Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
The copyright law of the United States (Title 17, U.S. Code) governs the making of
photocopies or other reproductions of the copyright materials.
Under certain conditions specified in the law, library and archives are authorized
to furnish a photocopy or reproduction. One of these specified conditions is that
the photocopy or reproduction is not to be “used for any purpose other than in
private study, scholarship, or research.” If a user makes a request for, or later
uses, a photocopy or reproduction for purposes in excess of “fair use,” that user
may be liable for copyright infringement.
The Yale University Library reserves the right to refuse to accept a copying order,
if, in its judgement fulfillment of the order would involve violation of copyright
law.
1
37 C.F.R. §201.14 2018
Silvio Romero
MACHADO DE ASSIS
Estudo comparativo de literatura Brasileira
IX
0 PROSADOR E SEU ES77L0
121
mentado, como em Salles Torres Homem; terso e transparente,
corno em João Francisco Lisboa; abundante, corrente, colorido,
marchetado, como em Rui Barbosa. Machado de Assis, como ja
licou acidentalmente dito, nao tern grande fantasia representati-
va, ou antes nao possui quase essa faculdade. Em seus livros de
prosa, como nos de versos, falta completamente a paisagem, fa-
lham as descriçóes, as cenas da natureza, tao abundantes em
Alencar, e as da história e da vida humana, tao notaveis em
Herculano e no próprio Eça de Queirós.
E, entre parênteses, o leitor perdoe-me o ir eu comparando
o nosso escritor de preferéncia aos seus confrades portugueses e
brasileiros e nao aos autores alienigenas, corno, alias, ser-me-ia
facflimo. É que, ainda urna vez o digo, desejo nacionalizar o as-
sunto.
O estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalida-
de, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia
exata do seu espfrito, de sua indole psicológica indecisa. Cor-
reto e maneiroso, nao é vivaz, nem rútilo, nem grandioso, nem
eloquente. É placido e igual, uniforme e compassado. Sente-se
que o autor nao dispoe profusamente, espontaneamente do vo-
cabulario e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre
de urna perturbaçao qualquer nos órgâos da palavra. Sente-se o
esforço, a luta. "Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como
fazem outros na palavra falada", disse-me urna vez nao sei que
desabusado num momento de expansao, sem reparar talvez que
dava-me destane urna verdadeira e admiravel notaçao critica.
Realmente, Machado de Assis repisa, repete, torce, retor-
ce, tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos
a impressào dum perpétuo tartamudear. Esse veto, esse sestro,
para muito espfrito subserviente tornado por urna coisa cons-
cienciosamente praticada, elevado a urna manifestaçao de graça
e humor, é apenas, repito, o resultado de urna lacuna do roman-
cista nos órgâos da palavra.
Quer o leitor convencer-se? e abrir ao acaso qualquer livro
do prosador fluminense. E para que nao pareça propósito, seja o
mais antigo de seus volumes de contos, e logo na primeira pagi-
na:
122
Era conveniente ao romance que o leitor ficasse multo
tempo sen saber quern era Miss Dollar. Mas, por outro fado,
seat apresentaçtio de Miss Dollar, seria o autor obrigado a
longas digressoes, que encheriam o papel sen adiantar a açao.
Nao hd hesitaçâo possfvel: you apresentar-lhe Miss Dollar. Se
o leitor é rapaz e dado ao genio melancólico, imagina que Miss
Dollar é urna inglesa polida e delgada, escassa de carnes e de
sangue, abrindo d for do rosto dois grandes olhos azuis e sa-
cudindo ao vento tunas longas tranças louras. A moca em
questuo deve ser vaporosa e ideal corno urna criaçao de Sha-
kespeare: deve ser o contraste de roastbeef britunico, corn que
se alimenta a liberdade do Reino Unido. Urna tal Miss Dollar
deve ter o poeta Tennyson de cor e ler Lamartine no orginal, se
souper português deve deliciar-se corn a leitura de Ca nues ou
os Cantos de Gonçalves Dias.
O chd e o leite devem ser a alimentaçao de semelhante
criatura, adicionando-se-lhe alguns confeitos e biscoitos para
acudir ris urgencias do estômago. A sua fala deve ser urn mur-
mtirio de harpa eólea; o seu amor fun desmaio, a sua vida unes
contemplaçao, a sua morte fun sospiro. A figura é poética, mas
nzio é a da herofna do romance. Suponhamos que o leitor nuo é
dado a estes devaneios e melancolias; nesse caso imagina tona
Miss Dollar totalmente diferente da outra. Desta vez serti tuna
robusta americana, vertendo sangue pelas faces, formas arre-
dondadas, olhos vivos e ardentes, mulher feita, refeita e per-
feita. Amiga da boa mesa e do born copo, esta Miss Dollar
preferirti um quarto de carneiro a urna pdgina de Longfellow,
coisa naturalfssirn quando o estômago reclama e nunca chega-
rd a compreender a poesia do pôr-do-sol.
Serri urna boa mue de familia, segundo a doutrina de al-
guns ptuires-mestres da civilizaçao, irto é, feconda e ignorante.
Jd nao serri do mesmo sentir o leitor que hiver passado a segun-
da mocidade e vir dicente de si urna velhice sem recurso. Para
esse a Miss Dollar verdadeiramente digna de ser contado em
algumas pdginas, seria urna boa inglesa de cingiienta anos,
dotada de algtunas mil libras esterlins, e que, aportando ao
Brasil em procura de assunto para escrever um romance, reali-
123
zasse um romance verdadeiro, cacando corn leitor aludido.
Urna tal Miss Dollar seria incompleta se nâo tivesse óculos
verdes e um grande cacho de cabelo grisalho em cada fronte.
Luvas de renda branca e chapéu de linho em forma de cuia, se-
riasn a última demdo deste magnifico tipo de ultramar. Mais
esperto que os outros, acode um leitor dizendo que a herotna
do romance nno é nem foi inglesa, mas brasileira dos quatro
costados, e que o nome de Miss Dollar quer dizer simplesmente
que a rapariga é rica.
124
caminha corn aprurno; no dialogo é pouco espontâneo, nâo é
singelo e nâo cativa pela naturalidade.
Quando se esquece de seus dotes e recursos pr6prios e
tenta frases poéticas é quase sempre desasado e resvala para o
verdadeiro gongorismo. Causa verdadeiramente pena ler em seus
livras frases e ditos corno estes:
125
tantas em Ramalho Ortigào, em Eça de Queirós, em Joaquim
Nabuco, em Tobias Barreto.
Este último que, como poeta, nào passou nunca de um ro-
mantico, um Ifrico pelo fundo e pela forma, na prosa teve nada
menos de dois estilos, um imaginoso, correspondente à fase
francesa de seu desenvolvimento, e outro discursivo e travoso
de ironias, correspondente ao seu periodo germanista.
Em ambos os casos acho-o um escritor mais valente do que
o autor de Quincas Borba, para nâo fatar em Rui Barbosa, que a
este excede extraordinariamente sob todos os aspectos da diffcil
arte da palavra escrita, ou para nâo lembrar Camilo Castelo
Branco, que muito o sobrepuja em vernaculidade, riqueza e va-
riedade de tons.
Como quer que seja porém, Machado de Assis é um nota-
vel prosador pela correçâo, pela simplicidade, pela propriedade
das imagens, pelo adequado das comparaçôes, pelo apropriado
dos qualificativos. Mas é só isto. Ele próprio, mais ou menos in-
genuamente, confessa de modo indireto que em matéria de forma
e estilo pouco adiante vai da mútua atraçâo que existe entre o
substantivo e o adjetivo.
Sob esta relaçâo é digno de ter-se o famoso conto — O c6-
nego ou a metafisica do estilo, onde o autor de Varias Histórias
emite urna série de trivialidades com ares remontados e irônicos
de quem esta a pasmar a humanidade corn coisas nunca vistas,
ou sequer sonhadas. "As palavras têm sexo. Amaro -se umas As
outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos esti-
lo.
É a tese sustentada pelo autor entre disfarçadas pilhérias e
graçolas mais ou menos ingênuas com pretensôes a humor. Con-
fesso que nâo Ihes acho graça; porque tudo aquilo é forçado e
pretensioso, nâo passando de banalidades de pasmar.
Tem porém um mérito: revela inconscientemente o pensar
do autor sobre as arduas questóes da arte de escrever. Movi-
mento, personalidade, colorido, propriedade, variedade, abun-
dância, vocabulârio, força descritiva, plasticidade do periodo a
acompanhar as mutaçôes do pensamento, equaçâo espontânea
126
entre este e sua natural expressâo, tudo se redut ao contubérnio
do substantivo corn o adjetivo...
Felizmente a pratica do escritor vale mais do que a sua teo-
ria.
127