Você está na página 1de 9

WARNING OF COPYRIGHT RESTRICTIONS1

The copyright law of the United States (Title 17, U.S. Code) governs the making of
photocopies or other reproductions of the copyright materials.

Under certain conditions specified in the law, library and archives are authorized
to furnish a photocopy or reproduction. One of these specified conditions is that
the photocopy or reproduction is not to be “used for any purpose other than in
private study, scholarship, or research.” If a user makes a request for, or later
uses, a photocopy or reproduction for purposes in excess of “fair use,” that user
may be liable for copyright infringement.

The Yale University Library reserves the right to refuse to accept a copying order,
if, in its judgement fulfillment of the order would involve violation of copyright
law.

1
37 C.F.R. §201.14 2018
Silvio Romero

MACHADO DE ASSIS
Estudo comparativo de literatura Brasileira
IX
0 PROSADOR E SEU ES77L0

Na apreciaçâo da parte mais nott'vel da obra liter-Aria de


Machado de Assis, os modernos processos de critica ao jeito e
gosto do que tern sido ensinado por Hennequin e Faguet levam-
me a estudt'-la em seus elementos capitais: o estilo, o humor, o
pessimismo, os tipos. A analise destes quatro aspectos da obra
fart' conhecer a fundo o homem e o escritor. Comecemos pelo
estilo.
Na literatura, dizia Scherer, ha lugar para oitenta sistemas
e para cem estilos. É isto mesmo; nâo existe um limite detenni-
nado, um manco preestabelecido para nossas faculdades, nossos
temperamentos, nossos gostos. As qualidades primordiais do es-
tilo: personalidade, desenho, colorido, movimento, correçâo,
simplicidade, propriedade, nâo sac) igualmente possufdas por to-
dos os grandes escritores. Este tern algumas, aquele outro é se-
nhor de outras, e, sempre assim, a variedade é a regra geral
nestes assuntos.
O estilo de Machado de Assis nâo se distingue pelo colori-
do, pela força imaginativa da representaçâo sensfvel, pela mo-
vimentaçâo, pela abundância, ou pela variedade do vocabult'rio.
Suas qualidades mais eminentes sâo a correçâo gramatical, a
propriedade dos termos, a singeleza da fora. O periodo nâo lhe
sai ampio, forte, vibrante, como em Alexandre Herculano; va-
riegado, longo, cheio, como em Latino Coelho; imaginoso,
fluente, cantante, como em Alencar; seguro, articulado, movi-

121
mentado, como em Salles Torres Homem; terso e transparente,
corno em João Francisco Lisboa; abundante, corrente, colorido,
marchetado, como em Rui Barbosa. Machado de Assis, como ja
licou acidentalmente dito, nao tern grande fantasia representati-
va, ou antes nao possui quase essa faculdade. Em seus livros de
prosa, como nos de versos, falta completamente a paisagem, fa-
lham as descriçóes, as cenas da natureza, tao abundantes em
Alencar, e as da história e da vida humana, tao notaveis em
Herculano e no próprio Eça de Queirós.
E, entre parênteses, o leitor perdoe-me o ir eu comparando
o nosso escritor de preferéncia aos seus confrades portugueses e
brasileiros e nao aos autores alienigenas, corno, alias, ser-me-ia
facflimo. É que, ainda urna vez o digo, desejo nacionalizar o as-
sunto.
O estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalida-
de, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia
exata do seu espfrito, de sua indole psicológica indecisa. Cor-
reto e maneiroso, nao é vivaz, nem rútilo, nem grandioso, nem
eloquente. É placido e igual, uniforme e compassado. Sente-se
que o autor nao dispoe profusamente, espontaneamente do vo-
cabulario e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre
de urna perturbaçao qualquer nos órgâos da palavra. Sente-se o
esforço, a luta. "Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como
fazem outros na palavra falada", disse-me urna vez nao sei que
desabusado num momento de expansao, sem reparar talvez que
dava-me destane urna verdadeira e admiravel notaçao critica.
Realmente, Machado de Assis repisa, repete, torce, retor-
ce, tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos
a impressào dum perpétuo tartamudear. Esse veto, esse sestro,
para muito espfrito subserviente tornado por urna coisa cons-
cienciosamente praticada, elevado a urna manifestaçao de graça
e humor, é apenas, repito, o resultado de urna lacuna do roman-
cista nos órgâos da palavra.
Quer o leitor convencer-se? e abrir ao acaso qualquer livro
do prosador fluminense. E para que nao pareça propósito, seja o
mais antigo de seus volumes de contos, e logo na primeira pagi-
na:

122
Era conveniente ao romance que o leitor ficasse multo
tempo sen saber quern era Miss Dollar. Mas, por outro fado,
seat apresentaçtio de Miss Dollar, seria o autor obrigado a
longas digressoes, que encheriam o papel sen adiantar a açao.
Nao hd hesitaçâo possfvel: you apresentar-lhe Miss Dollar. Se
o leitor é rapaz e dado ao genio melancólico, imagina que Miss
Dollar é urna inglesa polida e delgada, escassa de carnes e de
sangue, abrindo d for do rosto dois grandes olhos azuis e sa-
cudindo ao vento tunas longas tranças louras. A moca em
questuo deve ser vaporosa e ideal corno urna criaçao de Sha-
kespeare: deve ser o contraste de roastbeef britunico, corn que
se alimenta a liberdade do Reino Unido. Urna tal Miss Dollar
deve ter o poeta Tennyson de cor e ler Lamartine no orginal, se
souper português deve deliciar-se corn a leitura de Ca nues ou
os Cantos de Gonçalves Dias.
O chd e o leite devem ser a alimentaçao de semelhante
criatura, adicionando-se-lhe alguns confeitos e biscoitos para
acudir ris urgencias do estômago. A sua fala deve ser urn mur-
mtirio de harpa eólea; o seu amor fun desmaio, a sua vida unes
contemplaçao, a sua morte fun sospiro. A figura é poética, mas
nzio é a da herofna do romance. Suponhamos que o leitor nuo é
dado a estes devaneios e melancolias; nesse caso imagina tona
Miss Dollar totalmente diferente da outra. Desta vez serti tuna
robusta americana, vertendo sangue pelas faces, formas arre-
dondadas, olhos vivos e ardentes, mulher feita, refeita e per-
feita. Amiga da boa mesa e do born copo, esta Miss Dollar
preferirti um quarto de carneiro a urna pdgina de Longfellow,
coisa naturalfssirn quando o estômago reclama e nunca chega-
rd a compreender a poesia do pôr-do-sol.
Serri urna boa mue de familia, segundo a doutrina de al-
guns ptuires-mestres da civilizaçao, irto é, feconda e ignorante.
Jd nao serri do mesmo sentir o leitor que hiver passado a segun-
da mocidade e vir dicente de si urna velhice sem recurso. Para
esse a Miss Dollar verdadeiramente digna de ser contado em
algumas pdginas, seria urna boa inglesa de cingiienta anos,
dotada de algtunas mil libras esterlins, e que, aportando ao
Brasil em procura de assunto para escrever um romance, reali-

123
zasse um romance verdadeiro, cacando corn leitor aludido.
Urna tal Miss Dollar seria incompleta se nâo tivesse óculos
verdes e um grande cacho de cabelo grisalho em cada fronte.
Luvas de renda branca e chapéu de linho em forma de cuia, se-
riasn a última demdo deste magnifico tipo de ultramar. Mais
esperto que os outros, acode um leitor dizendo que a herotna
do romance nno é nem foi inglesa, mas brasileira dos quatro
costados, e que o nome de Miss Dollar quer dizer simplesmente
que a rapariga é rica.

A descoberta seria excelente se fosse excita; infelizmente


nem esta nem as outras sâo exatas. A Miss Dollar do romance
nao é — a menino romantica, nem a mulher robusta, nem a ve-
illa !iterata, nem a brasileira rica. Falha dessa vez a proverbial
perspicacia dos leitores. Miss Dollar é urna cadelinha galga.

Percorra-se esta pagina corn atençâo e veja-se corno se re-


pisam af as idéias e repetem as palavras : Miss Dollar — doze
vezes; leitor — sete; deve — seis; romance outras tantas; sera
e seria — oito. O trecho é instrutivo como amostra do estilo, da
maneira, do tom, dos tiques do escritor.

Percebe-se que nâo ha fluência na lingua, nem movimento


nas idéias; é alguma coisa que nâo vem de fonte abundante e
precfpite, porém que escorre lentamente como um veio pobre
e tortuoso, posto que limpido e suave. É que tal essencialmente
é o espfrito do romancista. Pouco vasto, pouco intenso, tern em
alto grau a facilidade da reflexâo. Corn um punhado de idéias
pouco extensas, corn urn vocabulario que nâo é dos mais ricos,
corn urna imaginaçâo sem altos vóos, faz muitas e repetidas
voltas em torno dos fatos e das noçóes que eles the deixam na
inteligência, orientada por um imperturbavel born senso, que the
supre a observaçäo, que nâo é muito variada, nem muito rigoro-
sa. O cultivo dos bons mestres da lingua, habito contrafdo ao
contato de José Castilho, tern-lhe fomecido certas formas de
construçâo e de frase que lhe imprimem ao estilo a graciosidade
da coneçâo e apura gramatical, na falca de outras qualidades
mais eminentes. Nas paginas meramente narrativas é seguro e

124
caminha corn aprurno; no dialogo é pouco espontâneo, nâo é
singelo e nâo cativa pela naturalidade.
Quando se esquece de seus dotes e recursos pr6prios e
tenta frases poéticas é quase sempre desasado e resvala para o
verdadeiro gongorismo. Causa verdadeiramente pena ler em seus
livras frases e ditos corno estes:

Margarida desceu do Olimpo do silêncio em que se encer-


rara. Essa hipertrofia do coraçao, que se chama amor. Enten-
deu o céu que devia regar corn as suas ldgrinuzs o solo de Pe-
trópolis. Tinha algum reparo picante no alforge da memória.
As pupilas centelharn de curiosidade e devoçao entre o livro
santo e o bigode do pecado. A morte é um mergulho na eterni-
dade. Mariana ia cantando dentro do coraçao a marselhesa do
matrim6nio. A bela dama, trepando no oln7ao do tempo, foi
alojar-se na casa dos trinta. O homem é a sintnre da natureza.
Corneçou a levantar vagarosamente a murala do silêncio, Ian-
çou prirneiro a camada das pausas. Tinha visto sobre a fronte
urn cabelinho branco: cuidou que era do marido, mas reconhe-
ceu que era dela mesura, urn telegrama da velhice, que vinha a
marchas forcadns. Era um farninto de ideal e criaçcio, olhando
todas as toisas correntes por cima da cabeça do século. Era o
pico do arrufo. Recolheu-o corn a alegria de um sdbio, urna
alegria abotoada de circunspeçcso ate o pescoço. As vivfssimnas
estrelas que luziam no céu, algum poeta imaginoso as compa-
rarla a lfnguas de fogo daquele pentecostes de amor.

Felizmente os casos destes nâo sâo muito abundantes, es-


pecialmente nas últimas obras. Eles, porém, servem para mostrar
que ao autor de Brds Cubas nao coube em partilha a poesia es-
pontânea e natural que se expande em belas frases singelas, co-
mo era o caso de um Renan ou de um Flaubert, nem mesmo a
eloqüência vibratil arroubada, tomo é o caso de nosso José do
Patrocinio, ou aquele particular dote de encontrar inesperada-
mente certas expressóes incisivas, aptas a definirem num simples
traço urna idéia, um fato, urna situaçâo, corno se nos deparam

125
tantas em Ramalho Ortigào, em Eça de Queirós, em Joaquim
Nabuco, em Tobias Barreto.
Este último que, como poeta, nào passou nunca de um ro-
mantico, um Ifrico pelo fundo e pela forma, na prosa teve nada
menos de dois estilos, um imaginoso, correspondente à fase
francesa de seu desenvolvimento, e outro discursivo e travoso
de ironias, correspondente ao seu periodo germanista.
Em ambos os casos acho-o um escritor mais valente do que
o autor de Quincas Borba, para nâo fatar em Rui Barbosa, que a
este excede extraordinariamente sob todos os aspectos da diffcil
arte da palavra escrita, ou para nâo lembrar Camilo Castelo
Branco, que muito o sobrepuja em vernaculidade, riqueza e va-
riedade de tons.
Como quer que seja porém, Machado de Assis é um nota-
vel prosador pela correçâo, pela simplicidade, pela propriedade
das imagens, pelo adequado das comparaçôes, pelo apropriado
dos qualificativos. Mas é só isto. Ele próprio, mais ou menos in-
genuamente, confessa de modo indireto que em matéria de forma
e estilo pouco adiante vai da mútua atraçâo que existe entre o
substantivo e o adjetivo.
Sob esta relaçâo é digno de ter-se o famoso conto — O c6-
nego ou a metafisica do estilo, onde o autor de Varias Histórias
emite urna série de trivialidades com ares remontados e irônicos
de quem esta a pasmar a humanidade corn coisas nunca vistas,
ou sequer sonhadas. "As palavras têm sexo. Amaro -se umas As
outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos esti-
lo.
É a tese sustentada pelo autor entre disfarçadas pilhérias e
graçolas mais ou menos ingênuas com pretensôes a humor. Con-
fesso que nâo Ihes acho graça; porque tudo aquilo é forçado e
pretensioso, nâo passando de banalidades de pasmar.
Tem porém um mérito: revela inconscientemente o pensar
do autor sobre as arduas questóes da arte de escrever. Movi-
mento, personalidade, colorido, propriedade, variedade, abun-
dância, vocabulârio, força descritiva, plasticidade do periodo a
acompanhar as mutaçôes do pensamento, equaçâo espontânea

126
entre este e sua natural expressâo, tudo se redut ao contubérnio
do substantivo corn o adjetivo...
Felizmente a pratica do escritor vale mais do que a sua teo-
ria.

127

Você também pode gostar