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Quando se fala em Ray Bradbury no Brasil, geralmente vem à memória do grande

público um mestre da ficção científica, o autor de Fahrenheit 451 (1953) — sua obra
mais famosa, sobre um mundo distópico em que livros são proibidos. Crônicas
Marcianas (1950) vem em seguida, explorando facetas de como seria a vida em Marte.
No dia 22 de agosto deste ano, Bradbury completaria seu centenário e, para destacar o
importante legado literário que o autor nos deixou, vale a pena lembrar um livro de
contos inquietante, atualmente raro nos sebos e esquecido pelas editoras brasileiras
desde a década de 1980: O País de Outubro.

Autor completaria um século de vida em agosto de 2020. (Foto: Reprodução/Internet)


Um dos escritores norte-americanos mais premiados de todos os tempos, Ray Bradbury
teve mais de 30 livros e 600 contos publicados, além de roteiros e poemas. O autor se
aventurou principalmente pela ficção científica, a fantasia e também o horror (apesar de
ser menos conhecido por esse último no Brasil). Recebeu prêmios de destaque, como
American Academy of Arts and Letters (1954), Daytime Emmy Award (1994),
Medalha Nacional de Artes (2004) e o Prêmio Pulitzer (2007).
Como veio de uma família com baixas condições sociais, Brabdury não pôde cursar
uma universidade, mas passou muito tempo dentro de bibliotecas, o que defendeu a vida
inteira, como em sua distopia Fahrenheit 451. O autor faleceu em 6 de junho de 2012,
aos 91 anos. Outras obras do autor, bastante conhecidas pelo mundo, são Algo Sinistro
Vem por Aí (1962), O Homem Ilustrado (1951) e Licor de Dente-de-leão (1957).
O país em que sempre é Outubro
Em 1947, Bradbury publicou Dark Carnival, seu primeiro livro, uma coletânea de 27
contos revisados que o escritor já havia publicado anteriormente em revistas. Em 1955,
O País de Outubro (The October Country) foi lançado, reunindo outra vez uma seleção
de 15 desses contos, incluindo mais quatro histórias inéditas que escreveu em 1954.
Poucos escritores conseguem, com maestria, revelar o belo no horrível, a sutileza no
grosseiro. Edgar Allan Poe é um dos principais deles, com sua sensibilidade perturbada
e brilhante. Não é à toa que inspira até hoje milhares de escritores pelo mundo, entre
eles, evidentemente, Ray Bradbury. Mas Bradbury detém uma qualidade única, que é a
de transformar a linguagem da poesia na prosa.
Nas 19 histórias curtas que compõem O país de outubro, o horror está misturado com a
fantasia, além dos toques de drama. Sua escrita é delicada e potente, com uma aura
misteriosa e nostálgica, que a torna essencialmente única. Narra os detalhes necessários,
aplica os adjetivos perfeitos, constrói uma atmosfera sombria e deliciosa de explorar,
beirando sonho e mistério. O ritmo das linhas é frenético, deixando aquela sensação de
frio na barriga, de curiosidade e de medo. É inquietante. Mas o grande tesouro do livro,
que perpassa as descrições, as imagens e o ritmo, está na linguagem carregada de poesia
e encantamento, como dito anteriormente.

“O País de Outubro” é uma antologia com 19 contos, quase desconhecida no Brasil.


(Fotos: Guilherme Pech/Beta Redação)
A começar pelo título, que já intriga. O “país” pode ser o território, o ambiente, e
Outubro remete ao clima correspondente àquela época do ano nos Estados Unidos —
dias curtos e noites longas e silenciosas, pessoas inquietas, a vegetação outonal — que,
misturados ao teor criativo e poético, soa como sombrio, fantasmagórico, instigante,
bonito e assustador. No Brasil, Agosto seria o mês ideal para representar a metáfora de
Outubro, levando em conta todos os agouros e crenças populares sobre tal período.
Na própria apresentação do livro, já são introduzidas essa ideia e a atmosfera dos
contos:
O País de Outubro…
… o país onde o ano está sempre chegando ao fim. O país onde as colinas são nevoeiros
e os rios são neblinas; onde os meios-dias passam rápidos, as sombras e os crepúsculos
se alongam, e as meias-noites permanecem. O país constituído, de um modo geral, de
porões, subporões, carvoeiras, sótãos e despensas que não fazem frente para o sol. O
país cujas pessoas são pessoas de outono, que pensam tão-somente pensamentos de
outono. Cujas pessoas, ao passarem à noite nos caminhos vazios, emitem ruídos de
chuva…
No livro O Zen e a Arte da Escrita, no qual Bradbury dá conselhos prolíficos sobre a
produção literária e conta sua trajetória como autor, está explicada essa ideia inspirada
em torno de Outubro, revelando como foi a construção de O Lago, um dos contos mais
emocionantes do livro. A trama narra a história de um homem que, antes de casar,
retorna com a noiva a uma praia que visitava na infância, na qual presenciou a morte
por afogamento de seu amor juvenil. Só que esse retorno mostra que o horror ainda não
acabou.
Bradbury detalha:
“Comecei a fazer notas curtas e descrições de amores e ódios. Em meus
vinte e um anos, perambulei pelas tardes de verão e meias-noites de
outubro, farejando que havia algo nas estações claras e escuras que
realmente era eu.
Finalmente encontrei esse algo numa tarde, aos vinte e dois anos.
Escrevi o título “O lago” na primeira página de uma história que terminou
sozinha duas horas depois. Duas horas depois de eu estar sentado diante de
minha máquina de escrever na varanda ao sol, com lágrimas pingando da
ponta do nariz e os pelos do pescoço arrepiados.
Por que os pelos arrepiados e o nariz escorrendo?
Percebi que, enfim, tinha escrito uma história realmente boa. A
primeira, em dez anos de escrita. E não apenas era uma boa história, como
também algo híbrido, algo beirando o novo. Não era apenas uma história de
fantasmas tradicional, mas uma história sobre amor, tempo, lembrança e
afogamento.”
De toda esta imaginação, surgiram essas que são legítimas obras-primas de suspense,
lançada no Brasil pela extinta editora Francisco Alves, em 1981, como o precursor da
famosa coleção Mestres do Horror e da Fantasia. Entre as narrativas, algumas, que
foram reproduzidas posteriormente em inúmeras antologias, merecem destaque:
O vento: Um escritor tem medo alucinante do vento, acreditando que os ventos do
mundo todo estão tentando matá-lo. Um dos contos mais curtos, que deixa o leitor como
se levasse um soco no estômago.

Lançado originalmente em 1955, o livro mistura horror, fantasia e drama, através de


uma linguagem poética e sensível. (Fotos: Guilherme Pech/Beta Redação)
O Emissário: Um menino deficiente físico explora o mundo por meio dos odores e
daquilo que vem agarrado no pelo de seu cão, que pode entrar e sair de sua casa. Certo
dia, o cão traz algo macabro para visitar o garoto. Esta história é uma das melhores e
mais instigantes da antologia, lembrando em alguns pontos o conto clássico de terror A
mão do macaco (1902), de W. W. Jacobs.
A Multidão: Um sujeito que sofre um acidente de carro começa a perceber algo estranho
na multidão que se aglomera ao redor de si, percebendo que essas pessoas estão
presentes em vários outros casos de acidente.
O Próximo da Fila: Um casal visita uma pequena cidade do México para conhecer um
cemitério bizarro, famoso pelas leis horríveis com o sepultamento de seus mortos. É
uma história extensa, com um final que ecoa na mente por tempos, baseada no caso das
Múmias de Guanajuato — uma coleção de corpos naturalmente mumificados, abrigados
em um museu no México.
No geral, os personagens encaram situações corriqueiras que, na visão de Bradbury,
adquirem elementos misteriosos e grotescos — como no caso de A multidão. Além
disso, há uma saciedade sombria no modo que as histórias se encerram. Inclusive, na
forma de abordar temas como a morte. Bradbury enquadra as frases essenciais,
sugerindo muito ao dizer pouco. Para compararmos, em Sombras da Noite (Night Shift,
1978), o primeiro de livro de contos de Stephen King, o terror é mais explícito, mais
pesado e sanguinolento. Em Bradbury, não. O foco está no suspense e na sugestão.

Nas histórias curtas que compõem a obra, o suspense é muito mais sugestivo do que
explícito, abrindo margens para a interpretação (Fotos: Guilherme Pech/Beta Redação)
As metáforas
Em 2001, durante um simpósio de escritores na Universidade de Point Loma Nazarene
(PLNU), em San Diego, Califórnia, Ray Bradbury transmitiu onze conselhos para
escritores novatos. Um deles ganha destaque: o uso de metáforas, uma figura de
linguagem muito utilizada por grandes escritores. Conforme Bradbury, a poesia e a
prosa dependem da qualidade e da variedade das metáforas contidas dentro delas.
O autor se considera, aliás, um “colecionador de metáforas”, ao invés de um romancista
nato. “Vocês precisam aprender a identificar metáforas e também a escrevê-las”,
explicou Bradbury, no evento, aos estudantes de literatura. O escritor iniciante deve, por
isso, ler muitas obras literárias clássicas, para ampliar os seus recursos, criar intimidade
com o sentido figurado e, então, combinar com seu repertório e suas experiências para
gerar novas metáforas na própria escrita.
Em O País de Outubro, as metáforas gritam nas páginas desde a capa. É um livro
essencialmente instigante por isso. Através da linguagem conotada, abre espaço para
múltiplas interpretações e significados. Além disso, por meio da fantasia, da ficção
científica, mas especialmente do bizarro, do grotesco, do repugnante e do macabro, isto
é, traços característicos da literatura de terror e horror, pode-se abordar temas
considerados como tabus ou proibidos, falar de medos inatos do ser humano. O toque da
poesia, como no caso desta obra, tempera as histórias (e suas metáforas) com delicadeza
e encanto.
Mesmo raro atualmente e desconhecido pelo grande público leitor, é bem provável que
O País de Outubro ainda se encontre empoeirado nas prateleiras de colecionadores do
gênero e de fãs do autor, enquanto as editoras brasileiras não o republicam. E mais
provável ainda: quem visitou este país, de sonho e mistério, certamente não se esqueceu
do que descobriu.

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