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Ao cabo de alguns meses, Capitu começara a escrever-me cartas, a que

respondi com brevidade e sequidão. As dela eram submissas, sem ódio, aca-
so afetuosas, e para o fim saudosas; pedia-me que a fosse ver. Embarquei um
ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado.
Na volta, os que se lembravam dela, queriam notícias, e eu dava-lhas, como
se acabasse de viver com ela; naturalmente as viagens eram feitas com o
intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião. Um dia, finalmente...

C A PÍ T U LO C X L II
Uma santa
Entenda-se que, se nas viagens que fiz à Europa, José Dias não foi co-
migo, não é que lhe faltasse vontade; ficava de companhia a tio Cosme,
quase inválido, e a minha mãe, que envelheceu depressa. Também ele estava
velho, posto que rijo. Ia a bordo despedir-se de mim, e as palavras que me
dizia, os gestos de lenço, os próprios olhos que enxugava eram tais que me
comoviam também. A última vez não foi a bordo.
— Venha...
— Não posso.
— Está com medo?
— Não; não posso. Agora, adeus, Bentinho, não sei se me verá mais;
creio que vou para a outra Europa, a eterna...
Não foi logo; minha mãe embarcou primeiro. Procura no cemitério de S.
João Batista uma sepultura sem nome, com esta única indicação: Uma santa.
É aí. Fiz fazer essa inscrição com alguma dificuldade. O escultor achou-a
esquisita; o administrador do cemitério consultou o vigário da paróquia; este
ponderou-me que as santas estão no altar e no céu.
— Mas, perdão, atalhei, eu não quero dizer que naquela sepultura está
uma canonizada. A minha ideia é dar com tal palavra uma definição terrena
de todas as virtudes que a finada possuiu na vida. Tanto é assim que, sendo a
modéstia uma delas, desejo conservá-la póstuma, não lhe escrevendo o nome.
— Todavia, o nome, a filiação, as datas...
— Quem se importará com datas, filiação, nem nomes, depois que eu
acabar?

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— Quer dizer que era uma santa senhora, não?
— Justamente. O Protonotário Cabral, se fosse vivo, confirmaria aqui o
que lhe digo.
— Nem eu contesto a verdade, hesito só na fórmula. Conheceu então o
protonotário?
— Conheci-o. Era um padre-modelo.
— Bom canonista, bom latinista, pio e caridoso, continuou o vigário.
— E possuía algumas prendas de sociedade, disse eu; lá em casa sempre
ouvi que era insigne parceiro ao gamão...
— Tinha muito bom dado! suspirou lentamente o vigário. Um dado de
mestre!
— Então, parece-lhe...?
— Uma vez que não há outro sentido, nem poderia havê-lo, sim, senhor,
admite-se...
José Dias assistiu a estas diligências com grande melancolia. No fim,
quando saímos, disse mal do padre, chamou-lhe meticuloso. Só lhe achava
desculpa por não ter conhecido minha mãe, nem ele nem os outros homens
do cemitério.
— Não a conheceram; se a conhecessem mandariam esculpir santíssima.

C A PÍ T U LO C X L III
O último superlativo
Não foi o último superlativo de José Dias. Outros teve que não vale a
pena escrever aqui, até que veio o último, o melhor deles, o mais doce, o
que lhe fez da morte um pedaço de vida. Já então morava comigo; posto que
minha mãe lhe deixasse uma pequena lembrança, veio dizer-me que, com
legado ou sem ele, não se separaria de mim. Talvez a esperança dele fosse
enterrar-me. Correspondia-se com Capitu, a quem pedia que lhe mandasse
o retrato de Ezequiel, mas Capitu ia adiando a remessa de correio a correio,
até que ele não pediu mais nada, a não ser o coração do jovem estudante;
pedi-lhe também que não deixasse de falar a Ezequiel no velho amigo do
pai e do avô, “destinado pelo céu a amar o mesmo sangue”. Era assim que

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ele preparava os cuidados da terceira geração; mas a morte veio antes de
Ezequiel. A doença foi rápida. Mandei chamar um médico homeopata.
— Não, Bentinho, disse ele; basta um alopata; em todas as escolas se
morre. De mais, foram ideias da mocidade, que o tempo levou; converto-me
à fé de meus pais. A alopatia é o catolicismo da medicina...
Morreu sereno, após uma agonia curta. Pouco antes ouviu que o céu
estava lindo, e pediu que abríssemos a janela.
— Não, o ar pode fazer-lhe mal.
— Que mal? Ar é vida.
Abrimos a janela. Realmente, estava um céu azul e claro. José Dias
soergueu-se e olhou para fora; após alguns instantes, deixou cair a cabeça,
murmurando: Lindíssimo! Foi a última palavra que proferiu neste mundo.
Pobre José Dias! Por que hei de negar que chorei por ele?

C A PÍ T U LO C X L I V
Uma pergunta tardia
Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que deixo
neste mundo, mas não é provável. Tenho-me feito esquecer. Moro longe e
saio pouco. Não é que haja efetivamente ligado as duas pontas da vida. Esta
casa do Engenho Novo, conquanto reproduza a de Matacavalos, apenas me
lembra aquela, e mais por efeito de comparação e de reflexão que de senti-
mento. Já disse isto mesmo.
Hão de perguntar-me por que razão, tendo a própria casa velha, na
mesma rua antiga, não impedi que a demolissem e vim reproduzi-la nesta.
A pergunta devia ser feita a princípio, mas aqui vai a resposta. A razão é que,
logo que minha mãe morreu, querendo ir para lá, fiz primeiro uma longa
visita de inspeção por alguns dias, e toda a casa me desconheceu. No quintal
a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o lavadouro, nada sabia
de mim. A casuarina era a mesma que eu deixara ao fundo, mas o tronco,
em vez de reto, como outrora, tinha agora um ar de ponto de interrogação;
naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando algum
pensamento que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem
começou a sussurrar alguma coisa que não entendi logo, e parece que era a

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cantiga das manhãs novas. Ao pé dessa música sonora e jovial, ouvi também
o grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e filosófica.
Tudo me era estranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais
tarde, quando vim para o Engenho Novo, lembrou-me fazer esta reprodução
por explicações que dei ao arquiteto, segundo contei em tempo.

C A PÍ T U LO C X LV
O regresso
Ora, foi já nesta casa que um dia, estando a vestir-me para almoçar,
recebi um cartão com este nome:
EZEQUIEL A. DE SANTIAGO
— A pessoa está aí? perguntei ao criado.
— Sim, senhor; ficou esperando.
Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala. Só
depois é que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçá-lo,
falar-lhe na mãe. A mãe, — creio que ainda não disse que estava morta e
enterrada. Estava; lá repousa na velha Suíça. Acabei de vestir-me às pressas.
Quando saí do quarto, tomei ares de pai, um pai entre manso e crespo, me-
tade Dom Casmurro. Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, miran-
do o busto de Massinissa, pintado na parede. Vim cauteloso, e não fiz rumor.
Não obstante, ouviu-me os passos, e voltou-se depressa. Conheceu-me pelos
retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu
antigo e jovem companheiro do seminário de S. José, um pouco mais baixo,
menos cheio de corpo e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu
amigo. Trajava à moderna, naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o
aspecto geral reproduzia a pessoa morta. Era o próprio, o exato, o verdadeiro
Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pai. Vestia de luto pela mãe;
eu também estava de preto. Sentamo-nos.
— Papai não faz diferença dos últimos retratos, disse-me ele.
A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancesado. Expliquei-lhe
que realmente pouco diferia do que era, e comecei um interrogatório para
ter menos que falar e dominar assim a minha emoção. Mas isto mesmo dava
animação à cara dele, e o meu colega do seminário ia ressurgindo cada vez

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mais do cemitério. Ei-lo aqui, diante de mim, com igual riso e maior respeito;
total, o mesmo obséquio e a mesma graça. Ansiava por ver-me. A mãe fala-
va muito em mim, louvando-me extraordinariamente, como o homem mais
puro do mundo, o mais digno de ser querido.
— Morreu bonita, concluiu.
— Vamos almoçar.
Se pensas que o almoço foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos de
aborrecimento, é verdade; a princípio doeu-me que Ezequiel não fosse real-
mente meu filho, que me não completasse e continuasse. Se o rapaz tem
saído à mãe, eu acabava crendo tudo, tanto mais facilmente quanto que ele
parecia haver-me deixado na véspera, evocava a meninice, cenas e palavras,
a ida para o colégio...
— Papai ainda se lembra quando me levou para o colégio? perguntou
rindo.
— Pois não hei de lembrar-me?
— Era na Lapa; eu ia desesperado, e papai não parava, dava-me cada
puxão, e eu com as perninhas... Sim, senhor, aceito.
Estendeu o copo ao vinho que eu lhe oferecia, bebeu um gole, e con-
tinuou a comer. Escobar comia assim também, com a cara metida no prato.
Contou-me a vida na Europa, os estudos, particularmente os de arqueo-
logia, que era a sua paixão. Falava da antiguidade com amor, contava o
Egito e os seus milhares de séculos, sem se perder nos algarismos; tinha
a cabeça aritmética do pai. Eu, posto que a ideia da paternidade do outro
me estivesse já familiar, não gostava da ressurreição. Às vezes, fechava os
olhos para não ver gestos nem nada, mas o diabrete falava e ria, e o defunto
falava e ria por ele.
Não havendo remédio senão ficar com ele, fiz-me pai deveras. A ideia de
que pudesse ter visto alguma fotografia de Escobar, que Capitu por descuido
levasse consigo, não me acudiu, nem, se acudisse, persistiria. Ezequiel cria
em mim, como na mãe. Se fosse vivo José Dias, acharia nele a minha pró-
pria pessoa. Prima Justina quis vê-lo, mas, estando enferma, pediu-me que o
levasse lá. Conhecia aquela parenta. Creio que o desejo de ver Ezequiel era
para o fim de verificar no moço o debuxo que porventura houvesse achado
no menino. Seria um regalo último; atalhei-o a tempo.

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— Está muito mal, disse eu a Ezequiel que queria ir vê-la, qualquer emoção
pode trazer-lhe a morte. Iremos vê-la, quando ficar melhor.
Não fomos; a morte levou-a dentro de poucos dias. Ela descansa no
Senhor ou como quer que seja. Ezequiel viu-lhe a cara no caixão e não a co-
nheceu, nem podia, tão outra a fizeram os anos e a morte. No caminho para
o cemitério, iam-lhe lembrando uma porção de coisas, alguma rua, alguma
torre, um trecho de praia, e era todo alegria. Assim acontecia sempre que
voltava para casa, ao fim do dia; contava-me as recordações que ia receben-
do das ruas e das casas. Admirava-se que muitas destas fossem as mesmas
que ele deixara, como se as casas morressem meninas.
Ao cabo de seis meses, Ezequiel falou-me em uma viagem à Grécia, ao
Egito, e à Palestina, viagem científica, promessa feita a alguns amigos.
— De que sexo? perguntei rindo.
Sorriu vexado, e respondeu-me que as mulheres eram criaturas tão da
moda e do dia que nunca haviam de entender uma ruína de trinta séculos.
Eram dois colegas da universidade. Prometi-lhe recursos, e dei-lhe logo os
primeiros dinheiros precisos. Comigo disse que uma das consequências dos
amores furtivos do pai era pagar eu as arqueologias do filho; antes lhe pa-
gasse a lepra... Quando esta ideia me atravessou o cérebro, senti-me tão
cruel e perverso que peguei no rapaz, e quis apertá-lo ao coração, mas re-
cuei; encarei-o depois, como se faz a um filho de verdade; os olhos que ele
me deitou foram ternos e agradecidos.

C A PÍ T U LO C X LV I
Não houve lepra
Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam
velhas ou novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre tifoide,
e foi enterrado nas imediações de Jerusalém, onde os dois amigos da uni-
versidade lhe levantaram um túmulo com esta inscrição, tirada do profeta
Ezequiel, em grego: “Tu eras perfeito nos teus caminhos”. Mandaram-me am-
bos os textos, grego e latino, o desenho da sepultura, a conta das despesas
e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o triplo para não tornar a vê-lo.

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Como quisesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, e achei que
era exato, mas tinha ainda um complemento: “Tu eras perfeito nos teus
caminhos, desde o dia da tua criação”. Parei e perguntei calado: “Quando
seria o dia da criação de Ezequiel?” Ninguém me respondeu. Eis aí mais um
mistério para ajuntar aos tantos deste mundo. Apesar de tudo, jantei bem
e fui ao teatro.

C A PÍ T U LO C X LV II
A exposição retrospectiva
Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou
aí para um canto como uma flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou
descor. Vivi o melhor que pude sem me faltarem amigas que me consolas-
sem da primeira. Caprichos de pouca dura, é verdade. Elas é que me deixa-
vam como pessoas que assistem a uma exposição retrospectiva, e, ou se
fartam de vê-la, ou a luz da sala esmorece. Uma só dessas visitas tinha carro
à porta e cocheiro de libré. As outras iam modestamente, calcante pede, e, se
chovia, eu é que ia buscar um carro de praça, e as metia dentro, com grandes
despedidas, e maiores recomendações.
— Levas o catálogo?
— Levo; até amanhã.
— Até amanhã.
Não voltavam mais. Eu ficava à porta, esperando, ia até a esquina, es-
piava, consultava o relógio, e não via nada nem ninguém. Então, se aparecia
outra visita, dava-lhe o braço, entrávamos, mostrava-lhe as paisagens, os
quadros históricos ou de gênero, uma aquarela, um pastel, uma gouache, e
também esta cansava, e ia embora com o catálogo na mão...

C A PÍ T U LO C X LV III
E bem, e o resto?
Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esque-
cer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os
olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este

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propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da praia da Glória
já estava dentro da de Matacavalos, ou se foi mudada naquela por efeito de
algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros
ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. I: “Não tenhas ciúmes de tua
mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender
de ti.” Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da
Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a
fruta dentro da casca.
E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das
sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu
maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino
que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos
à História dos Subúrbios.

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Dom Casmurro (1900), de Machado de
Assis, é uma das obras mundialmente Joaquim Maria Machado de Assis
célebres da literatura brasileira. (1839-1908), jornalista, funcionário
O romance trata das memórias público e escritor, foi um dos
do narrador-personagem Bento fundadores e o primeiro presidente
Santiago, o advogado recluso e da Academia Brasileira de Letras.
calado que recebe e adota o apelido Nasceu no Morro do Livramento (RJ),
mencionado no título da obra. filho de um pintor mulato e de uma
Essas recordações são a tentativa, lavadeira açoriana. Ficou órfão muito
na velhice, da recuperação de si cedo e, ainda na infância, apareceram
mesmo a partir das lembranças da os sintomas de sua frágil constituição
adolescência e juventude. Indireta nervosa: a epilepsia e a gaguez,
e gradualmente, o relato revela a causas de seu comportamento
transformação do jovem Bentinho no reservado e tímido.
velho e solitário Dom Casmurro, que Em sua fase de maturidade literária,
tenta justificar suas atitudes durante iniciada com a publicação de
a vida, num tom por vezes acusatório. Memórias póstumas de Brás Cubas
Com a sutileza que lhe é própria, (1881), o autor aprimorou a ironia
Machado de Assis explora as refinada e as sutilezas de composição
incongruências do fluxo psicológico que o tornaram inconfundível, com
desse personagem, cujas reações e suas fluidas digressões e a maneira
julgamentos deixam transparecer contida, mas contundente, de tratar o
insegurança e ciúme. A escolha caráter de seus personagens.
da narração em primeira pessoa Como autodidata, Machado
permite o flagrante de percepções e conquistou a vasta erudição que o
sugestões enviesadas, ocasionando consagrou na literatura e o permitiu
as ambiguidades que moldaram superar a ideologia das escolas
o mais famoso “narrador não literárias de seu tempo. Leitor
confiável” da nossa literatura. de muitos autores fora de moda,
sobretudo ingleses, o autor pode ser
visto como um integrante da chamada
“tradição luciânica”, sucessão de
escritores que cultivaram o estilo
sério-cômico desde a Antiguidade.

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