Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
IMAGEM 1
Capa e primeira página da adaptação quadrinística da obra A Metamorfose de Franz Kafka, por
Peter Kuper. A personagem Gregor Samsa acorda inexplicavelmente transformada em um
inseto e é, gradativamente, apartada do mundo humano em direção a um trágico fim. FONTE
DA IMAGEM: http://literatortura.com/2015/07/literatura-e-hq-part-ii-a-metamorfose-e-o-
processo/
- Moço, me dá um cigarro?
A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que
me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças.
O importuno pedinte insistia:
[...]
Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a
escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim
estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente:
- Você não dá é porque não tem, não é, moço?
[...]
Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter morada certa. A rua
era o seu pouso habitual. Foi nesse momento que reparei nos seus olhos.
Olhos mansos e tristes. Deles me apiedei e convidei-o a residir comigo. A
casa era grande e morava sozinho - acrescentei.
A explicação não o convenceu. Exigiu-me que revelasse minhas reais
intenções:
- Por acaso, o senhor gosta de carne de coelho?
Não esperou pela resposta:
- Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é o meu fraco.
Dizendo isto, transformou-se numa girafa.
- À noite - prosseguiu - serei cobra ou pombo. Não lhe importará a
companhia de alguém tão instável?
Respondi que não e fomos morar juntos.
IMAGEM 2
Embora desconheçamos qualquer adaptação em quadrinhos da obra de Rubião, existem várias ilustrações
que representam personagens de seus contos. Ilustração do artista plástico paulista Helton Souto para o
conto Teleco, o coelhinho, de Murilo Rubião, representando as diversas metamorfoses da personagem. In
Fanzine Tertúlia: cinema, literatura, música. FONTE DA IMAGEM:
http://www.tertuliaonline.com.br/postagem/ver/272
Cinco meses após sua detenção, ele não espera mais sair da cadeia. Das suas
grades observa os homens que passam na rua. Mal o encaram, amedrontados,
apressam o passo.
Pressente, ás vezes, que irão perguntar qualquer coisa aos companheiros e
fica à espreita, ansioso que isso aconteça. Logo se desengana. Abrem a boca,
arrependem-se, e se afastam rapidamente.
As mulheres, alheias ao medo, costumam ir à Delegacia para levar-lhe
cigarros. São as mais belas, exatamente as que esperava encontrar no distante
povoado. Meigas e silenciosas, notam no olhar dele o desespero por não
poder abraça-las, sentir-lhe o hálito quente.
Só resta esperar pela Viegas que, sensual e perfumada, vem vê-lo ao final da
tarde. Sorri, e diz com uma invariabilidade que o enternece: - É você.
Quando ela se despede – o corpo tenso, o suor porejando na testa, Cariba
sente o imenso poder daquela prisão.
Caminha dentro da noite, de um lado para outro. E, ao avistar o guarda,
cumprindo sua ronda noturna, a examinar se as celas estão em ordem, corre
para as grades internas, impelido por uma débil esperança:
- Alguém fez hoje alguma pergunta?
- Não. Ainda é você a única pessoa que faz perguntas nesta cidade.
(RUBIÃO, 1976, p. 51)
IV
Nunca me preocupei em dar um final aos meus contos. Usando a
ambiguidade como meio ficcional, procuro fragmentar minhas histórias ao
máximo, para dar ao leitor a certeza de que elas prosseguirão
indefinidamente, numa indestrutível repetição cíclica. (RUBIÃO, 1976, p. 4)
Neste sentido próximo do absurdo e desespero sem fim, que Rubião insere em
seus contos, encontramos semelhante universo em Kafka, enfatizado pelas ilustrações
de Peter Kuper. A constante representação da cidade como armadilha, como labirinto
que atrai e aprisiona em um poder sem sentido e insondável (como em “A cidade”, de
Murilo Rubião), torna-se presente no espaço ilustrado nos nove pequenos contos da
obra Desista! E outras histórias de Franz Kafka e seu clima asfixiante (Imagem3).
Imagem 3
Capa da Graphic Novel de Peter Kuper Desista! E outras história de Franz Kafka. Retirada da página
final do conto “Desista!” representa o individuo desorientado diante de uma cidade-labirinto e uma
autoridade que apenas reforça a impotência e desnorteamento do indivíduo. FONTE DA IMAGEM:
http://blogdoclydes.blogspot.com.br/2012/05/v-behaviorurldefaultvmlo.html
Angustiante e claustrofóbico, este cenário retratado em Desista! E outras
histórias de Kafka, Peter Kuper ilustra cenas em que estão presentes a situação de
constrangimento do indivíduo diante de uma autoridade obscura e insondável,
labirintos, circos, ruas, navios, que tornam-se prisões e lugares de desconforto. Nessa
Graphic Novel o desenhista reproduz, em texto integral, os seguintes contos de Kafka,
publicados por Max Brod após sua morte: “Uma pequena fábula” (de 1920); “A ponte”
(de 1917); “Desista!” (de 1922); “O timoneiro” (de 1920); “O pião” (de 1920) e “O
abutre” (de 1920), bem como o conto “As árvores” (de 1903-4), publicado pelo autor
em 1913. Os contos “Um artista da fome” (de 1922, publicado pelo autor 1924) e “Um
fratricídio” (de 1917, e publicado pelo autor em 1919), são quadrinizados pelo artista
em texto abreviado.
Nas imagens do artista gráfico a figura do poder é sempre gigantesca em meio à
cidade-labirinto: o gato que devora o rato narrador, ao lhe dar uma alternativa á ratoeira
que lhe ameaça, em “Uma pequena fábula” (Imagem 4 e 5); o policial truculento em
“Desista!” e de “As árvores” (Imagem 3). O indivíduo está confuso, perdido ou
oprimido, em situações de fragilidade e de vertigem, onde não consegue tomar uma
atitude que o liberte das garras do poder que o oprime.
Imagem 4
A personagem de “Uma pequena fábula” em meio ao labirinto que o leva a uma armadilha dupla: uma
ratoeira e um gato. FONTE DA IMAGEM:http://blogdoclydes.blogspot.com.br/2012/05/v-
behaviorurldefaultvmlo.html
IMAGEM 5
Imagem 6
O indivíduo perdido em meio à cidade de “Desista!”. Ruas como labirintos onde não é possível conseguir
ajuda para fugir de seu espaço desnorteador. FONTE DA IMAGEM:
http://blogdoclydes.blogspot.com.br/2012/05/v-behaviorurldefaultvmlo.html
Imagem 7
Ilustração de Peter Kuper para o conto “As árvores”. A cidade como lugar de solidão e de desespero.
FONTE DA IMAGEM: https://br.pinterest.com/paolarech/peter-kuper/
Eu estava rígido e frio, era uma ponte, estendido sobre um precipício. Com os
dedos dos pés de um lado e os das mãos agarrados ao outro, fixei-me com
firmeza ao solo instável. As fraldas do casaco tremulavam dos dois lados do
meu corpo. Lá embaixo, rugia a gélida correnteza do riacho de trutas.
Nenhum turista se arriscava naquelas alturas intransitável, a ponte ainda não
aparecia em nenhum mapa. De modo que me estendi e esperei; era só o que
podia fazer. A não ser que vá abaixo, uma vez erigida, uma ponte nunca
deixa de ser ponte.
Foi num entardecer – seria o primeiro, seria o milésimo? Não sei dizer -,
meus pensamentos, sempre confusos, moviam-se em um círculo perpétuo.
Foi num entardecer de verão, o rugido da correnteza tornara-se mais intenso,
que ouvi o som de passos humanos! Vinham em até mim, até mim. Endireite-
se, ponte, prepara-te, viga sem corrimão, para sustentar o passante a você
confiado. Caso seus passos sejam vacilantes, torne-os firmes sem que ele
note; se bater os pés com força, mostre do que é capaz, como um deus da
montanha, conduza-o a terra firme.
Ele veio; me cutucou com a ponta metálica de sua bengala, cravou-a na
minha cabeleira espessa e a deixou lá por um longo tempo, provavelmente
enquanto olhava enlouquecido ao redor. Mas então – enquanto eu
acompanhava em pensamento pela montanha e pelo vale - ele pulou com os
dois pés bem no meio do meu corpo. Estremeci com uma dor esmagadora
sem saber o que acontecia. Quem era? Uma criança? Um sonho? Um
andarilho? Um suicida? Uma provação? Um demolidor?
E me virei para vê-lo. Uma ponte se virando! Ainda não tinha me virado por
completo quando comecei a cair. Eu caí e em um instante fui perfurado e
dilacerado pelas pedras afiadas que sempre me contemplaram pacificamente
das águas revoltas. (KUPER, 2008, p. 17 – 22)
Imagem 8
O policial de “Desista!” como uma autoridade opressiva e absurda em meio a um universo fantástico da
cidade vazia e labiríntica. FONTE DA IMAGEM: https://teiablog.wordpress.com/2013/03/19/desista-
franz-kafka-ilustrado/
Jean Delumeau (1989) aponta as portas da cidade como a passagem para o limite
de algo que protege seus cidadãos dos perigos externos, mas que também proíbe e
aprisiona, criando novos perigos e novas fontes de medo, inclusive metafísicos. Surge a
imagem dos atuais reinos “feudais”, dos condomínios fechados e resorts, que vendem
uma sensação tênue de segurança, mas que, na prática, como as muralhas das antigas
cidades, pouco protegem das invasões bárbaras e dos demônios que se inserem, dentro
de seus muros, junto com os condenados em sua solidão e silêncio.
IMAGEM 10
A ponte humanizada não resiste ao peso de seu transeunte e desaba rumo ao abismo. Metáfora do ser
humano transformado em objeto ou em animal kafkiano, ilustrado por Kuper. FONTE DA IMAGEM:
http://manussouza.blogspot.com.br/2011/10/ponte-de-franz-kafka.html
Imagem 9
Em “O abutre” o algoz que devora sua vítima impotente, símbolo do poder em Kafka, termina afogado
por sua própria voracidade. Ilustração de Peter Kuper. FONTE DA IMAGEM:
http://blogdoclydes.blogspot.com.br/2012/05/v-behaviorurldefaultvmlo.html
Considerações finais
REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge Luis (org.). Literatura Fantástica. Madrid: Ediciones Siruela, 1985.
KUPER, Peter. Desista! E outras histórias de Franz Kafka. Trad. Alexandre Boide.
São Paulo : Conrad Editora do Brasil, 2008.
TYNIÁNOV, I. N.. O Tenente Quetange. Trad. Aurora Bernardini. São Paulo: Cosac
& Naify, 2002.