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Você é reconhecido, até mesmo por alguns dos membros da Academia Brasileira de
Letras, como um dos maiores conhecedores da obra de Machado de Assis. Sei que você
trabalhou como jornalista. E também em outras profissões. Poderia contar a sua
trajetória?
Não me formei em nenhum curso superior, mas na universidade da vida. Comecei a
vida profissional aos dezessete anos, como funcionário da Equitativa dos Estados
Unidos do Brasil, uma companhia de seguros fundada no tempo do império pelo conde
Afonso Celso. Fiquei lá dois anos, sonhando atrás de uma mesa, e começando a
conhecer alguma coisa sobre o ser humano, suas mesquinharias, seu egoísmo, o
exibicionismo que oculta um grande vazio interior. Quando saí, me tornei representante
comercial de laboratórios farmacêuticos. Foi um bom período, conheci todos os bairros
do Rio de Janeiro e as cidades da Baixada Fluminense. Era uma época tranquila, início
dos anos 1960. A violência apenas estava nascendo, com os primeiros assaltos a
caminhões de entrega. Nada de assustar. Eu vendia e fazia cobrança e por vezes recebia
boladas de dinheiro, mas andava de trem e ônibus com a maior serenidade. Em meados
da década de 1970, me tornei vendedor viajante. Primeiro, percorri os estados mais
próximos do Rio, São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais, que, na época, tinha 522
municípios. Estive em todos, na maioria deles apenas uma vez. Em outros, eu voltava
sempre. Eram as grandes praças: Belo Horizonte, Juiz de Fora, Governador Valadares,
nas quais havia um comércio forte e belas morenas para a gente namorar. Mais tarde,
me arrisquei pelos demais estados, do Rio Grande do Sul ao Pará. Conheci mais de
1.200 cidades. Sempre levando muitos livros para ler e comprando outros, por vezes
verdadeiras preciosidades. Viajei pelo Brasil durante quase dez anos, quando o interior
ainda era bem atrasado, com raras estradas asfaltadas. Viajar de ônibus era comer pó. A
exceção era São Paulo, com sua malha ferroviária, que cobria todo o estado. Dormi em
hotéis infectos, em cidades sem luz elétrica no qual o gerador era apagado às 22h,
apanhei muita carona com caminhoneiro. Assim, consegui aprender alguma coisa de
literatura e da vida.
Aos trinta e poucos anos, ingressei no Jornal do Brasil, como revisor e, dois anos mais
tarde, na Bloch Editores, como repórter que nunca fez uma reportagem, mas que se
tornou redator das revistas Fatos & Fotos e Ele & Ela. Trabalhei ainda na Rio Gráfica
Editora, do grupo Globo, e numa rádio carioca escrevendo noticiário. Detestei e saí
logo, passando a trabalhar para uma multinacional e agências de publicidade. Tomei
gosto pela profissão, na qual permaneci por mais de vinte anos.
Você se interessa pela maneira como Machado é ensinado nas escolas? As escolas são
responsáveis por criarem a imagem de um autor difícil? Chato?
Não estou a par da presença de Machado no ensino médio. Minha opinião de leigo no
assunto é pela adoção em sala de aula de autores contemporâneos, que falam a mesma
linguagem dos jovens em formação e expressam problemas, sonhos e frustrações de seu
dia a dia e, em forma mais abrangente, de nossa época. Isso cria uma identidade, que
pode ser o início de uma paixão para toda a vida. Acho Machado muito sofisticado para
quem está começando a ler literatura. Além disso, é um autor difícil para um iniciante
nas letras, exigindo certo preparo, experiência de leitura e, sobretudo, maturidade.
Para os escritores argentinos, Jorge Luis Borges é sempre uma referência. Seja na
obra de Ricardo Piglia, seja na obra de César Aira, para ficarmos só dois exemplos, o
diálogo com Borges é evidente. E no Brasil? Você acha que o mesmo acontece com
Machado em relação aos autores que vieram depois dele?
A situação é diferente. Borges, para os argentinos, mais do que um escritor, é um mito.
Como Perón e Evita. Símbolo sentimental, político e intelectual de uma época que ainda
inflama a alma do país. Machado está para a nossa literatura como Goethe para a
Alemanha e Shakespeare para a Inglaterra. Um semideus, mas, creio, mais exaltado do
que lido. É prova de bom gosto elogiá-lo. Mas não percebo um diálogo dele com os
escritores atuais.
Você tem algum livro de Machado que prefere? Qual leu mais vezes?
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Entre Dom Casmurro e Quincas Borba, meu coração balança. Quando estou lendo um,
considero-o o melhor de Machado. O mesmo acontece quando leio o outro. De vez em
quando gosto de fantasiar um relacionamento das personagens dos dois romances,
Capitu brincando com o cão Quincas Borba e Bentinho trocando figurinhas com
Rubião. Há ainda os contos. Já reli alguns dez, quinze, vinte vezes. Entre outros, “Missa
do Galo”, “Uns Braços”, “Primas de Sapucaia”, “Singular Ocorrência” e “A Senhora do
Galvão”, pouco valorizado pela crítica e do meu especial agrado.
Seu livro A Vida Literária no Brasil Durante o Romantismo parece ter uma forte
inspiração em Brito Broca. Ou não? Poderia contar sobre a feitura do livro?
A Vida Literária no Brasil Durante o Romantismo, meu livro mais ambicioso, se propõe
apresentar um aspecto da vida social do povo brasileiro entre as décadas de 1830 a
1870, através das manifestações da vida literária. A ideia original do trabalho pertence a
Brito Broca, que havia planejado um estudo da vida literária brasileira do período
colonial ao Modernismo. Escreveu apenas um volume: A Vida Literária no Brasil:
1900. Quando ele morreu, estava levantando material sobre o Romantismo. Tratei do
tema de maneira muito diversa do que ele faria. Agora, estou concluindo A Vida
Literária no Brasil Colônia.
Você traduziu e prefaciou Um Caso Tenebroso, de Balzac. Poderia falar deste trabalho
como tradutor e contar um pouco do seu interesse pelas outras literaturas?
A tradução de Um Caso Tenebroso foi encomendada pela Editora Francisco Alves.
Balzac é uma das minhas grandes admirações, ao lado de Machado, Stendhal, Thomas
Mann, Cervantes, Victor Hugo, Baudelaire, Manuel Bandeira, Drummond, Fernando
Pessoa, Mário de Sá Carneiro e uma fieira de poetas, românticos, como Fagundes
Varela, e posteriores, como Francisco Mangabeira e outras figuras secundárias, que me
lembram as leituras da mocidade e ainda hoje me seduzem... Nem só de pão de ló vive o
homem.
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Três verbetes