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Universidade Estadual do Ceará - Núcleo de Línguas

Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada

Curso de Especialização em Formação de Tradutores

Aluno: Francisco Heron Cavalcante Félix

TRADUÇÃO DO CONTO “THE SISTERS”, DE JAMES JOYCE


As irmãs

Desta vez não havia esperança para ele: era o terceiro ataque. Noite após noite eu
passara pela casa (estava de férias) e observara a moldura iluminada da janela: e noite
após noite eu a vira iluminada da mesma forma, débil e uniforme. Se ele tivesse
morrido, pensei, eu veria o reflexo de velas na cortina sombria, pois eu sabia que deve-
se dispor duas velas à cabeça de um morto. Ele me dissera várias vezes: “Não me resta
muito tempo neste mundo”, e eu julgara suas palavras indolentes. Agora sabia que
eram verdadeiras. Toda noite, quando contemplava a janela, eu sussurrava a palavra
paralisia. Sempre me soara de forma provocativa, como a palavra gnômon1 de Euclides
e a palavra simonia do Catecismo. Agora, no entanto, afigurava-se como uma criatura
malévola e pecaminosa. Eu estava tomado pelo medo mas, ainda assim, desejava
aproximar-me e admirar sua funesta atuação.

O velho Cotter estava sentado à lareira, fumando, quando eu desci para cear.
Enquanto minha tia servia-me mingau com a concha, ele disse, como que retomando
uma prévia análise:

- Não, eu não diria que ele estava precisamente... mas havia algo estranho... havia
algo inexplicável. Vou dizer o que acho...

Tomou seu cachimbo, baforando, sem dúvida preparando sua opinião. Que velho tolo
e enfadonho! De início, quando o conhecemos, ele era algo interessante, falando de
emanações e vermes2, mas eu logo cansei dele e de suas intermináveis histórias sobre
a destilaria.

“Tenho minha própria teoria sobre isso”, ele disse. “Acho que foi um desses... casos
peculiares... mas é difícil afirmar...”

Retomou as baforadas, sem nos expor sua teoria. Meu tio percebeu que eu o fitava e
me disse:

“Bom, você não gostará de saber, mas seu velho amigo se foi.”

1
Em grego significa “indicador”, “aquele que revela”. Parte componente de um relógio de sol,
geralmente vertical e orientada para o norte, indica o horário através da projeção de sua sombra – ou
seja, seu aspecto é definido pela luz. No livro de Euclides, “Elementos”, é retratado como um
paralelogramo do qual foi destacado um outro paralelogramo, congruente e menor, gerando uma figura
em formato de L – elementos, portanto, idênticos e complementares.
2
No original o autor utiliza os termos “faints” (numa tradução literal, “desmaio”, na verdade os últimos
resquícios da pasta utilizada no processo de destilação) e “worms” (em tradução literal “vermes”, tubos
de condensação espiralados, outra menção à atividade do velho Cotter). A polissemia é constantemente
explorada por Joyce, e aqui parece ajudar a compor a aura algo lúgubre e fantástica que introduz a
história – além de aludir a formas interessantes a uma criança de referir-se ao cotidiano de uma
destilaria.
“Quem?” disse eu.

“Padre Flynn3.”

“Ele morreu?”

“O senhor Cotter acabou de nos contar. Ele estava de passagem pela casa.”

Eu sabia que estava sendo observado, então continuei comendo como se a notícia não
me interessasse. Meu tio explicou ao velho Cotter.

“O menino e ele eram grandes amigos. O velho colega o ensinou bastante, quem diria;
e dizem que tinha planos para ele.”

“Deus tenha piedade de sua alma,” disse minha tia piamente.

O velho Cotter me observou por um instante. Senti que seus pequenos e


perscrutadores olhos negros me examinavam, mas eu não lhe daria a satisfação de
desviar o olhar de meu prato. Ele voltou a seu cachimbo e por fim cuspiu rudemente
na grade da lareira.

“Eu não gostaria que meus filhos,” ele disse, “tivessem muito contato com um homem
assim.”

“Como assim, senhor Cotter?” perguntou minha tia.

“Quero dizer,” disse o velho Cotter, “é ruim para as crianças. Eu vejo assim: deixem os
jovens correrem por aí e brincarem com outros jovens de sua idade, ao invés de...
estou certo, Jack?”

“É o que penso, também,” disse meu tio. “Ele que aprenda a se defender seu corner4. É
o que eu sempre tenho dito a esse rosacrucianista5 aqui: pratique exercícios. Ora,
quando garoto eu tomava um banho frio todas as manhãs, toda vida, inverno ou
verão. E trago isso comigo até hoje. Educação toda muito fina e abrangente... o sr.
Cotter pode querer um pouco da coxa do cordeiro,” acrescentou, para minha tia.

“Não, não, eu não”, disse o velho Cotter.

Minha tia trouxe o prato de dentro do estoque e o pôs na mesa.

“Mas por que o senhor acha que não é bom para crianças, Sr. Cotter?”, ela perguntou.

3
O sobrenome Flynn tem origem irlandesa e significa “corado”, alusão à cor vermelha.
4
Uma referência ao boxe, no sentido tanto de autodefesa quanto de autossuficiência.
5
O rosacrucianismo foi um movimento religioso e político conhecido, no século XVII, como hermético,
secreto e bastante polêmico na Europa, sendo aqui apresentado de forma pejorativa em relação ao
narrador. Tal referência salienta a reprovação em relação à relação do garoto com o padre,
excessivamente envolvido com superstições religiosas e afastado da família, dos seus pares, da vida
secular, enfim. Era tradição que um rosacrucianista, antes de morrer, iniciasse seu sucessor.
“É ruim para crianças”, disse o velho Cotter, “porque suas mentes são muito
influenciáveis. Quando crianças veem coisas assim, você sabe, há um impacto...”

Enchi a boca de mingau, temendo dar voz a minha ira. Que velho aborrecido, bêbado
imbecil!

Era tarde quando adormeci. Apesar de estar irritado com o velho Cotter por me tratar
como a uma criança, esforcei-me para extrair algum significado de seus comentários
inconclusos. Na escuridão de meu quarto eu imaginei ver outra vez a face cinza e
pesada do paralítico. Puxei o cobertor por sobre minha cabeça e tentei pensar no
natal. Mas a face cinza ainda me acompanhava. Ela murmurou, e compreendi que
desejava confessar algo. Senti minha alma afastando-se rumo a um lugar agradável e
corrompido; e lá eu a encontrei novamente, esperando por mim. Começou a
confessar-se para mim, sussurrando, eu me perguntava por que ela sorria
continuamente e por que os lábios estavam tão úmidos com saliva. Compreendi então
que ela havia morrido de paralisia e senti que também eu sorria debilmente, como que
para absolver o simoníaco de seu pecado.

Na manhã seguinte, após o café da manhã, desci para ver a pequena casa na rua Grã-
Bretanha. Era uma loja despretensiosa, registrada com o vago nome de Roupagem. A
roupagem consistia principalmente em sapatinhos para bebês e guarda-chuvas6
infantis; em dias comuns costumava-se pendurar um aviso na janela, dizendo: Guarda-
Chuvas Recuperados.7 Nenhum aviso era visível agora, pois os guarda-ventos estavam
fechados. Um buquê de papel crepom estava amarrado à aldrava com um laço de fita.

Duas mulheres pobres e um garoto do telégrafo8 estavam lendo o cartão cravado no


papel crepom. Também me aproximei e li:

1º de julho, 18959

Revmo. Sr. James Flynn (anteriormente da Igreja de Santa Catarina, na rua Meath),
sessenta e cinco anos de idade.

Descanse em Paz

Ler o cartão me persuadiu de que ele estava morto, e vi-me perturbado ao me


perceber em cheque. Se ele não houvesse morrido eu teria ido ao pequeno quarto

6
O vazio dos sapatos cria uma antítese frente ao celibato – e à esterilidade.
7
As palavras umbrella (guarda-chuva, possui raiz latina umbra, que significa sombra, palavra utilizada
pelos contemporâneos de Joyce para referir-se aos mortos) e re-covered trazem embuído em si o
sentido de negação de tal dogma (há a restauração das sombras, dos mortos, mas não a volta à vida, a
ressurreição).
8
Embora utilize originalmente a palavra telegram, o caráter de entregador do garoto parece estar ligado
ao popular e nacionalista jornal da época, The Evening Telegraph.
9
Trata-se do dia do Precioso Sangue de Jesus, no calendário litúrgico da igreja católica. O sangue, bem
como sua cor e seu significado remitente, é marca constante neste conto.
escuro por trás da loja e o encontraria sentado em sua poltrona à lareira, quase
sufocado em seu capote. Talvez minha tia me entregasse um pacote de High Toast10
para dar a ele, e esse presente o despertasse de seu pasmoso repouso. Sempre era eu
quem esvaziava o pacote em sua tabaqueira escura, pois suas mãos tremiam
demasiado para que fosse capaz de fazê-lo sem verter o rapé pelo chão. Mesmo
enquanto levava sua grande e trêmula mão a seu nariz pequenas nuvens de fumaça
fluíam de seus dedos por sobre a frente de seu casaco. Talvez houvesse sido esses
constantes borrifos de rapé que tivessem dado a suas antigas vestes episcopais um
aspecto desbotado e esverdeado, pois o lenço de bolso vermelho, enegrecido como
sempre fora, com manchas de rapé de uma semana11, com o qual ele tentava espanar
os grãos caídos, era realmente ineficaz.

Eu queria entrar e vê-lo, mas não tive coragem de bater. Afastei-me vagarosamente
pelo lado ensolarado da rua, lendo todos os chamativos anúncios das vitrines das lojas
enquanto caminhava. Achei estranho que nem eu nem o dia parecêssemos em clima
de pesar; senti-me até mesmo incomodado ao descobrir em mim uma sensação de
liberdade, como se houvesse sido liberto de algo através de sua morte. Fiquei perplexo
com isso pois, como meu tio havia dito a noite passada, ele me ensinara bastante. Ele
estudara na Universidade Irlandesa em Roma12 e havia me ensinado a pronunciar latim
corretamente. Havia me contado histórias sobre as catacumbas e sobre Napoleão
Bonaparte, e me explicara o significado das diferentes cerimônias da missa e das
diversas vestimentas usadas pelo sacerdote. Por vezes divertia-se propondo-me
questões difíceis, perguntando-me o que se deveria fazer em determinadas
circunstâncias ou se este ou aquele pecado era mortal, venial ou mera imperfeição.

Suas questões mostraram-me quão complexas e misteriosas eram certos institutos da


Igreja que eu sempre considerara como atos dos mais simples. Os deveres do
sacerdote em relação à Eucaristia e em relação ao sigilo confessional me pareciam tão
austeros que eu imaginava como alguém pudera encontrar em si a coragem para
encarregar-se deles; não fiquei surpreso quando ele me disse que os padres da Igreja
haviam escrito livros tão espessos quanto a listagem do edifício dos Correios13 e com
impressos tão diminutos quanto os avisos judiciários no jornal, elucidando todas essas
questões intrincadas. Geralmente, quando pensava nessas coisas, eu não conseguia
dar resposta alguma, ou apenas uma bastante insensata e hesitante, à qual ele
costumava sorrir e menear a cabeça duas ou três vezes. Por vezes ele me punha à
prova com as respostas da Missa que me fizera decorar; e, enquanto eu dedilhava, ele
sorria pensativamente e meneava a cabeça, vez por outra pondo grandes pitadas de

10
Uma conhecida marca irlandesa de rapé.
11
O garoto levava semanalmente um pacote ao padre, levando o rapé a sua face, tal qual um sacerdote
levaria a hóstia a um enfermo.
12
Um sinal de precocidade, pois apenas o melhores seminaristas eram enviados a Roma.
13
O prédio do General Post Office era um importante referencial arquitetônico, político e simbológico
de Dublin, construído pelo Império Britânico.
rapé em cada narina alternadamente. Quando sorria ele costumava exibir seus dentes
grandes e descoloridos e pôr sua língua sobre o lábio inferior – um hábito que me
incomodava quando começamos a nos aproximar, antes que eu o conhecesse
melhor14.

Enquanto eu caminhava ao sol recordei as palavras do velho Cotter e tentei lembrar o


que acontecia em seguida no sonho. Lembrei que havia percebido longas cortinas de
veludo e um lustre15 oscilante de estilo antiquado. Senti como se houvesse estado
muito distante, em alguma região onde os costumes fossem estranhos – na Pérsia,
pensei...

Mas não pude lembrar o final do sonho.

Ao final do dia minha tia me levou para visitar a casa de luto.16 O sol já se pusera, mas
os painéis de vidro das janelas voltadas para o oeste refletiam o castanho17 dourado de
uma massa de nuvens18. Nannie19 nos recebeu no vestíbulo e, como seria impróprio
saudá-la com um brado, minha tia apenas apertou-lhe a mão. A velha apontou para
cima interrogativamente e, após a anuência de minha tia, começou a subir
penosamente a escada estreita a nossa frente, sua cabeça curvada mal ultrapassando
a balaustrada. No primeiro patamar ela parou e acenou para que prosseguíssemos,
encorajando-nos em direção à porta aberta do quarto do morto. Minha tia entrou e a
velha, percebendo que eu hesitava, começou a acenar de novo, repetidamente.

Entrei na ponta dos pés. O aposento por trás do bordado da cortina estava inundado
em uma enevoada luz dourada na qual as velas pareciam chamas tênues e delicadas.
Ele havia sido posto em um caixão. Nannie tomou a frente e nós três nos ajoelhamos
aos pés da cama20. Fingi orar, mas não consegui me concentrar, pois os murmúrios da
velha me distraíam. Percebi como sua saia estava desajeitadamente acolchetada por
trás e como os calcanhares de suas botinas de tecido estavam totalmente gastos de
um lado. Veio-me a impressão de que, de dentro de seu caixão, o sacerdote sorria.

Mas não. Quando nos erguemos e fomos à cabeceira da cama vi que ele não estava
sorrindo. Lá estava ele, solene e copioso, trajado como que para o altar, suas grandes

14
Alusão a um efeito inicial do quadro de paralisia do padre.
15
Uma referência à santa ceia, cuja câmara – o cenáculo – tinha, segundo a tradição católica, sobre a
mesa um lustre, objeto que revestiu-se de forte significado. É, portanto, mais uma alusão à eucaristia.
16
Referência ao livro Eclesiastes, da bíblia, que trata de vaidade e de amizade. Observa-se o uso da
expressão em Ec 7:2-4: “Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, porque
naquela está o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração. [...] O coração dos sábios
está na casa do luto, mas o coração dos tolos na casa da alegria.”
17
No original tawny, um tipo de vinho de tom acastanhado e de amadurecimento precoce.
18
A nuvem é um símbolo recorrente da presença da divindade na bíblia, direta ou indiretamente.
19
Em inglês uma referência a babá (nanny), tem origem de Hannah (hebreu), uma personagem bíblica
estéril que recebe um filho de deus e em troca o entrega ao templo, para que siga a vida eclesiástica.
20
O quadro descrito corresponde a um tradicional ritual irlandês de velar os mortos, curiosamente
denominado wake (despertar).
mãos despojadamente abrigando um cálice. Seu rosto estava muito truculento, cinza e
enorme, com as narinas cavernosas, enegrecidas e circundadas por uma rala pelugem
branca. Havia um odor carregado no aposento – as flores.

Fizemos o sinal-da-cruz e nos retiramos. No pequeno cômodo no andar de baixo


encontramos Eliza21 sentada na poltrona dele, aflita. Eu fui tateando até minha cadeira
habitual no canto enquanto Nannie foi ao aparador e trouxe um decanter22 de xerez23
e algumas taças de vinho. Ela os pôs sobre a mesa e nos convidou a tomar uma
pequena taça de vinho. Então, obedecendo à irmã, verteu o xerez nas taças e as
passou a nós. Ela me impeliu a também pegar alguns biscoitos, mas eu declinei,
achando que faria muito barulho ao comê-los.24 Pareceu-me algo desapontada com
minha recusa e retornou impassivelmente ao sofá, onde sentou, por trás da irmã.
Ninguém falou; todos contemplamos a lareira vazia.

Minha tia esperou até que Eliza suspirasse e disse:

“Ah, bem, ele foi para um mundo melhor.”

Eliza suspirou novamente e assentiu, curvando a cabeça. Minha tia segurou a haste de
sua taça de vinho com os dedos antes de degustar um pouco.

“Ele foi... tranquilamente?” ela perguntou.

“Oh, bastante tranquilamente, senhora,” disse Eliza. “Não se podia dizer quando foi o
último fôlego dele. Ele teve uma belíssima morte, Deus seja louvado.”

“E tudo...?”

“O padre O’Rourke25 esteve com ele na terça-feira e o ungiu, preparou-o e tudo mais.

“Então ele sabia?”

“Ele estava bastante resignado,” disse minha tia.

“Foi o que a mulher que trouxemos para lavar ele disse. Ela disse que ele aparentava
estar dormindo; parecia assim, em paz e resignado. Quem diria que ele daria um
morto tão bonito.”

21
Derivado de Elizabeth (em inglês), personagem bíblico Isabel (em português), prima de Maria, uma
mulher estéril que recebe um filho de deus, futuramente o predecessor do messias. De fato a ação
ocorre, segundo o calendário litúrgico da época, no dia da Festa da Visitação, quando Maria visitou sua
prima – estando ambas grávidas.
22
Garrafa de cristal ou vidro com forma peculiar e própria para servir vinhos, tem o propósito de arejá-
los e decantar suas impurezas.
23
Tipo de vinho forte e licoroso, proveniente da Espanha. Curiosamente, no processo de fortificação nas
adegas, considera-se que um vasilhame marcado por três vezes (em inglês, “a third stroke”, em
tradução direta “um terceiro ataque”) desenvolveu-se mal e deve ser destilado.
24
Os irlandeses dizem, coloquialmente, que “muito barulho acordará os mortos”.
25
Uma tradicional família irlandesa de ascendência gaulesa, outrora real.
“Sim, de fato,” disse minha tia.

Ela degustou um pouco mais de sua taça e falou:

“Bem, senhorita Flynn, de qualquer forma deve ser de grande conforto para você
saber que fez tudo que pôde. Ambas foram muito gentis com ele, devo dizer.”

Eliza desenrugou seu vestido sob os joelhos.

“Ah, pobre James!” disse ela. “Deus sabe que nós fizemos tudo que pudemos, pobres
como somos – não podíamos ver ele querendo nada enquanto estava assim.”

Nannie havia recostado a cabeça na almofada do sofá e parecia prestes a dormir.

“Vejam a pobre Nannie,” disse Eliza, olhando para ela, “ela está exausta. Todo o
trabalho que ela teve, ela e eu, trazendo a mulher para lavar ele e então aprontando
ele e aí o caixão e então a preparação para a missa na capela. Não fosse o padre
O’Rourke não sei o que faríamos mesmo. Ele que nos trouxe todas aquelas flores e
aqueles castiçais para fora da capela e escreveu o aviso para o Freeman’s General26 e
tomou de conta de todos os papéis para o cemitério e para o seguro do pobre James.”

“Não foi gentil da parte dele?” disse minha tia.

Eliza fechou os olhos e balançou a cabeça lentamente.

“Ah, não há amigos como os velhos amigos,” ela disse, “quando tudo está dito e feito,
não há amigos em que um corpo possa confiar.”

“De fato, é verdade,” falou minha tia. “E estou certa que, agora que ele se foi para sua
recompensa eterna, não esquecerá vocês e sua gentileza para com ele.”

“Ah, pobre James!”, disse Eliza. “Ele não dava muito trabalho para nós. Você não o
ouvia na casa mais do que agora. Ainda assim, eu sei que ele se foi, e tudo por causa...”

“Quando tudo estiver terminado é que você sentirá falta dele,” disse minha ta.

“Eu sei disso,” disse Eliza. “Eu não vou mais trazer para ele sua xícara de extrato de
carne, nem eu nem você, mandando o rapé dele. Ah, pobre James!”

Ela parou, como se estivesse em comunhão com o passado, e então falou


matreiramente:

26
Na verdade trata-se do notório jornal irlandês Freeman’s Journal, de cunho nacionalista e o mais
popular à época. O nome aparece de forma diferente devido à inabilidade da mulher com as palavras
(perceptível também pelo malapropismo recorrente).
“Vejam vocês, eu percebi que havia alguma coisa esquisita com ele ultimadamente.
Toda vez que eu trazia sua sopa para ele eu o encontrava com seu breviário caído no
chão, prostrado na cadeira e sua boca aberta.”

Pôs um dedo sobre o nariz, franzindo as sobrancelhas, e continuou:

“Mas parado e tudo mais ele ficava dizendo que antes que o verão terminasse ele
sairia um belo dia para um passeio de carro só para ver de novo a velha casa onde nós
todos nascemos, em Irishtown27, e levaria Nannie e eu com ele. Se nós conseguíssemos
uma daquelas carruagens novas, a última moda, que não fazem barulho que o padre
O’Rourke falou para ele, aquelas com rodas reumáticas, para o dia mais barato28 – ele
disse ao John Rush29, bem ali, e levaria nós três juntos numa noite de domingo. Ele só
pensava nisso... pobre James!”

“Que o Senhor tenha piedade de sua alma!” disse minha tia.

Eliza sacou seu lenço e enxugou seu olhos. Então o pôs de volta no bolso e contemplou
a grade vazia por algum tempo sem falar.

“Ele era sempre muito escrupuloso,” ela disse. “Os deveres do sacerdócio foram
demais para ele. E então a vida dele foi, pode-se dizer, sacrificada30.”

“Sim,” disse minha tia. “Ele era um homem frustrado. Podia-se ver isso.”

Um silêncio dominou o pequeno cômodo e, aproveitando-me dele, aproximei-me da


mesa, provei meu xerez e retornei discretamente a minha cadeira no canto. Eliza
parecia ter mergulhado em um profundo alheamento. Esperamos respeitosamente
que ela quebrasse o silêncio, e após uma longa pausa ela falou vagarosamente:

“Foi o cálice que ele quebrou... ali começou tudo. Claro, disseram que estava tudo
bem, quer dizer, ele não continha nada. Ainda assim... disseram que foi culpa do
garoto. Mas o pobre James ficou tão nervoso, Deus seja piedoso com ele!”

“E então foi isso?”, falou minha tia. “Eu soube de algo...”

Eliza anuiu.

“Isso afetou a mente dele”, ela disse. “Depois disso ele começou a lamentar-se
consigo, falando e perambulando sozinho. Então uma noite foram buscá-lo para

27
Um distrito de Dublin, localizado na periferia de sua muralha medieval, formado em meados do século
XV por habitantes gauleses expulsos da cidade pelos ingleses.
28
Uma referência elíptica ao que o pastor batista Adam Clayton Powell denominou à época “graça
barata” (o autor utilizou a expressão day cheap), uma postura permissiva por parte de religiosos em
relação ao comportamento dos fiéis, também associada ao perdão dado sem que se exigisse mudança,
arrependimento ou mesmo confissão – uma modalidade de simonia.
29
Sobrenome comum, significa “ruivo”.
30
No original, crossed, significando tanto interrompida quanto crucificada.
atender a um chamado e não conseguiram encontrá-lo em lugar algum. Procuraram
nos lugares mais altos e nos mais baixos; ainda assim não viram sinal algum dele. Então
o sacristão sugeriu tentarem a capela. Então pegaram as chaves e abriram a capela e o
sacristão, o padre O’Rourke e um outro padre que estava por ali trouxeram uma luz
para procurar por ele... e quem diria que lá estaria ele, sentado sozinho na escuridão
do seu confessionário, bastante desperto e rindo baixinho?”

Ela parou bruscamente, pondo-se a ouvir. Eu também me pus a ouvir, mas não havia
som algum na casa – e eu sabia que o velho padre estava deitado, imóvel em seu
caixão, como o havíamos visto, solene e truculento na morte, um cálice inútil sobre
seu peito.

Eliza prosseguiu:

“Bastante desperto e rindo baixinho... então, é claro, quando viram isso, isso fez eles
pensarem que havia algo de errado com ele...”

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