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RESUMO DA OBRA:

A narração começa quando Bentinho, como era chamado na época, descobre que está apaixonado pela sua vizinha e
amiga de infância, Capitu. Sua mãe, Dona Glória, muito religiosa, havia prometido que se o filho nascesse com saúde,
faria dele padre. Assim, aos quinze anos, Bentinho se vê obrigado a partir para o seminário, apesar de saber que não
tem vocação e que está apaixonado. Quando começam a namorar, Capitu pensa em vários planos para livrar Bentinho
da promessa, com ajuda de José Dias, amigo que vive em casa de D. Glória. Nenhum deles funciona e o menino acaba
indo. Durante a sua ausência, Capitu aproveita para se aproximar de Dona Glória, se tornando cada vez mais
indispensável para a viúva. No seminário, o protagonista encontra um grande amigo e confidente, de quem se torna
inseparável: Escobar. Confessa ao companheiro o amor por Capitu e este o apoia, dizendo que também quer sair do
seminário e correr atrás da sua paixão: o comércio. Aos dezessete anos, Bentinho consegue sair do seminário e
começa a estudar direito, concluindo o bacharelato aos vinte e dois. Nessa altura, casa com Capitu e seu amigo
Escobar casa com Sancha, amiga de infância da noiva de Santiago. Os dois casais são muito unidos. O narrador tem
um filho com a mulher a quem dá o nome de Ezequiel. Escobar, que tinha o costume de nadar no mar todos os dias,
morre afogado. No velório, o protagonista percebe, através do olhar de Capitu, que ela estava apaixonada pelo seu
amigo. A partir daí, fica obcecado com a ideia, reparando em cada vez mais semelhanças entre Ezequiel e Escobar.
Pensa em matar a mulher e o filho, mas decide cometer o suicídio quando é interrompido por Ezequiel. Diz-lhe então
que ele não é seu filho e confronta Capitu, que nega tudo, ainda que reconheça as parecenças físicas entre o menino e
o falecido. É então que decidem se separar. Partem para a Europa onde Capitu fica morando com o filho, acabando por
morrer na Suíça. Santiago leva uma vida solitária, que lhe vale o nome de "Dom Casmurro" na vizinhança. Ezequiel,
já adulto, vai visitar Bentinho e confirma suas suspeitas: é praticamente igual a Escobar. Tempos depois, Ezequiel
morre, assim como todos os familiares e amigos de Santiago, ele fica sozinho e decide escrever o livro.

Capitu chamava-me às vezes bonito. Comecei a recordar o prazer que sentia quando ela me passava a mão pelos
cabelos, dizendo que os achava lindíssimos. Eu dizia que os dela eram muito mais lindos que os meus. Eu amava
Capitu! Capitu amava-me! Dirigi-me à casa de Capitu e a vi ao pé do muro fronteiro, riscando com um prego. Dei um
pulo e li estes dois nomes, abertos ao prego:
BENTO E CAPITOLINA
Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para outro, não
falamos nada. Demo-nos as mãos e não soltamos.
Tendo nascido morto o primeiro filho de minha mãe, pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo,
se fosse varão, metê-lo na Igreja. Talvez esperasse uma menina. Sentia terror de separar-se de mim, mas era tão
devota, tão temente a Deus... mamãe acabou por colocar-me no seminário e lá conheci um rapaz chamado Escobar,
esbelto, olhos claros, três anos mais velho que eu, filho de um advogado de Curitiba, aparentado com um comerciante
do RJ. Aos fins de semana eu retornava à casa de mamãe e acabei afeiçoando-me à vida nova. Alternava a casa e o
seminário, os padres gostavam de mim e os rapazes também. Aconteceu que, tempo depois, mamãe amanheceu
transtornada, pensando que morreria, e mandou-me buscar no seminário. Ao chegar, subi a escada trêmulo, debrucei-
me sobre a cama, apertando as mãos de minha mãe, que ardia em febre. Melhorando com a minha chegada, no dia
seguinte fui à igreja e ao sair vi uma moça e um homem parados. Era Sancha, amiga de colégio de Capitu, e o pai
Gurgel, queriam notícias de minha mãe. Disse-lhes que estava reestabelecida. Mais tarde, Escobar foi visitar-me a
saber da saúde de minha mãe. Ficou para o jantar, mas despediu-se logo depois; fui leva-lo à porta e esperamos juntos
o ônibus, nos despedimos com muito afeto.
-- Que amigo é esse? Perguntou alguém na janela. Era Capitu, que havia nos espreitado pela janela e agora abrira e
aparecera.
-- É Escobar.
Passou um cavaleiro montado num belo alazão e postura esbelta, viriam outros mais; todos iam às suas namoradas. O
cavaleiro voltou a cabeça para o nosso lado e olhou para Capitu ela para ele, o cavalo andava e a cabeça do homem
voltada para trás. Tal foi o ciúme que me mordeu que entrei depressa em casa e corri para o quarto, atirando-me à
cama; chorando e abafando os soluços com o lençol. Da cama ouvi a voz dela, que viera passar o resto da tarde com
minha mãe. Não saí do quarto. Capitu ria alto, falava alto, como se me avisasse, mas continuei surdo, a sós com meu
desprezo. A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no seu pescoço, enterrá-las bem até ver-lhe sair a vida com o
sangue.
Não ceei e dormi mal. Na manhã seguinte acordei com dor de cabeça e simulei estar pior, a fim de não ir ao seminário
e falar com Capitu. Ela podia estar zangada, podia não me querer mais e preferir o cavaleiro. Quis resolver tudo, ouvi-
la, julgá-la, podia ser que tivesse defesa e explicação. Quando soube da minha reclusão, disse-me que era grande a
injúria que lhe fazia; não podia crer que a julgasse tão volúvel e rompera-lhe lágrimas. Confessou-me que não
conhecia o rapaz e disse que, para evitar novos equívocos, deixaria de ir à janela.
-- Não! Não! Não! Não lhe peço isso!
Capitu retirou a promessa, mas fez outra. À primeira suspeita da minha parte, tudo estaria dissolvido entre nós. Aceitei
e jurei que nunca haveria de cumprir, era primeira suspeita e a última.
Naquele tempo senti necessidade de contar a alguém o que se passava entre mim e Capitu, e contei à Escobar. Este,
confessou-me que também não haveria de ser padre, que sua paixão era o comércio.
Em casa, durante minha ausência, Capitu estava sempre presente, minha mãe afeiçoou-se a ela, lá ela vivia horas
ouvindo, falando e cantando. No sábado, quando cheguei em casa, soube que Capitu estava na casa de Sancha.
-- Por que não vai lá vê-la? Capitu deveria ter voltado hoje para acabar um trabalho comigo, certamente a amiga
pediu-lhe que dormisse lá.
-- Talvez ficassem namorando. Insinuou prima Justina.
Não a matei por não ter à mão ferro nem corda, pistola nem punhal. No domingo, às onze, corri à casa de Sancha. O
pai, Gurgel, recebeu-me triste. A filha estava enferma, caíra na véspera com uma febre, que ia se agravando. Capitu
veio à porta da sala, disse ao pai que a filha o mandara chamar; trazia sinais de fadiga e comoção, mas tão depressa me
viu, ficou outra, mocinha de sempre. Ao retornar, Gurgel virou para um retrato de moça e perguntou-me se ela era
parecida com Capitu. Respondi que sim sem examinar a semelhança. Então ele disse que era o retrato de sua mulher,
que as pessoas que a conheceram diziam a mesma coisa. Na vida há dessas semelhanças assim, esquisitas.
Voltando para o seminário, contei tudo à Escobar, que teve a ideia:
-- Sua mãe fez promessa a Deu de lhe dar um sacerdote, certo? Pois bem, dê-lhe um sacerdote que não seja você. Ela
pode muito bem tomar a si algum mocinho órfão, fazê-lo ordenar à sua custa, está dado um padre ao altar, sem que
seja você. Consulte sobre o protonotário: ele dirá se não é a mesma coisa. Pelo lado econômico é a mesma coisa,
gastará com o órfão o mesmo que gastaria com você, afinal ele não precisará de grandes comodidades.
-- E saímos juntos - Disse ele - Vou melhorar meu latim e saio.
Agradeci a Escobar pelo plano brilhante, não poderia haver melhor. Minha mãe consultou o padre, que consultou o
bispo, e este disse que podia ser. Saí do seminário no fim do ano, tendo pouco mais de 17 anos. Aos 22 anos formei-
me em bacharel em direito. Minha mãe envelheceu, a mãe de Capitu falecera, o pai aposentou-se. Escobar começou a
negociar café. Travou relações com o pai de Sancha e estreitou as que já tinha com Capitu, serviu a nós dois como
amigo. Escobar acabou por se casar com Sancha. Casei-me com Capitu. Sancha e Capitu continuavam depois de
casadas a amizade da escola, Escobar e eu a do seminário. Ao fim de dois anos de casado, salvo o desgosto de não ter
um filho, tudo corria bem. Perdera meu sogro, mas a saúde de minha mãe era boa, a nossa excelente. Eu era advogado
de algumas casas ricas e os processos vinham chegando. As nossas relações de família estavam previamente feitas;
jantávamos com eles alguns domingos, outros eles conosco. Escobar e a mulher viviam felizes, tinham uma filhinha.
Certo tempo ouvi falar de uma aventura do marido, negócio de teatro, atriz ou bailarina, mas se aconteceu não deu
escândalo. Sancha era modesta e Escobar, trabalhador. Um dia, lastimando para meu amigo não ter um filho, replicou-
me:
-- homem, deixa lá. Deus o dará quando quiser, e se não der, é porque é melhor que fique no céu.
-- Uma criança, um filho é o complemento natural da vida.
-- Virá, se for necessário.
Não vinha. Capitu pedia-o em suas orações; igualmente eu. Minha esposa era poupada. Em certa ocasião, durante uma
lição de astronomia, fitou o mar com tal força e concentração que me deu ciúmes. Fiquei sério, tive o ímpeto de deixar
a sala, mas ao percebê-lo, Capitu confessou que estivera somando uns dinheiros. Contou-me que, pouco antes de
chegar, Escobar esteve em casa e fez os cálculos. Sobraram dez libras esterlinas do dinheiro que lhe dava
mensalmente. Quis guardar segredo a fim de fazer-me uma surpresa. Capitu era um anjo! Ainda assim, pedíamos a
Deus que matasse nossa sede por um filho, pedido atendido algum tempo depois. Batizamos o menino com o nome de
Ezequiel.
O filho cresceu com alegria e saúde e mesmo com ele e o passar dos anos, eu ainda permanecia atencioso com Capitu,
a tal ponto que o menor gesto me afligia. Cheguei a ter ciúmes de tudo e todos. Capitu era tudo e mais que tudo, não
vivia nem trabalhava que não fosse pensando nela. Só fui ao teatro sem ela duas vezes; um benefício de ator, e uma
estreia de ópera, a que ela não foi por ter adoecido, mas quis por força que eu fosse. Saí, mas voltei no fim do primeiro
ato. Encontrei Escobar à porta do corredor.
--Vinha falar-te, disse-me ele.
Expliquei-lhe que tinha saído para o teatro donde voltara receoso de Capitu, que ficara doente.
--Doente de quê? perguntou Escobar.
--Queixava-se da cabeça e do estômago.
--Então, vou-me embora. Vinha para aquele negócio dos embargos…
Eram uns embargos de terceiro; ocorrera um incidente importante, e, tendo ele jantado na cidade, não quis ir para casa
sem dizer-me o que era, mas já agora falaria depois...
--Não, falemos já, sobe; ela pode estar melhor. Se estiver pior, desces.
Capitu estava melhor e até boa. Confessou-me que apenas tivera uma dor de cabeça, mas agravara o padecimento para
que eu fosse divertir-me. Escobar sorriu e disse: --A cunhadinha está tão doente como você ou eu. Vamos aos
embargos.
Vivíamos a frequentar a casa um de outro, almoços, jantares... Escobar adquiriu o hábito de nadar todas as manhãs.
Um dia, ouvi passos apressados na escada, soou campainha, soaram palmas, golpes na cancela, vozes, acudi. Era um
escravo de Sancha que me chamava: -- Para ir lá... sinhô nadando, sinhô morrendo.
Eu não ouvi o resto. Vesti-me, deixei recado à Capitu e corri para a casa de Escobar. No caminho fui adivinhando a
verdade: ele meteu-se a nadar, arriscou-se um pouco mais, foi enrolado e morreu. As canoas que acudiram mal
puderam trazer o cadáver. Capitu fez companhia à Sancha, eu cuidei do enterro, que foi pomposo e com numerosos
amigos. Sancha quis despedir-se do marido. Muitos homens choravam, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a
viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela,
Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem
algumas lágrimas poucas e caladas... As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa,
olhando a furto para quem estava na sala. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da
viúva, sem o pranto nem palavras desta. Meses depois, um dia Capitu quis saber o que é que me fazia andar calado e
aborrecido, como insistiu, repliquei-lhe que os meus negócios andavam mal. Capitu sorriu. E que tinha que andassem
mal? Tornariam a andar bem e até lá as joias, os objetos de algum valor seriam vendidos, e iríamos residir em algum
beco. Respondi-lhe que não era preciso vender nada. Deixei-me estar calado e aborrecido. Ezequiel se assemelhava
mais ao falecido Escobar, nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo inteiro. Escobar vinha assim
surgindo da sepultura, do seminário para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, ou pedir-me à noite a bênção
do costume. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu jurava matá-los a ambos,
ora de golpe, ora devagar. Quando tornava a casa e via no alto da escada a criaturinha que me queria, ficava
desarmado e diferia o castigo de um dia para outro. Afastei-me de Capitu e sempre que Ezequiel vinha para nós
separava-nos ainda mais. Capitu propôs metê-lo em um colégio, donde só viesse aos sábados; custou muito ao menino
aceitar esta situação. O pequeno ia chorando e fazendo perguntas a cada passo, se voltaria para casa, e quando, e se eu
iria vê-lo... E lá o levei e deixei. Eu, a falar verdade, sentia agora uma aversão que mal podia disfarçar, tanto a ela
como aos outros. Certo dia comprei um veneno. Cheguei em casa e meti-me no gabinete. O meu plano foi esperar o
café, dissolver nele a droga e ingeri-la. O copeiro trouxe o café. Ergui-me, e fui para a mesa onde ficara a xícara.
Despejei a substância na xícara, e comecei a mexer o café. Quando ia beber, cogitei se não seria melhor esperar que
Capitu e o filho saíssem para a missa. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a mim bradando:
--Papai! papai!
Meu segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara café.
--Já, papai; vou à missa com mamãe.
--Toma outra xícara, meia xícara só.
--E papai?
--Eu mando vir mais; anda, bebe! Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei, mas
disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse... Mas não sei que senti que me fez recuar. Pus a
xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabeça do menino.
--Papai! papai! exclamava Ezequiel.
--Não, não, eu não sou teu pai!
Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu diante de mim, parecendo-me lívida. Capitu recompôs-se; disse
ao filho que saísse, e pediu-me que lhe explicasse…
--Não há que explicar, disse eu.
--Há tudo, não entendo as tuas lágrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre vocês?
--Não ouviu o que lhe disse?
Capitu respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Sem lhe contar o episódio do café, repeti-lhe as palavras do
final do capítulo.
--O quê? - perguntou ela como se ouvira mal.
--Que não é meu filho.
Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar
as primeiras testemunhas de vista do nosso foro. Assim, repeti as palavras ditas duas vezes com tal resolução que a
fizeram afrouxar. Após alguns instantes, disse-me ela:
--Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera; entretanto você que era tão zeloso dos menores gestos, nunca
revelou a menor sombra de desconfiança. Que é que lhe deu tal ideia? Diga
Continuou vendo que eu não respondia nada.
-- Diga tudo; depois do que ouvi, posso ouvir o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal convicção?
Ande, Bentinho, fale! fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.
--Há coisas que se não dizem.
--Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.
Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o porte não era de acusada. Pedi-lhe
ainda uma vez que não teimasse.
--Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a
nossa separação: não posso mais!
--A separação é coisa decidida. Era melhor que a fizéssemos por meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a
sua ferida. Uma vez, porém, que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer.
Não disse tudo; mas pude mencionar os amores de Escobar sem falar-lhe o nome. Capitu não pôde deixar de rir,
depois, em um tom juntamente irônico e melancólico:
--Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes! Sei a razão disto, é a casualidade da semelhança... A
vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural- apesar do seminário não acredita em Deus; eu creio..., mas não
falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada.
Estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina
de Ezequiel, gritando: "Mamãe! mamãe! É hora da missa!" restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu,
involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se
confissão pura. De boca não confessou nada, apenas repetiu as últimas palavras e saíram para a missa.
Ficando só, resolvi não beber do café. Tinha perdido o gosto à morte; eu acabava de achar outra, melhor, já que não
era definitiva, e dava possibilidade à justiça. Esperei o regresso de Capitu que disse-me, ao voltar da igreja, "ouvi
dentro de mim que a nossa separação é indispensável, e estou às suas ordens". Respondi-lhe que ia pensar, e faríamos
o que eu pensasse. Evocara as palavras do finado Gurgel, quando me mostrou na casa dele o retrato da mulher,
parecido com Capitu: "há tais semelhanças inexplicáveis"... De envolta, lembravam-me episódios vagos e remotos,
palavras, encontros e incidentes, tudo em que a minha cegueira não pôs malícia, e a que faltou o meu velho ciúme.
Uma vez em que os fui achar sozinhos e calados, um segredo que me fez rir, uma palavra dela sonhando, todas essas
reminiscências vieram vindo agora, em tal atropelo que me atordoaram... E por que os não esganei um dia? A
resolução foi irmos para a Europa, paramos na Suíça. Uma professora do Rio Grande, que foi conosco, ficou de
companhia a Capitu, ensinando a língua materna a Ezequiel, que aprenderia o resto nas escolas do país. Assim
regulada a vida, tornei ao Brasil. Anos depois, estando a vestir-me para almoçar, recebi um cartão com este nome:
EZEQUIEL A. DE SANTIAGO. Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala. Capitu morreu e
foi enterrada na Suíça. Ao entrar na sala, dei com um rapaz de costas, ouviu-me os passos, e voltou-se depressa.
Conhece-me pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e jovem
companheiro do seminário, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo e o mesmo rosto do meu amigo. As maneiras
eram diferentes, mas o aspecto geral reproduzia a pessoa morta. Era o próprio Escobar. Vestia luto pela mãe; eu
também estava de preto. Sentamo-nos.
--Papai não faz diferença dos últimos retratos, disse-me ele. A voz era a mesma de Escobar.
Comecei um interrogatório para ter menos que falar e dominar assim a minha emoção. Disse que a mãe falava muito
em mim, louvando-me extraordinariamente, como o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido. --
Morreu bonita – concluiu ele. --Vamos almoçar.
Se pensas que o almoço foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos de aborrecimento, é verdade; a princípio doeu-me
que Ezequiel não fosse realmente meu filho, que me não completasse e continuasse. Se o rapaz tem saído à mãe, eu
acabava crendo tudo, tanto mais facilmente.
--Papai ainda se lembra quando me levou para o colégio? perguntou rindo.
--Pois não hei de lembrar-me?
--Era na Lapa; eu ia desesperado, e papai não parava, dava-me cada puxão, e eu com as perninhas... Contou-me a vida
na Europa, os estudos, particularmente os de arqueologia, que era a sua paixão. Falava da antiguidade com amor,
contava o Egito e os seus milhares de séculos, sem se perder nos algarismos; tinha a cabeça aritmética do pai. Eu,
posto que a ideia da paternidade do outro me estivesse já familiar, não gostava da ressurreição. Às vezes, fechava os
olhos para não ver gestos nem nada, mas o diabrete falava e ria, e o defunto falava e ria por ele. Não havendo remédio
senão ficar com ele, fiz-me pai deveras. Sempre que voltava para casa, ao fim do dia; contava-me as recordações que
ia recebendo das ruas e das casas. Ao cabo de seis meses, Ezequiel falou-me em uma viagem à Grécia, Egito, e
Palestina, viagem científica, promessa feita a dois colegas da universidade, prometi-lhe recursos. Uma das
consequências dos amores furtivos do pai era pagar eu as arqueologias do filho... Onze meses depois, Ezequiel morreu
de uma febre tifo e foi enterrado nas imediações de Jerusalém, onde os dois amigos da universidade lhe levantaram
um túmulo com esta inscrição, tirada do profeta Ezequiel, em grego: "Tu eras perfeito nos teus caminhos." Mandaram-
me o texto, o desenho da sepultura e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o triplo para não tornar a vê-lo. Como
quisesse verificar o texto consultei a minha bíblia, achei, mas tinha ainda um complemento: "Tu eras perfeito nos teus
caminhos, desde o dia da tua criação." Parei e me perguntei: "Quando seria o dia da criação de Ezequiel?". Eis aí mais
um mistério para ajuntar aos tantos deste mundo. Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro. Encontrei no trem um
poeta que acabou recitando-me versos. Como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes. No dia seguinte
disse de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Contei aos amigos e eles, por graça, chamam-me
assim. Casmurro tem o sentido de homem calado, metido consigo.

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