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Mariana Novaes
CRLA-Archivos - Université de Poitiers
Personagem central na vida literária de Minas Gerais, Murilo Rubião também é
considerado como um dos grandes escritores brasileiros do século XX. Tal importância
se deve, principalmente, a duas características: o ato constante de escrever e reescrever
seus contos e a temática e estilo originais de sua obra. Nascido em Carmo de Minas,
interior do estado de Minas Gerais, em 1916, o escritor Murilo Eugênio Rubião
publicou em vida sete livros e apenas 32 contos. No entanto, se a priori sua obra é
considerada como condensada, na verdade, o processo constante de fazer e refazer, que
se reflete nas republicações e reedições de seus contos, torna Murilo Rubião um autor
de obra vasta. Desses 32 contos encontramos também outras 102 republicações,
variantes de cada conto, que multiplicam a leitura, complementam a interpretação e
recuperam a memória do texto.
A singularidade da literatura muriliana e o mito da reescritura são percebidos
pela crítica desde sua estreia no cenário literário brasileiro. Um ano após a publicação
de seu primeiro livro, o Ex-mágico (1947), Álvaro Lins escreve que Murilo Rubião
“trabalhou durante vários anos, fazendo e refazendo os contos, que têm não só uma
unidade, mas um caráter pessoal e inconfundível”1. Essa escrita peculiar fará com que
por muito tempo sua obra fosse mal compreendida e até hoje sujeita a inúmeras
classificações, na tentativa de defini-la segundo suas influências e inseri-la na
historiografia literária.
Rejeitado durante anos por inúmeras editoras antes de publicar o seu primeiro
livro, a literatura de Murilo Rubião recebeu por vários críticos literários brasileiros,
como Mário de Andrade, nomes e definições como “fantasia”, “maravilhoso”,
“imaginário”, “realismo mágico”, ‘insólito” chegando até ao conceito de
“estranhamento”.2 Durante muitos anos, Murilo Rubião percorreu solitário caminhos
inéditos na literatura brasileira. Antes de publicar o seu primeiro livro, Murilo Rubião
escreveu quase três livros e um total de cinquenta contos. Elvira e outros mistérios e O
dono do arco-íris foram recusados por várias editoras. Seus originais percorreram por
quase quatro anos as editoras do Rio de Janeiro e de Porto Alegre até que conseguisse
publicar em 1947, pela editora Universal, o livro O ex-mágico, uma seleção de 15
contos.
Somente no fim dos anos 1960, com o apogeu do realismo mágico hispano-
americano, a obra de Murilo Rubião foi reconhecida pela crítica. Nesta época surgem o
maior número de críticas e traduções de sua literatura e, em 1974, o livro O pirotécnico
Zacarias, composto por contos republicados, atinge um número de vendas de mais de
cem mil exemplares.
O estranhamento que teve por parte da crítica e a dificuldade em denominar o
gênero literário de Murilo Rubião podem ser explicados pelo contexto em que aparece o
seu primeiro livro. No final da década de 1940, enquanto os nossos vizinhos latino-
americanos buscavam sua identidade a partir de uma literatura voltada para a
imaginação, no Brasil, muito escritores tentavam afirmar a sua nacionalidade
1
LINS, Álvaro. Os novos. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 2 abr.1948.
2
Antonio Candido considera que o contista mineiro teria instaurado, no Brasil, a ficção do insólito
absurdo, propondo, na contramão do realismo social "um caminho que poucos identificaram e só mais
tarde outros seguiram".
organizando uma temática e uma estética que confrontassem nossas diferenças em
relação ao resto do mundo, em particular com relação à matriz europeia, como
aconteceu no período romântico brasileiro. 3
Assim como Machado de Assis, Murilo Rubião nunca se preocupou em explorar
a natureza enfeitiçante dos trópicos para que ocupasse o seu devido lugar como
representante da literatura brasileira. Em seu artigo “Notícia da atual literatura
brasileira: instinto de nacionalidade”4 Machado chama a atenção para a intenção de
muitos escritores, inseridos no Romantismo brasileiro, em tornar a literatura brasileira
independente, buscando para isso inserir “a cor local” e adotando, por exemplo, a
temática indígena. Para ele, o que faz de um autor um escritor de seu país é certo
sentimento íntimo “que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda que trate de
assuntos remotos no tempo e no espaço”. Ao refletir sobre as questões nacionais,
Machado antecipa um projeto de literatura brasileira e de sua própria obra e defende o
fazer literário.5
Discípulo do escritor6, Murilo Rubião também abraçaria o projeto literário de
Machado de Assis. No caso do autor de o Ex-mágico, a literatura também se alimentará
da memória de outros textos e de seu próprio texto. É na intertextualidade – que se
mostra desde suas influências até ao uso constante de epígrafes bíblicas – e
principalmente na poiesis inerente ao fazer e refazer de seus contos, que Murilo Rubião
encontra o seu lugar atípico, utópico, para não dizer o não lugar na história da literatura
brasileira.
Filho de filólogo, Murilo Rubião foi também filólogo de sua própria escrita. Até
a sua morte, o escritor reelaborou e reescreveu constantemente quase todos os seus
contos, chegando alguns a apresentarem mais de cinco versões diferentes. O conto “O
ex-mágico da Taberna Minhota”, de seu primeiro livro até a edição de O convidado
(1974), possui 21 tipos diferentes de alterações, fora as supressões: 28 na primeira
reedição, 71 na segunda reedição. Distribuídos em sete edições e várias reedições, os
contos publicados em vida pelo escritor e a organização feita por ele obedecem a um
projeto literário consciente, de constante revisão, de repetição temática e, segundo
Rubião, de apenas três livros.
Em entrevista a Alexandre Marino, o escritor diz o seguinte:
3
Maria Cristina Batalha, “Murilo Rubião e as armadilhas do verbo: a euforia e o desencanto”, em
Letras & Letras, Uberlândia, v. 19, n. 2, p. 99-113, 2003.
4
Machado de Assis, “Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade”. Disponível em:
<http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/critica/mact25.pdf> Acesso em: 14/05/2015
5
Para Machado, nas obras de Basílio da Gama e Santa Rita Durão já se poderia perceber um “instinto de
nacionalidade”, precursor e relevante em detrimento da obra dos demais árcades.
6
Murilo Rubião assumiria o escritor como sua maior influência e declarava ter lido Memórias póstumas
de Brás Cubas 21 vezes e com anotações.
o compus com textos retirados de Os dragões e O ex-mágico,
novamente reelaborados. Depois, publiquei O convidado e, mais
recentemente, A casa do girassol vermelho, composto de contos
de várias épocas, também reescritos. Na realidade eu tenho três
livros publicados. (Correio Braziliense, citado por ANDRADE,
1996).
Assim, as constantes alterações e revisões de seus contos nada mais são do que o
jogo existente entre a temática de sua obra e o fazer literário. A metamorfose, a
castração e a circularidade englobam a temática da obra de Murilo Rubião. Exemplos
não faltam. No conto “Teleco, o coelhinho”, o coelho passa por constantes
transformações: “vira tudo, assume até formas grotescas e terríveis, mas só consegue
cumprir o seu desejo de se tornar homem, ao se transformar, por fim, numa criança
morta". Em "Três nomes de Godofredo", ocorre "a multiplicação insatisfatória de
mulheres e desencantos" e em “O edifício” narra-se a construção infindável de um
"absurdo arranha-céu".
Uma outra característica singular na obra de Murilo é a opção obsessiva pelas
epígrafes bíblicas que aparecem em quase todos os seus contos (com exceção de uma
epígrafe que é retirada do romance Memórias póstumas de Brás Cubas). Essa escolha
reflete o movimento circular e homogêneo que ligam à narrativa de cada um de seus
contos a sua obra como um todo. Cada particularidade de sua literatura, o gesto de
7
Eliane Zagury, “Murilo Rubião”, em Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, jul./ago. 1966.
8
Sandra Nunes, “Elefantes, burocracias e metamorfoses. Acercamentos de um manuscrito muriliano”, em
XI Congresso Internacional da ABRALIC, 13 a 17 de julho de 2008. USP, São Paulo.
escrever e reescrever, a temática e as epígrafes, abraça o projeto literário consciente de
Murilo Rubião que unifica a sua obra.
Alterar o texto é também uma metamorfose, onde o texto multiplica-se e ao
mesmo tempo modifica. O desejo incessante de Murilo Rubião de reformular, que
considera seu texto sempre inacabado, é também uma condenação, um movimento
cíclico que retorna à origem ou a lugar nenhum. Segundo o crítico Davi Arrigucci, em
prefácio do livro O pirotécnico Zacarias (1974):
BIBLIOGRAFIA: