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Capitulo 3 (Giuseppe Cocco, Korpobraz, por uma política dos corpos, Mauad, 2014)

A potencia do Pobres entre a autenticidade e as margens

3.1 Autenticidade e Potencia do Pobre: Glauber e Pasolini

Uma boa introdução à complexidade e ambigüidade da obra de Pier Paolo Pasolini é talvez
a apresentação que Gilles Deleuze faz da proposta pasoliniana de trabalhar sore a “modulação”
enquanto operação do “Real” que “não cessa de reconstruir a identidade da imagem e do objeto”.
A complexidade da abordagem de Pasolini corre o risco de ser mal compreendida, como no caso
do Umberto Eco que o acusava de cair numa “engenharia semiótica”. Assim, diz Deleuze, “é o
destino da astúcia de parecer demasiadamente naïve aos naïfs demasiadamente cultos”1 e dessa
maneira não ver que Pasolini queria ir mais longe que os semiólogos, ou seja fazer com o cinema
seja uma língua, “a língua da realidade”2.
O cineasta, poeta e escritor Pier Paolo Pasolini intrigava – da mesma maneira que toda a
produção do neo-realismo italiano do segundo pós-guerra – também Glauber Rocha. Por um lado,
Glauber enxergava a relação cabal entre sucesso do neo-realismo italiano e pobreza italiano que
ele representava. Pelo outro, ele era particularmente interessado por Pasolini que da questão dos
pobres tinha feito quase que uma obsessão. O cineasta baiano era fascinado e ao mesmo tempo
incomodado pela relação entre a obra e a vivência de Pasolini, pela sua aposta numa escrita que
não era mais “engajamento” mas vida, um jogar seu próprio corpo na luta, algo como um
desesperado “body-artista” que fazia do corpo uma “máquina sadiana”3. Era essa centralidade
dos pobres e do corpo que interessava Glauber em suas analises e críticas de Pier Paolo Pasolini.
A luta do artista italiano era contra a homologação dos pobres que ele definia como um
“presente absoluto sem mais alternativas”. O último lugar onde vive a realidade era, para ele, o
corpo, o corpo popular, o corpo dos pobres. Pasquale Voza diz: “Pier Paolo Pasolini pode ser
considerado o intelectual-artista que com mais tenacidade, e de maneira extremista, interrogou
nos anos 1970 a ligação corpo – poder”, ou seja “o universo horrível do biopoder”4. A sua luta
era, pois, contra o desaparecimento do corpo, da corporeidade popular: “o último lugar onde mora
a realidade”5.

3.1.1. Pier Paolo Pasolini e o maio de 1968 na Itália: a batalha de Valle Giulia

Sabemos que a especificidade do 1968 italiano foi sua dimensão fortemente operária, em
particular com seu desdobramento no “autunno caldo” de 1969 e o longo ciclo de lutas operárias
que inaugurara (e só fecharia com a reestruturação da Fiat em 1980). Um mês antes do maio 1968
explodir nos grandes boulevards do Quartier Latin parisiense, os estudantes romanos que
imprimem ao movimento uma forte radicalização. No dia 1o de março, em Valle Giulia, dentro da
universidade La Spazienza de Roma, eles enfrentam duramente com as forças de polícia. Pela
primeira vez, os manifestantes não se limitam a fugir e apanhar e mostram determinação de resistir
à repressão policial. As palavras da canção composta por Paolo Pietrangeli e Giovanna Marini
enfatizam exatamente esse “fato novo”: "Hanno impugnato i manganelli / ed han picchiato come
fanno sempre loro/ma all'improvviso è poi successo/ un fatto nuovo, un fatto nuovo, un fatto
nuovo/non siam scappati più, non siam scappati più!”. Aconteceu um fato novo: não fugimos
mais. O balanço foi de uma batalha campal, com centenas de feridos entre policiais e
manifestantes, centenas de prisões. O episódio ficou conhecido como a “Battaglia di Valle

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1
Gilles Deleuze, L’image-temps. Cinema 2, Minuit, Paris, 1985, p.42.
2
Ibid.
3
Pasquale Voza, La meta-scrittura dell’ultimo Pasolini, Liguori, Napoli, 2011, p.19.
4
Ibid., p. 26.
5
Ibid., p.7.
Giulia”6.
A batalha de Valle Giulia ficou conhecida também por uma outra razão, ou seja pelo “rap”
escrito por Pier Paolo Pasolini sobre o episódio e publicado pelo seminário L’Espresso, com o
título “Vi ódio, cari studenti”7: “Quando ontem em Valle Giulia vocês se bateram/ com os
policiais/eu simpatizava com os policiais/”. Intelectual fortemente conhecido por sua vinculação
explicita ao Partido Comunista Italiano (PCI), Pasolini parecia colocar-se ao lado dos policiais.
Sua posição foi amplamente utilizada pela imprensa, pela direita e também pela esquerda
parlamentar para condenar as lutas estudantis. Emblemática das reações negativas que o poema
encontrou no movimento estudantil e nos setores intelectuais mais sensíveis as inovações
revolucionárias da época foi a carta de resposta e crítica escrita pelo poeta Franco Fortini8: “Este
artigo da ‘Pravda’ escrito por Amendola e assinado por Pasolini não me surpreendeu. Ao longo
dos últimos dez anos não me fiz muitas ilusões sobre a tua capacidade de entendimento político”.
Para Fortini a poesia de Pasolini é na realidade funcional à crítica stalinista que o Partido
Comunista Italiano dirige aos movimentos que fugiam a seu controle: um texto então digno da
imprensa moscovita (Pravda) e que deve ter sido escrito por um dos dirigentes do PCI
(Amendola). Em suma, Fortini acusa Pasolini de ser instrumento de uma operação estalinista.
Na carta de Fortini encontramos também uma série de outras críticas e aprofundamentos
que apontam para as verdadeiras questões postas pela poesia de Pasolini e que ao mesmo tempo
estão longe de resolve-las. Contudo, essas críticas de Fortini nos levam para a atualidade da
poética de Pasolini e das questões que ela colocava (e coloca) a partir da centralidade que ele
atribuía aos pobres. Franco Fortini dizia que Pasolini não entendia as novas lutas porque “para
(ele) a luta de classe quase sempre foi a luta dos pobres contra os ricos e as relações entre
burguesia e proletariado somente um conflito consuetudinário entre racionalidade e
irracionalidade”9. Ou seja, Pasolini caía no “erro de acreditar misticamente nos
subdesenvolvidos”. Até quando a Itália do subdesenvolvimento “ainda iludia, continua Fortini,
tua (do Pasolini) poesia era a poesia dessa ilusão. Depois, quando a realidade começou a fugir-te
e você a seguia como um avião que quer voar à velocidade da luz para continuar ficando sempre
no sol, você começou a procurar o proletariado, melhor, os pobres e sua beleza, fora da Europa,
na Ásia e na África; e também na América, quando inorgânica negativa floreal”10. Fortini
desenvolve sua crítica numa direção correta, de tipo marxista. “Proletário”, “pobre”, “rico” não
são figuras abstratas, mas o fruto de relações sociais que podem mudar no espaço e no tempo:
“(...) não existe uma tipologia estática, sociológica ou psicológica, dos camponeses, dos operários,
dos estudantes pequeno-burgueses (...)”. Mas, é difícil dizer que a poética pasoliniana se reduz a
uma signicação tão linear e binária. Ao contrário, essa critica do Fortini nos leva direto para a
riqueza ambígua do enigma pasoliniano: os “pobres” e a questão da racionalidade
(desenvolvimento e subdesenvolvimento).
As posições de Pasolini não eram ideológicas e pouco tinham a ver com a linha política
do Partido Comunista Italiano. A ficha bibliográfica esboçada por Glauber é emblemática: “Os
fascistas atacam o jovem pervertido. Suas aventuras sentimentais escandalizam a província.
Pasolini enfrenta os inimigos, briga a socos, vai preso, é solto, assalta uma bomba de gasolina, é
processado, faz declarações chocantes, corre o rumor que teria entrado em conflito com o

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6 Ivano Scacciarli, “1 marzo 1968: 40 anni fa la Battaglia di Valle Giulia”, Senza Soste, n.24 (marzo 2008)
http://www.senzasoste.it/anniversari/1-marzo-1968-40-anni-fa-la-battaglia-di-valle-giulia; Giampaolo Bultrini e
Mario Scialoja, “I durissimi scontri fra studenti e polizia - La battaglia di Valle Giulia” L’Espresso, 10 marzo 1968
http://temi.repubblica.it/espresso-il68/1968/03/10/la-battaglia-di-valle-giulia/
7 “Odeio vocês, queridos”. Poucas semanas depois da publicação, o próprio Pasolini esclarecia que esse não era o título
que ele tinha dado à poesia, “um slogan que se imprimiu na cabeça vazia da massa consumidora como se fosse uma
coisa minha (…)”.
8 “Contro gli studenti”, disponível no site Pier Paolo Pasolini. L’ideologia, http://www.pasolini.net/ideologia07.htm
Franco Fortini escreveu essa carta logo depois da polémica de Valle Giulia e, segundo seu testemunho, a leu
pessoalmente e privadamente a Pasolini. Ela foi publicada em 1977, depois da morte de Pasolini (assassinado em
fevereiro de 1975).
9
Ibid. Grifos nossos.
10
Fortini erra na construção dessa metafora, pois uma avião de carreira, para ficar sempre no sol, não precisa correr na
velocidade da luz, mas apenas no sentido contrário à rotação terrestre numa velocidade suficiente para ficar sempre na
luz do dia.
Partido”. A obra do cineasta, nos diz Glauber, é de tipo auto-biográfico, diretamente ligada à sua
vivência: “(...) Accattone é a história brutal dos marginais, de seus conflitos sociais, psicológicos
e sexuais. E – escândalo para a hostes ortodoxas do realismo socialista – a ideologia não resolve
todos os problemas humanos: o herói é um atormentado como o próprio autor”11.
A preocupação de Pasolini não era tão mística e abstrata quanto uma leitura rápida demais
de sua poesia podia deixar entender. Ele mesmo nos fornece uma chave para explicitar o enigma
que ele visava colocar naquela poesia polêmica sobre a batalha de Vale Giulia. Em 17 de maio de
1969, ele escrevia: “há exatamente um ano escrevi uma poesia sobre os estudantes, que a massa
dos estudantes, inocentemente, tem ‘recebido’ como se recebe um produto de massa: ou seja
alienando-o de sua natureza, por meio da mais elementar simplificação (e) se imprimiu na cabeça
da massa consumidora como se fossa coisa minha”. Aqui, ele critica o uso instrumental feito pelo
semanário que publicou a poesia, em particular por ter colocado um título que não era dele
(“Odeio vocês, caros estudantes”). Mas a preocupação de Pasolini é mesmo com a incompreensão
da provocação que ele queria fazer, sobretudo no que diz respeito os versos sobre os policiais:
“Em minha poesia dizia, em dois versos, que simpatizava pelos policiais, filhos de pobres, ao
invés que pelos mauricinhos12 da faculdade de arquitetura de Roma (...); nenhum dos
consumidores percebeu que essa era apenas uma boutade, uma pequena malandragem oratória
paradoxal, para chamar a atenção do leitor, e dirigi-la para o que vinha depois, uma dúzia de
versos, onde os policiais eram vistos como objetos de um ódio racial pelo avesso, enquanto o
poder, alem de indicar ao ódio racial os pobres – os despossuídos do mundo – tem a possibilidade
também de fazer desses pobres instrumentos, criando contra eles uma outra espécie de ódio racial
(...)”13.
Pasolini queria chamar a atenção, até o ponto de fazer uma provocação que seria usada
pela mídia dos patrões, sobre as conseqüências ambíguas – para ele nefastas – da transformação
da composição social da Itália do final dos 1960. : O problema verdadeiro – dizia ele – é que o se
o “dilema do futuro (é) a guerra civil ou a revolução, a guerra civil a burguesia a combate contra
si mesma”. O que Pasolini quer dizer com isso? Ele mesmo o explicita: “até minha geração, os
jovens tinham diante de si a burguesia como ‘objeto’, um mundo ‘separado’ (separado deles,
porque, naturalmente, falo dos jovens excluídos: excluídos por um traumatismo: e tomamos como
traumatismo típico aquele de Lenine que viu seu irmão enforcado pela policia quando tinha
dezenove anos). Podíamos observar a burguesia, assim, objetivamente, desde fora (...)”, ou seja,
“o modo para observar objetivamente a burguesia nos era oferecido, segundo o esquema
tradicional pelo ‘olhar’ posto sobre ela por parte ‘do que não era burguês’: operários ou
camponeses (..)”. Algo como o que mais tarde viria a se chamar de “terceiro mundo”. A mudança
estava no fato de que para os “jovens de hoje a coisa se põe diversamente: para eles é muito mais
difícil observar a burguesia objetivamente por meio do olhar de uma outra classe social”. Pasolini
pensa que a “burguesia está triunfando” e que essa vitória é devida ao fato dela transformar “os
operários, por um lado, e os camponeses ex-coloniais, pelo outro, em burgueses. Em suma, por
meio do neocapitalismo, a burguesia esta se tornando a condição humana”, algo como o novo e
totalitário horizonte ontológico. Sua provocação aos jovens se explica então dessa maneira: “Eles
são com toda probabilidade a ultima geração que vê os operários e os camponeses: a próxima
geração só vera em torno a si a entropia burguesa”14. Para ele, a única maneira de ser contra é de
estar fora. O desaparecimento do fora, o fato que os pobres fossem todos subsumidos era uma
tragédia sem remissão.
Pasolini, por um lado, confirma a centralidade da figura do pobre em sua problemátização
da luta de classe e, pelo outro, apresenta a complexidade política, sociológica e enfim
antropológica dessa figura que funciona enigmaticamente como resistência ao poder e ao mesmo
tempo fruto mais perverso das relações de poder. O mesmo racismo que o poder gera e gere
contra os pobres os transforma em instrumentos dóceis (policiais) do próprio poder. Inútil dizer
que esses temas são de grande atualidade, em particular quando – como o fazia Pasolini – eles se
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11
Glauber Rocha, “Pasolini”, in Glauber Rocha, O Século do Cinema, cit. p. 277.
12
Pasolini usa o termo de “signorini”.
13
“Il Caos”, Tempo, 17 de maio de 1969. Citado em “Il PCI ai giovani!!”, commento di Angela Molteni, site Pier Paolo
Pasolini, http://www.pasolini.net/saggistica_poesia_pciaigiovani.htm . Grifos nossos.
14
Pier Paolo Pasolini, Empirismo Eretico, Garzanti, Milano, 2012, p. 158.
desdobram nas questões da racionalidade e da irracionalidade, do desenvolvimento e do
subdesenvolvimento, ou seja, com as questões de grande interesse no sul do mundo em geral e no
Brasil dessa segunda década do século XXI em particular.
Contrariamente ao que Fortini achava, a poesia sobre (e não “contra”) as lutas estudantis
de maio 1968, não resolvia linearmente as díades pobres versus ricos, subdesenvolvimento versus
desenvolvimento, irracionalidade versus racionalidade. Alguns versos em particular embaralham
toda essa linearidade: “A Valle Giulia, ieri, si è così avuto un frammento/ di lotta di classe: e voi,
cari (benché dalla parte/ della ragione) eravate i ricchi,/ mentre i poliziotti (che erano dalla parte
del torto) erano i poveri (…)”15. Aqui, de maneira enigmática e por isso ainda mais eficaz, Pasolini
rompe a linearidade da contradição dialética que atravessa o pensamento de esquerda e o
marxismo positivista da ortodoxia (aquele ao qual ele pareceria aderir). A luta da racionalidade
(os movimentos, as esquerdas, os estudantes) contra a irracionalidade (dos “pobres” que o poder
instrumentaliza), quando passa ao crivo da clivagem “ricos versus pobres” funciona pelo avesso.
Não porque os “pobres” sejam os verdadeiros portadores da (verdadeira) racionalidade, mas
porque é preciso ver a verdade dos pobres exatamente nesse fato de eles “estarem errados”, na
“irracionalidade” dos pobres e no que ela pode significar e expressar. A “poesia’, como o próprio
Pasolini reconheceu16, não visava entrar no debate imediato daquele enfrentamento, mas
“provocar” a reflexão sobre essa dimensão ontológica e antropológica dos pobres e os enigmas
de suas lutas. É a cabeça mística do pobre da qual falava Glauber que precisamos aprender para
entender suas lutas.

3.1.2. Pasolini no Sul: Petróleo e Hierarquia

Podemos tentar avançar na problematização desses mesmos temas e enigmas com a


leitura de mais dois textos de Pier Paolo Pasolini. Um deles é Hierarquia, um poema escrito a
partir de uma sua breve viagem realizada no Rio de Janeiro em 197017. O outro um romance
autobiográfico inacabado e publicado póstumo, Petrolio18.
No poema Hierarquia encontramos imediatamente os mesmos enigmas enunciados como
provocação na poesia sobre a batalha de Valle Giulia. Por um lado, Pasolini nos fala da potência
dos pobres, do Brasil, do Rio de Janeiro, como em uma declaração de amor: “Brasil, minha
terra/Terra de meus verdadeiros amigos/que não se ocupam de nada/Ou se tornam subversivos e
como santos ficam cegos”19. O “pobre” é belo e potente, mas ao mesmo tempo ele pode ser
instrumento do poder, num entrelaçamento sem solução: “É assim por puro acaso que um
brasileiro é fascista e um outro subversivo;/ aquele que arranca os olhos/pode ser tomado por
aquele a quem se arrancam os olhos”20. Como não pensar imediatamente à perversidade da guerra
civil travada nas grandes cidades brasileiras – entre soldados pobres e pobres soldados no âmbito
da sistêmica corrupção do poder - sem que se consiga desenhar a linha moral dos amigos e dos
inimigos, do bem e do mal? A conclusão de Pasolini é enigmática e surpreendente. A indiferença
ao bem e ao mal indica um caminho para além do bem e do mal, lá onde “existe um anjo que não
sabe nada”. Essa seria a condição para que “as velhas lutas – bem ou mal, já vencidas – para nós,
velhos, voltam a fazer sentido, respondendo graça dos delinqüentes ou dos soldados/à graça
brutal”21. É algo que nos faz pensar a quando João Guimarães Rosa dizia: “No sertão o homem é
o eu que ainda não encontrou um tu; por isso ali os anjos ou o diabo ainda manuseiam a língua.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
15
Pier Paolo Pasolini, “Il Pci ai giovani”, cit.
16
“(…)Sia dunque ben chiaro che questi brutti versi io li ho scritti si più registri contemporaneamente: e quindi sono
tutti ‘sdoppiati’ cioè ironici e autoironici. Tutto è detto tra virgolette. (…)”. “Apologia”, in Empirismo Eretico,cit. p.
156. Fica claro que foi um sinal de incmprensnao da luta politica o ter se manifestado naquele jeito e naquele momento.
Uma incomprensão que pouco ajudour a tornar essas questões centrais nas reflexões políticas dos jovens militantes dos
1970.
17
“Hierarquia”, 1971, Rio de Janeiro, in Global/Brasil, n. 3, agosto-outubro 2004, Rede Universidade Nômade, Rio de
Janeiro,pp/25 a 27. Sobre a viagem de Pasolini ao Brasil, ver Ava Patrya Yndia Yracema Gaitán Rocha, “O filme
dramática”, ibid., pp.28 30.
18
Pier Paolo Pasolini, Petrolio, Mondadori, Milano, 2005.
19
Ibid., p. 26.
20
Ibid., .27.
21
ibid.
O sertanejo (...) ‘perdeu a inocência no dia da criação e não conheceu ainda a força que produz o
pecado original’. Ele está ainda além do céu e do inferno”22. Talvez, é disso que Pasolini fala –
em Petrólio - quando faz dizer a um de seus personagens autobiográficos: “O Diabo não é uma
pessoa, mas uma mascara. Eu a coloquei no meu rosto, e apareci para você, na miserável casa da
miserável cidade do miserável mundo, onde você vive. Tinha que usar o pior para fazer-lo tornar-
se o melhor, e de uma arbitrária contradição nos termos para fazer triunfar a ausência de
contradições”23. Para Guimarães Rosa, “a política é desumana, porque dá ao homem o mesmo
valor que uma virgula em uma conta. Eu não sou um homem político, justamente porque amo o
homem. Deveríamos abolir a política”24. Não por acaso, logo em seguida, é a própria questão da
racionalidade que passa a ser discutida: “O curioso é no caso que os políticos estão sempre
falando de lógica, razão, realidade e outras coisas no gênero e ao mesmo tempo vão praticando
os atos mais irracionais que se possam imaginar”25. Rosa recusa a política do poder: “talvez eu
seja um político, mas daqueles que só jogam xadrez, quando podem fazê-lo a favor do homem.
Ao contrario dos ‘legítimos’ políticos , acredito no homem e lhe desejo um futuro. (...) O político
pensa apenas em minutos. Eu penso na ressurreição do homem”26.
Como pensar a ressurreição do homem? São esses mesmos temas que Pasolini estava
desenvolvendo no romance autobiográfico que não conseguiu terminar, mas que já contava mais
de 600 páginas quando ele foi assassinado. Nelas encontramos, além da terrível antecipação de
sua própria morte27, uma série de reflexões potentes sobre, por um lado, mais uma vez a figura
dos pobres e, pelo outro, a homologação social que a própria dinâmica do desenvolvimento estava
produzindo na Itália da década de 1970. Ao contrário do que se poderia pensar, as “antecipações”
sobre a morte que o escritor iria encontrar ao longo do romance nos falam da intima relação entre
a obra e a vida, uma obra vivida até o risco de morrer que ela implica: “eu vivo a gênese de meu
livro” escrevia Pasolini28. A literatura é a vida, como escreviam Deleuze e Guattari. “Legitima
literatura deve ser vida”29, dizia também Guimarães Rosa. E essa ontologia em Petrólio aparece
logo como uma ontologia do pobre e de sua crise, de sua mutação antropológica. Correndo o risco
de muito reduzir a complexidade da obra, nos concentraremos em três de seus momentos: (1)
aquele da autenticidade do pobre, (2) o da transformação do pobre nas lutas, (3) o da “perda” do
pobre pela sua homologação na sociedade do consumo de massa.
O primeiro momento o encontramos logo no “Appunto 6”. Nessa anotação Pasolini está
apresentando os desdobramentos da figura principal do romance, Carlo. O “segundo” Carlo é
humilde e, “como todos os humildes, sem autoridade social – um pouco como os cães – é bom.
Inferioridade social e bondade coincidem”. Logo reencontramos os policiais do poema de 1968,
mas em termos ligeiramente diferentes: “Assim como são servos profundamente gentis e sem
sentido de culpa, alguns policiais (...) adolescentes que vem das famílias pobres do Sul”30. O que
“protege” os pobres é exatamente o fato de “não possuir nada e de não pertencer a nada”31.
Estamos na Itália do subdesenvolvimento, que no “Appunto 6 ter”, é definida como a Itália da
década de “1950, ainda intacta”. Pasolini nos explica imediatamente essa autenticidade no
“Appunto 6 sexties” como sendo o fato da “divisão imensa (que) separava os burgueses das
pessoas do povo, os intelectuais dos operários. Era suficiente uma olhada que levasse em
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
22
Günter Lorenz, “Dialogo com Guimarães Rosa” in João Guimarães Rosa, Ficção Completa, Volume 1, Editora Nova
Aguilar, Rio de Janeiro, 2009, p. LIV.
23
Petrolio, cit.p. 145. Grifo nosso.
24
Günter Lorenz, cit., p. XLV.
25
Ibid., p.XLVI.
26
ibid.
27
Pasolini foi assassinado por um “garoto de programa” na periferia de Roma, na noite do 1 ao 2 de novembro. Em
Petrolio, em algumas páginas nas quais ele fala dele mesmo, da estrutura do romance, do que ele queria fazer. Ele diz
que “tentou se apropriar a realidade (…), brutalmente e violentamente, como acontece em cada possessão, em cada
conquista”. Ao mesmo tempo, “no mesmo momento em que planejava e escrevia o meu romance, ou seja procuravo o
sentido da realidade e tomava posse dela, exatamente no ato criativo que tudo isso implicava, eu desejava também
libertar-me de mim mesmo, quer dizer morrer. Morrer de minha criação: morrer como na realidade se morre, de parto:
morrer, como na realidade se morre, ejaculando no ventre materno”. Ibid., p.448.
28
Petrolio, cit. p. 53.
29
Günter Lorenz, “Dialogo com Guimarães Rosa”, cit. p. I.II.
30
Petrolio, cit., p. 38
31
Ibid. p. 39.
consideração a pura e simples presença física, o corpo, para distingui-los sem a menor
possibilidade de errar”32. Era o “mundo camponês em sua extrema pureza”33. Ainda na década de
1950, “era possível encontrar servas (...), como em todos os séculos precedentes”34.
A servidão continuava, inscrita que ela estava nos corpos, nos costumes como nas
paisagens “convencionais e cheias de um sentido de riqueza secular”35. Mas, é aqui que o segundo
momento aparece. O personagem se pergunta como a família burguesa podia manter um
determinado “trem de vida tão rico e ao mesmo tempo tão regular” e chega à constatação de que
essa repetição “de cada gesto (...) naquele universo familiar tão solido e tradicional, só podia
custar um rio de moeda moderna, não diretamente acumulada pelos ancestrais (ou avô
latifundiário e industrial)”36. Havia uma criação de riqueza que respondia a mecanismos novos.
A moeda se apresentava cada vez mais “solta”, sem lastro que não fosse a afirmação de fé inscrita
nas cédulas: in God We Trust. A mudança estava mostrando sua cara, e chegava carregada pelos
“rios” do desenvolvimento. Mas a Itália continuava caracterizada por uma “cultura unitária”, “os
papeis atribuídos a cada um eram bem distintos: um operário se distinguia nitidamente, somente
com sua presença física, de um burguês; e assim um aprendiz mecânico de um estudante; um
intelectual de esquerda de um intelectual de direita; um acadêmico de um escritor. As confusões
não eram possíveis”37. Havia uma “ligação intima entre pobreza e corpo” e nela “o corpo se saia
em vantagem, preservado como era, assim, em sua ‘pasta’ popular que era saúde, inocência,
barbárie, delinqüência: tudo menos que senso de culpa, banalidade e vulgaridade”38.
De repente, chegamos ao terceiro momento: chega a mudança verdadeira, aquela que já
incomodava Pasolini em 1968 e agora é descrita no “appunto 50”. Estamos em 1969, no meio das
lutas operárias do “autunno caldo” e não “apenas” diante do movimento estudantil. Tudo começa
numa tarde “por volta das seis (...) perto da estação Termini (em Roma). (...) De repente se ouviu
cantar. Era uma rádio ligada. A televisão, um grupo de recrutas em baixo da marquise da estação?
Não dava para saber. Encoberta pelo barulho do trânsito, potente e sem interrupção, a canção
cantada por essas vozes distantes, não se distinguia. Mas, eram vozes masculinas. Aquela coisa
extraordinária que acontecia às seis da tarde, na ária úmida e escura da tarde de novembro, criou
um tipo de pânico. O tráfico pareceu quebrar-se, o ritmo serrado, pedante, estreitamente
quotidiano dos interditos, das interrupções, das vias liberas se dispersou. Cabeças apareciam pelas
janelas dos ônibus. Atrás dos vidros dos carros apareceram rostos risonhos. Nas calçadas as
pessoas se olhavam (...). A canção improvisamente se tornou próxima. Da rua XXX (...) apareceu
antes um caminhão, depois um outro, depois um outro e atrás uma fila de motos. Sobre os
caminhões bandeiras vermelhas abanavam (...) e em baixo delas muitas cabeças, descobertas ou
cobertas por bonés que somente os jovens sabem enfiar daquela maneira (...). Eram eles que
cantavam”39. Esse é o evento que transformava a vida da metrópole. Os jovens operários em luta:
“um evento irreversível tinha acontecido em toda sua profundidade, com o anuncio de uma nova
juventude”40. A descrição de Pasolini continua: “Eram jovens pobres, mãos de obra, pedreiros,
ascensoristas, marceneiros, office-boys e se podia ver-los claramente”. Pasolini quer dizer que se
podia reconhecer a profissão de cada um só olhando para seu corpo. Era o fim de novembro de
1969. Todos aqueles jovens pareciam ter acabado de renascer sob uma nova forma. Antecipavam
algo que estava por acontecer e envolvia também o modo de ser, o corpo dos jovens homens. Os
topetes e as nucas bem rasadas eram os mesmos dos filhos obedientes de todas as décadas e
séculos precedentes. Mas na postura deles se encontrava uma novidade que enchia,
irracionalmente, de boa nova, de ânsia pelo futuro, e também pela participação aos novos eventos.
Estes não eram estudantes, mas operários”41. São as melhores páginas de Pasolini, uma poética
claramente inspirada pela vivência da transformação ontológica: “Aqueles pelotões de um imenso
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
32
Ibid. p. 52. Grifo nosso.
33
Ibid.,p.55.
34
Ibid.p. 57, grifo nosso.
35
Ibid., p.59.
36
Ibid., p.60. Grifo nosso.
37
Ibid. pp.134-5.
38
Ibid. “appunto 43”, p.200. Grifos nossos.
39
Ibid.,, pp.203-4.
40
Ibid., p. 206.
41
Ibid.,p.204. Grifos nossos.
exercito acampado nas periferias da cidade (...) vestiam pobres roupas de trabalho, mas com um
estilo novo (...). Todos tinham um lenço vermelho no pescoço. Todos os tinham amarrado da
mesma maneira elegante e alegre, feito os jovens sensuais e ousados que eram (...). A juventude
deles, mesmo carnalmente, era uma aparição”. A revolução aparece como algo divino, divino na
aparição da carne dos pobres. Pasolini continua: “Com tanta repentina forca a vida se renovava,
e, no século, tanta carnalidade viril já estava pronta e madura a espalhar – em amores recriados
para eles, e que voltaram a ser misteriosos para quem já os havia experimentados – uma nova
semente, cuja consciência era absorvida pela autoridade da canção que atravessava a cidade
assombrada. A força política e aquela do corpo eram uma força só”42. O irreversível que tinha
acontecido era o fato dessa junção entre a força do corpo e a força da política. Há uma dimensão
erótica nessa visão pasoliniana, mas esse erotismo é exatamente aquele que Merleau-Ponty
definia como sendo uma “sexualidade co-extensiva da vida”43.
Uma nova terra e um novo povo estavam a se constituir. Aqui, nesse limiar da inovação
radical, Pasolini se assusta. A forca política e aquela do corpo aparecem juntas e, ao mesmo
tempo, elas são ameaçadas pela própria metamorfose antropológica que essa potência determina:
o desaparecimento dos pobres. Pasolini fica totalmente preso do paradoxo e não consegue manter
a clivagem que separa o torturado diante do torturador, a ontologia potente dos pobres de sua
miséria sociológica, sendo que a antropologia sempre mistura essas duas dimensões. É o que
aparece em mais de um momento da reflexão pasoliniana e que nós discutiremos mais
detalhadamente no capitulo 4, dedicado à relação entre capitalismo e antropofagia.
No “Appunto 60”, Pasolini nos fala de Milão em 1972, da guerrilha urbana, dos primeiros
atentados fascistas e do inicio da luta armada: “Havia no ambiente o ar do fim de um mundo”. O
mundo da tradição, dos pobres lindos e puros estava acabando e, de repente, Pasolini aponta essa
mudança, esse fim do mundo do passado como uma ameaça, como emergência de um mundo
horrível de igualdade e massificação: “As pessoas (...) nas ruas eram horríveis; os garotos com
aqueles cabelos de putas (...), e no rosto eternamente estampado um assustador sorriso de
satisfação e presunção; as garotas empacotadas em seus miseráveis maxi-casacos, que lhe davam
um ar de mendigas, quase como homossexuais à procura de humilhantes ocasiões”44. Assim, “o
fato que as coisas não fossem mais como apenas dez anos antes” assume para Pasolini o “sentido
de tragédia”45. A figura do pobre, figura dupla da dominação e da autenticidade, aparece em toda
sua ambigüidade no “fascínio do fascismo”46. Glauber tinha apontado essa ambigüidade com
clareza: “Pasolini coloniza o sexo do pobre, o subproletariado é máquina indefesa diante de sua
morbidez”47. Talvez esteja aqui o enigma e a armadilha de Pasolini, no fato que sua estética do
pobre era um eurocentrismo.
A análise da homologação dos pobres tinha como horizonte apenas e somente a burguesia
e a sociedade de consumo. “O modelo já era único: aquele que o centro, por meio da imprensa e
da televisão, molemente impunha. (...) as mille lire amais que o bem estar tinha enfiado nos bolsos
dos jovens proletários, haviam tornado aqueles jovens proletários tolos, presunçosos, vaidosos,
maus”. Em umas das muitas páginas dedicadas ao “Merda” como encarnação dessa nova figura
do pobre, Pasolini define a homologação como “humilhante e deplorável fenômeno de
interclassismo”48. Num de seus melhores livros, Giorgio Agamben, escreveu: “Se tivéssemos
mais uma vez que pensar a sorte da humanidade em termos de classe, então hoje deveríamos dizer
que não há mais classes sociais, mas apenas uma pequena burguesia planetária, na qual as velhas
classes se dissolveram”49. Dito de outra maneira, se trata da homologação dos pobres dentro dos
valores burgueses das classes médias. Enfim, No “Appunto 59”, dedicado ao “passaggio di
tempo”, à transição, o conteúdo da tragédia aparece claramente: “A Itália rumava ao Hedonismo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
42
Ibid., p. 205. Grifos nosso.
43
Phénoménologie, Cit. p. 207.
44
Ibid., p.247.
45
Ibid., p.248. Grifo nosso.
46
Vide o “appunto 67, dedicado interamente ao “Fascinio do fascismo”, pp. 278-280. escreve Pasolini no “Appunto
58”.
47
Glauber Rocha, “Um Intelectual Europeu”, in Glauber Rocha, O Século do Cinema, cit., p. 282.
48
Ibid.p. 359.
49
Giorgio Agamben, La comunità che viene, Bollati Boringhieri, Torino, 2001, p.51.
do consumo, cujo templo com certeza não era aquele da Igreja. Um fascista hedonista era uma
contradição nos termos”50. E Glauber comentava: “O momento Pasolini representa a passagem
da fome à gulodice e penso que o escândalo Pasolini era uma ‘mais-valia’, um luxo para essa
Itália que queria ser desenvolvida do ponto de vista industrial e moderno(...)”51.
Diante da homologação dos pobres e da substituição dos templos sagrados pelos profanos
do mercado52 o poeta chora o desaparecimento dos pobres e dos corpos. Por um lado, a “defesa”
dos pobres enquanto pobres não contem nenhum saudosismo, pois se norteia pela perspectiva da
persistência da potência dos pobres53. Pelo outro, Pasolini não consegue romper as armadilhas
sociológicas e antropológica e assim não consegue enxergar a relação que liga a potência dos
pobres às lutas que produzem novos valores. Assim, paradoxalmente, Pasolini continua sendo um
colonizador, nos termos que o dizia Glauber: “Há uma coisa interessante no cinema de Pasolini:
o orientalismo. A Itália é uma país de influência árabe e essa impossibilidade de Pasolini ser
moderno é compensada, sublimada pela naturalidade dessa orientalidade. É por isso que ele se
quer ‘povo’, mas é somente um desejo, porque quando se realiza, ele se torna católico. (...) Ele
interessa-se pela sexualidade árabe, mas dum ponto de vista de colonizador”. E isso porque em
Pasolini “há contato sexual mas não o amor, não a paixão. Há somente paixão teórica. O que
interessa a Pasolini é o irrisório, é a perversão”54.
O eurocentrismo colonizador mantém Pasolini numa postura instrumental diante da
descoberta da centralidade do pobre e, a partir dela, de uma possível política do corpo. Contudo,
o quebra-cabeça pasoliniano ainda hoje nos oferece antecipações fortíssimas. Em particular,
quando ele coloca no cerne de sua reflexão a sua vivência: “Sou demasiadamente traumatizado
pela burguesia”, dizia ele, atribuindo-se um “ódio por ela (a burguesia) que chegou a ser
patológico”. A burguesia lhe parecia ter se tornado a “forma racial de um genocídio cultural, o
desaparecimento dos vaga-lumes”55. Sua critica da homologação social produzida pela cultura de
massa não se limita às questões econômicas pois envolve os tema do biopoder. Há uma intuição
biopolítica que não consegue se articular com uma análise material, apesar de apreender os novos
perspectivismos potenciais. Didi-Huberman faz uma crítica parecida ao Pasolini por ele ter
perdido o “jogo dialético do olhar e de sua imaginação”. Não eram os vaga0lumes que tinham
desaparecido, mas “sua (de Pasolini) capacidade de enxergar – na noite bem como em baixo da
luz feroz dos projetores – que não desapareceu completamente e, sobretudo, o que aparece apesar
de tudo como novidade reminiscente, como novidade ‘inocente’ (...)”56.
Esses impasses todos do Pasolini da década de 1970 contrastam radicalmente com a bela
sensibilidade que ele teve na década de 1960 diante do movimento negro norte americano. Um
impacto político e cultural que nos faz pensar ao papel que a freqüentação, nos anos 1930, dos
cristãos do ghetto negro de Harlem e suas igrejas-armazém teve na formação e um dos
inspiradores da teologia da liberação, o pastor alemão Dietrich Bonhoeffer57. O que o pastor
alemão vivenciou nas igrejas de Harlem era uma política do corpo, “sem separação entre
sensações e intelecto, nelas se rezava, chorava, cantava, ria e de novo se cantava”. A fé dos negros
no ghetto lhe aparecia como um fenômeno também emocional e físico ao mesmo tempo58. Diante
disso ele afirmava que Jesus não tinha chamado os homens a uma nova religião, mas à vida59.
A sensibilidade de Pasolini para a centralidade do pobre na questão de classe era
fortemente influenciada pela sua viagem aos Estados Unidos. Em 1968, ele escrevia: “Os anti-
corpos que nascem na entropia americana tem vida e razão de ser somente porque na América há
os negros: eles tém para um jovem americano a função que tem tido para nos quando éramos
moços os operários e os camponeses pobres”. E continuava enfatizando: “Nunca mensuraremos
suficientemente, em todos seus sentidos, o impacto do problema negro (nos Estados Unidos).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
50
Ibid., p. 278-280.
51
Glauber Rocha, “O Cristo-Édipo”, in Glauber Rocha, O Século do Cinema, cit., p. 283.
52
Vide Giuseppe Cocco, “Os Jesus do Vaticano e o Jesus do Mercado”, em Mundobraz, Record, Rio de Janeiro. 2009.
53
Devo essa reflexão a uma conversa sobre Pasolini com meu filho, de 12 anos!
54
Glauber Rocha, “O Cristo-Édipo”, cit., p. 284.
55
Voza, Cit, p.28.
56
George Didi-Huberman, Survivance des Lucioles, Minuit, Paris, 2009, p.55.
57
Renate Wind, Dietrich Bonhoeffer: A Spoke in the Wheel, Wm. B. Eerdmans Publishing, Cambridge, 1992.
58
Ibid., p.52.
59
Ibid., p. 166.
Porque (...) a ele se conecta, de maneira loucamente contraditória, o dos brancos pobres ou ex-
pobres”60.
Já em 1966, Pasolini tinha escrito um longo e detalhado artigo sobre os Estados Unidos.
Curiosamente, ele via a democracia americana de uma maneira bem próxima do Mario Tronti,
um dos grande iniciadores, com Raniero Panzieri e Antonio Negri, do operaismo italiano naquela
mesma década de renovação do perspectivismo marxista61. Pasolini escreveu: “Na América há
ideólogos não marxistas (que entenderam) os limites do socialismo real, ou seja (entenderam) que
os operários soviéticos são dominados por uma burocracia que de revolucionário só tem o nome”.
A democracia estadunidense é “extremista”, diz ele, exasperada, quase mística e enquanto tal é
revolucionária”. Uma afirmação bem provocadora para alguém que milita na esquerda comunista
italiana e que ele explicita emblematicamente com mais um desafio: “Quem não viu uma
manifestação pacifista e não-violenta em Nova Iorque está em falta de uma grande experiência
humana”62. São páginas belíssimas, onde ele compara os estudantes brancos do norte que descem
no Sul a lutar contra a segregação racial juntos aos negros aos membros da resistência anti-fascista
na segunda guerra. “A extraordinária novidade (para um europeu como eu, diz Pasolini), é que a
consciência de classe (...) paira nos americanos e, situações totalmente novas e quase escandalosas
para o marxismo” e isso porque o”o americano totalmente livre teve que passar pela calvário dos
negros e compartilhá-lo”63. Pasolini vê nascer, justamente nos Estados Unidos, um novo tempo
de resistência, exatamente nos termos de um conto da Resistência Black que diz: “Temos que
jogar nosso corpo na luta”. A luta e corpo coincidem no movimento anti-racista norte-americano
e o poeta via nisso “o novo mote de um engajamento real e não tediosamente moralista: jogar seu
corpo na luta”64.
Diante das formas populares de racismo, Pasolini enxergava a potencia da revolta contra
o “código social”, uma raiva segunda que tinha características corporais: “a inocência da
negritude, em si, da pobreza em si, etc. (...)”. O que conta, “é o exemplo da vida própria. Uma
vida como protesto vivido, como luto, suicídio, greve ou martírio”65. Uma vida como obra de arte
e coragem da verdade, como diria o ultimo Foucault.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
60
Ibid.
61
Em particular, Mario Troni, “The Progressive Era” (1970) in Mario Tronti, Operários e Capital, Afrontamento,
Porto, 1976.
62
Pier Paolo Pasolini, Empirismo Eretico, cit., pp. 144-5.
63
Ibid., pp. 148-9.
64
Ibid., p. 150. Grifos nossos.
65
Ibid., p. 161. Grifos nossos.

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