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respondi com brevidade e sequidão. As dela eram submissas, sem ódio, aca-
so afetuosas, e para o fim saudosas; pedia-me que a fosse ver. Embarquei um
ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado.
Na volta, os que se lembravam dela, queriam notícias, e eu dava-lhas, como
se acabasse de viver com ela; naturalmente as viagens eram feitas com o
intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião. Um dia, finalmente...
C A PÍ T U LO C X L II
Uma santa
Entenda-se que, se nas viagens que fiz à Europa, José Dias não foi co-
migo, não é que lhe faltasse vontade; ficava de companhia a tio Cosme,
quase inválido, e a minha mãe, que envelheceu depressa. Também ele estava
velho, posto que rijo. Ia a bordo despedir-se de mim, e as palavras que me
dizia, os gestos de lenço, os próprios olhos que enxugava eram tais que me
comoviam também. A última vez não foi a bordo.
— Venha...
— Não posso.
— Está com medo?
— Não; não posso. Agora, adeus, Bentinho, não sei se me verá mais;
creio que vou para a outra Europa, a eterna...
Não foi logo; minha mãe embarcou primeiro. Procura no cemitério de S.
João Batista uma sepultura sem nome, com esta única indicação: Uma santa.
É aí. Fiz fazer essa inscrição com alguma dificuldade. O escultor achou-a
esquisita; o administrador do cemitério consultou o vigário da paróquia; este
ponderou-me que as santas estão no altar e no céu.
— Mas, perdão, atalhei, eu não quero dizer que naquela sepultura está
uma canonizada. A minha ideia é dar com tal palavra uma definição terrena
de todas as virtudes que a finada possuiu na vida. Tanto é assim que, sendo a
modéstia uma delas, desejo conservá-la póstuma, não lhe escrevendo o nome.
— Todavia, o nome, a filiação, as datas...
— Quem se importará com datas, filiação, nem nomes, depois que eu
acabar?
C A PÍ T U LO C X L III
O último superlativo
Não foi o último superlativo de José Dias. Outros teve que não vale a
pena escrever aqui, até que veio o último, o melhor deles, o mais doce, o
que lhe fez da morte um pedaço de vida. Já então morava comigo; posto que
minha mãe lhe deixasse uma pequena lembrança, veio dizer-me que, com
legado ou sem ele, não se separaria de mim. Talvez a esperança dele fosse
enterrar-me. Correspondia-se com Capitu, a quem pedia que lhe mandasse
o retrato de Ezequiel, mas Capitu ia adiando a remessa de correio a correio,
até que ele não pediu mais nada, a não ser o coração do jovem estudante;
pedi-lhe também que não deixasse de falar a Ezequiel no velho amigo do
pai e do avô, “destinado pelo céu a amar o mesmo sangue”. Era assim que
C A PÍ T U LO C X L I V
Uma pergunta tardia
Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que deixo
neste mundo, mas não é provável. Tenho-me feito esquecer. Moro longe e
saio pouco. Não é que haja efetivamente ligado as duas pontas da vida. Esta
casa do Engenho Novo, conquanto reproduza a de Matacavalos, apenas me
lembra aquela, e mais por efeito de comparação e de reflexão que de senti-
mento. Já disse isto mesmo.
Hão de perguntar-me por que razão, tendo a própria casa velha, na
mesma rua antiga, não impedi que a demolissem e vim reproduzi-la nesta.
A pergunta devia ser feita a princípio, mas aqui vai a resposta. A razão é que,
logo que minha mãe morreu, querendo ir para lá, fiz primeiro uma longa
visita de inspeção por alguns dias, e toda a casa me desconheceu. No quintal
a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o lavadouro, nada sabia
de mim. A casuarina era a mesma que eu deixara ao fundo, mas o tronco,
em vez de reto, como outrora, tinha agora um ar de ponto de interrogação;
naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando algum
pensamento que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem
começou a sussurrar alguma coisa que não entendi logo, e parece que era a
C A PÍ T U LO C X LV
O regresso
Ora, foi já nesta casa que um dia, estando a vestir-me para almoçar,
recebi um cartão com este nome:
EZEQUIEL A. DE SANTIAGO
— A pessoa está aí? perguntei ao criado.
— Sim, senhor; ficou esperando.
Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala. Só
depois é que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçá-lo,
falar-lhe na mãe. A mãe, — creio que ainda não disse que estava morta e
enterrada. Estava; lá repousa na velha Suíça. Acabei de vestir-me às pressas.
Quando saí do quarto, tomei ares de pai, um pai entre manso e crespo, me-
tade Dom Casmurro. Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, miran-
do o busto de Massinissa, pintado na parede. Vim cauteloso, e não fiz rumor.
Não obstante, ouviu-me os passos, e voltou-se depressa. Conheceu-me pelos
retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu
antigo e jovem companheiro do seminário de S. José, um pouco mais baixo,
menos cheio de corpo e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu
amigo. Trajava à moderna, naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o
aspecto geral reproduzia a pessoa morta. Era o próprio, o exato, o verdadeiro
Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pai. Vestia de luto pela mãe;
eu também estava de preto. Sentamo-nos.
— Papai não faz diferença dos últimos retratos, disse-me ele.
A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancesado. Expliquei-lhe
que realmente pouco diferia do que era, e comecei um interrogatório para
ter menos que falar e dominar assim a minha emoção. Mas isto mesmo dava
animação à cara dele, e o meu colega do seminário ia ressurgindo cada vez
C A PÍ T U LO C X LV I
Não houve lepra
Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam
velhas ou novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre tifoide,
e foi enterrado nas imediações de Jerusalém, onde os dois amigos da uni-
versidade lhe levantaram um túmulo com esta inscrição, tirada do profeta
Ezequiel, em grego: “Tu eras perfeito nos teus caminhos”. Mandaram-me am-
bos os textos, grego e latino, o desenho da sepultura, a conta das despesas
e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o triplo para não tornar a vê-lo.
C A PÍ T U LO C X LV II
A exposição retrospectiva
Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou
aí para um canto como uma flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou
descor. Vivi o melhor que pude sem me faltarem amigas que me consolas-
sem da primeira. Caprichos de pouca dura, é verdade. Elas é que me deixa-
vam como pessoas que assistem a uma exposição retrospectiva, e, ou se
fartam de vê-la, ou a luz da sala esmorece. Uma só dessas visitas tinha carro
à porta e cocheiro de libré. As outras iam modestamente, calcante pede, e, se
chovia, eu é que ia buscar um carro de praça, e as metia dentro, com grandes
despedidas, e maiores recomendações.
— Levas o catálogo?
— Levo; até amanhã.
— Até amanhã.
Não voltavam mais. Eu ficava à porta, esperando, ia até a esquina, es-
piava, consultava o relógio, e não via nada nem ninguém. Então, se aparecia
outra visita, dava-lhe o braço, entrávamos, mostrava-lhe as paisagens, os
quadros históricos ou de gênero, uma aquarela, um pastel, uma gouache, e
também esta cansava, e ia embora com o catálogo na mão...
C A PÍ T U LO C X LV III
E bem, e o resto?
Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esque-
cer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os
olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este