escrever; mas é que no dominio mais leve da fala quase näo
sei fatar. (...)
Escrevo-te à medida de meu folego. (. ..) Agora you scender
um cigarro. Talvez volte à maquina (...)
Voltei. Estou pensando em tartarugas. (. ..) Elas me interes-
sam muito. Todos os seres vivos, que nào o homem, saio um
escàndalo de maravilhamento: fomos modelados e sobrou
muita matéria-prima — it — e formaram-se entäo os bichos.
Para que urna tartaruga? Talvez o título do que estou te
escrevendo devesse ser um pouco assim e em forma interro-
gativa: "E as tartarugas?" Vocé que me lé diria: é verdade
que ha muito tempo nào penso em tartarugas. (Agua Viva,
pp. 55-56)

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A imitaçâo da tartaruga. Da barata. Da cadeira. Do ovo. "Tomar
conta do mundo exige também muita paciéncia: tenho que esperar pelo
dia em que me apareça urna formiga". É preciso muita atençào para
salvar a formiga. Uma atençao muito precisa, poderosa, muito mulher.
E as mulheres?
E é preciso uma atençâo também poderosamente pensante, aberta,
em direçào dos seres tao próximos, tao familiares que estao esquecidos,
para que chegue o dia em que as mulheres que sempre estiveram — la,
possam enfim aparecer.

NOTAS

I) Clarice Lispector: Essa mulher, possa contemporânea, brasileira (nascida na


Ucrânia, de origem judaica) rios da, nâo livros, mas o viver salvo dos livros, das
narrativas, das construçòes recalcadoras. E, por sua escrita-janela, entramos na
terrível beleza do aprender a Ier: viver-se, Indo, através do corpo, ao outro lado
do eu. Só uma mulher poderia dar esse exemplo de risco näo simulado: amar o
verdadeiro no que é vivo, o que, a olhos-narciso, pareça ingrato, o sem-prestigio,
o inatual, amar a origem, interessar-se pessoalmente pelo impessoal, pelo animal,
pela toisa. Pelo outro.
2) La Passion selon G.fi., de Clarice Lispector, foi publicado pela Ed. des Femmes,
em 1978. 0 termo "selon" se traduz, em portugués, por "segundo". Urna
paixâo secunda a outra, G.H. "secunda" a paixâo de C.L. que, por sua vez, vem
nos buscar e conosco refaz, por sua vez, o caminho apocalíptico — G.H.: a que
resta de C.L. ao fim densa longa e impiedosa alegria. G.H. ou C.L.: trio mais
iniciais, mas, alcançando o despojamento do eu, itomos que bastam para de-
signai o ser que se aventurou nas regióes do Infinitamente Pequeno, onde — guia
do bizarro — também Hölderlin se hospedou.
3) Momento tirado de um livro incluido cm Vivre l'Orange — Hélène Cixous, Ed.
des Femmes, 1979.
4) A ser publicado pela F4. des Femmes, no outono de 1979.
5) Heidegger, Qu 'appelle- t -on penser?, PUF, p. 192
Entende-se em geral corn isto, diz Heidegger, o simples fato de apreender e
percorrer urna escrita, um escrito. Ora, para tanto, juntamos as letras. Sem tal
agrupamento, ou seja, sem a colheita (die Lese), no sentido de colheita de (rigo
e de vinha, jamais serfamos capazes de ler (lesen) urna só palavra, ainda que
observâssemos rigorosamente os caracteres.
6) Heidegger, "Das Wort", in Unterwegs zur Sprache. Neske, p. 233
7) Ela deixa-ser: e hi nisso, a cada co-Iher/co-Ier a partir de seu copro, resposta
ao seminario de J. Derrida, que se interroga sobre a possibilidade de "Dar-se
tempo". Clarice di o(s) tempo(s). Ela é, pienamente, acolhida, resposta, recep-
tividade que se dé. Torna possfvel o dar-receber.

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8) 0 Ovo e a Galinha, in A Imitaçdo da Rosa. Ed. Artenova, Brasil.
9) Heidegger, "Das Wesen des Sprache", in Unterwegs zur Sprache, Neske, p. 193.
10) Quanto a esse acontecimento, se quiséssemos traduzir o trabalho de Clarice na
linguagem de Derrida, ouviríamos also assim: a factualidade propria da obra
consiste em que ela seja, mais do que nio seja, e essa factualidade é exatamente
o que define a obra de arte. O proprio, ou o essencial de urna obra é sua verdade
como acontecimento — o acontecimento do acontecimento — através do qual
toda obra existe, que faz corn que algo que antes nio existia passe a existir, e
que dé origem: que o ovo, que antes nio existia, seja. O que a ovobra confeccio-
na é o acontecimento que faz cons que ela exista, e a unicidade desse aconte-
cimento, sua urna sé ovovez, que esté guardada na ovobra e nela institui a
verdade como obra sob a coberta do ovo de arte.
11) E para Heidegger, é quando o mago (Seher) viu, que ele verdadeiramente vé.
"E apenas quando alguém viu, que vé, verdadeiramente. Ver, é ter-visto. O
visto chegou e permanete no campo de seu rosso. O mago sempre jà viu. Tendo
visto antes. ele pré-vê, prevé. Vê o futuro a partir do perfeito. Quando o poeta
fata de Ver como do ter visto do vidente, tern que dizer que o vidente via no
mais que perfeito: ele havia visto. De que se serviu a visâo do vidente? Aparente-
mente apenas daquilo que, na claridade que atravessa sua visio, desdobra sua
presença. O Visto de tal visio sé pode see o presente no desabrochado aberto."
"A Palavra de Anaximandro" in Caminhos que ndo Levain a Lugar Nenhum.
Ed. francese Gallimard, p. 281.
12) A Paixdo Segundo G.H., p. 20.
13) Ibid., p. 13.
14) Ibid.. p. 51.
15) A Imitaçdo da Rosa, Ed. Artenova, Brasil.
16) Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, R.M. Rilke, in Oeuvres, T.1, Prose. Ed.
du Seuil, p. 629.
"Foi no ano seguinte à morte de mamie que percebi Abelone pela primeira
vez. Abelone estava sempre là. Era mesmo seu erro mais grave. (...) Abelone
estava lé, e aproveitévamos dela, bem ou mal. Mas de repente me perguntei:
por que Abelone esté aqui? No entanto, cada um de nos tern um certo motivo
para existir, mesmo se nio é evidente à primeira vista. Como, por exemplo.
a utilidade da senhorita Oxe. Mas por que Abelone estava sempre là?"
17) Heidegger, Caminhos que neo levain a fugar algum, op. cit., p. 300.
18) A Paixdo Segundo G.H., p. 19.

N.T. As citaçdes de Clarice Lispector correspondem is seguintes ediçbes:


A Paixdo Segundo G.H. Rio, Editora do Autor, 1964.
A Legido Estrangeira. Sio Paulo, Atica. 1977.
Agua Viva. Rio, Nova Fronteira, 1980. 73 ediçào.

Heine Cixous é professora da Universidade Paris VIII, onde dirige semindrios sobre
a obra de Clarice.

24 Rev. TB, Rio de Janeiro, 104:9/24, jan. -mar., 1991

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