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Sistema novo da natureza e da comunicação

das substâncias, e da união que há entre a


alma e o corpo’_ [1695]
f

4 Ha muitos anos concebi esse sistema e entrei em comuni-


cação acerca dele com alguns sébios e, sobretudo, com um dos
maiores tedlogos e filésofos de nosso tempo, o qual tendo sabido
de alguns de meus pensamentos por uma pessoa da mais alta
qualidade, considerou-os extremamente paradoxais. Porém, tendo
recebido meus esclarecimentos, ele retratou-se da maneira a mais
generosa e edificante do mundo e, tendo aprovado uma parte
de minhas proposigdes, fez cessar sua censura em relação as
outras, com as quais ele ainda não permanecia de acordo.
Desde entdo, continuei minhas meditagdes sempre que tive
oportunidade, para oferecer ao publico somente opinides bem
examinadas. E esforcei-me também em satisfazer as objeções
feitas contra meus ensaios de dinamica, que tém ligagdo com
este sistema. Tendo algumas pessoas considerav eisver
desejado

* Publicado originalmente no Journal des Savants em jun./jul. de 1695. Ver


LEIBNIZ, G. W. Die philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm Leibniz.
Herausgegeben von C. |. Gerhardt: Bd. IV. Olms, 1978. p. 477-487. [Nota
do tradutor)

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minhas concepções bem mais clarificadas, aventurei-me em
apresentar essas meditações, ainda que elas não sejam de modo
algum populares, nem sejam próprias a serem apreciadas por
todos os tipos de espírito. Dediquei-me a essa tarefa principal-
mente para me beneficiar do juízo daqueles que são esclarecidos
nessas matérias, uma vez que seria muito difícil procurar e
consultar em particular aqueles que estariam dispostos a dar-me
instruções, as quais eu estaria contente em receber, desde que
nelas se mostre antes o amor à verdade do que a paixão pelas
opiniões preconcebidas.
dL Ainda que eu seja um dos que muito trabalharam no campo
da matemática, não deixei de meditar sobre a filosofia desde
minha juventude, pois sempre me pareceu que havia um meio
de estabelecer algo de sólido por meiode demonstrações claras.
/ Eu havia penetrado a fundo no domínio dos escolásticos quando
a matemática e os autores modernos fizeram-me sair de lá ainda
jovem. Encantou-me a bela maneira destes de explicar meca-
nicamente a natureza e reprovei com razão o método daqueles
que nada empregavam além das formas ou das faculdades das
quais nada se aprende/Mas depois, havendo tentado aprofundar
os princípios mesmos da mecânica para fornecer uma explicação
das leis da natureza conhecidas por meio da experiência, aper-
cebi-me que a consideração da massa extensa não seria por si
mesma suficiente e que seria preciso empregar ainda a noção de
força, a qual é plenamente inteligível, ainda que pertença à
esfera da metafísica. Parece-me também que a opinião daqueles

16 - Sistema novo da naturça,.

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que transformam ou degradam os animais em puras máquinas,
ainda que isso pareça possível, é implausível e, até mesmo, contra
a ordem das coisas.
3 No começo, quando me libertei do jugo de Aristóteles, .
acabei por acreditar no vazio e nos átomos, pois isso é o que /
mais satisfaz & imaginação: Mas, voltando a esse ponto após
muita meditação, apercebi-me de que éblimpossível
=L encontrar os N
w
principios da verdadeira unidade unicamente na rQatérIaouem
We p@\@ pois neste tudo é apenas uma cole-
ção ou acumulagao de partes até o infinito/A multiplicidade pode
derivar sua realidade somente de verdadeiras unidades que tém
outra origem e que são distintas dos pontos matematicos — os
quais ndo são nada além de extremidades do que é extenso e
meras modificagdes, e dos quais se sabe que deles o continuo
ndo pode ser composto. Assim, para encontrar essas unidade?
_reals, fui constrangido a recorrer a um ponto real e aummdQ..Por
assim dizer, ou a um átomo de substância que deve envolver
algo de formal ou de ativo para fazer um ser completo. Foi preciso, Ao
entdo, chamar e como que reabilitar as formas substanciais, tão ? À
desacreditadas hoje em dia, mas de uma maneira que as tornasse
inteligíveis e que separasse o uso que se deve fazer delas do
abuso que se cometeu. Descobri, então, que a nature S
formas substanciais consiste naforça e que daí se segue algo de
análogo ao sentimento e ao apetite, e que era preciso, portanto,
concebê-las à imitação da noção que nós temos das almas. Mas,
uma vez que a alma não deve ser empregada para explicar

Gottfried W. Leibniz - 17

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detalhes da economia do corpo do animal, eu considerei do mesmo
modo que não era preciso empregar essas formas para explicar
os problemas particulares da natureza, ainda que elas sejam
necessárias para estabelecer princípios gerais verdadeiros.
Aristóteles chama-as de enteléquias primeiras; eu chamo-as, talvez
mais inteligivelmente, de fqr;as_gnmlt:vas as quais ndo contém
somente o ato ou o complemento da possibilidade, mas ainda
uma atividade original.
À Vi que essas formase essas almas deveriam ser indivisi-
veis, tanto quanto nosso espirito, como com efeito eu recordava-me
que era a concepgdo de Santo Tomds de Aquino acerca das almas
dos animais. Mas essa verdade renovava as grandes dificuldades
relativas à origem € a duração das almas e das formas; pois-teda
substancia simples que tem uma vercadeira unidade não pode
ter seu comego e nem seu fim sendo por milagre, seguindo-se
dai que elas somente poderiam comegar por criagdo e acabar
por aniquilamento. Assim (excetuadas as almas que Deus
expressamente ainda quer criar), fui obrigado a reconhecer que
. € preciso que as formas constitutivas das substincias tenham
sido criadas com o mundo e que elas subsustam para sempre.
Assim, alguns escolasticos, como Albertus Magnus e John Bacon’
haviam entrevisto uma parte da verdade sobre a origem dessas

* Filósofo dominicano alemão que viveu de 1200 a 1280 e fol professor de


Tomás de Aquino. [Nota do tradutor]
* Fitósofo carmelita inglês que viveu no século 14, [Nota do tradutor)

18 - Sistema novo da mutwrega..

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formas. E esse ponto não deveria parecer extraordinário, poisse
está atribuindoàs formas somente a duração que os gassendistas
atribuem a seus átomos.
G Julguei, entretanto, que não seria de modo algum neces-
sário misturar indiferentemente — ou confundir com as outras
formas ou almas — nem os espíritas.nem a alma racional, que uh“"(
são de uma ordem superior e possuem incomparavelmente mais k
pcáeição_quuãamrmàignvt[%&ggꪪ e que se
encontram, na minha opinião, em toda parte. Em comparaçã
com essas últimas, os espíritos e a alma racional são como ªtó'
pequenos deuses, feitos à imagem de Deus e tendo em si mesmos D
alguns raios da luz da divindadel É por isso que Deus governa os V'Nl
espíritos como um príncipe govêrna seus súditos, e mesmo como
um pai cuida de seus filhos, enquanto Ele dispõe de outras subs-
tâncias como um engenheiro maneja suas máquinas. Assim,os
espíritos têm leis particulares
que os colocam acima das revolu-
ções da matéria pela mesma ordem que Deus aícolocou, e pede-
se dizer que todo resto é feito udicamente para eles, estando
essas revoluções mesmas acomodadas a felicidade dos bons e
ao castigo dos malvados.
(@ Contudo, voltando às formas ordindrias ou almas brutas,
essa duragdo que é preciso lhes atribuir, em lugar daquela que
se havia atribuido aos dtomos, poderia fazer acreditar que elas [ b
iriam de corpo em corpo
— o que seria a metempsicose—, de í
maneira semelhante ao modo como alguns filósofos acreditaram
que seria a transmissão do movimento e das espécies. Mas essa
imaginagdo encontra-se bem distanciada da natureza das coisas.
Gattfried W. Leibniz- 19

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Não há absolutamente tal passagem, e é aqui onde as transfor-
magoes registradas pelos senhores Swammerdam, Malplghl
Leeuwenhoeck que são os melhores observadores de nossos
dias, auxiliaram-me e fizeram-me admitir mais facilmente que o
animale toda outra substância organizada não começa de modo .
algum__a momento em qpe acreditamos e que sua geração
aparente nada mais é que um desenvolvimento e uma espécie
de aumento. Também observel que o autor de A busca da
verdade Regns. Hartsoeker e outros homens doutos não se
distanciaram muito dessa opinião.
X' Mas restava ainda a questão mais importante acerca do
quese tornam essas. alma_s ou essas formas quando da morte do
animal ou quando da destruigdo do individuo da substéncia or-
ganizada. E essa questdo é a que mais causa embarago, visto
que parece pouco razoavel que as almas permanegam inutil-
ente em um caos de matéria confusa. Isso me fez considerar,
enfim, que somente haveria um posigdo racional a assumir: a da

º Microscopista holandês que viveu de 1637 a 1680 e que sustentava que as


partes dos insetos já estariam embrionariamente presentes nas larvas dos
insetos. [Nota do tradutor)
3 Microscopista italiano que viveu de 1628 a 1694. [Nota do tradutor]
* Microscopista holandês que viveu de 1632 a 1723. (Nota do tradutor)
? Leibniz refere-se ao livro de Malebranche, que foi publicado anonimamente
até sua quinta edição, [Nota do tradutor]
* Filósofo carteslano que viveu de 1632 a 1707. [Nota do tradutor)
* Fisico holandês que viveu de 1656 a 1725. [Nota do tradutor]

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conservação não somente da alma,mas ainda do animal mesmo
embora a destruição de suas partes

<
grosselras Õ a—tedu |do a uma pequenez que escapa a |
nossos sentidos tanto quanto a que ele possula antes de nascer.
Do mesmo modo, ndo ha ninguém que possa precisar a hora
correta da morte, a qual pode passar muito tempo por uma
simples suspensdo de ações perceptiveis e que, no fundo, não é
jamais outra coisa nos animais simples, como o provam as
ressuscitagdes das moscas afogadas e depois sepultadas sob o
giz pulverizado, e muitos exemplos semelhantes, que fazem
conhecer suficientemente que haveria muitas outras ressuscita-
ções — e depois de passado muito mais tempo —, se os homens
estivessem em condições de restabelecer o funcionamento da
mdquina. Parece que Demadcrito, atomista pleno que era, falou
algo préximo dessas idéias, ainda que Plinio tenha trogado dele
em fungdo disso. E, entdo, natural que o animal, tendo sido ””
sempre vivo e organizado (como as pessoas de grande penetração ( “
começam a reconhecer), assim o permaneça para sempre. E visto
que, dessa maneira, não há nem primeiro nascimento nem gera-
ção inteiramente nova do animal, segue-se que não haverá
extinção final nem morte integral tomada no rigor metafísico, e
que, conseqientemente, em lugar da transmigração das almas,
não há senão uma transformação de um mesmo animal, confor-
me os órgãos são diferentemente conflgurados e mais ou menos
desenvolvidos.
Y Entretanto, as almas racjonais seguem leis muito mais ele-
vadas e sdo isentas de tudo o que lhes faria perder a qua[ldade |

Gottfried W. Leibniz - 21

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de cidadãos da sociedade de espíritos, havendo Deus disposto
tudo tão bem, de maneira que todas as mudanças da matéria
não lhes fizessem perder as qualidades morais de sua personalidade.
E pode-se dizer que tudo tende à perfeição não somente do uni-
verso em geral, mas ainda dessas criaturas em particular, as quais
são destinadas a um tal grau de felicidade que o universo se
encontra interessado nisso em virtude da bondade divina, que se
comunica a cada um segundo o que a sabedoria divina lhe pode
permitir.
O\ No que se refere ao corpo_ordindrio_dos,animais e as.
outras substancias corpéreas, acerca dos quais se acreditou até
agora que a extingao completa e as mudangas dependem antes
das regras mecanicas que das leis morais, eu assinalaria com
prazer que o autor antigo do De Victu, que se atribui a Hipócrates,
havia entrevisto algo da verdade quando ele disse expressamente
que os animais não nascem e não morrem, e que as coisas que
se cré comecar e perecer, nada faz além de aparecer
e desapa-
recer. Essa era também, segundo Aristételes, a concepção de
Parménides e de Melisso, pois esses pensadores antigos eram
mais solidos do que se cré. '
M Sou muito inclinado a pagar tributo aos modernos, mas
considero, entretanto, que eles levaram a reforma longe demais,
confundindo, dentre outros pontos, por não ter idéia suficiente-
mente grande da majestade da natureza, as coisas naturais com
_as artificiais. Eles concebem que a diferença existente entre as
máquinas da natureza e as nossas restringe-se à diferença entre
o grande e o pequeno. Isso fez um homem muito douto dizer há

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pouco que observando-se a natureza de perto descobre-se que
ela é menos admirável do que se acreditava, sendo como a
oficina de um artesdo. Creio que isso não dá uma idéia suficien-
temente justa e digna dela, e que não há outro sistema além do
nosso que torne clara verd
a e imensa distância
adej ra que há
entre as menores produções e mecanismos da sabedoria divinae
as maiores progúções de umespirito limjtddonEssa diferenga não.
é somente d¢ gray/ mas tambémde Á:n_eJÉ preciso, então,
reconhecer que ds máqui natureza possuemum número
da nas
de órgãos verdadeiramente infinito, e que são tão bem municia-
das e protegidas contra todos os acidentes que não-é-passível
des__;_l.u_as. Uma máquina natural permanece ainda uma máquina
nas ores partes e, ainda mais, ela
F permanece sempre
m
essa mesma máquina que ela fol , sendo uumcamen ansforma-
dapelas diferentes dobras que ela recebe. Ela é estendidaalgu-
e
mas vezes, coptraida algumas vezes, quando é concentradaJ
pensa-se que ela foi destruída.
A Além disso, há, por meioda alma ou forma, uma verda-
deira unidade
que corresponde ao que é chamado,
em nés, de
o qual ndo poderia ocorrer em maquinas artificiais nem na ,
massa simples da matéria, não importando quão organizada ela fª
ssa somente pode ser considerada como um
possa ser. Essa massa
exército ou um bando, ou_como um lago cheio de peixes, ou
como um reldgio composto de molas e de roda Entretanto,se N &
ndo houvesse nenhuma verdadeira unidade substancial_nao "
haveria nada de substancial nem de real na colegdo. Isso foi o

Gottfriad W. Leibniz - 23

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que forçou Cordemoy.w para encontrar uma verdadeira unidade,
a abandonar Descartes e a adotar a doutrina dos átomos de
Demócrito. Mas os átomos de matéria são contrários à razão,
alémdo fato de serem ainda compostos de partes, uma vez que
a ligação msuperavel de uma parte a outra — mesmo se isso
pudesse ser racionalmente concebido ou suposto — não destruiria
a diversidade dessas partes. Há somente dtomosde substancia,
quer duzer@mdades reais e absolutamente desprovndas de partes
e que sdoas fontes das ações, os primeiros principios absolutos
da composição das coisas, e como que os últimos elementos da
andlise_das coisas substanciais) Eles poderiam ser chamados de
pontos metafisicos: eles possuem algo de vital e uma espécie de
percepgdo, e sendo os pogtos matemdticos seus pontos de vista
para exprimir o universo fMas quando as substincias corporais
são contraldas, todos os seus órgãos reunidos formam, do nosso
ponto de vista, somente um ponto fisico. Assim, os pontos fisicos
apenas aparentemente são indivisiveis. Os pontos matemáticos
são exatos, mas eles não são nada além de modalidades. Há
somente pontos metafísicos ou de substância (constituídos pelas
formas ou almas) que são exatos e reais, e sem os quais não
haveria nada de real, pois que sem verdadeiras unidades não
poderia haver nenhuma multiplicidade.
a MApés haver estabelecido essas coisas, eu acreditava en-
trar no porto, mas quando me pus a meditar sobre a união da
in

" Filósofo ocasionalista francês (1620-1684) que publicou, em 1666, Six


discours sur la distinction du corps et de I'dme et du corps. [Nota do tradutor]

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alma com o corpo fui como que lançado-em-mar aberto, pois -
não encontrava nenhum meio de explicar como o corpo faz
acontecer alguma coisa na alma ou vice-versa, nem como uma | %
substância pode comunicar-se com uma outra substância criada /ã 0
Até onde se pode saber pelos seus escritos,(Descartes-atando- >
nou o jogo nesse pontí)] mas seus discíp&?e's(-/endo que a
opinião comum é incompreensivel, Énslderaram que nós sentimos
as qualidades dos corpos porque Deus faz nascer os pensamentos (,V
na alma por ocasião dos movimentos da matéria, e quando nossa J
alma quer, por sua vez, mover o corpo, eles consideram que é
Deus que o move por ela. E, como a comunicagdo dos movi-
mentos lhes parecesse ainda inconcebivel, eles acreditaram que
Deus dá movimento a um corpo por ocasido do movimento de
um outro corpo.)Isso é o que eles chamam de Sistema das
Causas Ocasiorais, que foi colocado fortemente em voga pelas
belas reflexdes do autor de A busca da verdade.
A% É preciso reconhecer que os ocasionalistas aprofundaram-se
bem na dificuldade, dizendo o que ndo pode ocorrer. Mas nao
parece que eles a tenham suspendido, explicando o que efetiva-
mente acontece. É realmente verdadeiro que, falando segundo
o ugar da metafisica,
ndo Influéncia
há real de uma substincia
criada sobre uma outra, e que todas as coisas, com todas suas
realidades, são continuamente produzidas através do poder de.
Deus. Mas para resolver problemas não é suficiente fazer uso de
uma causa geral e introduzir o que é chamado um deus ex
machina, pois, fazer isso sem que haja uma outra explicagdo que
se possa derivarda ordem das causas secunddrias é propriamente

Goltfried W. Laibniz - 25

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recorrer a um milagre. Em filosofia, é preciso tentar tornar
cognoscível de que maneira as coisas são executadas pela
sabedoria divina, conforme a noção do objeto tratado.
'\"\ Serdo, então, obrigado a admitir que não é possível que a
alma ou qualquer outra verdadeira substância possa receber
alguma coisa de fora — a nãd'ser pela onipotência divina —, fui
conduzido, sem perceber, a uma concepção que me surpreendeu.
mas que me parece inevitável e, com efeito, possui vantagens
muito grandes e belezas bem consideráveis| É necessário, então,
dizer que Deus criou primeiramente a alma ¥ ou qualquer outra
unidade real desse tipo — de um modo tal que tudo nela surge
47 de sua própria natureza, por uma perfeita espontaneidade em
' relação a ela mesma e, entretanto, em perfeita conformidade
¥ com as coisas fora delaf Uma vez que nossassensações internas
(quer dizer, que estão na alma mesma, e não no cérebro e nem
nas partes sutis do corpo) são apenas uma seqiiéncia de fendmenos
"R relacionadosàs coisas externas, ou são aparências verdadeiras e
como sonhos sistematizados, é preciso que essas percepções in-
ternas na alma lhe ocorram a partir de sua própria constituição
original, quer dizer, a partir da natureza representattv:pcapaz
de exprimir os seres fora dela por meio da relação a seustrgãos)
ue lhe foi dada desde sua criação e constitui seu caráter individual.
º {E é isso que faz com que, representando cada uma dessas subs-
tâncias exatamente todo o universo à sua maneira e segundo
um certo ponto de vista, e ocorrendo as percepções ou expres-
sões das coisas externas na alma no momento preciso em virtu-
de de suas próprias leis, como em um mundo à parte e como se

26 - Sisterna novo da natureça..

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não existisse nada além de Deus e da alma (para me servir da :
maneira de falar de uma certa pessoa de grande elevação de W
; À
espírito, cuja santi. dade éé celebrada " '), haja: um perfeito
;
acordo J
x
entre todas essas substancias. Acordo esse que produz o mesmo
efeito que se observaria se elas se comunicassem umas com as
outraªpor meio de uma tr%nsmissão de espéçies ou de qualidades,
comõ os filósofos comumente imaginam/fAlém disso, a 3
QLganizada, na qual reside o ponto de vista'da alma, sendo mais
proximamente expressa por ela, encontra-se, a seu turno, pronta
a agir a partir dela mesma, seguindo as leis da máqu.na corporal, á
no momento em que a alma o queira, sem que uma interfira &&
nas leis da outra, possuindo os espiritos animais e o sangue V"),
justamente, entdo, o movimento que lhes é necessério para
responder s paixdes e s percepções da alma. É essa relação *À
mutua, regrada por antecipagio.em cada substancia do universo,
que produz isso que nds chamamos de sua comunicagdo e que
sozinha constitui a unido da alma e do corpo. E pode-se entender, <
desse modo, como a alma tem sua sede no corpo por uma
presenca imediata, a qual não poderia ser maior, pois ela estd
nele como a unidade está no resultado das_unidades que é a

45 Essa hipotese é muito provavel, pois, por que não poderia \1/\’
Deus dar a uma substancia primeiramente uma palurezapu o
força interna que pudesse produzir ordenadamente (como em

" Trata-se de Santa Teresa de Avila, citada também no pardgrafo 32 do


Discurso de metafisica. {Nota do tradutor]

Gottfried W. Leibniz - 27

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um autômato espiritual ou formal, mas livre naquilo em que ele
tem a razão como parte) tudo o que lhe ocorrerá, quer dizer,
todas as aparênciasou expressões que ela terá, e isso.semo
auxílio de nenhuma criatura?/Ainda mais que anatureza-da
subs- -
tância cx:ga_nccessanamente e envolve cssencmlwflo-
gressp ou uma mudança, spm a qual ela não teria força para
agir /E como a natureza da alma é representar o universo de
umd maneira muito exata (ainda que maisou menos distinta (í
sucessdo das representagdes que a alma produz para si mesma
responderd naturalmente sucessdo das mudangas no universo;
do mesmo modo como, em contrapartida, o corpo também se
acomodou a alma nas ocasides em que ela é concebida como
agindo exteriormente. O que é ainda mais razoavel acerca disso
é que owpo.s_spmerm%fvfl%wmofl que são os
únicos capazes de entrar em comunidade com Deus e de cele-
brar sua glória. Assim, desde que se veja a possibilidade dessa
hipótese de acordos, vê-se também que ela é a mais razoável e
que ela dá uma maravilhosa idéia da harmonia do universo e da
perfeição das obras de Deus.
xCa Encontra-se nessa &up_o}e também a grande vantagem
de que, em lugar de_dizer. que nés somos livres somente-em—
ap?réncia e de uma maneira que é suficiente para propósitos-
praticos, como o creram várias pessoas de espírito, deve-se
dizer, mais propriamente, que nósapenas aparentemente somos
determinados, e que, expressometafisicamente de forma rigo-
rosa, nós somos perfeitamente independentes no que diz respeito
a influéncia de todas as outras criaturas.|Isso coloca em uma

28 - Sistema novo da natureza...

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maravilhosa luz a imortalidade de nossa alma e a conserv ação
sempre uniforme de nossa individualidade, que é perfeitamente
bem regulada por sua própria natureza, encortrando-se protegida
de todos os acidentes externos, qualquer que seja a aparência
que há em contrário. Nunca, nenhum sistema tornou mais evi- |
dente nossa elevação. Todo espírito, por ser como um mundo à | (
parte, auto-suficiente, independente de toda outra criatura, e | X~
que envolve o infmlto e exprime o umverso , é tão durável, tão ‘/"J;),

Assnm deve -se concluur que todo espirito deve sempre cumpnr À
sua parte da maneira mais adequada para contribuir para_ a )
perfeicdo da sociedade de todos os espiritos, que fazem sua unido
moral na Cidade de Deus./Encontra-se aqui também uma nova
prov da aexisténcia de Deus, que é de uma clareza surpreen- (f
dente: esse acordo perfeito de tantas substincias que não se L}‘”‘ |
comunicam umas com as outras somente poderia provir de uma K
causa comum.
A}Além de todas essas vantagens, que tornam essa hipótese
recomendavel, pode-se dizer que ela é algo mais do que uma
_mera hipétese, pois não parece ser possivel explicar as coisas de
uma outra maneira inteligivel, e porque vdrias grandes dificulda-
des, que até aqui ocuparam os espiritos, parecem desaparecer
por si mesmas, quando se a compreende bem._A maneira coti- \(}«f
diana de falar pode ser facilmente preservada, pois se pode dizer
quáa substancia cuja disposiçãotorna inteligível a mudança, dé/ N
modo_que sepode concluir que é a ela que as outras foram
acomodadas nesse ponto desdç,q começo, segundo a ordem dos‘ C
V
É Gottíriod W. Leibniz - 29 N\ ;&ª'

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decretos de Deus, é aquela que se deve conceber como agindo
sobre as outras] Também a ação de uma substância sobre uma
outra não é uma emissão nem uma transplantação de uma enti-
dade, como o vulgo o concebe, e que somente pode ser tomado
racionalmente da maneira como acabei de dizer. É verdade que
se concebe muito bem na matéria tanto emissdes quanto recepgdes
de particulas, as quais justificam que se expliquem mecanica-
mente todos os fenémenos da fisica. Mas como a massa material
ndoé uma substancia,
é claro que a ação, no gue diz respeito a
substincia mesma, somente pode ser como_acabei de dizer.
A% Essas consideragdes, ndo importando
quao metafisicaselas
possam parecer, possuem ainda um uso maravilhoso na fisica
para estabelecer as leis do movimento, como minha Dindmica
pode mostrar, pois se pode dizer que no choque dos corpos cada *
um sofre apenas pela sua propria elasticidade, causada pelo
movimento que já estd nele. E quanto ao movimenta abseluto,
nada pode determina-lo matematicamente, uma vez que tudo -
consis elações, o que faz existir sempre uma perfeita
equivalencia de hipóteses, como na astronomia, de sorte que,
qualquer número de corpos que se tome, é arbitrario atribuir
repouso ou uma certa velocidade aquele que se queira escolher,
sem que se possa ser refutado pelos fenémenos do movimento,
quer retilineo, circular ou composto. Entretanto,é razoivel,em
conformidade com a nogdo de ação que acabamos de estabelecer,
atribyir aos corpos movimentos verdadeiros, seguindo a suposição
que explica os fenémenos da maneira mais inteligivel.

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