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Calvino e o neo-realismo de pós-guerra: análise da linguagem

cinematográfica na obra literária de Ítalo Calvino.

Introdução

En los cortos tiempos de nuestras vidas todo queda allí,


angustiosamente presente; las primeras imágenes del eros y
las premoniciones de la muerte nos alcanzan en cualquier sueño,
el fin del mundo comenzó con nosotros y parece no querer
terminar, la película de la que nos vanagloriábamos de ser
solamente espectadores es la historia de nuestra vida.
Ítalo Calvino

Podemos pensar em Ítalo Calvino como um escritor neo-realista ou do neo-realismo,


movimento comum aos jovens escritores depois da Segunda Guerra Mundial, já que
esses se sentiam depositários de uma nova realidade social. Essa realidade transcendia o
que estava acontecendo na Europa e no mundo. Era, em certo sentido, uma realidade
paralela, ficcional e imaginária. Assim, o neo-realismo nas artes logra transcender as
questões ideológicas que afligiam/assediavam aos países europeus e sobre tudo a
Alemanha com o Adolf Hitler, a Itália com o Benito Mussolini, a Russa com o Yosef
Stalin e a França com o Charles De Gaulle. Para se revelar como uma arte, e uma
literatura no caso do Calvino, em que cada página se evidencia uma capacidade poética
que aproxima o romance ao universo quase mágico da fábula.

É nesse contexto histórico-político que Calvino se descobre escritor neo-realista e se


afilia ao Partido Comunista Italiano (PCI), do qual só se desvinculou em 1956. Isso
provocou seu afastamento do seu explícito compromisso político e modificou sua
escritura e propostas narrativas. Mesmo assim Calvino sempre se caracterizou pela
singular capacidade de representar a realidade, conjugando o compromisso político e a
literatura ao alcance do leitor popular. De uma forma ou outra, ele sempre esteve
interessado na literatura e no leitor popular. Talvez essa seja a característica principal
que lhe faz diferenciar dos seus contemporâneos: Cesare Pavese, Elio Vittorini, Roland
Barthes, Raymond Queneau, Jorge Luis Borges, por nominar só alguns, e em

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contrapartida, priorizar ao leitor, como pessoa e ser humano, independentemente de sua
classe social, ideologia política e nível aquisitivo.

Embora se possam reconhecer três períodos bem definidos na literatura de Calvino (o


período no qual experimenta o neo-realismo, o período fantástico e o período
combinatório) através deste texto desejo apontar que sua narrativa sempre utilizou
linguagem cinematográfica, ainda que em diferentes graus, o estilo sempre esteve
presente e bem visível. Analisarei então, como dois termos de construção da narrativa
cinematográfica; as elipses e o caráter imagético, atravessam a obra de Calvino
dotando-a de uma singularidade e uma força nunca antes percebida na literatura e que
influíram de uma forma significativa à literatura por vir.

Calvino e o cinema: antes e depois da Segunda Guerra Mundial

O cinema foi para Calvino uma forma para evadir a realidade, essa realidade tão
opressora, tão escura. Essa evasão da realidade para Calvino foi fundamental para sua
literatura e veio justamente do cinema e dos filmes. Para ele o cinema era a maneira
mais fácil e que estava mais ao seu alcance, e que instantaneamente o levava mais
longe.

A essência do Calvino provêem do neo-realismo e principalmente com esse contato tão


assíduo e prolongado com o cinema que ele teve e manteve ao longo dos anos. Ele
mesmo na sua introdução ao livro de Federico Fellini, Hacer una película (1998),
manifesta seu amor incondicional com o cinema, as idas ao cinema sem autorização dos
pais, e como o cinema transformou sua vida e facilitou a mistura entre as duas
realidades: a interna e a externa. Especialmente dos treze aos dezoito anos de idade,
Calvino admite que foi “quando o cinema me ocupava com uma força que não tem
comparação nem com o antes nem com o depois” (1998:xi).

Dessa época se apreciam duas situações que ora inconsciente, ora não intencional,
ajudam a caracterizar essa maneira tão cinematográfica e pessoal de Calvino e que na
minha opinião revelam a gênesis, o ponto de partida, dos dois conceitos

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cinematográficos que ele levará a sua literatura e fará deles seu maior diferencial: a
elipse e o imagético.

Ele conta que como ia ao cinema sem a autorização dos pais, as vezes entrava e o filme
já tinha começado, e estava perto da metade ou quase no final. Também acontecia que,
mesmo quando conseguia entrar no começo do filme, tinha que sair antes do final ou da
seqüência na qual tinha entrado, porque tinha hora para voltar para casa e evitar a ira
familiar. Assim ele sentencia: “Podemos dizer que já nessa época nos antecipávamos às
técnicas narrativas mais sofisticadas do cinema atual, rompendo o fio temporal da
historia e transformando-la num quebra-cabeças que devia ser armado peça por peça ou
aceito em sua forma fragmentária” (1998:x). Com essas palavras Calvino nos fala as
claras da elipse, essa forma que combina a fragmentação e os saltos temporais como
maneira de construir a narrativa. E por o outro lado, a questão imagética, se percebe
quando Calvino conta que as lembranças do cinema mudo e do sonoro, ele os
incorporou retrospectivamente numa infância imaginaria da que não podiam não formar
parte; já que de criança ele só conhecia pela contemplação dos cartazes a cores. É
justamente essa força imagética dos cartazes que ecoa nos títulos tão poéticos e cheios
de imagens de Calvino escolheu para seus livros, especialmente seus romances.

Não pode se negar que Calvino, como espectador, foi influenciado principalmente pelo
cinema de Hollywood, tão cheio de cheiros a “palmolive, pomada e desinfetante, onde o
erotismo estava sublimado, estilizado e idealizado”, e pelo cinema Francês, que tinha
outra “espessura, falava de coisas mais inquietantes e vagamente proibidas, e tinha uma
presencia carnal que o instalava na memória como mulheres vivas e ao mesmo tempo
como fantasmas exóticos” (1998:xvi). Embora esse último tenha influenciado mais sua
literatura e o primeiro represente sua experiência como espectador, as duas
cinematografias foram determinantes. Sendo impossível não identificar que o neo-
realismo permeia toda essa visão. E mesmo sabendo que Calvino chegou a admirar o
cinema italiano mas nunca a amá-lo; é ai que ele encontra o núcleo para sua na
narrativa.

Toda essa construção ou visão que o Calvino tinha do cinema antes da guerra, depois
dela, desapareceu ou melhor dito, mudou radicalmente não somente o cinema, senão a
ele e também sua relação com o cinema.

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O cinema de pós-guerra teve para Itália uma força importante tanto a nível político
quanto a nível artístico. E é com o neo-realismo que o cinema italiano se fortalece e
amplia os horizontes, desde duas perspectivas opostas que consegue juntar e misturar
num só plano. As duas perspectivas não são outras que a realidade e a ficção. O neo-
realismo da ao cinema seu sentido mais introspectivo, já que nos força a olhar e
enxergar nossa existência cotidiana de maneira tal que mude algo de nossas relações
com nós mesmos. É nessa introspecção em que eu colocaria a narrativa de Calvino, que
para exemplificar cinematograficamente localizaria entre “Roma, cidade aberta” (1945)
de Rossellini e “Amarcord” (1973) de Federico Fellini.

Em palavras cruas Calvino denuncia que a pós-guerra mudou a maneira italiana de


assistir cinema, inclusive o cinema norte-americano. Ele diz que depois da guerra já não
existia um mundo dentro da tela iluminada na sala escura, e outro mundo heterogêneo
fora, separado por uma plena descontinuidade, oceano ou abismo. A sala escura
desaparece, a tela é uma lente de aumento (lupa) apontando ao cotidiano, e obriga a
olhar o que o olho nu tende deixar passar (1998:xxii).

Os dois pilares na narrativa cinematográfica de Calvino: o elíptico e o imagético

Sem duvida nenhuma, as obras de Ítalo Calvino tem um componente significativo de


narração cinematográfica, caracterizado por um lado, pelo imagético e por o outro, pelas
elipses narrativas. Exemplos fidedignos disto são O atalho dos ninhos de aranha (1947)
e As cidades invisíveis (1972), respectivamente. No primeiro Calvino constrói sua
narrativa sobre a simplificação para transformá-la em algo legível para os diferentes
tipos de leitor e por ter sido escrita na atmosfera do neo-realismo cujos principais
propulsores estavam no cinema: Federico Fellini, Roberto Rossellini e Vittorio de Sica,
Luchino Visconti, entre outros. E no segundo, ele combina uma linguagem singular com
elipses narrativas com o intuito de simplificar o mundo que ele quer narrar. Assim, a
imagem e a fragmentação passam a ter um peso crucial na obra de Calvino, na qual a
poesia, a fábula e o cinema são os principais protagonistas.

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É importante definir os dois conceitos que pertencem ao mundo do cinema e que o
Calvino apropriou para sua construção narrativa tão particular e simples. Os dois
conceitos são:

1) Elipse: na literatura, no cinema e em outras formas narrativas, ou na poesia,


refere-se a omissão intencional de códigos e/ou informações facilmente
identificáveis pelo contexto, por elementos, códigos ou significados construídos
por sucessões de imagens seqüenciadas. Embora esse recurso seja utilizado na
narrativa literária e outras narrativas e formas artísticas, é no cinema onde o
artifício é mais utilizado. Por isso, vários estudiosos do cinema afirmam que o
cinema é a arte da elipse.

2) Imagético (que advém da imagem): Se refere as construções literárias ou


cinematográficas que possuem o perfeccionismo na construção da imagem como
elemento principal da obra.

Por tanto, na tentativa de resumir a relação que o Calvino teve com o cinema marcado
pela Segunda Guerra Mundial, vem inevitavelmente a minha mente o personagem de
Toto, protagonizado por Salvatore Cascio no filme “Cinema Paradiso” (1988), de
Giuseppe Tornatore. Infelizmente não conhecemos a opinião de Calvino sobre o filme,
já que ele morreu em 1985. Mesmo assim, enquanto relia a Autobiografia, mais de uma
vez o rosto pícaro de Toto aparecia na minha cabeça e talvez o mesmo Calvino tenha
pensado em trabalhar em um cinema e se apaixonar perdidamente por uma loira de
olhos azuis.

Com essa lembrança é possível sentir a flor da pele quando Calvino diz: “O cinema
respondia a uma necessidade de distanciamento, de dilatação dos confins do real, a
possibilidade de se ver abrir ao redor dimensões incomensuráveis, abstratas como
entidades geométricas, mas também concretas, absolutamente cheias de caras, situações
e ambientes, que estabeleciam uma rede (abstrata) de relações com o mundo da
experiência direta” (1998:xxii).

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Para concluir, parafraseio a Calvino quando ele fala do cinema felliniano e digo: os
livros de Calvino são a literatura ao revéis, uma máquina gráfica que devora aos
leitores e uma máquina de escrever que da as costas ao mundo editorial, mas sempre
ambos os pólos são interdependentes.

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Bibliografia citada e sugerida

BUÑUEL, L. Escritos de Luis Buñuel. Madri: Páginas de Espuma, 2000.


CALVINO, I. Las ciudades invisibles. Madri: Ediciones Siruela, 2009.
CARRIÈRE, J.C. La película que no se ve. Barcelona: Ediciones Paidós, 1997.
EISENSTEIN, S. Cinematismo. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1982.
FELLINI, F. Hacer una película. Buenos Aires: Libros Perfil, 1998.
NAGIB, L. A utopia no cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

Filmes citados no texto:


Filme “Amarcord” (1973), Federico Fellini: https://www.youtube.com/watch?
v=x7JwBYXB3-U
Filme “Cinema Paradiso” (1988), Giuseppe Tornatore:
https://www.youtube.com/watch?v=hX7fl6-e_vQ
Filme “Roma, Cidade Aberta” (1945), Roberto Rossellini:
https://www.youtube.com/watch?v=gxCV0euA__o

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