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Literatura Brasileira III AULA 1

Marta Célia Feitosa Bezerra


Socorro de Fatima Pacífico Barbosa
João Batista Pereira

INSTITUTO FEDERAL DE
EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
PARAÍBA

Ainda Machado de Assis:


Quincas Borba e a Ironia

1 OBJETIVOS DA APRENDIZAGEM

„„ Aprofundar o conhecimento sobre a Ironia machadiana;


„„ Reconhecer no romance Quincas Borba as estratégias
de publicação em A Estação e em livro;
„„ Analisar a ironia em Quincas Borba.
Ainda Machado de Assis: Quincas Borba e a Ironia

2 COMEÇANDO A HISTÓRIA

Como vimos na aula passada, Machado de Assis teve uma colaboração frutífera
e duradoura na Revista de moda A Estação. Além de contos e textos de gêneros
variados, inclusive, os dois contos que estudamos recentemente, o autor fluminense
publicou, entre 15 de junho de 1886 a 15 de setembro de 1891, o romance
Quincas Borba, nosso objeto de estudo a partir de agora. Durante mais de cinco
anos, precisamente, cinco anos e três meses, o romance machadiano dividiu as
páginas do Suplemento Literário da revista com propagandas de remédio para
dor de dente, pó de arroz, perfumarias, espartilhos entre outros produtos que
eram vendidos nas lojas afrancesadas da Rua do Ouvidor.

Caro aluno, vamos ao encontro de Quincas Borba nesta aula?

Figura 1 A Estação, 15 de março de 1889.

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3 TECENDO CONHECIMENTO

Vale destacar que a publicação do romance Quincas Borba no periódico não


foi regular. Durante o período em que circulou, passou por várias interrupções,
algumas até bem longas, mas, durante as edições em que a narrativa aparecia
sempre ocupou o mesmo lugar: abria a parte dedicada à literatura.

A questão da demora em publicar Quincas Borba, como também as interrupções


por que passou a publicação, levou a crítica a levantar várias hipóteses. Lúcia
Miguel Pereira (1998), estudiosa da produção do autor, desde o início do século
XX, defende a ideia de que Machado de Assis demorou na escrita do romance
em série, possivelmente, ou por falta de tempo, ou por falta de inspiração. Já
John Gledson (1986), britânico estudioso da produção de Machado, acredita
que a experiência de publicar Quincas Borba da mesma forma que publicou
Brás Cubas, não logrou êxito, devido às diferenças das duas narrativas quanto à
interação de personagens na relação com o personagem principal.

Gledson considera que o ponto de partida de Machado de Assis para a escrita de


Quincas Borba foi a crise pela qual o Império passou no final da década de 1860
e início de 1870. Para comprovar sua hipótese de leitura, o estudioso apresenta
datas e estabelece comparações entre a versão publicada na revista e a versão
publicada em livro.

No entanto, apesar de reconhecermos a importância desses pesquisadores


para a bibliografia machadiana, não corroboramos com essas justificativas.
Primeiro, quanto ao que alega Lúcia Miguel, falta de tempo ou de inspiração,
não descartamos o primeiro, tendo em vista que ele, durante o tempo em que
o romance circulou nas páginas da revista, colaborava assiduamente em outros
jornais. Além disso, trabalhava na Secretaria de Agricultura. Mas quanto à falta de
inspiração achamos pouco provável, visto que durante o período, o romancista
publicou contos antológicos nas páginas de A Gazeta de Notícias.

A outra hipótese, defendida por Crestani, de que o autor de Quincas Borba não
teria se adaptado ao pequeno espaço dado por A Estação também não nos
parece crível. Quando Machado começou a publicação do romance nas páginas
desse periódico, ele já colaborava para imprensa carioca há 32 anos e já havia
lançado três romances em rodapé de jornais, estava então muito acostumado
às condições de produção do seu tempo. É bastante relevante lembrar também
que ele já colaborava para A Estação há 7 anos, o autor estava, portanto, bem
acostumado ao espaço para narrativas que esse periódico lhe disponibilizava
(FARIAS, 2013, 169).
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Ainda Machado de Assis: Quincas Borba e a Ironia

Para Farias (2014), a resposta a essas questões estão no suporte em que Machado
de Assis publicou a narrativa. Como temos visto, A Estação era uma revista,
prioritariamente, dedicada à moda. No entanto, seu complemento literário
apresentava matérias variadas que não eram do interesse apenas do público
feminino. Então, devido à variedade de seções presentes no suplemento, Machado
teve muita dificuldade em saber para quem realmente estava escrevendo a
narrativa. Essa hipótese pode ser ainda melhor comprovada, levando em conta
o longo tempo que ele passou publicando o romance em fatias, e o curto
espaço de tempo que passou para a publicação em livro, apenas 30 dias. Sendo
assim, a pesquisadora afirma a hipótese de que Machado de Assis escreveu
simultaneamente duas narrativas: uma menos densa para circular na revista,
pensando então em um leitor menos habilidoso, e a outra mais densa pensando
no leitor do livro. As alterações presentes nas narrativas nos levam a ver essa
possibilidade como bastante crível.

Figura 2 A Estação, 15/01/1885.

3.1 A ironia na obra de Machado de Assis

Retomando a aula passada, vimos que a ironia é a chave para compreender


grande parte das narrativas de Machado de Assis. Vimos também que o narrador
é o grande responsável pela utilização, dimensão e empregos da ironia.

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Antes de iniciarmos uma apreciação sobre a ironia e o narrador de Quincas


Borba, façamos um pequeno resumo1 do romance que desde o seu título já
é uma grande ironia. Quincas Borba, na verdade, é um personagem de outro
romance de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas. É o nome de
um filósofo de Barbacena que morre e deixa a fortuna para Rubião, um professor
que tem como condição para receber a herança, cuidar do seu cachorro que
também se chama Quincas Borba. O dinheiro leva Rubião para o Rio de Janeiro
e na viagem ele conhece um casal, Cristiano Palha e Sofia, que rapidamente
percebe a possibilidade de se aproveitar da ingenuidade do professor. Palha
rapidamente percebe o interesse de Rubião pela mulher e a incentiva a iludi-lo
para que possam tirar vantagem da sua fortuna. Com efeito, Cristiano Palha dá
início a uma sociedade, a importadora Palha & Cia. A sociedade dá início a uma
tutela quando o marido de Sofia passa a administrar todos os bens e fortuna
do enamorado.

Esse triângulo amoroso ganha contornos de um quadrado quando entra em cena


Carlos Maria. O ciúme que Rubião sente do jovem e o início de sua demência
favorecem que o marido de Sofia se aproveite para ficar com a fortuna do mineiro.
Se antes, as investidas de Rubião era, anteriormente, alimentada por Sofia, aos
poucos ela vai se afastando dele, recusando seus convites.

Com a loucura, Rubião passa a se considerar Napoleão III e sua loucura é comentada
por toda a cidade. Fingindo preocupação, o casal se incube de cuidar dele e
Rubião é internado em um hospício, de onde ele foge com o cão para regressar
a Barbacena. Ignorado pelos moradores da cidade, ele morre no dia seguinte a
sua chegada, acreditando ser Napoleão III.

Segundo Peixoto (2014, p.1), “O narrador é o que há de mais importante em


qualquer narrativa. É ele quem dá as cartas ao leitor: pode mostrá-las todas
de uma vez, pouco a pouco, ou escondê-las durante todo o tempo que achar
necessário. Não podemos nada contra ele”. Quando se trata do narrador de
Machado de Assis, e do romance Quincas Borba, “o narrador faz questão de
mostrar-se, esmerando-se no artifício de tornar-se uma espécie de personagem
de sua própria narrativa”.

Com efeito, em várias passagens do romance é possível perceber que o narrador


tem características do que Norman Friedman chama “narrador onisciente intruso”.
Você lembra, caro estudante, que estudamos este tipo de narrador e as outras
categorias de Friedman na disciplina de Teoria Literária II?
1 O resumo não dispensa a leitura integral do romance. Procure na biblioteca da sua escola ou
acesse o site do Domínio Público para lê-la na íntegra. http://www.dominiopublico.gov.br/download/
texto/bv000243.pdf. Não esqueça de consultar os vocábulos mais difíceis e os nomes usados para
reforçar a Ironia.
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Ainda Machado de Assis: Quincas Borba e a Ironia

Segundo Lígia Chiappini Moraes Leite (1985,26), “este tipo de narrador tem a
liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima, por trás, adotando um ponto
de vista divino”. Para Leite, seu “traço característico é a intrusão, ou seja, seus
comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou
não estar entrosados com a história narrada” (1982, p. 27), tanto que a autora traz
como exemplo o romance ora estudado. Além do exemplo trazido por ela, há
inúmeros ao longo da narrativa. Tomemos como exemplo a passagem a seguir:
CAPÍTULO CVI

OU, MAIS PROPRIAMENTE, capítulo em que o leitor,


desorientado, não pode combinar as tristezas de Sofia com a
anedota do cocheiro. E pergunta confuso - Então a entrevista
da Rua da Harmonia Sofia, Carlos Maria, esse chocalho de
rimas sonoras e delinquentes é tudo calúnia? Calúnia do
leitor e do Rubião, não do pobre cocheiro que não proferiu
nomes, não chegou sequer a contar uma anedota verdadeira.
É o que terias visto, se lesses com pausa. Sim, desgraçado
adverte bem que era inverossímil que um homem, indo a
uma aventura daquelas, fizesse parar o tílburi diante da casa
pactuada. Seria pôr uma testemunha ao crime.

Observe que o narrador faz uma emenda entre o número do capítulo e o seu
conteúdo que inclui, como se observa na parte sublinhada, a reação do leitor,
desorientado com assuntos inconciliáveis. Do mesmo modo, ao afirmar que se
trata de um engano de Rubião o fato de ter compreendido e atribuído à história
contada pelo cocheiro a Sofia e Carlos Maria, ele demonstra que tão enganado
quanto Rubião estava o leitor, que confiou no encaminhamento que ele, narrador
deu à conversa.

Para Peixoto (2014, p. 01), o narrador é uma espécie de “narrador sádico e


perverso” que se intromete sistematicamente na narrativa para, entre outras
coisas, incomodar seu leitor”, sendo este o artifício preferido de Machado para
fazer com que esse leitor seja chamado e representado como um personagem
da narrativa. Esta postura reforça outra das características do narrador onisciente
intruso segundo a tipologia de Norman Friedman: “um narrador onisciente
intruso, um eu que tudo segue, tudo sabe, tudo comenta, analisa e comenta sem
nenhuma neutralidade. – De que lugar? Provavelmente de cima, dominando tudo
e todos, até mesmo puxando com pleno domínio as nossas reações de leitores
e driblando-nos o tempo todo” (LEITE, 1985, p. 29).

Do narrador emergem as imagens dos personagens e elas brotam fundadas pela


ironia: em relação ao estereótipo romântico da figura feminina e de seus valores,
ao pintar uma Sofia o faz muito longe desse ideal de mulher. Do mesmo modo,
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ao tratar do casamento, é possível perceber que esta instituição está longe do


ideal sagrado. Assim, em um mesmo trecho é possível observar a vaidade dela e
a do marido, que usava sua beleza como objeto de exibição, e de valor de troca.
Sobre Cristiano Palha, marido de Sofia, o narrador informa que:
CAPÍTULO XXXV

Ia muita vez ao teatro sem gostar dele, e a bailes, em que se


divertia um pouco,- mas ia menos por si que para aparecer
com os olhos da mulher, os olhos e os seios. Tinha essa
vaidade singular, decotava a mulher sempre que podia, e até
onde não podia, para mostrar aos outros as suas venturas
particulares. Era assim um rei Candaules2, mais restrito por
um lado, e, por outro, mais público. E aqui façamos justiça à
nossa dama. A princípio, cedeu sem vontade aos desejos do
marido; mas tais foram as admirações colhidas, e a tal ponto
o uso acomoda a gente às circunstâncias, que ela acabou
gostando de ser vista, muito vista, para recreio e estímulo
dos outros. Não a façamos mais santa do que é, nem menos.

Os dois exemplos demonstram a importância desse narrador onisciente intruso


para o efeito irônico. Há quem reconheça neste narrador as marcas de modernidade
de Machado de Assis. Roberto Schwarz (1990, p. 29) classifica este narrador como
“volúvel”, indigno de confiança, portanto, pois a “volubilidade é extrema, e o
constante desrespeito de alguma norma”. Esta é a marca do estilo de Machado
de Assis, mais acentuada nos escritos publicados após a década de 80. Digamos
que o autor desde os seus primeiros escritos aperfeiçoou este modo de narrar,
em tudo diferente dos seus contemporâneos.

Exercitando

Bem, agora é a sua vez. Leia o romance Quincas Borba, selecione um capítulo no
qual você possa identificar a ironia do narrador. Depois de identificada a ironia,
escreva um parágrafo comentando qual o propósito do narrador. Releia a análise
que fizemos para relembrar os efeitos de sentido que o seu uso possibilita ao leitor.

4 TROCANDO EM MIÚDOS

A produção de Machado de Assis é longa e variada. Foram inúmeras crônicas,


contos e vários romances, que tiveram majoritariamente o jornal e as revistas
2 Rei Candaules: rei que pediu ao criado Giges para observar a sua mulher nua. Giges se apaixonou
por sua esposa, assassinou-o e casou com ela. O narrador compara Cristiano com o rei porque,
como aquele, adorava expor a sua mulher ao olhar do outro. Veja, caro aluno, que se você
não souber sobre este rei, o trecho perde o sentido e a ironia usada para salientar o caráter
exibicionista de Palha.
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Ainda Machado de Assis: Quincas Borba e a Ironia

como suporte primeiro e principal. Podemos afirmar que os leitores e as leitoras


estiveram presentes em sua obra e em seu cotidiano de forma muito presente.

Vimos também que a ironia, sua marca mais notável de escrita, se revela,
sobretudo, pela figura do narrador. Um “narrador onisciente intruso”, que
confunde, desmascara e desrespeita o leitor e os sentidos que ele atribui ao
que está sendo lido.

Por fim, com relação ao romance Quincas Borba, observamos que Farias (2014)
defende a hipótese de que Machado de Assis escreveu simultaneamente duas
narrativas: uma menos densa para circular na revista, pensando então em um
leitor menos habilidoso, e a outra mais densa pensando no leitor do livro. As
alterações presentes nas narrativas nos levam a ver essa possibilidade como
bastante crível.

5 APROFUNDANDO SEU CONHECIMENTO

Sobre Quincas Borba, sugerimos que você


consulte a edição online de A Estação para
compreender as diferenças entre a publicação
em livro e aquela feita na revista.

Figura 3

Autor: Roberto Schwarz

Título: Um mestre na periferia do capitalismo

Editora: Duas Cidades

O livro de Roberto Schwarz, Um mestre na


periferia do capitalismo, é um clássico sobre a
ironia de Machado de Assis, principalmente a
do romance Memórias póstumas de Brás Cubas.
Figura 4

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6 AUTOAVALIANDO

„„ Reconheci a importância do suporte jornal para a obra de Machado de Assis?

„„ Compreendi que Quincas Borba apresenta as marcas de estilo do autor,


principalmente, a ironia?

„„ Revisei o que é o “narrador onisciente intruso” e percebi a sua contribuição


para a ironia na prosa de ficção do autor?

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Ainda Machado de Assis: Quincas Borba e a Ironia

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Domínio Público. Disponível em http://


www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000243.pdf

BARBOSA, Socorro de Fátima P.(org). Livros e periódicos nos séculos XVIII e


XIX. João Pessoa: Editora da UFPB, 2014, p..233-272.

CRESTANI, Jaison Luís. Machado de Assis no Jornal das Famílias. São Paulo:
Nankin Editorial, 2009.

FARIAS, Virna Lúcia Cunha de. Machado de Assis na imprensa do século XIX:
práticas, leituras e leitores. Tese e Doutorado, PPGL, UFPB, João Pessoa, 2013.

FARIAS, Virna Lúcia Cunha de. ‘Quincas Borba: duas histórias e vários leitores’. In:

GLEDSON, John. Ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1985.

PEIXOTO, Sérgio Alves. “O narrador machadiano: Quincas Borba”. Disponível


em http://www.letras.ufmg.br/cesp/textos/(1998)02-O%20narrador.pdf. Acesso
em 30/09/2014.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de


Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

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