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Introdução
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contrapartida, priorizar ao leitor, como pessoa e ser humano, independentemente de sua
classe social, ideologia política e nível aquisitivo.
O cinema foi para Calvino uma forma para evadir a realidade, essa realidade tão
opressora, tão escura. Essa evasão da realidade para Calvino foi fundamental para sua
literatura e veio justamente do cinema e dos filmes. Para ele o cinema era a maneira
mais fácil e que estava mais ao seu alcance, e que instantaneamente o levava mais
longe.
Dessa época se apreciam duas situações que ora inconsciente, ora não intencional,
ajudam a caracterizar essa maneira tão cinematográfica e pessoal de Calvino e que na
minha opinião revelam a gênesis, o ponto de partida, dos dois conceitos
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cinematográficos que ele levará a sua literatura e fará deles seu maior diferencial: a
elipse e o imagético.
Ele conta que como ia ao cinema sem a autorização dos pais, as vezes entrava e o filme
já tinha começado, e estava perto da metade ou quase no final. Também acontecia que,
mesmo quando conseguia entrar no começo do filme, tinha que sair antes do final ou da
seqüência na qual tinha entrado, porque tinha hora para voltar para casa e evitar a ira
familiar. Assim ele sentencia: “Podemos dizer que já nessa época nos antecipávamos às
técnicas narrativas mais sofisticadas do cinema atual, rompendo o fio temporal da
historia e transformando-la num quebra-cabeças que devia ser armado peça por peça ou
aceito em sua forma fragmentária” (1998:x). Com essas palavras Calvino nos fala as
claras da elipse, essa forma que combina a fragmentação e os saltos temporais como
maneira de construir a narrativa. E por o outro lado, a questão imagética, se percebe
quando Calvino conta que as lembranças do cinema mudo e do sonoro, ele os
incorporou retrospectivamente numa infância imaginaria da que não podiam não formar
parte; já que de criança ele só conhecia pela contemplação dos cartazes a cores. É
justamente essa força imagética dos cartazes que ecoa nos títulos tão poéticos e cheios
de imagens de Calvino escolheu para seus livros, especialmente seus romances.
Não pode se negar que Calvino, como espectador, foi influenciado principalmente pelo
cinema de Hollywood, tão cheio de cheiros a “palmolive, pomada e desinfetante, onde o
erotismo estava sublimado, estilizado e idealizado”, e pelo cinema Francês, que tinha
outra “espessura, falava de coisas mais inquietantes e vagamente proibidas, e tinha uma
presencia carnal que o instalava na memória como mulheres vivas e ao mesmo tempo
como fantasmas exóticos” (1998:xvi). Embora esse último tenha influenciado mais sua
literatura e o primeiro represente sua experiência como espectador, as duas
cinematografias foram determinantes. Sendo impossível não identificar que o neo-
realismo permeia toda essa visão. E mesmo sabendo que Calvino chegou a admirar o
cinema italiano mas nunca a amá-lo; é ai que ele encontra o núcleo para sua na
narrativa.
Toda essa construção ou visão que o Calvino tinha do cinema antes da guerra, depois
dela, desapareceu ou melhor dito, mudou radicalmente não somente o cinema, senão a
ele e também sua relação com o cinema.
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O cinema de pós-guerra teve para Itália uma força importante tanto a nível político
quanto a nível artístico. E é com o neo-realismo que o cinema italiano se fortalece e
amplia os horizontes, desde duas perspectivas opostas que consegue juntar e misturar
num só plano. As duas perspectivas não são outras que a realidade e a ficção. O neo-
realismo da ao cinema seu sentido mais introspectivo, já que nos força a olhar e
enxergar nossa existência cotidiana de maneira tal que mude algo de nossas relações
com nós mesmos. É nessa introspecção em que eu colocaria a narrativa de Calvino, que
para exemplificar cinematograficamente localizaria entre “Roma, cidade aberta” (1945)
de Rossellini e “Amarcord” (1973) de Federico Fellini.
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É importante definir os dois conceitos que pertencem ao mundo do cinema e que o
Calvino apropriou para sua construção narrativa tão particular e simples. Os dois
conceitos são:
Por tanto, na tentativa de resumir a relação que o Calvino teve com o cinema marcado
pela Segunda Guerra Mundial, vem inevitavelmente a minha mente o personagem de
Toto, protagonizado por Salvatore Cascio no filme “Cinema Paradiso” (1988), de
Giuseppe Tornatore. Infelizmente não conhecemos a opinião de Calvino sobre o filme,
já que ele morreu em 1985. Mesmo assim, enquanto relia a Autobiografia, mais de uma
vez o rosto pícaro de Toto aparecia na minha cabeça e talvez o mesmo Calvino tenha
pensado em trabalhar em um cinema e se apaixonar perdidamente por uma loira de
olhos azuis.
Com essa lembrança é possível sentir a flor da pele quando Calvino diz: “O cinema
respondia a uma necessidade de distanciamento, de dilatação dos confins do real, a
possibilidade de se ver abrir ao redor dimensões incomensuráveis, abstratas como
entidades geométricas, mas também concretas, absolutamente cheias de caras, situações
e ambientes, que estabeleciam uma rede (abstrata) de relações com o mundo da
experiência direta” (1998:xxii).
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Para concluir, parafraseio a Calvino quando ele fala do cinema felliniano e digo: os
livros de Calvino são a literatura ao revéis, uma máquina gráfica que devora aos
leitores e uma máquina de escrever que da as costas ao mundo editorial, mas sempre
ambos os pólos são interdependentes.
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Bibliografia citada e sugerida