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CLARICE LISPECTOR (Ucrânia, 1920 – Brasil,1977)1

FÊNIX DAS PALAVRAS2

Ela dizia que não era escritora profissional porque só escrevia quando tinha vontade. Não queria
compromissos consigo mesma nem com os outros. Assim, mantinha sua liberdade. Felizmente, seu desejo
de escrever era constante. Interrompido apenas entre uma obra e outra, quando se dava o tempo de morrer,
ao finalizar um livro, e renascer, ao começar outro. Sobre a sua vida pessoal, ela diz, no romance Água Viva:
Eu não tenho enredo de vida? Sou inopinadamente fragmentária. Sou aos poucos. Minha história é viver. E
não tenho medo do fracasso. Que o fracasso me aniquile, quero a glória de cair”.

Ler Clarice Lispector é uma experiência de risco. Nas vielas, esquinas e becos de seus escritos, pulsa
uma intensidade arrebatadora capaz de levar o leitor a ficar frente a frente consigo mesmo. Trata-se de um
artista de alma insone, e quem respirou seu hálito nunca mais poderá dormir como antes.

Sua obra denota uma solidão absoluta. Pode ter a companhia de Clarice Lispector, mas ela jamais
pisou a terra em companhia de ninguém, a não ser a da aterradora sombra de si mesma e de sua consciência
hiperdilatada. Ao leitor resta a perplexidade transformadora do contato com uma estranha que o conhece até
a medula, que percorre os desvãos do mundo e do ser com uma destreza insuspeita para o limite humano,
sem negar as asperezas do caminho, mas sem zombar jamais.

Quando se trata de Clarice Lispector, o caminho não tem volta, seja para o enunciador e suas
criaturas, seja para o leitor incauto. O primeiro grande susto que ela promove é do ponto de vista. Ao abrir
um livro de sua autoria, descortina-se aos olhos de quem lê, no mínimo uma perspectiva inusitada. Lispector
quebra o eixo da percepção cotidiana e inaugura um prisma desconcertante. O mais espantoso: sem tratar de

1
Material organizado pela professora Wilma dos Santos Coqueiro. Unespar/ 2023.
2
Parte do ensaio de Clenir Bellezi de Oliveira, publicado na Revista Discutindo Literatura, Ano 3, n. 14. São Paulo: Escala
Educacional. pp. 35-42.
algo particularmente extravagante. O habitual desdobra-se em transcendências surpreendentes e de tal
grandeza, que tudo o que houve antes daquele momento de revelação fica sob suspeita.

Sob seu olhar agudo, o ínfimo parece cósmico; o silêncio, um estrondo. E não importa o quê. O
aniversário de 89 anos de uma velha; uma patroa de classe média alta que finalmente adentra as
dependências do próprio apartamento onde ficava a empregada demissionária; uma Joana traída; uma dona
de casa andando de bonde que avista um cego mascando chicletes na rua; uma galinha fujona que frustra o
almoço domingueiro de uma família de subúrbio; uma Sofia que provoca a sabedoria de um professor
primário; uma nordestina que tenta a vida na cidade grande. Clarice busca um estremeção qualquer no
cotidiano e o expande até a náusea.

Emoção latente

Seus personagens, gente comum, às voltas com o dia-a-dia magro, sofrem a fissura de um imprevisto
qualquer que os transforma, crispando-os, desequilibrando-os. O que move esse desequilíbrio é a súbita
revelação de algo fundamental que permanecia, até então, adormecido. Uma revelação, uma epifania. Os
agentes dessa epifania são igualmente banais: a breve descompostura da velha na solenidade de seu
aniversário; a barata asquerosa que aparece súbita do armário nas dependências vazias do quarto da
empregada; a gravidez repentina da amante secreta do marido; a galinha que foge, negando-se a ser o
almoço da família; a menina que interrompe a aula, desafiando o professor cansado; a velha cartomante que
incute na imigrante nordestina a consciência da própria tragédia e, simultaneamente, a esperança.

Os protagonistas das histórias de Clarice são compelidos, então, a uma dolorosa viagem introspectiva
que resultará numa transformação íntima radical, de onde emergirão transformados, por vezes sem encontrar
lugar “em seus próprios dias”.

A paixão é um elemento fundamental nesse processo de epifania – paixão em vários sentidos: de


“sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão; de
sofrimento; de amor ardente. As criaturas de Lispector vivem em estado crítico de sensibilidade e de
urgência. Sentimentos de solidão, de abandono, de culpa, de jubilo e, sobretudo, de auto-enfrentamento
promovem uma ruptura com a imagem que traziam de si e da realidade circundante, revelando a
precariedade de sua condição, as carências e, muitas vezes, o que existe para além da falsa estabilidade do
cotidiano.

Em sua obra, o narrador em primeira pessoa desnuda-se; o de terceira pessoa desnuda seus
personagens até a caliça, e o fazem com a compaixão de quem domina a ciência da dor, de quem já desceu
ou está descendo aos próprios infernos. Clarice revela o que há de realmente vivo sob a superfície do
cotidiano. Seu olhar diabolicamente penetrante fez dela um dos principais autores intimistas do século 20. A
compreensão de sua obra é um esforço contínuo e cada vez mais instigante para estudiosos do mundo inteiro
que se debruçam sobre seu mistério.

O instante-já

A escritura de Clarice Lispector é uma mão poderosa que retém o instante e doma o tempo ao sabor
dos caprichos da percepção subjetiva. Logo na primeira página de Água Viva, o narrador avisa: “Eu te digo:
estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se
um novo intante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante que ela é. Quero apossar-me do é da
coisa”. Mais adiante, lê-se: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de
fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada. O que te direi? Te direi os instantes”.
Lispector domina o tempo mediante a captação do seu mais ínfimo fragmento: o instante. A “verdade
inventada” do instante guarda na realidade a essência do todo que se fez imperceptível aos olhos baços que
abarcam a sucessão convencional dos segundos. Tal captação é obsessiva da obra da autora. O segundo
infinitesimal é dilatado por ela, ganha uma duração sobrenatural. O tempo real praticamente inexiste, o
tempo psicológico é que vigora soberano.

Linguagem lírica

Em sua escrita, as palavras funcionam com uma rede fina que retém a parte sólida, essencial das
coisas, deixando que o fluído enganoso das aparências se vá por entre sua teia.
Considerando a profundidade de sua narrativa e a grandeza do que procura expressar, a linguagem
empregada pela autora é surpreendentemente simples e intensamente lírica. Não se trata de uma escritora
cuja leitura solicita um dicionário ao lado. A dificuldade encontrada pelo leitor está justamente num
conteúdo absolutamente complexo que requer mais um repertório emocional, psicológico, que propriamente
uma erudição lingüística.
A literatura de Clarice é de tal espectro, que pode ser interpretada por diversas luzes. Há quem veja
nela o universalismo cósmico que tem a dimensão das almas. Outros preferem avaliá-la sob o crivo da
brasilidade plural de que falava Mário de Andrade. É necessário lembrar que Clarice foi aquela que
inaugurou prismas, que dilatou olhares e sensibilidades. A eternidade de sua obra reside justamente na
permanente renovação que propõe.
Em advertência “A possíveis leitores” do romance A Paixão Segundo G.H., ela avisa: “Este livro é
como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada.
Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente –
atravessando inclusive o oposto daquilo de que vai se aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão
bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G. H. foi dando pouco
a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria”.
O leitor respira fundo e empreende a leitura. Muitos sucumbem antes da décima página. Dá-se o
enfrentamento: a espessura do texto, o lirismo por vezes asfixiante, a repulsa pela barata devorada pela
protagonista, a ascese. Exausto de tanto sentir, tonto da desfragmentação a que foi submetido, suspira
vagamente triunfante: sua alma, afinal, estava pronta. Mas, se esse mesmo leitor se atrever a uma segunda
leitura, e a outras mais, notará perplexo que não era bem aquilo que tinha entendido. O livro enfeitiçado
fizera-se outro, depois outro (ou foi sua alma em processo de formação?). Ao cabo de mil leituras, terá
entendido afinal a advertência inicial da autora. E ficará grato, profundamente grato, por ter participado de
um mistério tão profundo e ao mesmo tempo tão revelador, que não lhe permitirá jamais a arrogância de ter
uma alma formada.

CARACTERÍSTICAS DA AUTORA3

EM BUSCA DO SELVAGEM CORAÇÃO DA VIDA

Clarice Lispector nunca soube explicar seu processo de criação. “É um mistério”, dizia ela sem
pretensão. “Quando penso em uma história, eu só tenho uma visão vaga do conjunto, mas isso é uma coisa
de momento, que depois se perde. Se houvesse premeditação, eu me desinteressaria pelo trabalho”.
De fato, as histórias de Clarice raramente têm um enredo, um começo, meio e fim, segundo os
cânones narrativos tradicionais. Muitas vezes ela chamou a atenção para isto, afirmando que, na verdade,
não era uma escritora, mas sim uma sentidora, uma intuitiva: registrava o que sentia através da palavra

3
Texto extraído de: LISPECTOR, Clarice. Literatura Comentada. Seleção de textos, notas, estudo biográfico, histórico e crítico
e exercícios por Samira Campedelli e Benjamin Abdala JR. São Paulo: Abril Educação, 1981. pp. 102-105.
escrita: um veículo, co mo outro qualquer. Daí a ideia de que seus livros, mais que histórias, contém
impressões: “Isso mesmo”, frisava, “os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque para mim
o importante é a repercussão dos fatos no indivíduo”. Muitas de suas obras apresentam, por isso mesmo,
subtítulos explicativos, como por exemplo, “pulsações” (Um sopro de vida) ou “ficção” (Água Viva), como
se estivessem indicando: não é um conto ou não é um romance. Deste modo, a produção literária de Clarice
Lispector indica-nos um projeto crítico em relação aos padrões institucionalizados da escrita literária e da
própria vida cotidiana em geral.

Contestando a linguagem padronizada

Suas personagens, representativas da situação alienada dos indivíduos das grandes cidades,
geralmente são tensas e inadaptadas a um mundo repetitivo e inautêntico, que as despersonaliza. E os
narradores que aparecem em sua obra estão, por outro lado, sempre contestando a linguagem literária
padronizada. É assim que acontece com o “Autor” de Um Sopro de Vida (ele, um personagem não
nomeado):
“Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? esgotaram-se os significados. Como
surdos e mudos comunicamo-nos com as mãos. Eu queria que me dessem licença para eu escrever ao som
harpejado e agreste a sucata da palavra. E prescindir de ser discursivo. Assim: poluição.

Escrevo ou não escrevo? (...)

Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e
o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades de mar (...).

Escrever existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. Eu trabalho com
o inesperado. Escrevo como escrevo sem saber como e por quê – é por fatalidade de voz. O meu timbre sou
eu. Escrever é uma indagação. É assim? “(Um Sopro de Vida –págs. 13-14).

Personagens e narradores desenvolvem, assim, um mesmo tipo de prática: aventuram-se através da


imaginação, buscando romper com a barreira da palavra, com o rotineiro mundo lógico, voltado
unilateralmente para os fatos observáveis. É necessário recuperar o “selvagem coração da vida”, perdido
quando o homem historicamente perdeu sua liberdade instintiva – um mundo pré-lógico e pleno de
vitalidade.

O ambíguo espelho da mente

Em busca desse “selvagem coração” e do enigma da vida, Clarice Lispector segue coordenadas
estilísticas já observáveis em Marcel Proust, James Joyce e Virgínia Wolf. Afasta-se das técnicas
tradicionais do romance caracterizado como um espelho da época, refletindo circunstâncias econômicas e
sociais. Sua literatura é um ambíguo espelho da mente, registrado através do fluxo da consciência, que
indefine as fronteiras entre a voz do narrador e das personagens.
Rompe-se assim, a narrativa referencial, ligada aos fatos e acontecimentos. Em lugar dela, emerge
uma narrativa interiorizada, centrada num momento de vivência interior da personagem (ou do narrador). É
possível, até mesmo, que um acontecimento exterior provoque o desencadear do fluxo da consciência: um
acontecimento pode liberar ideias que vão até o inconsciente da personagem. O fluxo é, portanto, um
sistema de apresentação de aspectos psicológicos da personagem de ficção.
Por isso, os romances ou os contos de Clarice a que se atribui em alto grau o uso da “técnica” do
fluxo da consciência são, quando analisados, obras cujo assunto principal é a consciência de um ou mais
personagens. (...).
Uma literatura alienada?
Não, não se trata disso. As produções de Clarice Lispector não deixam de se referir à realidade
concreta. É admirável sua consciência técnica, adequando forma e conteúdo. Por exemplo, dissocia as
unidades narrativas para mostrar a falta de ligações mais profundas na sociedade. Organiza a narrativa em
ritmo lento, para contrastar o movimento da vida nas grandes cidades. Filtra todos os fatos através de uma
consciência que se isola do conjunto – eis aí a solidão do homem moderno.
Longe de fazer uma literatura alienada, Clarice levanta justamente o cotidiano alienado. É a
repercussão deles na vida das pessoas que a preocupa. Sob esse ponto de vista, seus livros são altamente
comprometidos com o homem e com a realidade dele.
_ Porque realidade não é um fenômeno puramente externo. E essa preocupação com a realidade
externa se intensifica à medida que os problemas levantados se tornam uma questão social, particularmente
na década de 70. As soluções sensuais e místicas encontradas pelas personagens de Clarice Lispector
representam o nível de conscientização possível diante da agressividade social, que impede um maior nível
de participação.
Clarice respeita o seu leitor: por isso, ela cria na viagem de suas personagens, um novo espaço de
liberdade, dentro do jogo ficcional. É um jogo onde todos – narrador, personagens e leitor – devem
participar de forma ativa.

Os privilegiados momentos de “revelação”

O mundo pré-vegetal, anterior aos símbolos e à cultura: eis a busca de Clarice. Quando houvesse o
rompimento dos laços sociais, com as convenções de qualquer espécie, estaria criado o espaço da liberdade.
A abertura da consciência para “momentos luminosos”, aos quais se chega pela adivinhação ou intuição.
Nesse sentido, Affonso Romano de Sant’Ana (Análise Estrutural do Romance Brasileiro, Editora Vozes,
1973) interpretou a literatura de Clarice como momentos de epifania. Esse termo, no sentido religioso,
indica a presença de uma entidade sagrada, que transmite uma mensagem ou aponta um caminho. No
sentido literário, a epifania é o momento privilegiado de revelação, quando acontece um evento ou incidente
que ilumina a vida da personagem. Assim, segundo A. R. Sant’Ana, os romances ou contos de Clarice
percorrem, via de regra, quatro passos:

1. a personagem está disposta numa determinada situação cotidiana;

2. prepara-se um evento que é pressentido discretamente;

3. ocorre o evento, que lhe “ilumina” a vida;

4. ocorre o desfecho, onde se considera a situação da vida da personagem, após o evento.

Nesse caso, é o conhecimento repentino da verdade o fator mais importante a ser considerado. É o
que acontece com G. H., narradora e personagem do romance A Paixão Segundo G. H.: ela está em seu
apartamento tomando café, como faz todos os dias. Dirige-se para o quarto da empregada, que acabara de
deixar o emprego. Lá v6e subitamente uma barata, saindo de um armário. Este evento provoca-lhe uma
náusea impressionante, mas, ao mesmo tempo, é motivador de uma longa e difícil avaliação de sua própria
existência, sempre resguardada, sempre muito acomodada. A visão da barata é o seu momento de
iluminação, após o qual já não é a mesma, já não é a criatura alienada que tomava café distraidamente em
seu apartamento.
As personagens de Clarice Lispector são construídas através de traços que caracterizam atitudes
filosófico- existenciais. Têm consciência em termos desses valores e, por isso, são muito semelhantes,
algumas personagens que criou e as situações típicas que têm de enfrentar em cada narrativa. Assim, Ana
(do conto “Amor” - Laços de Família) é muito parecida com G. H. (A Paixão Segundo G.H.) ou com
Catarina (Laços de Família). Elas vivem situações de conflito, em maior ou menor grau, sempre em busca
do momento de revelação, a indicar a verdade de cada uma. São freqüentes ainda os bichos (cavalo, galinha,
barata, aranha, búfalo, gato etc.): neles temos o “coração selvagem” onde coexistem um bem que é a
liberdade natural em interação dialética com o mal, o instinto anti-social.
O espaço libertário que a ficção de Clarice procura construir pressupõe a aventura que em termos de
conhecimento ocorre na contínua (des)aprendizagem. E esta só será possível desestereotipando o
conhecimento, de forma sistemática, no corpo-a-corpo com a vida. E o principal agente desse processo deve
ser o próprio indivíduo.

A CARREIRA4

Desde a publicação do 1º romance, Perto do Coração Selvagem, em 1944, Clarice conquistou uma
notoriedade crescente, contudo é com a coletânea de contos Laços de Família (1960) que a autora conquista
um público fiel e entusiasta, principalmente nas áreas universitárias do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Perfis femininos

A partir de Laços de Família, definem-se os perfis mais frequentes das personagens de Clarice. Nos
contos, predomina o modelo de dona de casa pequeno-burguesa em conflito com sua condição de mãe e de
esposa, vivendo um cotidiano institucionalizado, abafado pelo peso da rotina. Tal modelo contrasta com as
mulheres dos romances, que vivem em geral sozinhas, não tem relações amorosas estáveis nem filhos. Estas
últimas personagens vivem em contato com a cultura urbana letrada e não revelam problemas de ordem
financeira. Exercem profissões definidas como secretária, professora, pintora, escultura, escritora.
Envolvidas na própria subjetividade, também enfrentam solidão e melancolia. Excluída desses perfis – de
uma forma ou de outra vinculados à cena urbana – estará a personagem Macabéa de A hora da estrela, cuja
miséria e ignorância lhe vedam o acesso à cidade grande e à constituição familiar.

O impacto na crítica brasileira

O novo estilo que surgia com Clarice foi imediatamente associado à técnica de vanguarda dos
escritores europeus James Joyce e Virgínia Wolf. Coube a Álvaro Lins, importante crítico literário na época,
propor essa filiação por meio de comentários inflamados que oscilaram em elogiar a originalidade do
romance e censurar a falta de estrutura ficcional de Perto do Coração Selvagem, que mistura passado e
presente. Situa, de forma simplista, o livro na categoria de literatura feminina, segundo ele um tipo de texto
em que predomina o lirismo e o narcisismo. Outro crítico, Sérgio Milliet, apesar do elogio às qualidades
estéticas do romance, confessa que a princípio pensou na autora como uma “mocinha de nome esquisito que
morreria de ataque diante de uma crítica mais séria”.
O crítico Antonio Candido (1970) manifestou-se de maneira positiva: evitou a crítica que fala em
influências literárias e, apesar de não ver no romance uma obra-prima, elogiou a “ousadia expressional” e os
novos temas da escritora iniciante; ou seja, apostou num caminho de escrita através das experiências com a
linguagem.

Ser ou não ser escritora

4
Os itens abaixo, com algumas alterações e supressões, foram extraídos da obra: GUIDIN, Márcia Lígia. Roteiro de leitura: A
hora da estrela de Clarice Lispector. 2.ed. São Paulo: Ática, 2002. pp 19-28.
Imediatamente após a crítica de Álvaro Lins a seu primeiro livro, Clarice confessa em cartas às irmãs
um certo desânimo com a continuidade da carreira como escritora. Entretanto, apesar do abalo inicial, havia
ansiedade e expectativa pela apreciação do seu segundo romance: “Que há sobre O lustre?”, perguntava já
morando em Belém do Pará com o marido: “Espero sempre notícias. Gostaria de ler uma crítica do Antonio
Candido. Ele escreveu?”
A partir desse momento e durante toda a produção posterior, Clarice Lispector enfrentará a busca de
sua identidade como escritora mulher. Várias vezes, talvez para abrandar o temor das críticas, declarou que
era, “na verdade, uma dona de casa que criava os filhos com a máquina de escrever no colo”. Ao fim da
vida, reclamará que o “rótulo de escritora” a isola do mundo.
O fato é que o modo de narrar de Clarice Lispector começa a ser absorvido e imitado por uma
geração de outras escritoras, que criaram no país uma linha, hoje em dia bastante ampla, de ficção feita por
mulheres. Isto porque a obra de Clarice põe em questão dois temas muito importantes para a chamada
literatura feminina: o ato de escrever e a constituição do sujeito. Ou seja, os textos de Clarice vão sempre
perguntar: “Por que escrevo? Quem sou eu?”

CLARICE – A PRECURSORA5

Segundo a professora Lúcia Osana Zolin, “é Clarice Lispector quem abre uma tradição para a
literatura de mulher no Brasil, gerando um sistema de influências que se fará reconhecido na geração
seguinte. (...) Na trilha de Clarice Lispector, surgem hoje as imortais da Academia Brasileira de Letras Lígia
Fagundes Telles e Nélida Piñon, seguidas de muitas outras escritoras reconhecidas como Lya Luft, Adélia
Prado, Hilda Hilst, Patrícia Bins, Sônia Coutinho, Zulmira Tavares, Márcia Denser, Marina Colasanti,
Helena Parente Cunha, Judith Grossman e Patrícia Melo, para citarmos apenas algumas.” (2009, p. 329).

OBRAS DA AUTORA

▪ Romances: Perto do Coração Selvagem, 1944; O Lustre, 1946; A cidade Sitiada, 1949; A maçã no
escuro, 1961; A Paixão Segundo G.H., 1964; Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, 1969;
Água Viva, 1973; Visão do Esplendor, 1975; Um Sopro de Vida, 1978; A Hora da Estrela, 1977.

▪ Contos: Alguns Contos, 1952; Laços de Família, 1960; A Legião Estrangeira, 1964; Felicidade
Clandestina, 1971; Onde Estivestes de Noite, 1974; A Bela e a Fera, 1979; A Via Crucis do Corpo,
1974.

▪ Crônicas: Para Não Esquecer, 1978; A Descoberta do Mundo, 1984.

▪ Livros Infantis: O Mistério do Coelho Pensante, 1967; A Mulher que Matou os Peixes, 1968; A
Vida Íntima de Laura, 1974; Quase de Verdade, Infantil, 1978; Como Nasceram as Estrelas, 1987.

5
Texto extraído, com alterações, de: ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria feminina. In ZOLIN, Lúcia Osana; BONICCI,
Thomas (orgs.). Teoria Literária: Abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3.ed. Maringá: Eduem, 2009.

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