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Uma boa introdução à complexidade e ambigüidade da obra de Pier Paolo Pasolini é talvez
a apresentação que Gilles Deleuze faz da proposta pasoliniana de trabalhar sore a “modulação”
enquanto operação do “Real” que “não cessa de reconstruir a identidade da imagem e do objeto”.
A complexidade da abordagem de Pasolini corre o risco de ser mal compreendida, como no caso
do Umberto Eco que o acusava de cair numa “engenharia semiótica”. Assim, diz Deleuze, “é o
destino da astúcia de parecer demasiadamente naïve aos naïfs demasiadamente cultos”1 e dessa
maneira não ver que Pasolini queria ir mais longe que os semiólogos, ou seja fazer com o cinema
seja uma língua, “a língua da realidade”2.
O cineasta, poeta e escritor Pier Paolo Pasolini intrigava – da mesma maneira que toda a
produção do neo-realismo italiano do segundo pós-guerra – também Glauber Rocha. Por um lado,
Glauber enxergava a relação cabal entre sucesso do neo-realismo italiano e pobreza italiano que
ele representava. Pelo outro, ele era particularmente interessado por Pasolini que da questão dos
pobres tinha feito quase que uma obsessão. O cineasta baiano era fascinado e ao mesmo tempo
incomodado pela relação entre a obra e a vivência de Pasolini, pela sua aposta numa escrita que
não era mais “engajamento” mas vida, um jogar seu próprio corpo na luta, algo como um
desesperado “body-artista” que fazia do corpo uma “máquina sadiana”3. Era essa centralidade
dos pobres e do corpo que interessava Glauber em suas analises e críticas de Pier Paolo Pasolini.
A luta do artista italiano era contra a homologação dos pobres que ele definia como um
“presente absoluto sem mais alternativas”. O último lugar onde vive a realidade era, para ele, o
corpo, o corpo popular, o corpo dos pobres. Pasquale Voza diz: “Pier Paolo Pasolini pode ser
considerado o intelectual-artista que com mais tenacidade, e de maneira extremista, interrogou
nos anos 1970 a ligação corpo – poder”, ou seja “o universo horrível do biopoder”4. A sua luta
era, pois, contra o desaparecimento do corpo, da corporeidade popular: “o último lugar onde mora
a realidade”5.
3.1.1. Pier Paolo Pasolini e o maio de 1968 na Itália: a batalha de Valle Giulia
Sabemos que a especificidade do 1968 italiano foi sua dimensão fortemente operária, em
particular com seu desdobramento no “autunno caldo” de 1969 e o longo ciclo de lutas operárias
que inaugurara (e só fecharia com a reestruturação da Fiat em 1980). Um mês antes do maio 1968
explodir nos grandes boulevards do Quartier Latin parisiense, os estudantes romanos que
imprimem ao movimento uma forte radicalização. No dia 1o de março, em Valle Giulia, dentro da
universidade La Spazienza de Roma, eles enfrentam duramente com as forças de polícia. Pela
primeira vez, os manifestantes não se limitam a fugir e apanhar e mostram determinação de resistir
à repressão policial. As palavras da canção composta por Paolo Pietrangeli e Giovanna Marini
enfatizam exatamente esse “fato novo”: "Hanno impugnato i manganelli / ed han picchiato come
fanno sempre loro/ma all'improvviso è poi successo/ un fatto nuovo, un fatto nuovo, un fatto
nuovo/non siam scappati più, non siam scappati più!”. Aconteceu um fato novo: não fugimos
mais. O balanço foi de uma batalha campal, com centenas de feridos entre policiais e
manifestantes, centenas de prisões. O episódio ficou conhecido como a “Battaglia di Valle
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1
Gilles Deleuze, L’image-temps. Cinema 2, Minuit, Paris, 1985, p.42.
2
Ibid.
3
Pasquale Voza, La meta-scrittura dell’ultimo Pasolini, Liguori, Napoli, 2011, p.19.
4
Ibid., p. 26.
5
Ibid., p.7.
Giulia”6.
A batalha de Valle Giulia ficou conhecida também por uma outra razão, ou seja pelo “rap”
escrito por Pier Paolo Pasolini sobre o episódio e publicado pelo seminário L’Espresso, com o
título “Vi ódio, cari studenti”7: “Quando ontem em Valle Giulia vocês se bateram/ com os
policiais/eu simpatizava com os policiais/”. Intelectual fortemente conhecido por sua vinculação
explicita ao Partido Comunista Italiano (PCI), Pasolini parecia colocar-se ao lado dos policiais.
Sua posição foi amplamente utilizada pela imprensa, pela direita e também pela esquerda
parlamentar para condenar as lutas estudantis. Emblemática das reações negativas que o poema
encontrou no movimento estudantil e nos setores intelectuais mais sensíveis as inovações
revolucionárias da época foi a carta de resposta e crítica escrita pelo poeta Franco Fortini8: “Este
artigo da ‘Pravda’ escrito por Amendola e assinado por Pasolini não me surpreendeu. Ao longo
dos últimos dez anos não me fiz muitas ilusões sobre a tua capacidade de entendimento político”.
Para Fortini a poesia de Pasolini é na realidade funcional à crítica stalinista que o Partido
Comunista Italiano dirige aos movimentos que fugiam a seu controle: um texto então digno da
imprensa moscovita (Pravda) e que deve ter sido escrito por um dos dirigentes do PCI
(Amendola). Em suma, Fortini acusa Pasolini de ser instrumento de uma operação estalinista.
Na carta de Fortini encontramos também uma série de outras críticas e aprofundamentos
que apontam para as verdadeiras questões postas pela poesia de Pasolini e que ao mesmo tempo
estão longe de resolve-las. Contudo, essas críticas de Fortini nos levam para a atualidade da
poética de Pasolini e das questões que ela colocava (e coloca) a partir da centralidade que ele
atribuía aos pobres. Franco Fortini dizia que Pasolini não entendia as novas lutas porque “para
(ele) a luta de classe quase sempre foi a luta dos pobres contra os ricos e as relações entre
burguesia e proletariado somente um conflito consuetudinário entre racionalidade e
irracionalidade”9. Ou seja, Pasolini caía no “erro de acreditar misticamente nos
subdesenvolvidos”. Até quando a Itália do subdesenvolvimento “ainda iludia, continua Fortini,
tua (do Pasolini) poesia era a poesia dessa ilusão. Depois, quando a realidade começou a fugir-te
e você a seguia como um avião que quer voar à velocidade da luz para continuar ficando sempre
no sol, você começou a procurar o proletariado, melhor, os pobres e sua beleza, fora da Europa,
na Ásia e na África; e também na América, quando inorgânica negativa floreal”10. Fortini
desenvolve sua crítica numa direção correta, de tipo marxista. “Proletário”, “pobre”, “rico” não
são figuras abstratas, mas o fruto de relações sociais que podem mudar no espaço e no tempo:
“(...) não existe uma tipologia estática, sociológica ou psicológica, dos camponeses, dos operários,
dos estudantes pequeno-burgueses (...)”. Mas, é difícil dizer que a poética pasoliniana se reduz a
uma signicação tão linear e binária. Ao contrário, essa critica do Fortini nos leva direto para a
riqueza ambígua do enigma pasoliniano: os “pobres” e a questão da racionalidade
(desenvolvimento e subdesenvolvimento).
As posições de Pasolini não eram ideológicas e pouco tinham a ver com a linha política
do Partido Comunista Italiano. A ficha bibliográfica esboçada por Glauber é emblemática: “Os
fascistas atacam o jovem pervertido. Suas aventuras sentimentais escandalizam a província.
Pasolini enfrenta os inimigos, briga a socos, vai preso, é solto, assalta uma bomba de gasolina, é
processado, faz declarações chocantes, corre o rumor que teria entrado em conflito com o
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6 Ivano Scacciarli, “1 marzo 1968: 40 anni fa la Battaglia di Valle Giulia”, Senza Soste, n.24 (marzo 2008)
http://www.senzasoste.it/anniversari/1-marzo-1968-40-anni-fa-la-battaglia-di-valle-giulia; Giampaolo Bultrini e
Mario Scialoja, “I durissimi scontri fra studenti e polizia - La battaglia di Valle Giulia” L’Espresso, 10 marzo 1968
http://temi.repubblica.it/espresso-il68/1968/03/10/la-battaglia-di-valle-giulia/
7 “Odeio vocês, queridos”. Poucas semanas depois da publicação, o próprio Pasolini esclarecia que esse não era o título
que ele tinha dado à poesia, “um slogan que se imprimiu na cabeça vazia da massa consumidora como se fosse uma
coisa minha (…)”.
8 “Contro gli studenti”, disponível no site Pier Paolo Pasolini. L’ideologia, http://www.pasolini.net/ideologia07.htm
Franco Fortini escreveu essa carta logo depois da polémica de Valle Giulia e, segundo seu testemunho, a leu
pessoalmente e privadamente a Pasolini. Ela foi publicada em 1977, depois da morte de Pasolini (assassinado em
fevereiro de 1975).
9
Ibid. Grifos nossos.
10
Fortini erra na construção dessa metafora, pois uma avião de carreira, para ficar sempre no sol, não precisa correr na
velocidade da luz, mas apenas no sentido contrário à rotação terrestre numa velocidade suficiente para ficar sempre na
luz do dia.
Partido”. A obra do cineasta, nos diz Glauber, é de tipo auto-biográfico, diretamente ligada à sua
vivência: “(...) Accattone é a história brutal dos marginais, de seus conflitos sociais, psicológicos
e sexuais. E – escândalo para a hostes ortodoxas do realismo socialista – a ideologia não resolve
todos os problemas humanos: o herói é um atormentado como o próprio autor”11.
A preocupação de Pasolini não era tão mística e abstrata quanto uma leitura rápida demais
de sua poesia podia deixar entender. Ele mesmo nos fornece uma chave para explicitar o enigma
que ele visava colocar naquela poesia polêmica sobre a batalha de Vale Giulia. Em 17 de maio de
1969, ele escrevia: “há exatamente um ano escrevi uma poesia sobre os estudantes, que a massa
dos estudantes, inocentemente, tem ‘recebido’ como se recebe um produto de massa: ou seja
alienando-o de sua natureza, por meio da mais elementar simplificação (e) se imprimiu na cabeça
da massa consumidora como se fossa coisa minha”. Aqui, ele critica o uso instrumental feito pelo
semanário que publicou a poesia, em particular por ter colocado um título que não era dele
(“Odeio vocês, caros estudantes”). Mas a preocupação de Pasolini é mesmo com a incompreensão
da provocação que ele queria fazer, sobretudo no que diz respeito os versos sobre os policiais:
“Em minha poesia dizia, em dois versos, que simpatizava pelos policiais, filhos de pobres, ao
invés que pelos mauricinhos12 da faculdade de arquitetura de Roma (...); nenhum dos
consumidores percebeu que essa era apenas uma boutade, uma pequena malandragem oratória
paradoxal, para chamar a atenção do leitor, e dirigi-la para o que vinha depois, uma dúzia de
versos, onde os policiais eram vistos como objetos de um ódio racial pelo avesso, enquanto o
poder, alem de indicar ao ódio racial os pobres – os despossuídos do mundo – tem a possibilidade
também de fazer desses pobres instrumentos, criando contra eles uma outra espécie de ódio racial
(...)”13.
Pasolini queria chamar a atenção, até o ponto de fazer uma provocação que seria usada
pela mídia dos patrões, sobre as conseqüências ambíguas – para ele nefastas – da transformação
da composição social da Itália do final dos 1960. : O problema verdadeiro – dizia ele – é que o se
o “dilema do futuro (é) a guerra civil ou a revolução, a guerra civil a burguesia a combate contra
si mesma”. O que Pasolini quer dizer com isso? Ele mesmo o explicita: “até minha geração, os
jovens tinham diante de si a burguesia como ‘objeto’, um mundo ‘separado’ (separado deles,
porque, naturalmente, falo dos jovens excluídos: excluídos por um traumatismo: e tomamos como
traumatismo típico aquele de Lenine que viu seu irmão enforcado pela policia quando tinha
dezenove anos). Podíamos observar a burguesia, assim, objetivamente, desde fora (...)”, ou seja,
“o modo para observar objetivamente a burguesia nos era oferecido, segundo o esquema
tradicional pelo ‘olhar’ posto sobre ela por parte ‘do que não era burguês’: operários ou
camponeses (..)”. Algo como o que mais tarde viria a se chamar de “terceiro mundo”. A mudança
estava no fato de que para os “jovens de hoje a coisa se põe diversamente: para eles é muito mais
difícil observar a burguesia objetivamente por meio do olhar de uma outra classe social”. Pasolini
pensa que a “burguesia está triunfando” e que essa vitória é devida ao fato dela transformar “os
operários, por um lado, e os camponeses ex-coloniais, pelo outro, em burgueses. Em suma, por
meio do neocapitalismo, a burguesia esta se tornando a condição humana”, algo como o novo e
totalitário horizonte ontológico. Sua provocação aos jovens se explica então dessa maneira: “Eles
são com toda probabilidade a ultima geração que vê os operários e os camponeses: a próxima
geração só vera em torno a si a entropia burguesa”14. Para ele, a única maneira de ser contra é de
estar fora. O desaparecimento do fora, o fato que os pobres fossem todos subsumidos era uma
tragédia sem remissão.
Pasolini, por um lado, confirma a centralidade da figura do pobre em sua problemátização
da luta de classe e, pelo outro, apresenta a complexidade política, sociológica e enfim
antropológica dessa figura que funciona enigmaticamente como resistência ao poder e ao mesmo
tempo fruto mais perverso das relações de poder. O mesmo racismo que o poder gera e gere
contra os pobres os transforma em instrumentos dóceis (policiais) do próprio poder. Inútil dizer
que esses temas são de grande atualidade, em particular quando – como o fazia Pasolini – eles se
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11
Glauber Rocha, “Pasolini”, in Glauber Rocha, O Século do Cinema, cit. p. 277.
12
Pasolini usa o termo de “signorini”.
13
“Il Caos”, Tempo, 17 de maio de 1969. Citado em “Il PCI ai giovani!!”, commento di Angela Molteni, site Pier Paolo
Pasolini, http://www.pasolini.net/saggistica_poesia_pciaigiovani.htm . Grifos nossos.
14
Pier Paolo Pasolini, Empirismo Eretico, Garzanti, Milano, 2012, p. 158.
desdobram nas questões da racionalidade e da irracionalidade, do desenvolvimento e do
subdesenvolvimento, ou seja, com as questões de grande interesse no sul do mundo em geral e no
Brasil dessa segunda década do século XXI em particular.
Contrariamente ao que Fortini achava, a poesia sobre (e não “contra”) as lutas estudantis
de maio 1968, não resolvia linearmente as díades pobres versus ricos, subdesenvolvimento versus
desenvolvimento, irracionalidade versus racionalidade. Alguns versos em particular embaralham
toda essa linearidade: “A Valle Giulia, ieri, si è così avuto un frammento/ di lotta di classe: e voi,
cari (benché dalla parte/ della ragione) eravate i ricchi,/ mentre i poliziotti (che erano dalla parte
del torto) erano i poveri (…)”15. Aqui, de maneira enigmática e por isso ainda mais eficaz, Pasolini
rompe a linearidade da contradição dialética que atravessa o pensamento de esquerda e o
marxismo positivista da ortodoxia (aquele ao qual ele pareceria aderir). A luta da racionalidade
(os movimentos, as esquerdas, os estudantes) contra a irracionalidade (dos “pobres” que o poder
instrumentaliza), quando passa ao crivo da clivagem “ricos versus pobres” funciona pelo avesso.
Não porque os “pobres” sejam os verdadeiros portadores da (verdadeira) racionalidade, mas
porque é preciso ver a verdade dos pobres exatamente nesse fato de eles “estarem errados”, na
“irracionalidade” dos pobres e no que ela pode significar e expressar. A “poesia’, como o próprio
Pasolini reconheceu16, não visava entrar no debate imediato daquele enfrentamento, mas
“provocar” a reflexão sobre essa dimensão ontológica e antropológica dos pobres e os enigmas
de suas lutas. É a cabeça mística do pobre da qual falava Glauber que precisamos aprender para
entender suas lutas.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
60
Ibid.
61
Em particular, Mario Troni, “The Progressive Era” (1970) in Mario Tronti, Operários e Capital, Afrontamento,
Porto, 1976.
62
Pier Paolo Pasolini, Empirismo Eretico, cit., pp. 144-5.
63
Ibid., pp. 148-9.
64
Ibid., p. 150. Grifos nossos.
65
Ibid., p. 161. Grifos nossos.