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DESCARTES

“Os filósofos são importantes não somente por aquilo que dizem, mas também pelas
tradições que geram e põem em movimento: algumas posições favorecem o nascimento de
outras. Assim os filósofos são importantes tanto por aquilo que dizem como por aquilo que
impedem de ser dito” (Reale, 1990).
“Podemos repetir com Whitehead que a história da filosofia moderna é ‘a história do
desenvolvimento do cartesianismo em seu duplo aspecto de idealismo e mecanicismo” (Reale,
1990).
QUINTA PARTE:
- Sobre o progresso das suas investigações com base no método.
- O “tratado do mundo”.
- As leis da natureza e da natureza da luz.
- Dos corpos inanimados e dos corpos vivos.
- Descrição da circulação do sangue.
- Os espíritos animais e o corpo-máquina.

Resumo
Gostaria de continuar aqui a exposição de todas as verdades que tirei das primeiras, por
simples dedução; mas evito-o por cuidado. Bastará agora enunciá-las muito por alto, devendo
assinalar que nunca abandonei na minha investigação o princípio inabalável a partir do qual
pude demonstrar a existência de Deus e da alma, ou seja, o princípio da evidência.
E essa regra tem-me sido tão proveitosa que julgo ter vencido as maiores dificuldades,
e ao mesmo tempo descobrindo leis tão verdadeiras quanto é certo regerem tudo o que ocorre
no mundo. Pelos efeitos dessas leis cheguei a conhecimentos muito úteis para a vida.
Como não posso, por cautela, publicar o Tratado, onde falei com pormenor dessas
coisas, fico-me aqui por um rápido resumo das principais. A minha intenção era falar nele de
tudo o que julgava saber das coisas materiais, mas por economia adoptei uma perspectiva única,
expondo tudo o que pensava sobre a luz; e por acréscimo, sobre o Sol, as estrelas, os céus, os
planetas, etc., e finalmente sobre o homem. Para evitar disputas, resolvi pensar esses fenómenos
fora do nosso mundo, para concebê-los melhor num mundo ideal formado a partir do caos.
Comecei, nessa obra, por descrever a matéria das coisas e as leis da natureza que, por
ação de Deus, são iguais em todo o universo. Depois, expliquei como essa matéria, seguindo as
leis estabelecidas na natureza, se dispersa à semelhança dos nossos céus, da terra, dos planetas,
do Sol. Falei da luz e daquela qualidade que se deve encontrar no Sol, fazendo entender que
tudo nesse mundo se passaria como no nosso. Indo por esse caminho falei da terra, da matéria,
dos elementos e dos corpos. E como a luz tem a sua causa ou nos astros ou no fogo, procurei
esforçadamente conhecer a sua natureza.
Não quiz com tudo isto dizer que o mundo fora formado, como sugeri, a partir da matéria
em estado de caos, posto que é mais verosímil que Deus tenha criado o mundo tal como o
encontramos agora. Na descrição dos corpos inanimados e das plantas, passei aos animais e,
finalmente, ao homem. Mas como o meu conhecimento acerca do homem era muito menor do
que o que julgara ter acerca das outras matérias, limitei-me a conceber um corpo humano sem
a alma ou espírito, de modo a poder contemplar apenas as suas funções fisiológicas. Mas, como
amostra do que escrevi nesse tratado, descreverei aqui a explicação do movimento do coração
e do sangue nas artérias, como exemplo e modelo de outros movimentos.
Assim, quando as concavidades do coração não estão cheias de sangue, este circula
obrigatoriamente da veia cava para a concavidade direita e da artéria venosa para a esquerda,
dado que estes dois vasos estão sempre cheios e as suas aberturas ligadas ao coração não podem
permanecer vedadas. Logo que entram duas grandes gotas de sangue, uma em cada
concavidade, rarefazem-se imediatamente, dilatando-se em consequência do calor que lá
encontram. Fazendo desse modo inchar o coração, empurram e fecham as cinco pequenas portas
que estão à entrada dos vasos de onde provêm, impedindo que mais sangue desça. Ficando cada
vez mais rarefeitas, as gotas de sangue empurram e abrem as seis pequenas portas que vedam
os outros dois vasos, fazendo assim dilatar todos os ramos da veia arterial e da grande artéria
quase ao mesmo tempo que o coração. Este desincha, tal como as artérias, porque o sangue que
ai entrou acaba por arrefecer". E o sangue prossegue o seu curso, circulando das veias às
artérias, não correndo estas o risco de ficarem demasiado cheias, dado que através de pequenas
passagens, por sua vez, passa das artérias às veias, num movimento perpétuo.
Toda a experiência que possamos fazer neste campo mostrará que tenho razão quando
afirmo que a circulação do sangue se deve ao calor que se gera no coração, rarefazendo,
dilatando e expelindo o sangue através do corpo. O meu tratado explicava ainda a génese dos
espíritos animais, que, como uma chama muito pura e viva, sobem do coração ao cérebro e
provocam o movimento dos membros; descrevi a estrutura dos músculos do corpo humano, as
alterações no cérebro que provocam a vigília, o sono, os sonhos, o modo como operam os
sentidos, a memória, a fantasia. Considerando que o corpo não é senão uma máquina muito
perfeita, saída das mãos de Deus (o que é muito evidente com os animais), detive-me a explicar
por que motivos um autómato em tudo semelhante ao homem, e saído da sua oficina, jamais
poderia confundir-se com ele.
Quer porque a linguagem é exclusiva do homem, quer porque um autómato por mais
perfeito que fosse nunca poderia competir em destreza com o ser humano. A terminar, descrevi
a natureza da alma racional e expliquei que ela nada tem a ver com o corpo. Donde resulta que
podemos não só afirmar a independência da alma face ao corpo, como a própria imortalidade
da alma.

Comentário
1. A quarta parte do Discurso suspende-se numa meia justificação da realidade do
mundo material. Depois do eu pensante, que dá a primeira certeza, e da ideia de Deus, que nos
leva a pensar na existência de algo exterior e transcendente ao eu, faltava fundamentar a
realidade do mundo. Descartes deduz a existência do mundo como realidade autónoma do
sujeito, a partir da bondade de Deus. É a partir das perfeições de Deus, nomeadamente a sua
bondade, que se deduz a verdade das ideias que representam as coisas. O mundo, como aliás a
verdade de todas as nossas ideias, encontram o seu fundamento nas perfeições de Deus.
Compreende-se que, no início da quinta parte, Descartes se sinta, de algum modo, constrangido
a levar ainda mais longe a sua exposição. Note-se que essa investigação consiste numa dedução
racional e não propriamente numa busca de confirmação empírica, pela experiência, de
hipóteses. Foi por dedução que se chegou do cogito ao mundo exterior, com o intermédio de
Deus, e é ainda deduzindo da sua metafísica que Descartes procura compor uma física. Mas o
risco é demasiado grande; Galileu havia sido recentemente condenado pelas suas teses
heliocêntricas e todo o seu pensamento tinha ficado comprometido pela condenação da Igreja.
Descartes, que planeara publicar a sua obra sobre física e astronomia -o Tratado do Mundo
desiste do projecto receando represálias, que acabará por sofrer, se bem que de forma menos
violenta. E nem mesmo no Discurso, nomeadamente nesta quinta parte, onde aflora esses
assuntos, se permite dá-los a conhecer em todo o seu desenvolvimento. Este capítulo começa
com a mesma reserva, quase com a mesma falta de disposição, que encontramos na quarta parte.
Só que agora a hesitação resulta mais do receio de censura que de não ser devidamente
compreendido pelos leitores a quem se dirige.
2. O método seguido desde o início havia dado até ao momento excelentes resultados.
Não prescindindo nunca da regra da evidência, que lhe ditava a necessidade de cada ideia se
fazer acompanhar de um suplemento de clareza e distinção no espírito, conseguiu sempre
triunfar de todas as dificuldades. O Tratado do Mundo é a obra que faz extensivamente o
balanço das descobertas e das investigações. realizadas na sequência dos seus primeiros
sucessos. A sua fidelidade ao método e ao espírito de investigação fortalece-se com a descoberta
de certas leis relativas à ordem natural. «Muito úteis e importantes» é como Descartes
caracteriza essas verdades, em cuja apreciação se destaca já um interesse pragmático e utilitário.
3. O projecto de um Tratado do Mundo, em que se reuniriam todos os dados conhecidos
sobre a natureza, é daqueles que nunca chegam a realizar-se completamente pela própria
desproporção do seu objectivo. Falhada a publicação, por motivos que se prendem com a
censura eclesiástica e com o receio de pressões da comunidade científica, a obra será dada ao
prelo apenas em 1644, vários anos depois da sua morte. Além do mais, por absoluta
impossibilidade de nela incluir todas as matérias do conhecimento, decidirá tomar apenas um
dos aspectos dos fenómenos da natureza e tratá-lo como um elemento de um todo complexo.
Escolhe, para isso, os fenómenos da óptica, e numa progressão que tem tanto de minucioso
quanto de subtil, chega até ao homem sob pretexto de este ser o espectador de todos os sucessos
relatados.
4. Para se furtar a críticas, Descartes desloca a sua investigação para uma espécie de
universo imaginário ou virtual criado por Deus noutro lugar. O modelo permite-lhe, ainda que
sem referir uma única vez no Discurso a tese heliocêntrica, falar das leis que regem os
movimentos dos corpos no plano da abstracção e portanto sem se comprometer directamente
com as implicações ideológicas das suas teorias.
O interesse está em que, parecendo falar de um mundo imaginário e meramente possível,
Descartes se refere aos fenómenos do nosso mundo. Porque se as leis da natureza são
inteiramente deduzidas das perfeições de Deus, qualquer mundo que tivesse sido criado não
observaria outras leis senão aquelas mesmas que se verificam no nosso. Podemos ver aqui uma
alusão à tese científica que vê o espaço como um elemento contínuo e homogéneo, regido por
leis universais de matriz matemática. Leis que por serem universais são válidas quer para o
nosso mundo quer para um mundo virtual que podesse surgir em qualquer outro lugar.
5. O estudo dos fenómenos da óptica ocupou Descartes em diversos momentos da sua
vida; já na série de ensaios científicos de que o Discurso do Método é uma espécie de prefácio,
nomeadamente na Dioptrica, esse assunto é abordado. Associando a luz ao fogo, procura
estudar o fenómeno da combustão nas suas diversas modalidades: calor sem luz, luz sem calor,
etc. Este fenómeno assume uma grande importância no quadro dos seus estudos de fisiologia.
Veremos depois como todo o sistema da circulação do sangue no organismo depende do calor
que encerra o coração; dessa espécie de <<fogo sem luz», para usar a sua linguagem.
6. Descartes pensa o mundo e os organismos como máquinas, como mecanismos
admiravelmente complexos cujo funcionamento se submete às vulgares leis da mecânica. O
metabolismo do corpo humano do corpo como máquina - explica-se apenas por acções
mecânicas, como é o caso da tracção, da pressão e da mudança de lugar. Como, aliás, ele bem
exemplifica no caso da circulação sanguínea. Deus criou o universo como uma máquina à qual
bastou comunicar, no momento da criação, uma certa quantidade de movimento. Como as leis
da Física e da Mecânica nos dizem que a quantidade de movimento num sistema é sempre
constante, bastou a Deus dar um <<piparote>>, um empurrão inicial, para que esse mecanismo
se mantenha desde então numa situação de equilíbrio dinâmico.
7. A tese do bissubstancialismo, ou seja, da natureza dupla do ser humano, é também
aflorada nesta penúltima parte do Discurso. Com o cogito o homem descobre-se essencialmente
espírito ou substância que pensa. Mas o curso das suas deduções leva-o a admitir, a existência
de um corpo material associado a essa substância pensante. O homem, como ser pleno, resulta
da união substancial de um corpo a uma alma, mas alma e corpo, nesta precária unidade, são
realidades diferentes. A sua união é instável e volátil, persistindo como um dos maiores
mistérios da natureza humana.
8. Uma das passagens mais extensas do Discurso é consagrada nesta quinta parte à
descrição da circulação sanguínea. Poderá causar surpresa que numa obra sobre o método, e
após uma densa exposição do percurso metafísico, surjam páginas e páginas sobre uma questão
particular da fisiologia; para mais, assente sobre o falso pressuposto de que o coração é um
orgão quente e não um músculo como já havia, ao tempo, sido proposto pelos estudiosos
Na verdade, o tema das duas últimas partes rompe parcialmente com a reflexão de teor
metafísico e abstracto. Mas só parcialmente. Dissemos que a realidade do mundo, dos objectos
e do corpo, ficara apenas semifundamentada na quarta parte. Agora nesta, o corpo material do
homem é objecto de investigação, e num dos aspectos que mais levam a pensar na natureza
singular e única do ser humano. Descartes declara no início da descrição do movimento do
coração que, para proceder a uma análise, tomara abstractamente um ser semelhante em tudo
ao homem, mas do qual a alma estivesse ausente. O homem representa, e transporta, o mistério
da união da alma com o corpo. Nas primeiras partes a alma fora afirmada como a essência do
humano; o homem reconhece-se como ser pensante muito antes de descobrir a sua dimensão de
corpo animado. Mas aqui, nesta quinta parte, é o corpo e o seu mecanismo que constitui o
objecto exclusivo da investigação. A doutrina da bissubstancialidade, da união misteriosa da
alma com o corpo, valoriza a primeira em detrimento do segundo. Basta relembrar que o homem
é uma res cogitans, uma <<coisa>> cujo ser se gera no pensar, enquanto o corpo não passa de
uma máquina subtil, fragilmente coligada com o espírito. Contudo, a reflexão que aqui
Descartes desenvolve eleva o corpo à dignidade de um objecto que pode ser pensado, mesmo
na ausência da alma que o anima temporariamente.
9. Descartes propõe-se, enfim, estudar o movimento do coração e a circulação do sangue
no organismo- sob pretexto de que «sendo o primeiro (movimento) é também o mais geral» que
se verifica nos animais. O seu espírito, afeito à disciplina do raciocínio dedutivo, escolhe um
fenómeno da fisiologia que pode ser tomado como exemplo e explicação para outros
fenómenos. Isso, declara com convicção, «permitirá julgar a partir dele, o que se há de pensar
de todos os outros». A matriz do pensamento geométrico e matemático deve ser levada a todos
os campos do saber; até mesmo àquele que se faz sobre o homem.
Esta disposição de um espírito predominantemente matemático e conceptualista leva a
perguntar se é sincero, quando faz o apelo à experiência e à experimentação. Podemos duvidar
dessa sinceridade, e no entanto, nas linhas que precedem a extensa e pormenorizada descrição
da circulação do sangue, Descartes convida o leitor, <<antes de ler essa descrição, a mandar
cortar [...]o coração de qualquer grande animal que tenha pulmões» A disposição de um espírito
que não é alheio ao apelo da experiência directa parece confirmar-se nessa ampla e minuciosa
descrição do coração, das veias e das artérias. Descartes apenas ignorava que a sua tese, segundo
a qual o coração é uma fonte de calor e o sangue se dilata nessa espécie de fornalha, progredindo
através das artérias pelo efeito do aumento de volume, era falsa e jamais viria a ser confirmada
experimentalmente.
10. O conhecimento da circulação sanguínea no organismo não era ainda no tempo de
Descartes um dado adquiri- do para a ciência. De tal modo que a defesa que ele faz desse
fenómeno da fisiologia envolve um risco, sustentado que está apenas por alguns dados
experimentais. A teoria da circulação do sangue foi primeiramente defendida por Guilherme
Harvey, médico e fisiólogo inglês, no ano de 1628. Por outra via, e quase simultaneamente,
Descartes chega aos seus resultados. Simplesmente, um e outro não partilham a mesma
explicação do fenómeno geral da circulação do sangue no organismo, nem as mesmas teorias
acerca do coração. Para Harvey o coração é um músculo contráctil, uma <<bomba hidráulica»
que bombeia por compressão o sangue através do circuito venoso e arterial. A força que mantém
o coração nesse movimento de contração e expansão ao longo de décadas de vida de um
indivíduo é inexplicável. Descartes, por receio de fundamentar uma explicação naturalista num
princípio obscuro, como seria para ele a ideia de força ou de energia, defende que o coração é
uma fonte de calor sem chama. O sangue chegaria ao coração onde, por efeito do calor desse
órgão aumentaria de volume, e mais rarefeito e subtil, correria pelas artérias. O movimento da
circulação seria provocado pelo efeito de rarefação e dilatação do sangue aquecido pelo
coração, o qual, por sua vez, empurraria à sua frente todo o sangue já arrefecido e espesso.
Como a passagem ao coração do sangue proveniente da veia cava e da artéria venosa é
constante, Descartes pode inferir que o <<seu curso não é mais que uma circulação perpétua»>.
O sistema é sustentado por um eficaz complexo de válvulas que impede o sangue de
retroceder no seu curso e o obriga sempre a progredir. O corpo humano é descrito como uma
máquina, como um mecanismo hidráulico através de cujo sistema de tubos circulam os fluxos
vitais. O coração como uma fornalha (Descartes não desdenharia descrevê-lo como fez Harvey,
acertadamente aliás, como uma pequena bomba hidráulica) seria a causa da circulação do
sangue no organismo. Ao modelo hidráulico, de bombas e tubos, acrescenta a função de um
órgão térmico que desenvolve misteriosamente uma espécie de calor não luminoso. O princípio
em que assenta esta solução é aristotélico e é falso. Contudo, a sua convicção de que está na
verdade é tal que julga encontrar na sua teoria uma evidência semelhante às das demonstrações
matemáticas.
11. A teoria dos espíritos animais, desenvolvida por Descartes neste contexto, procura
explicar um conjunto mais vasto de fenómenos. Os «espíritos>> são uma espécie de chama
pura e viva, um vento subtil que se desprende do sangue aquecido pela fornalha do coração.
Chegando ao cérebro, baixam aos músculos e aos nervos, dando vida e movimento ao corpo.
Para chegar à explicação de todos os fenómenos da vida anímica, Descartes nunca abandona o
nível físico do corpo. E porque nunca abandona essa dimensão material, todos os movimentos
no espaço, todos os fenómenos fisiológicos se reduzem a uma mecânica. As regras da mecânica,
dirá, são as mesmas que as da natureza, e, portanto, que as do corpo23. E como pelo corpo o
homem é um ser plenamente material e natural, todos os seus movimentos e paixões se explicam
por recurso a princípios mecânicos. A teoria do homem-máquina, que numa consideração
estritamente material e exterior esconde a verdadeira essência do homem como ser pensante,
encontra aqui a sua mais refinada expressão. O homem é um espírito que verga sob o peso de
um mecanismo no corpo. Ou, para usar uma imagem poética muito oportuna, o homem é uma
espécie de «<máquina dolorida». A ligação de uma substância imaterial, como o espírito, a uma
substância material, como é o corpo, constitui um dos grandes problemas da filosofia cartesiana.
Como reunir na unidade do homem singular duas naturezas que são inconciliáveis? A solução
de Descartes mais do que uma verdadeira solução é um problema novo: corpo e espírito
<<tocam-se» num único ponto quase imaterial (se faz sentido utilizar esta linguagem) situado
no cérebro e que coincide com a glândula pineal.
12. Se o corpo humano é uma máquina, a verdade é que se trata de uma máquina
admirável concebida por um eficientíssimo engenheiro, por Deus. A conjunção dos elementos
que constituem o seu maquinismo é tão perfeita e apurada que a regularidade e correcção do
seu movimento quase oculta a sua verdadeira natureza de máquina. Ou seja, quanto mais a
máquina é perfeita, menos máquina parece aos olhos de quem a observa. Descartes detém-se
um pouco a explicar as diferenças entre o homem, entendido no todo, e o animal ou a máquina
que, por muito bem concebida que fosse, não passa de uma construção humana. Se o corpo
humano é um mecanismo, o seu funcionamento no espaço admite uma certa forma de ligação
ao espírito. A máquina ou o animal, pelo contrário, não passam de sistemas funcionais. O uso
da linguagem pelo homem e a sua capacidade de criar e inventar soluções que ultrapassam o
automatismo do instinto e dos gestos mecânicos, são os dois aspectos que Descartes apresenta
para distinguir a condição humana do animal e da máquina.
13. Finalmente, a concepção dualista do ser humano como extensão, corpo físico, e puro
espírito, ou como substância que se encontra ou realiza no cruzamento dessas duas naturezas
fornece a Descartes um novo argumento sobre a imortalidade da alma. Se o corpo e o espírito
são naturezas tão distintas, também diferentes serão os seus destinos. Ao corpo-máquina o
tempo reserva a velhice e a morte que tudo corrompe; e com a morte do corpo o espírito perde
o breve nexo que o ligava ao mundo natural, libertando-se para a sua vocação de imortalidade.

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