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Dom Casmurro

Machado de Assis

CAPÍTULO PRIMEIRO / DO TÍTULO

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei


num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de
vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim,
falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A
viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem
inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado,
fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele
interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

-- Continue, disse eu acordando.

-- Já acabei, murmurou ele.

-- São muito bonitos.

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não
passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de
mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os
vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados,
deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei.
Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-
me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar
com você."--"Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma
da Renania; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá
passar uns quinze dias comigo."--"Meu caro Dom Casmurro, não
cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na
cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe
dou moça." Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no
sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem
calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me
fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei
melhor título para a minha narração - se não tiver outro daqui até
ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará
sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo
o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas
terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.

CAPÍTULO II/ DO LIVRO

Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso,


porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão. Vivo só,
com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de
propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-
lo, mas vá lá. Um dia. há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no
Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-
cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra,
que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as
indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas
de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na
principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos
igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as
tomam nos blocos, de espaço a espaço.

Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das


paredes os medalhões de César,Augusto, Nero e Massinissa, com os
nomes por baixo... Não alcanço a razão de tais personagens.
Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, já ela estava assim
decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto de o
tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas
americanas. O mais é também análogo e parecido. Tenho
chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro.
Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há
aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a
exterior, que é ruidosa. O meu fim evidente era atar as duas pontas
da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não
consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é
igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um
homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais
falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal
comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos
cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas
autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse
vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os
documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são
de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos
campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos,
outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três
fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita
vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa.
Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior, é outra cousa a
certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos
encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito
espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma
recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos
falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar
e ler; como bem e não durmo mal. Ora, como tudo cansa, esta
monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-
me escrever um livro. Jurisprudência. filosofia e política acudiram-
me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em
fazer uma "História dos Subúrbios" menos seca que as memórias do
Padre Luís Gonçalves dos Santos relativas à cidade; era obra
modesta, mas exigia documentos e datas como preliminares, tudo
árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes
entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não
alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e
contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras
viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do
Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?... Fiquei tão alegre
com esta idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim,
Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a
fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar
ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo,
viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior
tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de
novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores,
e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais
entender, lendo.

CAPÍTULO III/ A DENÚNCIA

Ia entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e


escondi-me atrás da porta. A casa era a da Rua de Mata-cavalos, o
mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de
trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não
amam histórias velhas; o ano era de 1857.

--D. Glória, a senhora persiste na idéia de meter o nosso Bentinho


no seminário? É mais que tempo,

e já agora pode haver uma dificuldade.

--Que dificuldade?

--Uma grande dificuldade.

Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns
instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor;
não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade
estava na casa ao pé, a gente do Pádua.

--A gente do Pádua?

--Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia.
Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos
cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se
eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-
los.

--Não acho. Metidos nos cantos?

--É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho


quase que não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz
que não vê; tomara ele que as cousas corressem de maneira, que...
Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos,
parece-lhe que todos têm a alma cândida...

--Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi


nada que faça desconfiar. Basta a idade;

Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze à semana


passada; são dous criançolas.

Não se esqueça que foram criados juntos, desde aquela grande


enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta cousa;
daí vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer?. . . Mano Cosme,
você que acha? Tio Cosme respondeu com um "Ora!" que, traduzido
em vulgar, queria dizer: "São imaginações do José Dias os pequenos
divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?"

--Sim, creio que o senhor está enganado.

--Pode ser minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não
falei senão depois de muito

examinar...

--Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou
tratar de metê-lo no seminário

quanto antes.

--Bem, uma vez que não perdeu a idéia de o fazer padre, tem-se
ganho o principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe
e depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que
um bispo presidiu a Constituinte, e que o Padre Feijó governou o
Império...

-- Governo como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos


rancores políticos.

--Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando O


que eu quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.

--Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao


pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece
a dizer missa atrás das portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há
mesmo necessidade de fazê-lo padre?

-- É promessa, há de cumprir-se.

--Sei que você fez promessa... mas uma promessa assim... não sei...
Creio que, bem pensado... Você que acha, prima Justina?

-- Eu?
--Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme-
Deus é que sabe de todos.

Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que é isso, mana


Glória? Está chorando? Ora esta pois isto é cousa de lágrimas?

Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se


levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o
qual estive a pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra
emoção... Não pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer.
Prima Justina exortava: "Prima Glória! Prima Glória!" José Dias
desculpava-se: "Se soubesse, não teria falado, mas falei pela
veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo,
um dever amaríssimo... "

CAPÍTULO IV / UM DEVER AMARÍSSIMO!

José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição


monumental às idéias; não as havendo, servia a prolongar as
frases. Levantou-se para ir buscar o gamão, que estava no interior
da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com as suas calças
brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos
últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste
mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem
esticadas. A gravata de cetim preto, com um arco de aço por
dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de
chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia.
Era magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus
cinqüenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do
costume, não aquele vagar arrastado se era dos preguiçosos, mas
um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa
antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um
dever amaríssimo!

CAPÍTULO V / O AGREGADO

Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se


descompunha em acionados, era muita vez rápido e lépido nos
movimentos, tão natural nesta como naquela maneira. Outrossim,
ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas
comunicativo, a tal ponto ás bochechas, os dentes, os olhos, toda a
cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances
graves, gravíssimo.

Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na
antiga fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu
ali vendendo-se por médico homeopata; levava um Manual e uma
botica. Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor e
uma escrava, e não quis receber nenhuma remuneração. Então meu
pai propôs-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. José Dias
recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé do
pobre.

--Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quiser, mas


fique morando conosco.

--Voltarei daqui a três meses.

Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro


estipêndio, salvo o que quisessem dar por festas. Quando meu pai
foi eleito deputado e veio para o Rio de Janeiro com a família, ele
veio também, e teve o seu quarto ao fundo da chácara. Um dia,
reinando outra vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que fosse
ver a nossa escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou
e acabou confessando que não era médico. Tomara este título para
ajudar a propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar muito
e muito; mas a consciência não lhe permitia aceitar mais doentes.

--Mas, você curou das outras vezes.

--Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os


remédios indicados nos livros. Eles, sim, eles, abaixo de Deus. Eu
era um charlatão... Não negue; os motivos do meu procedimento
podiam ser e eram dignos; a homeopatia é a verdade, e, para servir
à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo. Não foi
despedido, como pedia então; meu pai já não podia dispensá-lo.
Tinha o dom de se fazer aceito e necessário; dava-se por falta dele,
como de pessoa da família. Quando meu pai morreu, a dor que o
pungiu foi enorme, disseram-me; não me lembra. Minha mãe ficou-
lhe muito grata, e não consentiu que ele deixasse o quarto da
chácara; ao sétimo dia. depois da missa, ele foi despedir-se dela.

--Fique, José Dias.

--Obedeço, minha senhora.

Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro


palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-
as no quarto, por cima da cama. "Esta é a melhor apólice",dizia ele
muita vez. Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa
audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao
cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste
mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que
fizesse vinham antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe
muito; ao contrário das pessoas que enxovalham depressa o
vestido novo, ele trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado,
de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo,
o bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum
fenômeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos pólos e de
Robespierre. Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa, e
confessava que a não sermos nós, já teria voltado para lá; tinha
amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus,
era tudo.

--Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.

--Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.

E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus
no devido lugar, e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça.
Minha mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio
Cosme, que era advogado, confiava-lhe a cópia de papéis de autos.

CAPÍTULO VI / TIO COSME

Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então
era viúvo, como prima Justina;

era a casa dos três viúvos. A fortuna troca muita vez as mãos à
natureza. Formado para as serenas funções do capitalismo, tio
Cosme não enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório na
antiga Rua das Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube.
Trabalhava no crime. José Dias não perdia as defesas orais de tio
Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com muitos
cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por
mais modesto que quisesse ser. sorria de persuasão. Era gordo e
pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das
minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs
a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. O
preto que a tinha ido buscar à cocheira segurava o freio, enquanto
ele erguia o pé e pousava no estribo - a isto seguia-se um minuto
de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o
corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual
efeito. Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava
todas as forças físicas e morais, dava o último surto da terra, e
desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de
mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme
acomodava as carnes, e a besta partia a trote. Também não me
esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça
(donde vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu
não sabia montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em
mim e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto
(tinha nove anos), sozinho e desamparado, o chão lá embaixo,
entrei a gritar desesperadamente: "Mamãe! mamãe!" Ela acudiu
pálida e trêmula, cuidou que me estivessem matando, pegou-me,
afagou-me, enquanto o irmão perguntava:

--Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta


mansa?
--Não está acostumado.

--Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é


preciso que monte a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre,
se quiser florear como os outros rapazes, e não souber, há de
queixar-se de você, mana Glória.

--Pois que se queixe; tenho medo.

--Medo! Ora, medo!

A verdade é que eu só vim a aprender equitação mais tarde, menos


por gosto que por vergonha de dizer que não sabia montar. "Agora
é que ele vai namorar deveras", disseram quando eu comecei as
lições. Não se diria o mesmo de tio Cosme. Nele era velho costume
e necessidade. Já não dava para namoros. Contam que, em rapaz,
foi aceito de muitas damas, além de partidário exaltado; mas os
anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura
acabou com o resto de idéias públicas e específicas. Agora só
cumpria as obrigações do ofício e sem amor. Nas horas de lazer
vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez dizia pilhérias.

CAPÍTULO VII / D. GLÓRIA

Minha Mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de
Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia
voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que
meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou
alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo
número de apólices, e deixou-se estar na casa de Mata-cavalos,
onde vivera os dois últimos anos de casada. Era filha de uma
senhora mineira, descendente de outra paulista, a família
Fernandes. Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Maria da
Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dois anos de idade.
Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da
juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do
tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos,
com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por
um camafeu. Os cabelos, em bandos, eram apanhados sobre a nuca
por um velho pente de tartaruga;

alguma vez trazia a touca branca de folhas. Lidava assim, com os


seus sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo
e guiando os serviços todos da casa inteira, desde manhã até à
noite. Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do do marido, tais
quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá idéia
de ambos. Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era
alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos,
que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me
assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de
muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado
às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então
vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece
oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a
felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a
tiraram no bilhete comprado de sociedade. Concluo que não se
devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de
imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe
ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar.
Aqui os tenho aos dois bem casados de outrora, os bem-amados, os
bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar
um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me
aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos
e a boceta fatídica. São retratos que valem por originais. O de
minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: "Sou toda
sua, meu guapo cavalheiro!" O de meu pai, olhando para a gente,
faz este comentário: "Vejam como esta moça me quer..." Se
padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos:
era criança e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele,
lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de
ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira
expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade.

CAPÍTULO VIII / E TEMPO

Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara


e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que
morávamos. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o
que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que
tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das
rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia começar a minha ópera. "A
vida é uma ópera", dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu
e morreu... E explicou-me um dia a definição, em tal maneira que
me fez crer nela. Talvez valha a pena dá-la; é só um Capítulo.

CAPÍTULO IX / A ÓPERA

Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. "O desuso é
que me faz mal", acrescentava. Sempre que uma companhia nova
chegava da Europa, ia ao empresário e expunha-lhe todas as
injustiças da terra e do céu; o empresário cometia mais uma, e ele
saía a bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes dos seus
papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma
princesa de Babilônia. As vezes, cantarolava, sem abrir a boca,
algum trecho ainda mais idoso que ele ou tanto - vozes assim
abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui jantar comigo algumas
vezes. Uma noite, depois de muito Chiante, repetiu-me a definição
do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma
ópera, como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça
e replicou:

--A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono


lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimirás,
quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em
presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimirás. Há coros a
numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente...

--Mas, meu caro Marcolini...

--Quê...

E depois, de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a


história da criação, com palavras que vou resumir. Deus é o poeta.
A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que
aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Raiael e
Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição
dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e
mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu
gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi
descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria
passa do sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto
de ópera do qual abrira mão, por entender que tal gênero de
recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o
manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia
mais que os outros, e acaso para reconciliar-se com o céu,--compôs
a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.

--Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes


a partitura, escutai-a emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes
digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés...

--Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.

--Mas, Senhor...

--Nada! nada!

Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado
e cheio de misericórdia,consentiu em que a ópera fosse executada,
mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou
uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e
comprimárias, coros e bailarinos.

--Ouvi agora alguns ensaios!

--Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o


libreto; estou pronto a dividir
contigo os direitos de autor. Foi talvez um mal esta recusa; dela
resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a
colaboração amiga teriam evitado com efeito, há lugares em que o
verso vai para a direita e a música, para a esquerda. Não falta
quem diga que nisso mesmo está a além da composição, fugindo à
monotonia, e assim explicam o terceto do Aden, a ária de Abel, os
coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos
lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam
à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa
das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo
confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande
perícia. Tal é a opinião dos imparciais. Os amigos do maestro
querem que dificilmente se possa acha obra tão bem acabada. Um
ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o
andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou
explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o
maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao
pensamento sublime do poeta. Já não dizem c mesmo os amigos
deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura
corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns
lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa
e até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no
texto do poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres
Patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com
alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o
jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem
Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês
não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal
arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição;
mas, evidentemente, é um plagiário.

--Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro,


não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por
utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem
pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos,
porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: "Muitos são os
chamados, poucos ao escolhidos". Deus recebe eu ouro, Satanás
em papel.

--Tem graça...

--Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou:


Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto
que digo é a verdade pura e última. Um dia. quando todos os livros
forem queimados por inúteis, há de haver algum, pode ser que
tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo
é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc.
Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho.
Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo
cabe na mesma ópera...

CAPÍTULO X / ACEITO A TEORIA

Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a


perda da voz explica tudo, e há filósofos que são, em resumo,
tenores desempregados. Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu
velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda
a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição.
Cantei um duo tecnicismo, depois um trio, depois um quatro... Mas
não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber
que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi
dada principalmente a

mim.

A mim é que ele me denunciou.

CAPÍTULO XI / A PROMESSA

Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o


esconderijo, e corri à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas
nem da causa que as fazia verter a minha mãe. A causa eram
provavelmente os seus projetos eclesiásticos, e a ocasião destes é
a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de dezesseis
anos. Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-
lhe nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus
para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo
na Igreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse nada a meu pai,
nem antes, nem depois de me dar à luz, contava fazê-lo quando eu
entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o
terror de separar-se de mim; mas era tão devota, tão temente a
Deus, que buscou testemunhas da obrigação, confiando a promessa
a parentes e familiares. Unicamente, para que nos separássemos o
mais tarde possível, fez-me aprender em casa primeiras letras,
latim e doutrina, por aquele Padre Cabral, velho amigo do tio Cose,
que ia lá jogar às noites. Prazos largos são fáceis de subscrever; a
imaginação os faz infinitos. Minha mãe esperou que os anos
viessem vindo. Entretanto ia-me afeiçoando à idéia da Igreja;
brincos de criança, livros devotos. imagens de santos,
conversações de casa, tudo convergia para o altar quando íamos à
missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que
reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa,
brincava de missa,--um tanto às escondidas, porque minha mãe
dizia que missa não era cousa de brincadeira. Arranjávamos um
altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristão, e alterávamos o ritual, no
sentido de dividirmos a hóstia entre nós, a hóstia era sempre um
doce.
No tempo em que brincávamos assim, era muito comum ouvir à
minha vizinha: "Hoje há missa?" Eu já sabia o que isto queria dizer,
respondia afirmativamente, e ia pedir hóstia por outro nome
Voltava com ela, arranjávamos o altar, engrolávamos o latim e
precipitávamos as cerimônias. Dominus, non sum dignus... Isto, que
eu devia dizer três vezes, penso que só dizia uma, tal era a gulodice
do padre e do sacristão. Não bebíamos vinho nem água; não
tínhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do
sacrifício. Ultimamente não me falavam já do seminário, a tal ponto
que eu supunha ser negócio findo. Quinze anos, não havendo
vocação, podiam antes o seminário do mundo que o de S. José.
Minha mãe ficava muita vez a olhar para mim, como alma perdida,
ou pegava-me na mão, a pretexto de nada, para apertá-la muito.

CAPÍTULO XII / NA VARANDA

Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração


parecendo querer sair-me pela

boca fora. Não me atrevia a descer à chácara, e passar ao quintal


vizinho. Comecei a andar de um

lado para outro, estacando para amparar-me, e andava outra vez e


estacava. Vozes confusas

repetiam o discurso do José Dias:

"Sempre juntos..."

"Em segredinhos..."

"Se eles pegam de namoro..."

Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que


me passastes à direita ou à

esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós me ficou a melhor parte


da crise, a sensação de um gozo novo, que me envolvia em mim
mesmo, e logo me dispersava, e me trazia arrepios, e me
derramava não sei que bálsamo interior. Às vezes dava por mim,
sorrindo, um ar de riso de satisfação, que desmentia a abominação
do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas;

"Em segredinhos..."

"Sempre juntos..."

"Se eles pegam de namoro..."

Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou


de cima de si que não era feio que os meninos de quinze anos
andassem nos cantos com as meninas de quatorze, ao contrário, os
adolescentes daquela idade não tinham outro ofício, nem os cantos
outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros
velhos, mais ainda que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, uma
cigarra que ensaiava o estilo, toda a gente viva do ar era da mesma
opinião. Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim?
Realmente, andava cosido às saias dela, mas não me ocorria nada
entre nós que fosse deveras secreto. Antes dela ir para o colégio,
eram tudo travessuras de criança; depois que saiu do colégio, é
certo que não estabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta
voltou pouco a pouco, e no último ano era completa. Entretanto, a
matéria das nossas conversações era a de sempre. Capitu chamava-
me às vezes bonito, mocetão, uma flor outras pegava-me nas mãos
para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros
gestos e palavras, o prazer que sentia quando ela me passava a
mão pelos cabelos, dizendo que os achava lindíssimos. Eu, sem
fazer o mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos
que os meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma grande
expressão de desengano e melancolia, tanto mais de espantar
quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis - mas eu
retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara
com ela na véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que
sonhara comigo, e eram aventuras extraordinárias, que subíamos
ao Corcovado pelo ar, que dançávamos na lua, ou então que os
anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros
anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andávamos
unidinhos. Os que eu tinha com ela não eram assim, apenas
reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não passavam da
simples repetição do dia. alguma frase, algum gesto. Também eu os
contava. Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram
mais bonitos que os meus, eu, depois de certa hesitação, disse-lhe
que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de pitanga. Pois,
francamente, só agora entendia a comoção que me davam essas e
outras confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela
fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os

silêncios dos últimos dias, que me não descobriam nada, agora os


sentia como sinais de alguma

cousa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as


respostas vagas, os cuidados, o gosto de

recordar a infância. Também adverti que era fenômeno recente


acordar com o pensamento em

Capitu, e escutá-la de memória, e estremecer quando lhe ouvia os


passos. Se se falava nela, em

minha casa, prestava mais atenção que dantes, e, segundo era


louvor ou crítica, assim me trazia
gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos
somente companheiros de travessuras.

Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com


intervalos, é verdade, mas com

exclusivismo também. Tudo isto me era agora apresentado pela


boca de José Dias, que me denunciara a mim mesmo, e a quem eu
perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que
pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade
não valeria mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais
Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu amava-me! E as minhas
pernas andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de
abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da
consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que
lhe fosse comparável qualquer outra sensação da mesma espécie.
Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser a
primeira.

CAPÍTULO XIII / CAPITU

De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:

E no quintal:

--Mamãe!

E outra vez na casa:

--Vem cá!

Não me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que


davam para a chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era
costume delas, às tardes, e às manhãs também. Que as pernas
também são pessoas, apenas inferiores aos braços, e valem de si
mesma, quando a cabeça não as rege por meio de idéias. As minhas
chegaram ao pé do muro. Havia ali uma porta de comunicação
mandada rasgar por minha mãe, quando Capitu e eu éramos
pequenos. A porta não tinha chave nem taramela abria-se
empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso
de uma pedra pendente o uma corda. Era quase que
exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos visita batendo de um
lado, e sendo recebidos do outro cor, muitas mesuras. Quando as
bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu. Entrava no quintal
dela com um pau debaixo do braço, para imitar o bengalão do
Doutor João da Costa, tomava o pulso à doente e pedia-lhe que
mostrasse a língua. "É surda, coitada!", exclamava Capitu. Então eu
coçava o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe
umas sanguessugas ou dar-lhe um vomitório: era a terapêutica
habitual do médico.

--Capitu!

--Mamãe!

--Deixa de estar esburacando o muro - vem cá.

A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos
fundos. Quis passar ao quintal, mas as pernas, há pouco tão
andarilhas, pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço,
empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pé do muro fronteiro,
voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la
olhar para trás; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se
quisesse esconder alguma cousa. Caminhei para ela; naturalmente
levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e perguntou-me
inquieta:

--Que é que você tem?

--Eu? Nada.

--Nada, não; você tem alguma cousa.

Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e
coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca
fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos,
alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio
desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as
pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas
costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha
a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios
rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem
águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as
sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela
mesma dera alguns pontos.

--Que é que você tem? repetiu.

--Não é nada, balbuciei finalmente.

E emendei logo.

--É uma notícia.

--Notícia de quê?

Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a


impressão que lhe faria. Se a
consternasse é que realmente gostava de mim; se não, é que não
gostava. Mas todo esse cálculo foi obscuro e rápido; senti que não
poderia falar claramente, tinha agora a vista não sei como...

--Então?

--Você sabe...

Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando,


escrevendo ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos
abertos e lembrou-me o gesto que ela fizera para cobri-los. Então
quis vê-los de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me, mas, ou
por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira,
correu adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em
mim o desejo de ler o que era.

CAPÍTULO XIV / A INSCRIÇÃO

Tudo o que contei no fim do outro Capítulo foi obra de um instante.


O que se lhe seguiu foi ainda mais rápido. Dei um pulo, e antes que
ela raspasse o muro, li estes dous nomes, abertos ao prego, e sim
dispostos:

BENTO

CAPITOLINA

Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo,


devagar, e ficamos a olhar um para o outro... Confissão de crianças,
tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser poupado. Em
verdade, não falamos nada; o muro falou por nós. Não nos
movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas
quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora
exata daquele gesto. Devia tê-la marcado; sinto a falta de uma nota
escrita naquela mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de
ortografia que trouxesse, mas não traria nenhum, tal era a
diferença entre o estudante e o adolescente.

Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha


orgias de latim e era virgem de mulheres. Não soltamos as mãos,
nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas. Os olhos
fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto,
tornavam a meter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava assim
diante dela como de um altar, sendo uma das faces a Epístola e a
outra o Evangelho. A boca podia ser o cálix, os lábios a patena.
Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguém aprende e é
a língua católica dos homens. Não me tenhas por sacrilégio, leitora
minha devota a limpeza da intenção lava o que puder haver menos
curial no estilo. Estávamos ali com o céu em nossas mãos, unindo
os nervos, faziam das duas criaturas uma só, mm uma só criatura
seráfica. Os olhos continuaram a dizer cousas infinitas, as palavras
de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas
como vinham...

CAPÍTULO XV / OUTRA VOZ REPENTINA

Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem:

--Vocês estão jogando o siso?

Era o pai de Capitu, que estava à porta dos fundos, ao pé da


mulher. Soltamos as mãos depressa, e ficamos atrapalhados. Capitu
foi ao muro, e, com o prego, disfarçadamente, apagou os nossos
nomes escritos.

-- Capitu!

--Papai!

--Não me estragues o reboco do muro.

Capitu riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrito. Pádua


saiu ao quintal, a ver o que era, mas já a filha tinha começado outra
cousa, um perfil, que disse ser o retrato dele, e tanto podia ser dele
como da mãe - fê-lo rir, era o essencial. De resto, ele chegou sem
cólera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso, ou menos que
duvidoso em que nos apanhou. Era um homem baixo e grosso,
pernas e braços curtos, costas abauladas, donde lhe veio a alcunha
de Tartaruga, que José Dias lhe pôs. Ninguém lhe chamava assim lá
em casa; era só o agregado.

--Vocês estavam jogando o siso? perguntou.

Olhei para um pé de sabugueiro que ficava perto: Capitu respondeu


por ambos.

--Estávamos, sim, senhor, mas Bentinho ri logo, não agüenta.

--Quando eu cheguei à porta, não ria.

--Já tinha rido das outras vezes; não pode. Papai quer ver?

E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é


naturalmente sério - eu estava ainda sob a ação do que trouxe,
entrada de Pádua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse
fazêlo, para legitimar a resposta de Capitu. Esta, cansada de
esperar, desviou o rosto, dizendo que eu

não ria daquela vez por estar ao pé do pai. E nem assim ri. Há
cousas que só se aprendem tarde é mister nascer com elas para
fazê-las cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente
tarde. Capitu, após duas voltas, foi ter com a mãe, que continuava
à porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai encantados dela; o
pai, olhando para ela e para mim, dizia-me, cheio de ternura:

--Quem dirá que esta pequena tem quatorze anos? Parece


dezessete. Mamãe está boa? continuou voltando-se inteiramente
para mim.

--Está.

--Há muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um
capote ao doutor, mas não tenho podido, ando com trabalhos da
repartição, em casa; escrevo todas as noites que é um desespero;

negócio de relatório. Você já viu o meu gaturamo? Está ali no


fundo. Ia agora mesmo buscar a gaiola; ande ver.

Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem ser preciso
jurar pelo céu nem pela terra. Meu desejo era ir atrás de Capitu e
falar-lhe agora do mal que nos esperava; mas o pai era o pai, e
demais amava particularmente os passarinhos. Tinha-os de vária
espécie, cor e tamanho. A área que havia no centro da casa era
cercada de gaiolas de canários, que faziam cantando um barulho de
todos os diabos. Trocava pássaros com outros amadores, comprava-
os, apanhava alguns, no próprio quintal, armando alçapões.
Também, se adoeciam, tratava deles como se fossem gente.

CAPÍTULO VI / O ADMINISTRADOR INTERINO

Pádua era empregado em repartição dependente do Ministério da


Guerra. Não ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida
era barata. Demais, a casa em que morava, assobradada como a
nossa, posto que menor, era propriedade dele. Comprou-a com a
sorte grande que lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez contos
de réis. A primeira idéia do Pádua, quando lhe saiu o prêmio, foi
comprar um cavalo do Cabo, um adereço de brilhantes para a
mulher, uma sepultura perpétua de família, mandar vir da Europa
alguns pássaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que ali está
à porta dos fundos da casa, em pé, falando à filha, alta, forte,
cheia, como a tia, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a
mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e guardar
o que sobrasse para acudir às moléstias grandes. Pádua hesitou
muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D.
Fortunata pediu auxílio. Nem foi só nessa ocasião que minha mãe
lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida ao Pádua. Escutai; a
anedota é curta.

O administrador da repartição em que Pádua trabalhava teve de ir


ao Norte, em comissão. Pádua, ou por ordem regulamentar, ou por
especial designação, ficou substituindo o administrador com os
respectivos honorários. Esta mudança de fortuna trouxe-lhe certa
vertigem; era antes dos dez contos. Não se contentou de reformar
a roupa e a copa, atirou-se às despesas supérfluas, deu jóias à
mulher, nos dias de festa matava um leitão, era visto em teatros,
chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte e dois meses na
suposição de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em

nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque chegara o


efetivo naquela manhã. Pediu à minha mãe que velasse pelas
infelizes que deixava; não podia sofrer a desgraça, matava-se.
Minha mãe falou-lhe com bondade, mas ele não atendia a cousa
nenhuma.

--Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer


descer a família, tornar atrás... Já disse, mato-me! Não hei de
confessar à minha gente esta miséria. E os outros? Que dirão os
vizinhos? E os amigos? E o público?

--Que público, Sr. Pádua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre se


que sua mulher não tem outra pessoa... e que há de fazer? Pois um
homem... Seja homem, ande.

Pádua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado


alguns dias, mudo, fechado na alcova,--ou então no quintal, ao pé
do poço, como se a idéia da morte teimasse nele. D. Fortunata
ralhava:

--Joãozinho, você é criança?

Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia
correu a pedir à minha mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe
salvava o marido que se queria matar. Minha mãe foi achá-lo à
beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquela
de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação
menos, e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser
homem, pai de família, imitar a mulher e a filha... Pádua obedeceu;
confessou que acharia forças para cumprir a vontade de minha
mãe.

--Vontade minha, não; obrigação sua.

--Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo.

Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido à


parede, cara no chão. Não era o mesmo homem que estragava o
chapéu em cortejar a vizinhança, risonho, olhos no ar, antes mesmo
da administração interina. Vieram as semanas, a ferida foi sarando
Pádua começou a interessar-se pelos negócios domésticos, a cuidar
dos passarinhos, a dormir tranqüilo as noites e as tardes, a
conversa e dar notícias da rua. A serenidade regressou; atrás dela
veio a alegria, um domingo, na figura de - dois amigos, que iam
jogar o solo, a tentos. Já ele ria, já brincava, tinha o ar do costume;

a ferida sarou de todo.

Com o tempo veio um fenômeno interessante. Pádua começou s


falar da administração interina, não somente sem as saudades dos
honorários, nem o vexame da perda, mas até com desvanecimento
e orgulho. A administração ficou sendo a hégira, donde ele contava
para diante e para trás.

--No tempo em que eu era administrador...

Ou então:

--Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administração, ou um


dous meses antes... Ora espere; aminha administração começou. É
isto, mês e meio antes; foi mês e meio antes, não foi mais.

Ou ainda:

--Justamente; havia já seis meses que eu administrava...

Tal é o sabor póstumo das glórias interinas. José Dias bradava que
era a vaidade sobrevivente; mas o Padre Cabral, que levava tudo
para a Escritura, dizia que com o vizinho Pádua se dava a lição de
Elifás a Jó: "Não desprezes a correção do Senhor; Ele fere e cura"

CAPÍTULO XVII / OS VERMES "ELE FERE E CURA!"

Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também


curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever
uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros
velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los,
catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo
pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos
livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por
eles.

--Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não


sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem
escolhermos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que
roemos; nós roemos. Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos,
como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena.
Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um
modo de roer o roído.

CAPÍTULO XVIII / UM PLANO

Pai nem mãe foram ter conosco, quando Capitu e eu, na sala de
visitas, falávamos do seminário. Com os olhos em mim, Capitu
queria saber que notícia era a que me afligia tanto. Quando lhe
disse o que era, fez-se cor de cera.

--Mas eu não quero, acudi logo, não quero entrar em seminários;


não entro, é escusado teimarem comigo, não entro.

Capitu, a princípio, não disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em


si e deixou-se estar com as pupilas vagas e surdas, a boca
entreaberta, toda parada. Então eu, para dar força às afirmações,
comecei a jurar que não seria padre. Naquele tempo jurava muito e
rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me
faltasse na hora da morte se fosse para o seminário. Capitu não
parecia crer nem descrer, não parecia sequer ouvir; era uma figura
de pau. Quis chamá-la, sacudi-la, mas faltou-me animo. Essa
criatura que brincara comigo, que pulara, dançara, creio até que
dormira comigo, deixava-me agora com os braços atados e
medrosos. Enfim, tornou a si, mas tinha a cara lívida, e rompeu
nestas palavras furiosas:

--Beata! carola! papa-missas!

Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mãe, e minha mãe


dela, que eu não podia entender tamanha explosão. É verdade que
também gostava de mim, e naturalmente mais, ou melhor, ou de
outra maneira, cousa bastante a explicar o despeito que lhe trazia a
ameaça da separação; mas os impropérios, como entender que lhe
chamasse nomes tão feios, e principalmente para deprimir
costumes religiosos, que eram os seus?

Que ela também ia à missa, e três ou quatro vezes minha mãe é


que a levou, na nossa velha sege. Também lhe dera um rosário,
uma cruz de ouro e um livro de Horas... Quis defendê-la, mas Capitu
não me deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tão
alta que tive medo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi tão irritada
como então; parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os
dentes, abanava a cabeça... Eu, assustado, não sabia que fizesse,
repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma noite declarar
em casa que, por nada

neste mundo, entraria no seminário.

--Você? Você entra.

--Não entro.

--Você verá se entra ou não.

Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; não e


ainda a Capitu do costume, mas quase. Estava séria, sem aflição,
falava baixo. Quis saber a conversação da minha casa; eu contei-lha
toda, menos a parte que lhe dizia respeito.

--E que interesse tem José Dias em lembrar isto? perguntou-me no


fim.

--Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um sujeito muito ruim;
mas, deixe estar que me há de pagar. Quando eu for dono d. casa,
quem vai para a rua é ele; você verá; não me fica um instante
Mamãe é boa demais; dá-lhe atenção demais. Parece até que
chorou.

--José Dias?

--Não, mamãe.

--Chorou por quê?

--Não sei; ouvi só dizer que ela não chorasse, que não era cousa de
choro... Ele chegou a mostrar-se arrependido, e saiu; eu então,
para não ser apanhado, deixei o canto e corri para a varanda. Mas,
deixe estar, que ele me paga!

Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameaças. Ao


relembrá-las, não me acho ridículo; a adolescência e a infância não
são, neste pontos ridículas; é um dos seus privilégios. Este mal ou
este perigo começa na mocidade, cresce na madureza e atinge o
maior grau na velhice. Aos quinze anos, há até certa graça em
ameaçar muito e não executar nada. Capitu refletia. A reflexão não
era cousa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo apertado dos
olhos. Pediu-me algumas circunstâncias mais, as próprias palavras
de uns e de outros, e o tom delas. Como eu não queria dizer o
ponto inicial da conversa, que era ela mesma, não lhe pude dar
toda a significação. A tenção de Capitu estava agora
particularmente nas lágrimas de minha mãe; não acabava de
entendê-las. Em meio disto, confessou que certamente não era por
mal que minha mãe me queria fazer padre; era a promessa antiga
que ela, temente a Deus, não podia deixar de cumprir. Fiquei tão
satisfeito de ver que assim espontaneamente reparava as injúrias
que lhe saíram do peito, pouco antes, que peguei da mão dela e
apertei-a muito. Capitu deixou-se ir, rindo; depois a conversa

entrou a cochilar e dormir. Tínhamos chegado à janela; um preto,


que, desde algum tempo, vinha apregoando cocadas, parou em
frente e perguntou:

--Sinhazinha, qué cocada hoje?

--Não, respondeu Capitu.

--Cocadinha tá boa.
--Vá-se embora, replicou ela sem rispidez.

--Dê cá! disse eu descendo o braço para receber duas.

Comprei-as, mas tive de as comer sozinho; Capitu recusou. Vi que


em meio da crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que
tanto pode ser perfeição. como imperfeição, mas o momento não é
para definições tais; fiquemos em que a minha amiga, apesar de
equilibrada e lúcida, não quis saber de doce, e gostava muito de
doce. Ao contrário, o pregão que o preto foi cantando, o pregão das
velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância:

Chora, menina, chora

Chora, porque não tem Vintém, a modo que lhe deixara uma
impressão aborrecida. Da toada não era; ela a sabia de cor e de
longe, usava repeti-la nos nossos jogos da puerícia, rindo, saltando,
trocando os papéis comigo, ora vendendo, ora comprando um doce
ausente. Creio que a letra, destinada a picar a vaidade das
crianças, foi que a enojou agora, porque logo depois me disse:

--Se eu fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a


Europa.

Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que eles não lhe
disseram nada, ou só agradeceram a boa intenção. Com efeito, o
sentimento era tão amigo que eu podia escusar o extraordinário da
aventura. Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias
atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas
eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas,
surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos
saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponde uma concepção
grande executada por meios pequenos. Assim, para não sair do
desejo vago e hipotético de me mandar para a Europa, Capitu, se
pudesse cumpri-lo, não me faria embarcar no

paquete e fugir; estenderia uma fila de canoas daqui até lá, por
onde eu, parecendo ir à fortaleza da

Laje em ponte movediça, iria realmente até Bordéus, deixando


minha mãe na praia, à espera. Tal

era a feição particular do caráter da minha amiga; pelo que, não


admira que, combatendo os meus

projetos de resistência franca, fosse antes pelos meios brandos,


pela ação de empenho, da palavra,

da persuasão lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com


quem podíamos contar. Rejeitou
tio Cosme, era um "boa-vida", se não aprovava a minha ordenação,
não era capaz de dar um passo

para suspendê-la. Prima Justina era melhor que ele, e melhor que
os dous seria o Padre Cabral, pela

autoridade, mas o padre não havia de trabalhar contra a Igreja; só


se eu lhe confessasse que não

tinha vocação...

--Posso confessar?

--Pois, sim, mas seria aparecer francamente, e o melhor é outra


cousa. José Dias...

--Que tem José Dias?

--Pode ser um bom empenho.

--Mas se foi ele mesmo que falou...

--Não importa, continuou Capitu; dirá agora outra cousa. Ele gosta
muito de você. Não lhe fale

acanhado. Tudo é que você não tenha medo, mostre que há de vir a
ser dono da casa, mostre que

quer e que pode. Dê-lhe bem a entender que não é favor. Faça-lhe
também elogios; ele gosta muito

de ser elogiado, D. Glória presta-lhe atenção; mas o principal não é


isso; é que ele, tendo de servir a

vocês falará com muito mais calor que outra pessoa.

--Não acho, não, Capitu.

-- Então vá para o seminário.


-- Isso não.

-- Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; façam que


lhe digo. Dona Glória pode ser

que mude de resolução; se não mudar, faz-se outra cousa, mete-se


então o Padre Cabral. Você não

se lembra como é que foi ao teatro pela primeira vez há dous meses
D. Glória não queria e bastava

isso para que José Dias não teimasse; mas ele queria ir, e fez um
discurso, lembra-se?

--Lembra-me; disse que o teatro era uma escola de costumes.

--Justo; tanto falou que sua mãe acabou consentindo, e pagou a


entrada aos dous... Ande, peça,

mande. Olhe, diga-lhe que está pronto a ir estudar leis em São


Paulo.

Estremeci de prazer. S. Paulo era um frágil biombo, destinado a ser


arredado um dia. em vez da

grossa parede espiritual e eterna Prometi falar a José Dias nos


termos propostos. Capitu repetiu,

acentuando alguns como principais; e inquiria-me depois sobre


eles, a ver se entendera bem, se não

trocara uns por outros. E insistia em que pedisse com boa cara,
mas assim como quem pede um

copo de água a pessoa que tem obrigação de o trazer. Conto estas


minúncias cias para que melhor se

entenda aquela manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da


manhã e da tarde se fará o primeiro

dia, como no Gênesis, onde se fizeram sucessivamente sete.


CAPÍTULO XIX / SEM FALTA

Quando voltei casa era noite. Vim depressa, não tanto, porém, que
não pensasse nos termos em que

falaria ao agregado. Formulei o pedido de cabeça, escolhendo as


palavras que diria e o tom delas,

entre seco e benévolo. Na chácara, antes de entrar em casa, repeti-


as comigo, depois em voz alta,

para ver se eram adequadas e se obedeciam às recomendações de


Capitu: "Preciso falar-lhe, sem

falta. amanhã; escolha o lugar e diga-me". Proferi-as lentamente, e


mais lentamente ainda as

palavras sem falta, como para sublinhá-las. Repeti-as ainda, e


então achei-as secas demais, quase
ríspidas, e, francamente, impróprias de um criançola para um
homem maduro. Cuidei de escolher

outras e parei.

Afinal disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era dizê-las
em tom que não ofendesse. E a

prova é que, repetindo-as novamente, saíram-me quase súplices.


Bastava não carregar tanto, nem

adoçar muito, um meio-termo. "E Capitu tem razão, pensei, a casa é


minha, ele é um simples

agregado... Jeitoso é, pode muito bem trabalhar por mim, e


desfazer o plano de mamãe."

CAPÍTULO XX / MIL PADRE-NOSSOS E MIL AVE-MARIAS

Levantei os olhos ao céu, que começava a embruscar-se, mas não


foi para vê-lo coberto ou

descoberto. Era ao outro céu que eu erguia a minha alma; era ao


meu refúgio, ao meu amigo. E

então disse de mim para mim: "Prometo rezar mil padre-nossos e


mil ave-marias, se José Dias

arranjar que eu não vá para o seminário".

A soma era enorme. A razão é que eu andava carregado de


promessas não cumpridas. A última foi

de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se não chovesse


em certa tarde de passeio a Santa

Teresa. Não choveu, mas eu não rezei as orações. Desde pequenino


acostumara-me a pedir ao céu

os seus favores, mediante orações que diria, se eles viessem. Disse


as primeiras, as outras foram

adiadas, e à medida que se amontoavam iam sendo esquecidas.


Assim cheguei aos números vinte,
trinta, cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um
modo de peitar a vontade divina

pela quantia das orações; além disso, cada promessa nova era feita
e jurada no sentido de pagar a

dívida antiga. Mas vão lá matar a preguiça de uma alma que a


trazia do berço e não a sentia

atenuada pela vida! O céu fazia-me o favor, eu adiava a paga. Afinal


perdi-me nas contas.

"Mil, mil", repeti comigo.

Realmente, a matéria do benefício era agora imensa, não menos


que a salvação ou o naufrágio da

minha existência inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que
pagasse os atrasados todos. Deus

podia muito bem, irritado com os esquecimentos, negar-se a ouvir-


me sem muito dinheiro...

Homem grave, é possível que estas agitações de menino te


enfadem, se é que não as achas ridículas.

Sublimes não eram. Cogitei muito no modo de resgatar a dívida


espiritual. Não achava outra

espécie em que, mediante a intenção, tudo se cumprisse, fechando


a escrituração da minha

consciência moral sem deficit. Mandar dizer cem missas, ou subir


de joelhos a ladeira da Glória

para ouvir uma, ir à Terra Santa, tudo o que as velhas escravas me


contavam de promessas célebres,

tudo me acudia sem se fixar de vez no espírito. Era muito duro


subir uma ladeira de joelhos; devia

feri-los por força. A Terra Santa ficava muito longe. As missas eram
numerosas, podiam empenhar-

me outra vez a alma...

CAPÍTULO XXI / PRIMA JUSTINA


Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro.
Veio ao patamar e perguntou-me

onde estivera.

--Estive aqui ao pé, conversando com D. Fortunata, e distraí-me. É


tarde, não é? Mamãe perguntou

por mim?

--Perguntou, mas eu disse que você já tinha vindo.

A mentira espantou-me, não menos que a franqueza da notícia. Não


é que prima Justina fosse de

biocos, dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a


Paulo o que pensava de Pedro;

mas, confessar que mentira é que me pareceu novidade. Era


quadragenária, magra e pálida, boca

fina e olhos curiosos. Vivia conosco por favor de minha mãe, e


também por interesse; minha mãe

queria ter uma senhora íntima ao pé de si, e antes parenta que


estranha.

Passeamos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampião.


Quis saber se eu não esquecera os

projetos eclesiásticos de minha mãe, e dizendo-lhe eu que não,


inquiriu-me sobre o gosto que eu

tinha à vida de padre. Respondi esquivo:

--Vida de padre é muito bonita.


-- Sim, é bonita; mas o que pergunto é se você gostaria de ser
padre, explicou rindo.

--Eu gosto do que mamãe quiser.

--Prima Glória deseja muito que você se ordene, mas ainda que não
desejasse, há cá em casa quem

lhe meta isso na cabeça.

--Quem é?

--Ora, quem! Quem é que há de ser? Primo Cosme não é, que não se
importa com isso; eu também

não.

--José Dias? concluí.

--Naturalmente.

Enruguei a testa interrogativamente, como se não soubesse nada


Prima Justina completou a notícia

dizendo que ainda naquela tarde José Dias lembrara a minha mãe a
promessa antiga.

--Prima Glória pode ser que, em passando os dias, vá esquecendo a


promessa; mas como há de

esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos ouvidos, zás que


darás, falando do seminário? E os

discursos que ele faz, os elogios da Igreja, e que a vida de padre é


isto e aquilo, tudo com aquelas

palavras que só ele conhece, e aquela afetação... Note que é só


para fazer mal, porque ele é tão
religioso como este lampião. Pois é verdade, ainda hoje. Você não
se dê por achado... Hoje de tarde

falou como você não imagina...

--Mas falou à toa? perguntei, a ver se ela contava a denúncia do


meu namoro com a vizinha.

Não contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra
cousa que não podia dizer.

Novamente me recomendou que não me desse por achado, e


recapitulou todo o mal que pensava de

José Dias e não era pouco, um intrigante, um bajulador, um


especulador, e, apesar da casca de

polidez, um grosseirão. Eu, passados alguns instantes, disse:

--Prima Justina, a senhora era capaz de uma cousa?

--De quê?

--Era capaz de... Suponha que eu gostasse de ser padre... a senhora


podia pedir a mamãe...

--Isso não, atalhou prontamente; prima Glória tem este negócio


firme na cabeça, e não há nada no

mundo que a faça mudar de resolução; só o tempo. Você ainda era


pequenino, já ela contava isto a

todas as pessoas da nossa amizade, ou só conhecidas. Lá avivar-lhe


a memória, não, que eu não

trabalho para a desgraça dos outros; mas também, pedir outra


cousa, não peço, Se ela me

consultasse bem; se ela me dissesse: "Prima Justina, você que


acha?", a minha resposta era: "PrimaGlória, eu penso que, se ele
gosta de ser padre, pode ir; mas, se não gosta, o melhor é ficar". É
o que
eu diria e direi se ela me consultar algum dia. Agora, ir falar-lhe
sem ser chamada, não faço.

CAPÍTULO XXII / SENSAÇÕES ALHEIAS

Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia


ter seguido o conselho de

Capitu. Então, como eu quisesse ir para dentro, prima Justina


reteve-me alguns minutos, falando do

calor e da próxima festa da Conceição, dos meus velhos oratórios, e


finalmente de Capitu. Não

disse mal dela; ao contrário insinuou-me que podia vir a ser uma
moça bonita. Eu, que já a achava

lindíssima, bradaria que era a mais bela criatura do mundo, se o


receio me não fizesse discreto.

Entretanto, como prima Justina se metesse a elogiar-lhe os modos,


a gravidade, os costumes, o

trabalhar para os seus, o amor que tinha a minha mãe, tudo isto me
acendeu a ponto de elogiá-la

também. Quando não era com palavras, era com o gesto de


aprovação que dava a cada uma das

asserções da outra, e certamente com a felicidade que devia


iluminar-me a cara. Não adverti que

assim confirmava a denúncia de José Dias, ouvida por ela, à tarde,


na sala de visitas, se é que

também ela não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então


senti que os olhos de prima

Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-


me, gostar-me, fazer o ofício de
todos os sentidos. Ciúmes não podiam ser; entre um pirralho da
minha idade e uma viúvaquarentona não havia lugar para ciúmes. É
certo que, após algum tempo, modificou os elogios a

Capitu, e até lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco
trêfega e olhava por baixo; mas

ainda assim, não creio que fossem ciúmes. Creio antes... sim... sim,
creio isto. Creio que prima

Justina achou no espetáculo das sensações alheias uma


ressurreição vaga das próprias. Também se

goza por influição dos lábios que narram.

CAPÍTULO XXIII / PRAZO DADO

--Preciso falar-lhe amanhã, sem falta; escolha o lugar e diga-me.

Creio que José Dias achou desusado este meu falar. O tom não me
saíra tão imperativo como eu

receava, mas as palavras o eram, e o não interrogar, não pedir, não


hesitar, como era próprio da

criança e do meu estilo habitual, certamente lhe deu idéia de uma


pessoa nova e de uma nova

situação. Foi no corredor, quando íamos para o chá. José Dias vinha
andando cheio de leitura de

Walter Scott que fizera a minha mãe e a prima Justina. Lia cantado
e compassado. Os castelos e os

parques saíam maiores da boca dele, os lagos tinham mais água e a


"abóbada celeste" contava

alguns milhares mais de estrelas centelhantes. Nos diálogos,


alternava o som das vozes, que eram

levemente grossas ou finas, conforme o sexo dos interlocutores, e


reproduziam com moderação a

ternura e a cólera.

Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me ele:


--Amanhã, na rua. Tenho umas compras que fazer, você pode ir
comigo, pedirei a mamãe. É dia de

lição?

--A lição foi hoje.

--Perfeitamente. Não lhe pergunto o que é; afirmo desde já que é


matéria grave e pura.

--Sim, senhor.

--Até amanhã.

Fez-se tudo o melhor possível. Houve só uma altercarão; minha mãe


achou o dia quente e não

consentiu que eu fosse a pé; entramos no ônibus, à porta de casa.

--Não importa, disse-me José Dias; podemos apear-nos à porta do


Passeio Público.

CAPÍTULO XXIV / DE MÃE E DE SERVO

José Dias tratava-me com extremos de mãe e atenções de servo. A


primeira cousa que consegui

logo que comecei a andar fora, foi dispensar-me o pajem; fez-se


pajem, ia comigo à rua. Cuidava

dos meus arranjos em casa, dos meus livros, dos meus sapatos, da
minha higiene e da minha

prosódia. Aos oito anos os meus plurais careciam, alguma vez, da


desinência exata, ele a corrigia,
meio sério para dar autoridade à lição, meio risonho para obter o
perdão da emenda Ajudava assim

o mestre de primeiras letras. Mais tarde, quando o Padre Cabral me


ensinava latim, doutrina e

história sagrada, ele assistia às lições, fazia reflexões eclesiásticas,


e, no fim, perguntava ao padre:

"Não é verdade que o nosso jovem amigo caminha depressa?"


Chamava-me "um prodígio"; dizia a

minha mãe ter conhecido outrora meninos muito inteligentes, mas


que eu excedia a todos esses, sem

contar que, para a minha idade, possuía já certo número de


qualidades morais sólidas. Eu, posto não

avaliasse todo o valor deste outro elogio, gostava do elogio; era um


elogio.

CAPÍTULO XXV / NO PASSEIO PÚBLICO

Entramos no Passeio Público. Algumas caras velhas, outras doentes


ou só vadias espalhavam-se

melancolicamente no caminho que vai da porta ao terraço.


Seguimos para o terraço. Andando, para

me dar animo, falei do jardim:

--Há muito tempo que não venho aqui, talvez um ano.

--Perdoe-me, atalhou ele, não há três meses que esteve aqui com o
nosso vizinho Pádua; não se
lembra?

--É verdade, mas foi tão de passagem. . .

--Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é
boa como a mãe de Deus,

consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que


você ande com o Pádua na rua.

--Mas eu andei algumas vezes...

--Quando era mais jovem; em criança, era natural, ele podia passar
por criado. Mas você está

ficando moço e ele vai tomando confiança. D. Glória, afinal, não


pode gostar disso. A gente Pádua

não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe
deu... Você já reparou nos olhos

dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar


deles, poderia passar, se não fosse a

vaidade e a adulação. Oh! a adulação! D. Fortunata merece estima,


e ele não nego que seja honesto,

tem um bom emprego, possui a casa em que mora, mas


honestidade e estima não bastam, e as

outras qualidades perdem muito de valor com as más companhias


em que ele anda. Pádua tem uma

tendência para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com


ele. Não digo isto por ódio, nem

porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus
sapatos acalcanhados...

--Perdão, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse


mal do senhor; pelo contrário,

um dia. não há muito tempo, disse ele a um sujeito, em minha


presença, que o senhor era "um
homem de capacidade e sabia falar como um deputado nas
camaras."

José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e


fechou outra vez o rosto; depois

replicou:

--Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me têm feito o


favor de juízos altos. E nada

disso impede que ele seja o que lhe digo.

Tínhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhamos para o


mar.

--Vejo que o senhor não quer senão o meu benefício, disse eu


depois de alguns instantes.

--Pois que outra cousa, Bentinho?

--Neste caso, peço-lhe um favor.

--Um favor? Mande, ordene, que é?

--Mamãe...

Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e
vinha de cor. José Dias tornou a

perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o


queixo e espetava os olhos em mim,

ansioso também, como a prima Justina na véspera.


--Mamãe quê? Que é que tem mamãe?

--Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse
finalmente.

José Tobias endireitou-se pasmado.

--Não posso, continuei eu, não menos pasmado que ele, não tenho
jeito, não gosto da vida de padre.

Estou por tudo o que ela quiser, mamãe sabe que eu faço tudo o
que ela manda; estou pronto a ser o

que for do seu agrado, até cocheiro de ônibus. Padre, não; não
posso ser padre. A carreira é bonita,

mas não é para mim.

Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado natural


mente, peremptório, como pode

parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, em voz um pouco


surda e tímida. Não obstante, José

Dias ouvira-o espantado. Não contava certamente com a


resistência, por mais acanhada que fosse;

mas o que ainda mais o assombrou foi esta conclusão:

--Conto com o senhor para salvar-me.

Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas


arquearam-se, e o prazer que eu contava
dar-lhe com a escolha da proteção não se mostrou em nenhum dos
músculos. Toda a cara dele era

pouca para a estupefação. Realmente, a matéria do discurso


revelara em mim uma alma nova; eu

próprio não me conhecia. Mas a palavra final é que trouxe um vigor


único. José Dias ficou aturdido.

Quando os olhos tornaram às dimensões ordinárias:

--Mas que posso eu fazer? perguntou.

--Pode muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam


Mamãe pede muita vez os seus

conselhos, não é? Tio Cosme diz que o senhor é pessoa de talento...

--São bondades, retorquiu lisonjeado. São favores de pessoas


dignas, que merecem tudo... Aí está!

nunca ninguém me há de ouvir dizer nada de pessoas tais, por quê?


porque são ilustres e virtuosas.

Sua mãe é uma santa, seu tio é um cavalheiro perfeitíssimo Tenho


conhecido famílias distintas;

nenhuma poderá vencer a sua em nobreza de sentimentos. O


talento que seu tio acha em mim

confesso que o tenho, mas é só um,--é o talento de saber o que é


bom e digno de admiração e de

apreço.

--Há de ser também o de proteger os amigos, como eu.

--Em que lhe posso valer, anjo do céu? Não hei de dissuadir sua mãe
de um projeto que é, além de

promessa, a ambição e O sonho de longos anos. Quando pudesse, é


tarde. Ainda ontem fez-me o

favor de dizer: "José Dias, preciso meter Bentinho no seminário".


Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse
destemido, é provável que, com a

indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso,


mas então seria preciso confessar-

lhe que estivera à escuta, atrás da porta, e uma ação valia outra.
Contentei-me de responder que não

era tarde.

--Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quiser.

-- Se eu quiser? Mas que outra cousa quero eu, senão servi-lo. Que
desejo, senão que seja feliz,

como merece?

--Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou pronto: para
tudo; se ela quiser que eu estude

leis, vou para S. Paulo...

CAPÍTULO XXVI / AS LEIS SÃO BELAS

Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma
idéia, -- uma idéia que o alegrou

extraordinariamente. Calou se alguns instantes; eu tinha os olhos


nele, ele voltara os seus para o

lado da barra. Como insistisse:

--É tarde, disse ele, mas, para lhe provar que não há falta de
vontade, irei falar a sua mãe. Não

prometo vencer, mas lutar; trabalharei com alma. Deveras, não


quer ser padre? As leis são belas;
meu querido... Pode ir a S. Paulo, a Pernambuco, ou ainda mais
longe. Há boas universidades por

esse mundo fora. Vá para as leis, se tal é a sua vocação. Vou falar a
D. Glória, mas não conte só

comigo, fale também a seu tio.

--Hei de falar.

--Pegue-se também com Deus,-- com Deus e a Virgem Santíssima,


concluiu apontando para o céu.

O céu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes


pássaros negros faziam giros,

avançando ou pairando, e desciam a roçar os pés, na água, e


tornavam a erguer-se para descer

novamente. Mas nem as sombras do céu, nem as danças fantásticas


dos pássaros me desviavam o

espírito do meu interlocutor. Depois de lhe responder que sim,


emendei-me:

--Deus fará o que o senhor quiser.

--Não blasfeme. Deus é dono de tudo; ele é, só por si, a terra e o


céu, o passado, o presente e o

futuro. Peça-lhe a sua felicidade que eu não faço outra cousa...


Uma vez que você não pode ser

padre, e prefere as leis... As leis são belas, sem desfazer na


teologia que é melhor que tudo, como a
vida eclesiástica é a mais santa...

Por que não há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo para
alguma universidade, e ao mesmo

tempo que estuda, viaja: Podemos ir juntos, veremos as terras


estrangeiras, ouviremos inglês,

francês, italiano, espanhol, russo e até sueco. D. Glória


provavelmente não poderá acompanhá-lo;

ainda que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papéis,


matrículas, e cuidar de hospedarias, e

andar com você de um lado para outro... Oh! as leis são belíssimas!

--Está dito, pede a mamãe que me não meta no seminário?

--Pedir, peço, mas pedir não é alcançar. Anjo do meu coração, se


vontade de servir é poder de

mandar, estamos aqui, estamos a bordo! Ah! você não imagina o


que é a Europa; Oh! a Europa...

Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambições era
tornar à Europa, falava dela muitas

vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem tio Cosme, por mais
que louvasse os ares e as belezas...

Não contava com esta possibilidade de ir comigo, e lá ficar durante


a eternidade dos meus estudos.

--Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo!

CAPÍTULO XXVII / AO PORTÃO

No portão do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mão. José Dias


passou adiante, mas eu pensei
em Capitu e no seminário, tirei dous vinténs do bolso e dei-os ao
mendigo. Este beijou a moeda; eu

pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de que eu pudesse


satisfazer todos os meus desejos.

--Sim, meu devoto!

--Chamo-me Bento, acrescentei para esclarecê-lo.

CAPÍTULO XXVIII / NA RUA

José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos


graves, como era à rua, pelo homem

dobradiço e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me parar


a cada passo diante de um

mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-me o enredo de


algumas peças, recitava monólogos

em verso. Fez os recados todos, pagou contas, recebeu aluguéis de


casa; para si comprou um

vigésimo de loteria. Afinal, o homem teso rendeu o flexível, e


passou a falar pausado, com

superlativos. Não vi que a mudança era natural; temi que houvesse


mudado a resolução assentada, e

entrei a tratá-lo com palavras e gestos carinhosos, até entrarmos


no ônibus.

CAPÍTULO XXIX / O IMPERADOR

Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de


Medicina. O ônibus em que íamos

parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e


tiraram o chapéu, até que o coche
imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idéia
fantástica, a idéia de ir ter com o

Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria


esta idéia a Capitu. "Sua

Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo.

Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por


dizer que sim, que iria falar a minha

mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa,


à esperar até que ouvi os

batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o Imperador!


toda a gente chegava as janelas

para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à nossa porta,
o Imperador apeava-se e entrava.

Grande alvoroço na vizinhança: "O Imperador entrou em casa de D.


Glória! Que será? Que não

será?" A nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira


que lhe beijava a mão. Então o

Imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, --não me


lembra bem, os sonhos são muita

vez confusos,--pedia a minha mãe que me não fizesse padre, -- e


ela, lisonjeada e obediente,

prometia que não.

--A medicina, por que lhe não manda ensinar medicina?

--Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade..

--Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos


aqui bons professores. Nunca foi
à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de primeira
ordem, que podem ombrear com

os melhores de outras terras. A medicina é uma grande ciência;


basta só isto de dar a saúde aos

outros, conhecer as moléstias. combatê-las, vencê-1as... A senhora


mesma há de ter visto milagresSeu marido morreu, mas a doença
era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira:

mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer,
Bentinho?

-- Mamãe querendo.

-- Quero, meu filho. Sua Majestade manda.

Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía,


acompanhado de todos nós, a rua cheia de

gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro: o


Imperador entrava no coche. inclinava-se e

fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: "A medicina, a nossa


Escola." E o coche partia entre

invejas e agradecimentos.

Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil


que a das crianças e dos

namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um


recanto de ônibus. Consolei-me por

instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me


para as caras sem sonhos dos meus

companheiros.

CAPÍTULO XXX / O SANTÍSSlMO


Terás entendido que aquela lembrança do Imperador acerca da
medicina não era mais que a

sugestão da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os


sonhos do acordado são como os

outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das


nossas recordações. Vá que fosse

para S. Paulo, mas a Europa... Era muito longe, muito mar e muito
tempo. Viva a medicina! Iria

contar estas esperanças a Capitu.

--Parece que vai sair o Santíssimo, disse alguém no ônibus. Ouço


um sino; é, creio que é em Santo

Antônio dos Pobres. Pare, Sr. recebedor!

O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao braço do


cocheiro, o ônibus parou, e o

homem desceu. José Dias deu duas voltas rápidas à cabeça, pegou-
me no braço e fez-me descer

consigo. Iríamos também acompanhar o Santíssimo. Efetivamente,


o sino chamava os fiéis àquele

serviço da última hora. Já havia algumas pessoas na sacristia. Era a


primeira vez que me achava em

momento tão grave; obedeci, a princípio constrangido, mas logo


depois satisfeito, menos pela

caridade do serviço que por me dar um ofício de homem. Quando o


sacristão começou a distribuir

as opas, entrou um sujeito esbaforido, era o meu vizinho Pádua,


que também ia acompanhar o

Santíssimo. Deu conosco, veio cumprimentar-nos. José Dias fez um


gesto de aborrecido, e apenas

lhe respondeu com uma palavra seca, olhando para o padre que
lavava as mãos. Depois, como

Pádua falasse ao sacristão, baixinho, aproximou-se deles; eu fiz a


mesma cousa. Pádua solicitava do
sacristão uma das varas do pálio. José Dias pediu uma para si.

--Há só uma disponível, disse o sacristão.

--Pois essa, disse José Dias.

--Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Pádua.

--Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu José Dias; eu já cá


estava. Leve uma tocha.

Pádua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a


vara, tudo isto em voz baixa e

surda. O sacristão achou meio de conciliar a rivalidade, tomando a


si obter de um dos outros

seguradores do pálio que cedesse a vara ao Pádua, conhecido na


paróquia, como José Dias. Assim

fez, mas José Dias transtornou ainda esta combinação. Não, uma
vez que tínhamos outra vara

disponível, pedia-a para mim, "jovem seminarista", a quem esta


distinção cabia mais diretamente.

Pádua ficou pálido, como as tochas. Era pôr à prova o coração de


um pai. O sacristão, que me

conhecia de me ver ali com minha mãe, aos domingos, perguntou


de curioso se eu era deveras

seminarista.
--Ainda não, mais vai sê-lo, respondeu José Dias piscando o olho
esquerdo para mim, que, apesar

do aviso, fiquei zangado.

--Bem, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pai de Capitu.

Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lembrou-me que ele


costumava acompanhar o Santíssimo

Sacramento aos moribundos levando uma tocha, mas que a última


vez conseguira uma vara do

pálio. A distinção especial do pálio vinha de cobrir o vigário e o


sacramento; para tocha qualquer

pessoa servia. Foi ele mesmo que me contou e explicou isto, cheio
de uma glória pia e risonha.

Assim fica entendido o alvoroço com que entrara na igreja; era a


segunda vez do pálio, tanto que

cuidou logo de ir pedi-lo. E nada! E tornava à tocha comum, outra


vez a interinidade interrompida;

o administrador regressava ao antigo cargo... Quis ceder-lhe a


vara; o agregado tolheu-me esse ato

de generosidade, e pediu ao sacristão que nos pusesse, a ele e a


mim, com as duas varas da frente,

rompendo a marcha do pálio.

Opas enfiadas, tochas distribuídas e acesas, padre e cibório


prontos, o sacristão de hissope e

campainha nas mãos, saiu o préstito à rua. Quando me vi com uma


das varas, passando pelos fiéis,

que se ajoelhavam. fiquei comovido. Pádua roía a tocha


amargamente.

É uma metáfora, não acho outra forma mais viva de dizer a dor e a
humilhação do meu vizinho. De
resto, não pude mirá-lo por muito tempo, nem ao agregado, que,
paralelamente a mim, erguia a

cabeça com o ar de ser ele próprio o Deus dos exércitos. Com


pouco, senti-me me cansado; os

braços caíam-me, felizmente a casa era perto, na Rua do Senado.

A enferma era uma senhora viúva, tísica, tinha uma filha de quina
ou dezesseis anos que estava

chorando à porta do quarto. A moça não era formosa, talvez nem


tivesse graça, os cabelos caíam

despenteados, e as lágrimas faziam-lhe encarquilhar os olhos. Não


obstante o total falava e cativava

o coração. O vigário confessou a doente, deu-lhe a comunhão e os


santos óleos. O pranto da moça

redobrou tanto que senti os meus olhos molhados e fugi. Vim para
perto de uma janela. Pobre

criatura! A dor era comunicativa em si mesma complicada da


lembrança de minha mãe, doeu-me

mais, e, quando enfim pensei em Capitu, senti um ímpeto de


soluçar também, enfiei pelo corredor, e

ouvi alguém dizer-me:

--Não chore assim!

A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginação, assim como


lhe atribuíra lágrimas, há

pouco, assim lhe encheu a boca de riso agora; vi-a escrever no


muro, falar-me, andar à volta, com

os braços no ar; ouvi distintamente o meu nome, de uma doçura


que me embriagou, e a voz era

dela. As tochas acesas, tão lúgubres na ocasião tinham-me ares de


um lustre nupcial... Que era

lustre nupcial Não sei; era alguma cousa contrária à morte, e não
vejo outra mais que bodas. Esta
nova sensação me dominou tanto que José Dias veio a mim, e me
disse ao ouvido, em voz baixa:

--Não ria assim!

Fiquei sério depressa. Era o momento da saída. Peguei da minha


vara; e, como já conhecia a

distancia, e agora voltávamos para a igreja, o que fazia a distancia


menor, -- o peso da vara era mui

pequeno. Demais, o sol cá fora, a animação da rua, os rapazes da


minha idade que me fitavam

cheios de inveja, as devotas que chegavam às janelas ou entravam


nos corredores e se ajoelhavam à

nossa passagem, tudo me enchia a alma de lepidez nova.

Pádua, ao contrário, ia mais humilhado. Apesar de substituído por


mim, não acabava de se consolar

da tocha, da miserável tocha. E contudo havia outros que também


traziam tocha, e apenas

mostravam a compostura do ato; não iam garridos, mas também


não iam tristes. Via-se que

caminhavam com honra.

CAPÍTULO XXXI / AS CURIOSIDADES DE CAPITU

Capitu preferia tudo ao seminário. Em vez de ficar abatida com a


ameaça da larga separação, se

vingasse a idéia da Europa, mostrou se satisfeita. E quando eu lhe


contei o meu sonho imperial:
-- Não, Bentinho, deixemos o Imperador sossegado, replicou;
fiquemos por ora com a promessa de

José Dias. Quando é que ele disse que falaria a sua mãe?

--Não marcou dia; prometeu que ia ver; que falaria logo que
pudesse, e que me pegasse com Deus.

Capitu quis que lhe repetisse as respostas todas do agregado, as


alterações do gesto e até a pirueta,

que apenas lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e
atenta; a narração e o diálogo,

tudo parecia remoer consigo. Também se pode dizer que conferia,


rotulava e pregava na memória a

minha exposição. Esta imagem é porventura melhor que a outra,


mas a ótima delas é nenhuma.

Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher
do que eu era homem. Se ainda o

não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se


devem incutir na alma do leitor, à

força de repetição.

Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um


Capítulo. Eram de vária espécie,

explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves,


outras frívolas; gostava de saber

tudo. No colégio onde, desde os sete anos, aprendera a ler,


escrever e contar, francês, doutrina e

obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda- por


isso mesmo, quis que prima Justina

lhe ensinasse. Se não estudou latim com o Padre Cabral foi porque
o padre, depois de lhe propor

gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas.


Capitu confessou-me um dia que
esta razão acendeu nela o desejo de o saber. Em compensação, quis
aprender inglês com um velho

professor amigo do pai e parceiro deste ao solo, mas não foi


adiante. Tio Cosme ensinou-lhe gamão.

--Anda apanhar um capotinho, Capitu, dizia-lhe ele.

Capitu obedecia e jogava com facilidade, com atenção, não sei se


diga com amor. Um dia fui achála

desenhando a lápis um retrato; dava os últimos rasgos, e pediu-me


que esperasse para ver se

estava parecido. Era o de meu pai, copiado da tela que minha mãe
tinha na sala e que ainda agora

está comigo. Perfeição não era; ao contrário, os olhos saíram


esbugalhados, e os cabelos eram

pequenos círculos uns sobre outros. Mas, não tendo ela rudimento
algum de arte, e havendo feito

aquilo de memória em poucos minutos, achei que era obra de muito


merecimento- descontai-me a

idade e a simpatia. Ainda assim, estou que aprenderia facilmente


pintura, como aprendeu música

mais tarde. Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste


inútil, apenas de estimação. Lia os

nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo


saber das ruínas, das pessoas, das

campanhas, o nome, a história, o lugar. José Dias dava-lhe essas


notícias com certo orgulho de

erudito. A erudição deste não avultava muito mais que a sua


homeopatia de Cantagalo.

Um dia. Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas.


O agregado disse-lho

sumariamente, demorando-se um pouco mais em César, com


exclamações em latim:
--César! Júlio César! Grande homem! Tu quoque, Brute?

Capitu não achava bonito o perfil de César, mas as ações citadas


por José Dias davam-lhe gestos de

admiração. Ficou muito tempo com a cara virada para ele. Um


homem que podia tudo! que fazia

tudo! Um homem que dava a uma senhora uma pérola do valor de


seis milhões de sestércio!

--E quanto valia cada sestércio?

José Dias, não tendo presente o valor do sestércio, respondeu


entusiasmado:

--É o maior homem da história!

A pérola de César acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasião que


ela perguntou a minha mãe por

que é que já não usava as jóias do retrato; referia-se ao que estava


na sala, com o de meu pai, tinha

um grande colar, um diadema e brincos.

--São jóias viúvas, como eu, Capitu.

-- Quando é que botou estas?

-- Foi pelas festas da Coroação.


--Oh! conte-me as festas da Coroação!

Sabia já o que os pais lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para
si que eles pouco mais

conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a notícia das


tribunas da Capela Imperial e

dos salões dos bailes. Nascera muito depois daquelas festas


célebres. Ouvindo falar várias vezes da

Maioridade, teimou um dia em saber o que fora este


acontecimento; disseram-lho, e achou que o

Imperador fizera muito bem em querer subir ao trono aos quinze


anos. Tudo era matéria às

curiosidades de Capitu, mobílias antigas, alfaias velhas, costumes,


notícias de Itaguaí, a infância e a

mocidade de minha mãe, um dito daqui, uma lembrança dali, um


adágio dacolá...

CAPÍTULO XXXII / OLHOS DE RESSACA

Tudo era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no


qual não sei se aprendeu ouensinou, ou se fez ambas as cousas,
como eu. É o que contarei no outro Capítulo. Neste direi

somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui


ver a minha amiga; eram dez horas

da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal nem esperou que eu


lhe perguntasse pela filha.

--Está na sala penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para


lhe pregar um susto.

Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que


não fosse; era um espelhinho de

pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano,


moldura tosca, argolinha de latão,
pendente da parede, entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o pé.
Um ou outro, a verdade é que,

apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e
só lhe ouvi esta pergunta:

--Há alguma cousa?

--Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral
chegue para a lição. Como passou a

noite?

--Eu bem. José Dias ainda não falou?

--Parece que não.

-- Mas então quando fala?

--Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai


logo de pancada, falará assim

por alto e por longe, um toque. Depois, entrará em matéria. Quer


primeiro ver se mamãe tem a

resolução feita...

-- Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém


para vencer já, e de todo, não

se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho
que fará tudo, se sentir que vocêrealmente não quer ser padre,
mas poderá alcançar?... Ele é atendido; se, porém... É um inferno
isto!

Você teime com ele, Bentinho.

--Teimo- hoje mesmo ele há de falar.


--Você jura?

--Juro. Deixe ver os olhos, Capitu.

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de


cigana oblíqua e dissimulada."

Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver
se podiam chamar assim. Capitu

deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca


os vira, eu nada achei

extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora


da contemplação creio que lhe

deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para
mirá-los mais de perto, com os

meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que


entrassem a ficar crescidos,

crescidos e sombrios, com tal expressão que...

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética


para dizer o que foram aqueles

olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra


da dignidade do estilo, o queeles foram e me fizeram. Olhos de
ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição

nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força
que arrastava para dentro, como
a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser
arrastado, agarrei-me às outras partes

vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos


ombros, mas tão depressa buscava as

pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura,


ameaçando envolver-me, puxar-me e

tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios


do céu terão marcado esse

tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por


não acabar nunca deixa de

querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de


dobrar o gozo aos bem-aventurados do

céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no


inferno os seus inimigos; assim

também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus


desafetos aumentará as dores aos

condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dane;


mas eu não estou aqui para

emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não


marcado, agarrei-me

definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e


disse-lhe,--para dizer alguma

cousa,--que era capaz de os pentear, se quisesse.

--Você?

--Eu mesmo.

--Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.

--Se embaraçar, você desembaraça depois.

--Vamos ver.
CAPÍTULO XIXI / O PENTEADO

E Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhando. Peguei-


lhe dos cabelos, colhi-os todos e

entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas pontas,


que lhe desciam à cintura. Em pé

não dava jeito: não esquecestes que ela era um nadinha mais alta
que eu, mas ainda que fosse da

mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.

--Senta aqui, é melhor.

Sentou-se. "Vamos ver o grande cabeleireiro", disse-me rindo.


Continuei a alisar os cabelos, com

muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as


duas tranças. Não as fiz logo,

nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício,


mas devagar, devagarinho,

saboreando pelo tacto aqueles fios grossos, que eram parte dela. O
trabalho era atrapalhado, às

vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e


refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca

da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era


um deleite. Mas, enfim, os cabelos

iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi


ao céu que eles fossem tão

longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta


divindade que os velhos poetas me

apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos


dos séculos, tecer duas tranças

que pudessem envolver o infinito por um número inominável de


vezes. Se isto vos parecer enfático,
desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca
pusestes as mãos adolescentes na

jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico.


Ainda há pouco, falando dos

seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis,


risquemos ninfa, digamos somente

uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs


e pagãs. Enfim acabei as duas

tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas Em cima da


mesa, um triste pedaço de fita

enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço,


retoquei a obra, alargando aqui,

achatando ali, até que exclamei:

--Pronto!

--Estará bom?

--Veja no espelho.

Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos


esqueçais que estava sentada, de

costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi
preciso acudir com as mãos e

ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois


sobre ela rosto a rosto, mas trocados,

os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse


a cabeça, podia ficar tonta,
machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem
esta razão a moveu.

--Levanta, Capitu!

Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o


outro, até que ela abrochou os

lábios, eu desci os meus, e...

Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei


até à parede com uma espécie de

vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi


que Capitu tinha os seus no

chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me


língua. Preso. atordoado, não

achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me


atirasse a ela com mil palavras cálidas

e mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com
dezessete, Des Grieux (e mais

era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos.

CAPÍTULO XXXIV / SOU HOMEM!

Ouvimos passos no corredor; era D. Fortunata. Capitu compôs-se


depressa, tão depressa que,

quando a mãe apontou à porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum


laivo amarelo, nenhuma

contração de acanhamento, um riso espontâneo e claro, que ela


explicou por estas palavras alegres:

--Mamãe, olhe como este senhor cabeleireiro me penteou; pediu-me


para acabar o penteado, e fez

isto. Veja que tranças!


--Que tem? acudiu a mãe, transbordando de benevolência . Está
muito bem, ninguém dirá que é de

pessoa que não sabe pentear.

--O que, mamãe? Isto? redargüiu Capitu, desfazendo as tranças.


Ora, mamãe!

E com um enfadamento gracioso e voluntário que às vezes tinha,


pegou do pente e alisou os cabelos

para renovar o penteado. D. Fortunata chamou-lhe tonta, e disse-


me que não fizesse caso, não era

nada, maluquices da filha. Olhava com ternura para mim e para ela.
Depois, parece-me que

desconfiou. Vendo-me calado, enfiado, cosido à parede, achou


talvez que houvera entre nós algo

mais que penteado, e sorriu por dissimulação...

Como eu quisesse falar também para disfarçar o meu estado,


chamei algumas palavras cá de dentro,

e elas acudiram de pronto, mas de atropelo, e encheram-me a boca


sem poder sair nenhuma. O beijo

de Capitu fechava-me os lábios. Uma exclamação, um simples


artigo, por mais que investissem

com força, não logravam romper de dentro. E todas as palavras


recolheram-se ao coração,

murmurando: "Eis aqui um que não fará grande carreira no mundo,


por menos que as emoções o

dominem..."

Assim, apanhados pela mãe, éramos dous e contrários, ela


encobrindo com a palavra o que eu

publicava pelo silêncio. D. Fortunata tirou-me daquela hesitação,


dizendo que minha mãe me
mandara chamar para a lição de latim; o Padre Cabral estava à
minha espera. Era uma saída;

despedi-me e enfiei pelo corredor. Andando, ouvi que a mãe


censurava as maneira da filha, mas a

filha não dizia nada.

Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas não passei à sala da
lição; sentei-me na cama,

recordando o penteado e o resto. Tinha estremeções, tinha uns


esquecimentos em que perdia a

consciência de mim e das cousas que me rodeavam, para viver não


sei onde nem como. E tornava a

mim, e via a cama, as paredes, os livros, o chão, ouvia algum som


de fora, vago, próximo ou

remoto, e logo perdia tudo para sentir somente os beiços de Capitu


Sentia-os estirados, embaixo dos

meus, igualmente esticados para os dela, e unindo-se uns aos


outros. De repente, sem querer, sem

pensar, saiu-me da boca esta palavra de orgulho:

--Sou homem!

Supus que me tivessem ouvido, porque a palavra saiu em voz alta,


e corri à porta da alcova. Não

havia ninguém fora. Voltei para dentro, e, baixinho, repeti que era
homem. Ainda agora tenho o eco

aos meus ouvidos. O gosto que isto me deu foi enorme. Colombo
não o teve maior, descobrindo a
América, e perdoai a banalidade em favo; do cabimento- com
efeito, há em cada adolescente um

mundo encoberto, um almirante e um sol de outubro. Fiz outros


achados mais tarde; nenhum me

deslumbrou tanto. A denúncia de José Dias alvoroçara-me, a lição


do velho coqueiro também, a

vista dos nossos nomes aberto por ela no muro do quintal deu-me
grande abalo, como vistes; nada

disso valeu a sensação do beijo. Podiam ser mentira ou ilusão.


Sendo verdade, eram os ossos da

verdade, não eram a carne e o sangue dela. As próprias mãos


tocadas, apertadas, como que

fundidas, não podiam dizer tudo.

--Sou homem!

Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminário, mas


como se pensa em perigo que

passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus


nervos me disseram que homens não

são padres. O sangue era da mesma opinião. Outra vez senti os


beiços de Capitu. Talvez abuso um

pouco das reminiscências osculares, mas a saudade é isto mesmo;


é o passar e repassar das

memórias antigas Ora, de todas as daquele tempo creio que a mais


doce é esta, a mais nova, a mais

compreensiva, a que inteiramente me revelou a mim mesmo.


Outras tenho, vastas e numerosas,

doces também, de vária espécie, muitas intelectuais, igualmente


intensas. Grande homem que fosse,

a recordação era menor que esta.

CAPÍTULO XXXV / O PROTONOTÁRIO APOSTÓLICO


Enfim, peguei dos livros e corri à lição. Não corri precisamente; a
meio caminho parei, advertindo

que devia ser muito tarde, e podiam ler-me no semblante alguma


cousa. Tive idéia de mentir, alegar

uma vertigem que me houvesse deitado no chão, mas o susto que


causaria a minha mãe fez-me

rejeitá-la. Pensei em prometer algumas dezenas de padre-nossos;


tinha, porém, outra promessa em

aberto e outro favor pendente... Não, vamos ver; fui andando, ouvi
vozes alegres, conversavam

ruidosamente. Quando entrei na sala, ninguém ralhou comigo.

O Padre Cabral recebera na véspera um recado do internúncio; foi


ter com ele, e soube que, por

decreto pontifício, acabava de ser nomeado protonotário


apostólico. Esta distinção do papa dera-lhe

grande contentamento e a todos os nossos. Tio Cosme e prima


Justina repetiam o título com

admiração- era a primeira vez que ele soava i aos nossos ouvidos,
acostumados a cônegos,

monsenhores, bispos, núncios, e internúncios; mas que era


protonotário apostólico? O Padre Cabral

explicou que não era propriamente o cargo da cúria, mas as honras


dele. Tio Cosme viu exalçar-se

no parceiro de voltarete, e repetia:

--Protonotário apostólico!

E voltando-se para mim:

--Prepara-te, Bentinho, tu podes vir a ser protonotário apostólico


Cabral ouvia com gosto a

repetição do título. Estava em pé, dava alguns passos, sorria ou


tamborilava na tampa da boceta. O
tamanho do título como que lhe dobrava a magnificência, posto
que, para ligá-lo ao nome, era

demasiado comprido- esta segunda reflexão foi tio Cosme que a


fez. Padre Cabral acudiu que não

era preciso dizê-lo todo, bastava que lhe chamassem o protonotário


Cabral. Subentendia-se

apostólico.

--Protonotário Cabral.

--Sim, tem razão; protonotário Cabral.

--Mas, Sr. protonotário, -- acudiu prima Justina para se ir


acostumando ao uso do título,--isto o

obriga a ir a Roma?

--Não, D. Justina.

--Não, são só as honras, observou minha mãe.

--Agora, não impede,--disse Cabral, que continuava a refletir, --não


impede que nos casos de maior

formalidade, atos públicos, cartas de cerimônia, etc; se empregue o


título inteiro: protonotário
apostólico. No uso comum, basta protonotário.

--Justamente, assentiram todos.

José Dias, que entrou pouco depois de mim, aplaudia a distinção, e


recordou, a propósito, os

primeiros atos políticos de Pio IX, grandes esperanças da Itália;


mas ninguém pegou do assunto; o

principal da hora e do lugar era o meu velho mestre de latim. Eu,


voltando a mim do receio, entendi

que devia cumprimentá-lo também, e este aplauso não lhe foi


menos ao coração que os outros.

Bateu-me na bochecha paternalmente, e acabou dando-me férias.


Era muita felicidade para uma só

hora. Um beijo e férias! Creio que o meu rosto disse isto mesmo,
porque tio Cosme, sacudindo a

barriga, chamou-me peralta; mas José Dias corrigiu a alegria:

--Não tem que festejar a vadiação; o latim sempre lhe há de ser


preciso, ainda que não venha a ser

padre.

Conheci aqui o meu homem. Era a primeira palavra, a semente


lançada à terra, assim de passagem,

como para acostumar os ouvidos da família. Minha mãe sorriu para


mim, cheia de amor e de

tristeza, mas respondeu logo:

--Há de ser padre, e padre bonito.

--Não esqueça, mana Glória, e protonotário também. Protonotário


apostólico.
--O protonotário Santiago, acentuou Cabral.

Se a intenção do meu mestre de latim era ir acostumando ao uso do


título com o nome, não sei bem;

o que sei é que quando ouvi o meu nome ligado a tal título, deu-me
vontade de dizer um desaforo.

Mas a vontade aqui foi antes uma idéia, uma idéia sem língua, que
se deixou ficar quieta e muda, tal

como daí a pouco outras idéias... Aliás essas pedem um Capítulo


especial. Rematemos este dizendo

que o mestre de latim falou algum tempo da minha ordenação


eclesiástica, ainda que sem grande

interesse. Ele buscava um assunto alheio para se mostrar


esquecido da própria glória, mas era esta

que o deslumbrava na ocasião. Era um velho magro, sereno, dotado


de qualidades boas. Alguns

defeitos tinha; o mais excelso deles era ser guloso, não


propriamente glutão; comia pouco, mas

estimava o fino e o raro, e a nossa cozinha, se era simples, era


menos pobre que a dele. Assim,

quando minha mãe lhe disse que viesse jantar, a fim de se lhe fazer
uma saúde, os olhos com que

aceitou seriam de protonotário, mas não eram apostólicos. E para


agradar a minha mãe novamente

pegou em mim, descrevendo o meu futuro eclesiástico, e queria


saber se ia para o seminário agora,

no ano próximo, e oferecia-se a falar ao "senhor bispo", tudo


marchetado do "protonotário

Santiago."

CAPÍTULO XXXVI / IDÉIA SEM PERNAS E IDÉIA SEM BRAÇOS


Deixe-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na
aventura da manhã. Era o que melhor

podia fazer, sem latim, e até com latim. Ao cabo de cinco minutos,
lembrou-me ir correndo à casa

vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças, refazê-las e concluí


Ias daquela maneira particular,

boca sobre boca. E isto vamos é isto... Idéia só! idéia sem pernas!
As outras pernas não queriam

correr nem andar. Muito depois é que saíram vagarosamente e


levaram-me à casa de Capitu.

Quando ali cheguei, dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na
marquesa, almofada no regaço,

cosendo em paz. Não me olhou de rosto, mas a furto e a medo, ou,


se preferes a fraseologia do

agregado, oblíqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de


encravada a agulha no pano. Eu, do

lado oposto da mesa, não sabia que fizesse e outra vez me fugiram
as palavras que trazia Assim

gastamos alguns minutos compridos, até que ela deixou


inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-

me. Fui ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma cousa;
respondeu-me que não A boca

com que respondeu era tal que cuido haver-me provocado um gesto
de aproximação. Certo é que

Capitu recuou um pouco.

Era ocasião de pegá-la, puxá-la e beijá-la... Idéia só! idéia sem


braços! Os meus ficaram caídos e

mortos. Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável


que o espírito de Satanás me

fizesse dar à língua mística do Cântico um sentido direto e natural.


Então obedeceria ao primeiro
versículo: "Aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua boca". E
pelo que respeita aos braços,

que tinha inertes, bastaria cumprir o vers. 6.° do cap. II: "A sua mão
esquerda se pôs já debaixo da

minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois". Vedes aí a


cronologia dos gestos. Era só

executá-la; mas ainda que eu conhecesse o texto, as atitudes de


Capitu eram agora tão retraídas, que

não sei se não continuaria parado. Foi ela, entretanto, que me tirou
daquela situação.

CAPÍTULO XXXVII / A ALMA E CHEIA DE MISTÉRIOS

-- Padre Cabral estava esperando há muito tempo?

--Hoje não dei lição; tive férias.

Expliquei-lhe o motivo das férias. Contei-lhe também que o Padre


Cabral falara da minha entrada

no seminário, apoiando a resolução de minha mãe, e disse dele


cousas feias e duras. Capitu refletiu

algum tempo, e acabou perguntando-me se podia ir cumprimentar


o padre, à tarde em minha casa.

--Pode, mas para quê?

--Papai naturalmente há de querer ir também, mas é melhor que ele


vá à casa do padre, é mais

bonito. Eu não, que já sou meia moça, concluiu rindo.

O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça consigo


mesma, uma vez que, desde manhã,
era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graça, e, para dizer
tudo, quis provar-lhe que era moça

inteira. Peguei-lhe levemente na mão direita, depois na esquerda, e


fiquei assim pasmado e trêmulo.

Era a idéia com mãos. Quis puxar as de Capitu, para obrigá-la a vir
atrás delas, mas ainda agora a

ação não respondeu à intenção. Contudo, achei-me forte e atrevido.


Não imitava ninguém- não vivia

com rapazes, que me ensinassem anedotas de amor. Não conhecia


a violação de Lucrécia. Dos

romanos apenas sabia que falavam pela artinha do Padre Pereira e


eram patrícios de Pôncio Pilatos.

Não nego que o final do penteado da manhã era um Brande passo


no caminho da movimentação

amorosa, mas o gesto de então foi justamente o contrário deste. De


manhã, ela derreou a cabeça,

agora fugia-me; nem é só nisso que os lances diferiam; em outro


ponto, parecendo haver repetição,

houve contraste.

Penso que ameacei puxá-la a mim. Não juro, começava a estar tão
alvoroçado, que não pude ter

toda a consciência dos meus atos; mas concluo que sim, porque ela
recuou e quis tirar as mãos das

minhas; depois, talvez por não poder recuar mais, colocou um dos
pés adiante e o outro atrás, e

fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a reter-lhe as


mãos com força. O busto afinal

cansou e cedeu, mas a cabeça não quis ceder também, e caída para
trás, inutilizava todos os meus

esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não conhecendo


a lição do Cântico, não me

acudiu estender a mão esquerda por baixo da cabeça dela; demais,


este gesto supõe um acordo de
vontades, e Capitu, que me resistia agora, aproveitaria o gesto
para arrancar-se à outra mão e fugir-

me inteiramente. Ficamos naquela luta, sem estrépito, porque


apesar do ataque e da defesa, não

perdíamos a cautela necessária para não sermos ouvidos lá de


dentro; a alma é cheia de mistérios.

Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar; até que


cansou; mas então foi a vez da boca.

A boca de Capitu iniciou um movimento inverso, relativamente à


minha, indo para um lado, quando

eu a buscava do outro oposto. Naquele desencontro estivemos, sem


que ousasse um pouco mais, e

bastaria um pouco mais...

Nisto ouvimos bater à porta e falar no corredor. Era o pai de Capitu,


que voltava da repartição um

pouco mais cedo, como usava às vezes. "Abre, Nanata! Capitu,


abre!" Aparentemente era o mesmo

lance da manhã, quando a mãe deu conosco, mas só


aparentemente verdade, era outro. Considerai

que de manhã tudo estava acabado, e o passo de D. Fortunata foi


um aviso para que nos

compuséssemos. Agora lutávamos com as mãos presas, e nada


estava sequer começado.

Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno era a


mãe que abria. Eu, uma vez que

confesso tudo, digo aqui que não tive tempo de soltar as mãos da
minha amiga; pensei nisso,

cheguei a tentá-lo, mas Capitu, antes que o pai acabasse de entrar,


fez um gesto inesperado, pousou

a boca na minha boca, e deu de vontade o que estava a recusar à


força. Repito, a alma é cheia de
mistérios.

CAPÍTULO XXXVIII / QUE SUSTO, MEU DEUS!

Quando Pádua, vindo pelo interior, entrou na sala de visitas, Capitu,


em pé, de costas para mim,

inclinada sobre a costura, como a recolhê-la, perguntava em voz


alta:

--Mas, Bentinho, que é protonotário apostólico?

--Ora, vivam! exclamou o pai.

-- Que susto, meu Deus!

Agora é que o lance é o mesmo; mas se conto aqui, tais quais, ou


dous lances de há quarenta anos, é

para mostrar que Capitu não se dominava só em presença da mãe,


o pai não lhe meteu mais medo

No meio de uma situação que me atava a língua, usava da palavra


com a maior ingenuidade deste

mundo. A minha persuasão é que coração não lhe batia mais nem
menos. Alegou susto, e deu à cara

um ar meio enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e
Fiquei com inveja. Foi logo falar

ao pai, que apertou a minha mão, e quis saber por que a filha falava
em protonotário apostólico.

Capitu repetiu-lhe o que ouvira de mim, e opinou logo que o pai


devia ir cumprimentar o padre em

casa dele; ela iria à minha. E coligindo os petrechos da costura,


enfiou pelo corredor, bradando

infantilmente:
-- Mamãe, jantar, papai chegou!

CAPÍTULO XXXIX / A VOCAÇÃO

Padre Cabral estava naquela primeira hora das honras em que as


mínimas congratulações valem por

odes. Tempo chega em que os dignificados recebem os louvores


como um tributo usual, cara morta,

sem agradecimentos. O alvoroço da primeira hora é melhor, esse


estado da alma que vê na

inclinação do arbusto, tocado do vento, um parabém da flora


universal, traz sensações mais íntimas

e finas que qualquer outro. Cabral ouviu as palavras de Capitu com


infinito prazer.

--Obrigado, Capitu, muito obrigado; estimo que você goste também.


Papai está bom? E mamãe? A

você não se pergunta- essa cara é mesmo de quem vende saúde. E


como vamos de rezas?

A todas as perguntas Capitu ia respondendo prontamente e bem


trazia um vestidinho melhor e os

sapatos de sair. Não entrou com a familiaridade do costume,


deteve-se um instante à porta da sala

antes de ir beijar a mão a minha mãe e ao padre. Como desse a


este duas vezes em cinco minutos, o

título de protonotário, José Dias para se desforrar da concorrência,


fez um pequeno discurso em

honra "ao coração paternal e augustíssimo de Pio IX."

--Você é um grande prosa, disse tio Cosme, quando ele acabou José
Dias sorriu sem vexame. Padre
Cabral confirmou os louvores do agregado, sem os seus
superlativos; ao que este acrescentou que o

Cardeal Mastai evidentemente fora talhado para a tiara desde o


princípio dos tempos. E, piscando-

me o olho, concluiu:

--A vocação é tudo. O estado eclesiástico é perfeitíssimo, contanto


que o sacerdote venha já

destinado do berço. Não havendo vocação, falo de vocação sincera


e real, um jovem pode muito

bem estudar as letras humanas, que também são úteis e honradas.

Padre Cabral retorquia:

--A vocação é muito, mas o poder de Deus é soberano. Um homem


pode não ter gosto à igreja e até

persegui-la, e um dia a voz de Deus lhe fala, e ele sai apóstolo; veja
S. Paulo.

--Não contesto, mas o que eu digo é outra cousa. O que eu digo é


que se pode muito bem servir a

Deus sem ser padre cá fora; pode-se ou não se pode?

--Pode-se.

--Pois então? exclamou José Dias triunfalmente, olhando em volta


de si. Sem vocação é que não há
bom padre, e em qualquer profissão liberal se serve a Deus, como
todos devemos.

--Perfeitamente, mas vocação não é só do berço que se traz.

--Homem, é a melhor.

--Um moço sem gosto nenhum à vida eclesiástica pode acabar por
ser muito bom padre; tudo é que

Deus o determine. Não me quero dar por modelo, mas aqui estou
eu que nasci com a vocação da

medicina- meu padrinho, que era coadjutor de Santa Rita, teimou


com meu pai para que me metesse

no seminário; meu pai cedeu. Pois, senhor, tomei tal gosto aos
estudos e à companhia dos padres,

que acabei ordenando-me. Mas, suponha que não acontecia assim,


e que eu não mudava de

vocação, o que é que acontecia? Tinha estudado no seminário


algumas matérias que é bom saber, e

são sempre melhor ensinadas naquelas casas.

Prima Justina interveio:

--Como? Então pode-se entrar para o seminário e não sair padre?

Padre Cabral respondeu que sim, que se podia, e, voltando-se para


mim, falou da minha vocação,

que era manifesta; os meus brinquedos foram sempre de igreja, e


eu adorava os ofícios divinos. A

prova não provava; todas as crianças do meu tempo eram devotas.


Cabral acrescentou que o reitor

de S. José, a quem contara ultimamente a promessa de minha mãe,


tinha o meu nascimento por
milagre; ele era da mesma opinião. Capitu, cosida às saias de
minha mãe, não atendia aos olhos

ansiosos que eu lhe mandava; também não parecia escutar a


conversação sobre o seminário e suas

conseqüências, e, aliás, decorou o principal, como vim a saber


depois. Duas vezes fui à janela,

esperando que ela fosse também, e ficássemos à vontade,


sozinhos, até acabar o mundo, se

acabasse, mas Capitu não me apareceu. Não deixou minha mãe,


senão para ir embora. Eram avemarias,

despediu-se.

--Vai com ela, Bentinho, disse minha mãe.

--Não precisa, não, D. Glória, acudiu ela rindo, eu sei o caminho.


Adeus, Sr. protonotário...

--Adeus, Capitu.

Tendo dado um passo no sentido de atravessar a sala, é claro que o


meu dever, o meu gosto, todos

os impulsos da idade e da ocasião eram atravessá-la de todo,


seguir a vizinha corredor fora, descer à

chácara, entrar no quintal, dar-lhe terceiro beijo, e despedir-me.


Não me importou a recusa, que

cuidei simulada, e enfiei pelo corredor; mas, Capitu que ia


depressa, estacou e fez-me sinal que

voltasse. Não obedeci; cheguei-me a ela.

--Não venha, não; amanhã falaremos.

--Mas eu queria dizer a você...


--Amanhã.

--Escuta!

--Fica!

Falava baixinho; pegou-me na mão, e pôs o dedo na mão. Uma


preta, que veio de dentro acender o

lampião do corredor, vendo-nos naquela atitude, quase às escuras,


riu de simpatia e murmurou em

tom que ouvíssemos alguma cousa que não entendi bem nem mal.
Capitu segredou-me que a

escrava desconfiara, e ia talvez contar às outras. Novamente me


intimou que ficasse, e retirou-se; eu

deixei-me estar parado, pregado, agarrado ao chão.

CAPÍTULO XL / UMA ÉGUA

Ficando só, refleti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis


as minhas fantasias. Contei-vos a

da visita imperial; disse-vos a desta casa de Engenho Novo,


reproduzindo a de Mata-cavalos... A

imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva,


rápida, inquieta, alguma vez tímida
e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e
campanhas, correndo. Creio haver

lido em Tácito que as éguas iberas concebiam pelo vento, se não foi
nele, foi noutro autor antigo,

que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste


particular, a minha imaginação era uma

grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo
cavalo de Alexandre; mas

deixemos metáforas atrevidas e impróprias dos meus quinze anos.


Digamos o caso simplesmente. A

fantasia daquela hora foi confessar a minha mãe os meus amores


para lhe dizer que não tinha

vocação eclesiástica. A conversa sobre vocação tornava-me agora


toda inteira. e, ao passo que me

assustava, abria-me uma porta de saída. "Sim, é isto, pensei; vou


dizer a mamãe que não tenho

vocação, e confesso o nosso namoro; se ela duvidar, conto-lhe o


que se passou outro dia. o penteado

e o resto..."

CAPÍTULO XLI / A AUDIÊNCIA SECRETA

O resto fez-me ficar mais algum tempo, no corredor, pensando. Vi


entrar o Doutor João da Costa, e

preparou-se logo o voltarete do costume. Minha mãe saiu da sala,


e, dando comigo, perguntou se

acompanhara Capitu.

--Não, senhora, ela foi só.

E quase investindo para ela:

--Mamãe, eu queria dizer-lhe uma cousa.

--Que é?
Toda assustada, quis saber o que é que me doía, se a cabeça, se o
peito, se o estômago, e apalpava-

me a testa para ver se tinha febre.

--Não tenho nada não, senhora.

-- Mas então que é?

-- É uma cousa, mamãe... Mas, escute, olhe, é melhor depois do


chá; logo... Não é nada mau;

mamãe assusta-se por tudo; não é cousa de cuidado.

--Não é moléstia?

--Não, senhora.

É, isso é volta de constipação. Disfarças para não tomar suadouro,


mas tu estás constipado;

conhece-se pela voz.

Tentei rir, para mostrar que não tinha nada. Nem por isso permitiu
adiar a confidência, pegou em

mim, levou-me ao quarto dela, acenda vela, e ordenou-me que lhe


dissesse tudo. Então eu

perguntei-lhe, para principiar, quando é que ia para o seminário.

--Agora só para o ano, depois das férias.

--Vou... para ficar?

--Como ficar?

--Não volto para casa?


--Voltas aos sábados e pelas férias; é melhor. Quando te ordenares
padre, vens morar comigo.

Enxuguei os olhos e o nariz. Ela afagou-me, depois quis repreender-


me, mas creio que a voz lhe

tremia, e pareceu-me que tinha os olhos úmidos. Disse-lhe que


também sentia a nossa separação.

Negou que fosse separação; era só alguma ausência, por causa dos
estudos; só os primeiros dias.

Em pouco tempo eu me acostumaria aos companheiros e aos


mestres, e acabaria gostando de viver

com eles.

--Eu só gosto de mamãe.

Não houve cálculo nesta palavra, mas estimei dizê-la, por fazer crer
que ela era a minha única
afeição; desviava as suspeitas de cima de Capitu. Quantas
intenções viciosas há assim que

embarcam, a meio caminho, numa frase inocente e pura! Chega a


fazer suspeitar que a mentira é

muita vez tão involuntária como a transpiração. Por outro lado,


leitor amigo, nota que eu queria

desviar as suspeitas de cima de Capitu, quando havia chamado


minha mãe justamente para

confirmá-las; mas as contradições são deste mundo. A verdade é


que minha mãe era cândida como

a primeira aurora, anterior ao primeiro pecado; nem por simples


intuição era capaz de deduzir uma

cousa de outra, isto é, não concluiria da minha repentina oposição


que eu andasse em segredinhos

com Capitu, como lhe dissera José Dias. Calou-se durante alguns
instantes; depois replicou-me sem

imposição nem autoridade, o que me veio animando à resistência.


Daí o falar-lhe na vocação que se

discutira naquela tarde, e que eu confessei não sentir em mim.

--Mas tu gostavas tanto de ser padre, disse ela; não te lembras que
até pedias para ir ver sair os

seminaristas de S. José, com as suas batinas? Em casa, quando José


Dias te chamava

Reverendíssimo, tu rias com tanto gosto! Como é que agora?... Não


creio, não, Bentinho. E depois...

Vocação? Mas a vocação vem com o costume, continuou repetindo


as reflexões que ouvira ao meu

professor de latim.

Como eu buscasse contestá-la, repreendeu-me sem aspereza, mas


com alguma força, e eu tornei ao

filho submisso que era. Depois, ainda falou gravemente e


longamente sobre a promessa que fizera;
não me disse as circunstâncias nem a ocasião, nem os motivos
dela, cousas que só vim a saber mais

tarde. Afirmou o principal, isto é, que a havia de cumprir, em


pagamento a Deus.

--Nosso Senhor me acudiu, salvando a tua existência, não lhe hei de


mentir nem faltar, Bentinho;

são cousas que não se fazem sem pecado, e Deus que é grande e
poderoso, não me deixaria assirn,

não, Bentinho; eu sei que seria castigada e bem castigada. Ser


padre é bom e santo; você conhece

muitos, como o Padre Cabral, que vive tão feliz com a irmã; um tio
meu também foi padre, e

escapou de ser bispo, dizem... Deixa de manha, Bentinho.

Creio que os olhos que lhe deitei foram tão queixosos que ela
emendou logo a palavra; manha, não,

não podia ser manha, sabia muito bem que eu era amigo dela, e
não seria capaz de fingir um

sentimento que não tivesse. Moleza é o que queria dizer, que me


deixas de moleza, que me fizesse

homem e obedecesse ao que cumpria, em benefício dela e para


bem da minha alma. Todas essas

cousas e outras foram ditas um pouco atropeladamente, e a voz


não lhe saía clara, mas velada e

esganada. Vi que a emoção dela era outra vez grande, mas não
recuava dos seus propósitos, e

aventurei-me a perguntar-lhe:

--E se mamãe pedisse a Deus que a dispensasse da promessa?

--Não, não peço. Estás tonto, Bentinho? E como havia de saber que
Deus me dispensava?
--Talvez em sonho; eu sonho às vezes com anjos e santos.

--Também eu, meu filho; mas é inútil... Vamos, é tarde; vamos para
a sala. Está entendido: no

primeiro ou no segundo mês do ano que vem, irás para o seminário.


O que eu quero é que saibas

bem os livros que estás estudando; é bonito, não só para ti, como
para o Padre Cabral. No seminário

há interesse em conhecer-te, porque o Padre Cabral fala de ti com


entusiasmo.

Caminhou para a porta, saímos ambos. Antes de sair, voltou-se para


mim, e quase a vi saltar-me ao

colo e dizer-me que não seria padre. Este era já o seu desejo
íntimo, à proporção que se aproximava

o tempo. Quisera um modo de pagar a dívida contraída, outra


moeda, que valesse tanto ou mais, e

não achava nenhuma.

CAPÍTULO XLII / CAPITU REFLETINDO

No dia seguinte fui à casa vizinha, logo que pude. Capitu despedia-
se de três amigas que tinham ido

visitá-la, Paula e Sancha, companheiras de colégio, aquela de


quinze, esta de dezessete anos"

primeira filha de um médico, a segunda de um comerciante de


objetos americanos. Estava abatida,

trazia um lenço atado na cabeça; a mãe contou-me que fora


excesso de leitura na véspera, antes e

depois do chá, na sala e na cama, até muito depois da meia-noite, e


com lamparina...
--Se eu acendesse vela, mamãe zangava-se. Já estou boa.

E como desatasse o lenço, a mãe disse-lhe timidamente que era


melhor atá-lo, mas Capitu

respondeu que não era preciso, estava boa.

Ficamos sós na sala; Capitu confirmou a narração da mãe,


acrescentando que passara mal por causa

do que ouvira em minha casa. Também eu lhe contei o que se dera


comigo, a entrevista com minha

mãe, as minhas súplicas, as lágrimas dela, e por fim as últimas


respostas decisivas: dentro de dous

ou três meses iria para o seminário. Que faríamos agora? Capitu


ouvia-me com atenção sôfrega,

depois sombria; quando acabei, respirava a custo, como prestes a


estalar de cólera, mas conteve-se.

Há tanto tempo que isto sucedeu que não posso dizer com
segurança se chorou deveras, ou se

somente enxugou os olhos; cuido que os enxugou somente. Vendo-


lhe o gesto peguei-lhe na mão

para animá-la, mas também eu precisava ser animado. Caímos no


canapé, e ficamos a olhar para o

ar. Minto- ela olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi
assim... Mas eu creio que Capitu

olhava para dentro de si mesma, enquanto que eu fitava deveras o


chão, o roído das fendas, duas

moscas andando e um pé de cadeira lascada. Era pouco, mas


distraía-me da aflição. Quando tornei a

olhar para Capitu, vi que não se mexia, e fiquei com tal medo que a
sacudi brandamente. Capitu

tornou cá para fora e pediu-me que outra vez lhe contasse o que se
passara com minha mãe. Satisfila,
atenuando o texto desta vez, para não amofiná-la. Não me chames
dissimulado, chama-me

compassivo; é certo que receava perder Capitu, se lhe morressem


as esperanças todas, mas doía-me

vê-la padecer. Agora, a verdade última, a verdade das verdades, é


que já me arrependia de haver

falado a minha mãe, antes de qualquer trabalho efetivo por parte


de José Dias; examinando bem,

não quisera ter ouvido um desengano que eu reputava certo, ainda


que demorado. Capitu refletia,

refletia, refletia...

CAPÍTULO XLIII / VOCÊ TEM MEDO?

De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca,


e perguntou-me se tinha medo.

--Medo?

--Sim, pergunto se você tem medo.

--Medo de quê?

--Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar...

Não entendi. Se ela me tem dito simplesmente: "Vamos embora!"


pode ser que eu obedecesse ou

não; em todo caso, entenderia. Mas aquela pergunta assim, vaga e


solta, não pude atinar o que era.

--Mas... não entendo. De apanhar?


--Sim.

--Apanhar de quem? Quem é que me dá pancada?

Capitu fez um gesto de impaciência. Os olhos de ressaca não se


mexiam e pareciam crescer. Sem

saber de mim, e, não querendo interrogá-la novamente, entrei a


cogitar donde me viriam pancadas,

e por que, e também por que é que seria preso, e quem é que me
havia de prender. Valha-me Deus!

vi de imaginação o aljube, uma casa escura e infecta. Também vi a


presiganga, o quartel dos

Barbonos e a Casa de Correção. Todas essas belas instituições


sociais me envolviam no seu

mistério, sem que os olhos de ressaca de Capitu deixassem de


crescer para mim, a tal ponto que as

fizeram esquecer de todo. O erro de Capitu foi não deixá-los crescer


infinitamente, antes diminuir

até às dimensões normais, e dar-lhe o movimento do costume.


Capitu tornou ao que era, disse-me

que estava brincando, não precisava afligir-me, e, com um gesto


cheio de graça, bateu-me na cara,

sorrindo, e disse:

--Medroso!

--Eu? Mas...
Não é nada, Bentinho. Pois quem é que há de dar pancada ao
prender você? Desculpe que eu hoje

estou meia maluca; quero brincar, e...

--Não, Capitu; você não está brincando; nesta ocasião, nenhum de


nós tem vontade de brincar.

--Tem razão, foi só maluquice; até logo.

--Como até logo?

--Está-me voltando a dor de cabeça; vou botar uma rodela de limão


nas fontes.

Fez o que disse, e atou o lenço outra vez na testa. Em seguida,


acompanhou-me ao quintal para se

despedir de mim; mas, ainda aí nos detivemos por alguns minutos,


sentados sobre a borda do poço.

Ventava, o céu estava coberto. Capitu falou novamente da nossa


separação, como de um fato certo e

definitivo, por mais que eu. receoso disso mesmo, buscasse agora
razões para animá-la. Capita,

quando não falava, riscava no chão, com um pedaço de taquara,


narizes e perfis. Desde que se

metera a desenhar, era uma das suas diversões; tudo lhe servia de
papel e lápis. Como me

lembrassem os nossos nomes abertos por ela no muro, quis fazer o


mesmo no chão, e pedi-lhe a

taquara. Não me ouviu ou não me atendeu.

CAPÍTULO XLIV / O PRIMEIRO FILHO

--Dê cá, deixe escrever uma cousa.

Capitu olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a


definição de José Dias, oblíquo e
dissimulado; levantou o olhar, sem levantar os olhos. A voz, um
tanto sumida, perguntou-me:

--Diga-me uma cousa, mas fale verdade, não quero disfarce; há de


responder com o coração na

mão.

--Que é? Diga.

--Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que
escolhia?

-- Eu?

Fez-me sinal que sim.

--Eu escolhia... mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me


perguntar isso.

--Pois sim, mas eu pergunto. Suponha você que está no seminário e


recebe a notícia de que eu vou

morrer...

--Não diga isso!

-- ...Ou que me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe
não quiser que você venha,

diga-me, você vem?

--Venho.

--Contra a ordem de sua mãe?

--Contra a ordem de mamãe.

--Você deixa seminário, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver
morrer?
--Não fale em morrer, Capitu!

Capitu teve um risinho descorado e incrédulo, e com a taquara


escreveu uma palavra no chão,

inclinei-me e li: mentiroso.

Era tão estranho tudo aquilo, que não achei resposta. Não atinava
com a razão do escrito, como não

atinava com a do falado. Se me acudisse ali uma injúria grande ou


pequena, é possível que a

escrevesse também, com a mesma taquara, mas não me lembrava


nada. Tinha a cabeça vazia. Ao

mesmo tempo tomei-me de receio de que alguém nos pudesse ouvir


ou ler. Quem, se éramos sós?

D. Fortunata chegara uma vez à porta da casa, mas entrou logo


depois. A solidão era completa.
Lembra-me que umas andorinhas passaram por cima do quintal e
foram para os lados do morro de

Santa Teresa; ninguém mais. Ao longe, vozes vagas e confusas, na


rua um tropel de bestas, do lado

da casa o chilrear dos passarinhos do Pádua. Nada mais, ou


somente este fenômeno curioso, que o

nome escrito por ela, não só me espiava do chão com gesto


escarninho, mas até me pareceu que

repercutia no ar. Tive então uma idéia ruim; disse-lhe que, afinal de
contas, a vida de padre não era

má, e eu podia aceitá-la sem grande pena. Como desforço, era


pueril; mas eu sentia a secreta

esperança de vê-la atirar-se a mim lavada em lágrimas. Capitu


limitou-se a arregalar muito os olhos,

e acabou por dizer:

--Padre é bom, não há dúvida; melhor que padre só cônego, por


causa das meias roxas. O roxo é cor

muito bonita. Pensando bem, é melhor cônego.

--Mas não se pode ser cônego sem ser primeiramente padre, disse-
lhe eu mordendo os beiços.

--Bem; comece pelas meias pretas, depois virão as roxas. O que eu


não quero perder é a sua missa

nova; avise-me a tempo para fazer um vestido à moda saia balão e


babados grandes. . . Mas talvez

nesse tempo a moda seja outra. A igreja há de ser grande, Carmo


ou S. Francisco.

--Ou Candelária.

--Candelária também. Qualquer serve, contanto que eu ouça a


missa nova. Hei de fazer um figurão.
Muita gente há de perguntar: "Quem é aquela moça faceira que ali
está com um vestido tão

bonito?"--"Aquela é D. Capitolina, uma moça que morou na Rua de


Mata-cavalos... "

--Que morou? Você vai mudar-se?

--Quem sabe onde é que há de morar amanhã? disse ela com um


tom leve de melancolia; mas

tornando logo ao sarcasmo: E você no altar, metido na alva, com a


capa de ouro por cima,

cantando... Pater noster...

Ah! como eu sinto não ser um poeta romântico para dizer que isto
era um duelo de ironias! Contaria

os meus botes e os dela, a graça de um e a prontidão de outro, e o


sangue correndo, e o furor na

alma, até ao meu golpe final que foi este:

--Pois sim, Capitu, você ouvirá a minha missa nova, mas com uma
condição.

Ao que ela respondeu:

--Vossa Reverendíssima pode falar.

--Promete uma cousa?

--Que é?

--Diga se promete.

--Não sabendo o que é, não prometo.

--A falar verdade são duas cousas, continuei eu, por haver-me
acudido outra idéia.
--Duas? Diga quais são.

--A primeira é que só se há de confessar comigo, para eu lhe dar a


penitência e a absolvição. A

segunda é que...

--A primeira está prometida, disse ela vendo-me hesitar, e


acrescentou que esperava a segunda.

Palavra que me custou, e antes não me chegasse a sair da boca:


não ouviria o que ouvi, e não

escreveria aqui uma cousa que vai talvez achar incrédulos.

-- A segunda... sim... é que... Promete-me que seja eu o padre que


case você?

--Que me case? disse ela um tanto comovida.

Logo depois fez descair os lábios, e abanou a cabeça.


--Não, Bentinho, disse, seria esperar muito tempo, você não vai ser
padre já amanhã, leva muitos

anos... Olhe, prometo outra cousa; prometo que há de batizar o


meu primeiro filho.

CAPÍTULO XLV / ABANE A CABEÇA, LEITOR

Abane a cabeça leitor; faça todos os gestos de incredulidade.


Chegue a deitar fora este livro, se o

tédio já o não obrigou a isso antes tudo é possível. Mas, se o não


fez antes e só agora, fio que torne

a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso
na veracidade do autor. Todavia,

não há nada mais exato. Foi assim mesmo que Capitu falou, com
tais palavras e maneiras. Falou do

primeiro filho, como se fosse a primeira boneca.

Quanto ao meu espanto, se também foi grande, veio de mistura


com uma sensação esquisita.

Percorreu-me um fluido. Aquela ameaça de um primeiro filho, o


primeiro filho de Capitu, o

casamento dela com outro, portanto, a separação absoluta, a


perda, a aniquilação, tudo isso produzia

um tal efeito, que não achei palavra nem gesto fiquei estúpido.
Capitu sorria; eu via o primeiro filho

brincando no chão...

CAPÍTULO XLVI / AS PAZES

As Pazes fizeram-se como a guerra, depressa. Buscasse eu neste


livro a minha glória, e diria que as

negociações partiram de mim, mas não, foi ela que as iniciou.


Alguns instantes depois, como eu
estivesse cabisbaixo, ela abaixou também a cabeça, mas voltando
os olhos para cima a fim de ver os

meus. Fiz-me de rogado; depois quis levantar-me para ir embora;


mas nem me levantei, nem sei se

iria. Capitu fitou-me uns olhos tão ternos, e a posição os fazia tão
súplices, que me deixei ficar,

passei-lhe o braço pela cintura, ela pegou-me na ponta dos dedos,


e...

Outra vez D. Fortunata apareceu à porta da casa; não sei para que,
se nem me deixou tempo de

puxar o braço; desapareceu logo. Podia ser um simples descargo de


consciência, uma cerimônia,

como as rezas de obrigação, sem devoção, que se dizem de tropel;


a não ser que fosse para certificar

aos próprios olhos a realidade que o coração lhe dizia...

Fosse o que fosse, o meu braço continuou a apertar a cintura da


filha, e foi assim que nos

pacificamos. O bonito é que cada um de nós queria agora as culpas


para si, e pedíamos

reciprocamente perdão. Capitu alegava a insônia, a dor de cabeça,


o abatimento do espírito, e

finalmente "os seus calundus." Eu, que era muito chorão por esse
tempo, sentia os olhos molhados...

Era amor puro, era efeito dos padecimentos da amiguinha, era a


ternura da reconciliação.

CAPÍTULO XLVII / "A SENHORA SAIU"

--Está bom, acabou, disse eu finalmente; mas, explique-me só uma


cousa, por que é que você me

perguntou se eu tinha medo de apanhar?


--Não foi por nada, respondeu Capitu, depois de alguma hesitação...
Para que bulir nisso?

--Diga sempre. Foi por causa do seminário?

--Foi; ouvi dizer que lá dão pancada... Não? Eu também não creio.

A explicação agradou-me; não tinha outra. Se, como penso, Capitu


não disse a verdade, força é

reconhecer que não podia dizê-la, e a mentira é dessas criadas que


se dão pressa em responder às

visitas que "a senhora saiu", quando a senhora não quer falar a
ninguém. Há nessa cumplicidade um

gosto particular; o pecado em comum iguala por instantes a


condição das pessoas, não contando o

prazer que dá a cara das visitas enganadas, e as costas com que


elas descem... A verdade não saiu,

ficou em casa, no coração de Capitu, cochilando o seu


arrependimento. E eu não desci triste nem

zangado; achei a criada galante, apetecível. melhor que a ama.

As andorinhas vinham agora em sentido contrário, ou não seriam as


mesmas. Nós é que éramos os

mesmos; ali ficamos somando as nossas ilusões, os nossos temores,


começando já a somar as nossas

saudades.
CAPÍTULO XLVIII / JURAMENTO DO POÇO

--Não! exclamei de repente.

--Não quê?

Tinha havido alguns minutos de silêncio, durante os quais refleti


muito e acabei por uma idéia; o

tom da exclamação, porém, foi tão alto que espantou a minha


vizinha.

--Não há de ser assim, continuei. Dizem que não estamos em idade


de casar, que somos crianças,

criançolas,--já ouvi dizer criançolas. Bem; mas dous ou três anos


passam depressa. Você jura uma

cousa? lura que só há de casar comigo?

Capitu não hesitou em jurar, e até lhe vi as faces vermelhas de


prazer. Jurou duas vezes e uma

terceira:

--Ainda que você case com outra, cumprirei o meu juramento, não
casando nunca.

--Que eu case com outra?

--Tudo pode ser. Bentinho. Você pode achar outra moça que lhe
queira, apaixonar-se por ela e

casar. Quem sou eu para você lembrar-se de mim nessa ocasião?

--Mas eu também juro! Juro, Capitu, juro por Deus Nosso Senhor
que só me casarei com você.
Basta isto?

--Devia bastar, disse ela; eu não me atrevo a pedir mais. Sim, você
jura... Mas juremos por outro

modo; juremos que nos havemos de casar um com outro, haja o que
houver.

Compreendeis a diferença, era mais que a eleição do cônjuge, era a


afirmação do matrimônio. A

cabeça da minha amiga sabia pensar claro e depressa. Realmente,


a fórmula anterior era limitada,

apenas exclusiva. Podíamos acabar solteirões, como o sol e a lua,


sem mentir ao juramento do poço.

Esta fórmula era melhor, e tinha? a vantagem de me fortalecer o


coração contra a investidura

eclesiástica. Juramos pela segunda fórmula, e ficamos tão felizes


que todo receio de perigodesapareceu. Éramos religiosos, tínhamos
o céu por testemunha. Eu nem já temia o seminário.

--Se teimarem muito, irei; mas faço de conta que é um colégio


qualquer; não tomo ordens.

Capitu temia a nossa separação, mas acabou aceitando este alvitre,


que era o melhor. Não

afligíamos minha mãe, e o tempo correria até o ponto em que o


casamento pudesse fazer-se. Ao

contrário, qualquer resistência ao seminário confirmaria a denúncia


de José Dias. Esta reflexão não

foi minha, mas dela.

CAPÍTULO XLIX / UMA VELA AOS SÁBADOS

Eis aqui como, após tantas canseiras, tocávamos o porto a que nos
devíamos ter abrigado logo. Não
nos censures, piloto de má morte, não se navegam corações como
os outros mares deste mundo.

Estávamos contentes, entramos a falar do futuro. Eu prometia à


minha esposa uma vida sossegada e

bela, na roça ou fora da cidade. Viríamos aqui uma vez por ano. Se
fosse em arrabalde, seria longe,

onde, ninguém nos fosse aborrecer. A casa, na minha opinião, não


devia ser grande nem pequena,

um meio-termo; plantei-lhe flores, escolhi móveis, uma sege e um


oratório. Sim, havíamos de ter

um oratório bonito, alto, de jacarandá, com a imagem de Nossa


Senhora da Conceição. Demorei-me

mais nisto que no resto, em parte porque éramos religiosos, em


parte para compensar a batina que

eu ia deitar às urtigas- mas ainda restava uma parte que atribuo ao


intuito secreto e inconsciente de

captar a proteção do céu. Havíamos de acender uma vela aos


sábados...

CAPÍTULO L / UM MEIO-TERMO

Meses depois fui para o seminário de S. José. Se eu pudesse contar


as lágrimas que chorei na

véspera e na manhã, somaria mais que todas as vertidas desde


Adão e Eva. Há nisto alguma

exageração; mas é bom ser enfático, uma ou outra vez, para


compensar este escrúpulo de exatidão

que me aflige. Entretanto, se eu me ativer só à lembrança da


sensação, não fico longe da verdade;
aos quinze anos, tudo é infinito. Realmente, por mais preparado
que estivesse, padeci muito. Minha

mãe também padeceu, mas sofria com alma e coração; demais, o


Padre Cabral achara um meio-

termo, experimentar-me a vocação; se no fim de dous anos, eu não


revelasse vocação eclesiástica,

seguiria outra carreira.

--As promessas devem ser cumpridas conforme Deus quer. Suponha


que Nosso Senhor nega

disposição a seu filho, e que o costume do seminário não lhe dá o


gosto que me concedeu a mim, é

que a vontade divina é outra. A senhora não podia pôr em seu filho,
antes de nascido, uma vocação

que Nosso Senhor lhe recusou...

Era uma concessão do padre. Dava a minha mãe um perdão


antecipado, fazendo vir do credor a

relevação da dívida. Os olhos dela brilharam, mas a boca disse que


não. José Dias, não tendo

alcançado ir comigo para a Europa, agarrou-se ao mais próximo, e


apoiou o "alvitre do Sr.

protonotário"; só lhe parecia que um ano era bastante.

--Estou certo, disse ele, piscando-me o olho, que dentro de um ano


a vocação eclesiástica do nosso

Bentinho se manifesta clara e decisiva. Há de ser um padre de mão-


cheia. Também, se não vier em

um ano...

E a mim, mais tarde, em particular:


--Vá por um ano; um ano passa depressa. Se não sentir gosto
nenhum, é que Deus não quer, como

diz o padre, e nesse caso, meu amiguinho, o melhor remédio é a


Europa.

Capitu deu-me igual conselho, quando minha mãe lhe anunciou a


minha ida definitiva para o

seminário:

--Minha filha, você vai perder o seu companheiro de criança...

Fez-lhe tão bem este tratamento de filha (era a primeira vez que
minha mãe lhe dava), que nem teve

tempo de ficar triste; beijou-lhe a mão, e disse-lhe que já sabia


disso por mim mesmo. Em particular

animou-me a suportar tudo com paciência; no fim de um ano as


cousas estariam mudadas, e um ano

andava depressa. Não foi ainda a nossa despedida; esta fez-se na


véspera, por um modo que pede

Capítulo especial. O que unicamente digo aqui é que, ao passo que


nos prendíamos um ao outro, ela

ia prendendo minha mãe, fez-se mais assídua e terna, vivia ao pé


dela, com os olhos nela. Minha

mãe era de natural simpático, e igualmente sensível; tanto se doía


como se aprazia de qualquer

cousa. Entrou a achar em Capitu uma porção de graças novas, de


dotes finos e raros; deu-lhe um

anel dos seus e algumas galanterias. Não consentiu em fotografar-


se, como a pequena lhe pedia,

para lhe dar um retrato; mas tinha uma miniatura, feita aos vinte e
cinco anos, e, depois de algumas

hesitações, resolveu dar-lha. Os olhos de Capitu, quando recebeu o


mimo, não se descrevem, não
eram oblíquos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lúcidos.
Beijou o retrato com paixão, minha

mãe fez-lhe a mesma cousa a ela. Tudo isto me lembra a nossa


despedida.

CAPÍTULO LI / ENTRE LUZ E FUSCO

Entre luz e fusco, tudo há de ser breve como esse instante. Nem
durou muito a nossa despedida, foi

o mais que pôde, em casa dela, na sala de visitas, antes do acender


das velas; aí é que nos

despedimos de uma vez. Juramos novamente que havíamos de


casar um com outro, e não foi só o

aperto de mão que selou o contrato, como no quintal, foi a


conjunção das nossas bocas amorosas...

Talvez risque isto na impressão, se até lá não pensar de outra


maneira; se pensar. fica. E desde já

fica, porque, em verdade, é a nossa defesa. O que o mandamento


divino quer é que não juremos em

vão pelo santo nome de Deus. Eu não ia mentir ao seminário, uma


vez que levava um contrato feito

no próprio cartório do céu. Quanto ao selo, Deus, como fez as mãos


limpas, assim fez os lábios

limpos, e a malícia está antes na tua cabeça perversa que na


daquele casal de adolescentes... Oh!

minha doce companheira da meninice, eu era puro, e puro fiquei, e


puro entrei na aula de S. José, a

buscar de aparência a investidura sacerdotal, e antes dela a


vocação. Mas a vocação eras tu, a

investidura eras tu.

CAPÍTULO LII / O VELHO PÁDUA


Já agora conto também os adeuses do velho Pádua. Logo cedo veio
à nossa casa. Minha mãe disse-

lhe que fosse falar-me ao quarto.

--Dá licença? perguntou metendo a cabeça pela porta.

Fui apertar-lhe a mão; ele abraçou-me com ternura.

--Seja feliz! disse-me. A mim e a toda a minha gente creia que ficam
muitas saudades. Todos nós

estimamos muito ao senhor, como merece. Se lhe disserem outra


cousa, não acredite. São intrigas.

Também eu, quando me casei, fui vítima de intrigas; desfizeram-se.


Deus é grande e descobre a

verdade. Se algum dia perder sua mãe e seu tio,--cousa que eu, por
esta luz que me alumia, não

desejo, porque são boas pessoas, excelentes pessoas, e eu sou


grato às finezas recebidas... Não, eu

não sou como outros, certos parasitas, vindos de fora para


desunião das famílias, aduladores baixos,

não- eu sou de outra espécie; não vivo papando os jantares nem


morando em casa alheia... Enfim,

são os mais felizes!

"Por que falará assim? pensei. Naturalmente sabe que José Dias diz
mal dele."

--Mas, como ia dizendo, se algum dia perder os seus parentes, pode


contar com a nossa companhia.

Não é suficiente em importância, mas a afeição é imensa, creia.


Padre que seja, a nossa casa está às

suas ordens. Quero só que me não esqueça; não esqueça o velho


Pádua...
Suspirou e continuou:

--Não esqueça o seu velho Pádua, e, se tem algum trapinho que me


deixe em lembrança, um

caderno latino, qualquer cousa, um botão de colete, cousa que já


lhe não preste para nada. O valor é

a lembrança. Tive um sobressalto. Havia embrulhado em um papel


um cacho dos meus cabelos, tão

grandes e tão bonitos, cortados na véspera. A intenção era levá-los


a Capitu, ao sair; mas tive idéia

de dá-lo ao pai, a filha saberia tomá-lo e guardá-lo. Peguei do


embrulho e dei-lho.

--Aqui está, guarde.

--Um cachinho dos seus cabelos! exclamou Pádua abrindo e


fechando o embrulho. Oh! obrigado!

obrigado por mim e pela minha gente! Vou dá-lo à velha, para
guardá-lo, ou à pequena, que é mais

cuidadosa que a mãe. Que lindos que são! Como é que se corta uma
beleza destas? Dê cá um

abraço! outro! mais outro! adeus!

Tinha os olhos úmidos deveras; levava a cara dos desenganados,


como quem empregou em um só

bilhete todas as suas economias de esperanças, e vê sair branco o


maldito número,--um número tão

bonito!

CAPÍTULO LIII / A CAMINHO!


Fui para o seminário. Poupa-me as outras despedidas. Minha mãe
apertava-me ao peito. Prima

Justina suspirava. Talvez chorasse mal ou nada. Há pessoas a quem


as lágrimas não acodem logo

nem nunca, diz-se que padecem mais que as outras. Prima Justina
disfarçava naturalmente os seus

padecimentos íntimos, emendando os descuidos de minha mãe,


fazendo-me recomendações, dando

ordens. Tio Cosme, quando eu lhe beijei a mão em despedida,


disse-me rindo:

--Anda lá, rapaz, volta-me papa!

José Dias, composto e grave, não dizia nada a princípio; tínhamos


falado na véspera, no quarto dele,

onde fui ver se era ainda possível evitar o seminário. Já não era,
mas deu-me esperanças e

principalmente animou-me muito. Antes de um ano estaríamos a


bordo. Como eu achasse muito

breve, explicou-se.

--Dizem que não é bom tempo de atravessar o Atlântico, vou


indagar; se não for, iremos em março

ou abril.

--Posso estudar medicina aqui mesmo.

José Dias correu os dedos pelos suspensórios com um gesto de


impaciência, apertou os beiços, até
que formalmente rejeitou o alvitre.

--Não duvidaria aprovar a idéia, disse ele, se na Escola de Medicina


não ensinassem,

exclusivamente, a podridão alopata. A alopatia é o erro dos


séculos, e vai morrer; é o assassinato, é

a mentira, é a ilusão. Se lhe disserem que pode aprender na Escola


de Medicina aquela parte da

ciência comum a todos os sistemas, é verdade; a alopatia é erro na


terapêutica. Fisiologia, anatomia,

patologia, não são alopáticas nem homeopáticas, mas é melhor


aprender logo tudo de uma vez, por

livros e por língua de homens cultores da verdade...

Assim falara na véspera e no quarto. Agora não dizia nada, ou


proferia algum aforismo sobre a

religião e a família; lembro-me deste: "Dividi-lo com Deus é ainda


possuí-lo". Quando minha mãe

me deu o último beijo: "Quadro amantíssimo!" suspirou ele. Era


manhã de um lindo dia. Os

moleques cochichavam; as escravas tomam a bênção: "Bênção, nhô


Bentinho! não se esqueça de

sua Joana! Sua Miquelina fica rezando por vosmecê!" Na rua José
Dias insistiu nas esperanças:

--Agüente um ano; até lá tudo estará arranjado.

CAPÍTULO LIV / PANEGÍRICO DE SANTA MÔNICA

No Seminário... Ah! não vou contar o seminário, nem me bastaria a


isso um Capítulo. Não, senhor

meu amigo; algum dia. sim, é possível que componha um abreviado


do que ali vi e vivi, das pessoas
que tratei, dos costumes, de todo o resto. Esta sarna de escrever,
quando pega aos cinqüenta anos,

não despega mais. Na mocidade é possível curar-se um homem


dela; e, sem ir mais longe, aqui

mesmo no seminário tive um companheiro que compôs versos, à


maneira dos de Junqueira Freire,

cujo livro de frade-poeta era recente. Ordenou-se anos depois


encontrei-o no coro de S. Pedro e

pedi-lhe que me mostrasse os versos novos.

--Que versos? perguntou meio espantado.

--Os seus. Pois não se lembra que no seminário...

--Ah! sorriu ele.

Sorriu, e continuando a procurar num livro aberto a hora em que


tinha de cantar no dia seguinte,

confessou-me que não fizera mais versos depois de ordenado.


Foram cócegas da mocidade; coçou-

se, passou, estava bom. E falou-me em prosa de uma infinidade de


cousas do dia. a vida cara, um

sermão do padre X..., uma vigairaria mineira...

Contrário a isso foi um seminarista que não seguiu a carreira.


Chamava-se... Não é preciso dizer o

nome; baste o caso. Tinha composto um Panegírico de Santa


Mônica, elogiado por algumas pessoas

e então lido entre os seminaristas. Alcançou licença de imprimi-lo, e


dedicou-o a Santo Agostinho.

Tudo isso é história velha; o que é mais moço é que um dia. em


1882, indo ver certo negócio em
repartição de marinha, ali dei com este meu colega, feito chefe de
uma seção administrativa.

Deixara seminário, deixara letras, casara e esquecera tudo, menos


o Panegírico de Santa Mônica,

umas vinte e nove páginas, que veio distribuindo pela vida fora.
Como eu precisasse de algumas

informações, fui pedir-lhas, e seria impossível achar melhor nem


mais pronta vontade; deu-me tudo,

claro, certo, copioso Naturalmente conversamos do passado,


memórias pessoais, casos de estudo,

incidentes de nada, um livro, um verbo, um mote, toda a velha


palhada saiu cá fora, e rimos juntos,

e suspiramos de companhia. Vivemos algum tempo do nosso velho


seminário. Ou porque eram

dele, ou porque éramos então moços, as recordações traziam tal


poder de felicidade que, se alguma

sombra contrária houve então, não apareceu agora. Ele confessou-


me que perdera de vista todos os

companheiros do seminário.

--Também eu, quase todos; uma vez ordenados, voltaram


naturalmente às suas províncias, e os

daqui tomaram vigairarias fora.

-- Bom tempo! suspirou ele.

E, após alguma reflexão, fitando em mim uns olhos murchos e


teimosos, perguntou-me:
--Conservou o meu Panegírico?

Não achei que dizer; tentei mover os beiços, mas não tinha palavra,
afinal perguntei:

--Panegírico? Que panegírico?

--O meu Panegírico de Santa Mônica.

Não me lembrou logo, mas a explicação devia bastar; e depois de


alguns instantes de pesquisa

mental, respondi que por muito tempo o conservara, mas as


mudanças, as viagens...

--Hei de levar-lhe um exemplar.

Antes de vinte e quatro horas estava em minha casa, com o folheto,


um velho folheto de vinte e seis

anos, encardido, manchado do tempo, mas sem lacuna, e com uma


dedicatória manuscrita e

respeitosa.

--É o penúltimo exemplar, disse-me; agora só me resta um, que não


posso dar a ninguém.

E como me visse folhear o opúsculo:

--Veja se lhe lembra algum pedaço, disse-me.

Vinte e seis anos de intervalo fazem morrer amizades mais


estreitas e assíduas, mas era cortesia, era
quase caridade recordar alguma lauda; li uma delas, acentuando
certas frases para lhe dar a

impressão de que achavam eco em minha memória. Concordou que


fossem belas, mas preferia

outras, e apontou-as.

--Recorda-se bem?

--Perfeitamente. Panegírico de Santa Mônica! Como isto me faz


remontar os anos da minha

mocidade! Nunca me esqueceu o seminário, creia. Os anos passam,


os acontecimentos vêm uns

sobre outros, e as sensações também, e vieram amizades novas


que também se foram depois, como

é lei da vida... Pois, meu caro colega, nada fez apagar aquele tempo
da nossa convivência, os

padres, as lições, os recreios... os nossos recreios, lembra-se? o


Padre Lopes, oh! o Padre Lopes...

Ele, com os olhos no ar, devia estar ouvindo, e naturalmente ouvia,


mas só me disse uma palavra, e

ainda assim depois de algum tempo de silêncio, recolhendo os


olhos e um suspiro!

--Tem agradado muito este meu Panegírico!

CAPÍTULO LV / UM SONETO

Dita a palavra, apertou-me as mãos com as forças todas de um


vasto agradecimento, despediu-se e

saiu. Fiquei só com o Panegírico, e o que as folhas dele me


lembraram foi tal que merece um
Capítulo ou mais. Antes, porém, e porque também eu tive o meu
Panegírico, contarei a história de

um soneto que nunca fiz: era no tempo do seminário, e o primeiro


verso é o que ides ler:

Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!

Como e por que me saiu este verso da cabeça, não sei; saiu assim,
estando eu na cama como uma

exclamação solta, e, ao notar que tinha a medida de verso, pensei


em compor com ele alguma

cousa, um soneto. A insônia, musa de olhos arregalados, não me


deixou dormir uma longa hora ou

duas; as cócegas pediam-me unhas, e coçava-me com alma. Não


escolhi logo, logo, o soneto; a

princípio cuidei de outra forma, e tanto de rima como de verso


solto. r afinal ative-me ao soneto.

Era um poema breve e prestadio. Qual à idéia, o primeiro verso não


era ainda uma idéia, era uma

exclamação; a idéia viria depois. Assim na cama, envolvido no


lençol. tratei de poetar. Tinha o

alvoroço da mãe que sente o filho, e o primeiro filho. Ia ser poeta,


ia competir com aquele monge da

Bahia pouco antes revelado, e então na moda; eu, seminarista, diria


em verso as minhas tristezas,

como ele dissera as suas no claustro. Decorei bem o verso, e


repetia-o em voz baixa, aos lençóis;

francamente achava-o bonito, e ainda agora não me parece mau:

Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!


Quem era a flor? Capitu, naturalmente; mas podia ser a virtude, a
poesia, a religião, qualquer outro

conceito a que coubesse a metáfora da flor, e flor do céu. Aguardei


o resto, recitando sempre verso,

e deitado ora sobre o lado direito, ora sobre o esquerdo; afinal


deixei-me estar de costas, com os

olhos no tecto, mas nem assim. vinha mais nada. Então adverti que
os sonetos mais gabados eram

os que concluíam com chave de ouro, isto é, um desses versos


capitas no sentido e na forma. Pensei

em forjar uma de tais chaves, considerando que o verso final,


saindo cronologicamente dos treze

anteriores, com dificuldade traria a perfeição louvada; imaginei que


tais chaves eram fundidas antes

da fechadura. Assim foi que me deter minei a compor o último


verso do soneto, e, depois de muito

suar, saiu este:

Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

Sem vaidade, e falando como se fosse de outro, era um verso


magnífico. Sonoro, não há dúvida. E

tinha um pensamento, a vitória ganha à custa da própria vida,


pensamento alevantado e nobre. Que

não fosse novidade, é possível, mas também não era vulgar; e


ainda agora não explico por que via

misteriosa entrou numa cabeça de tão poucos anos. Naquela


ocasião achei-o sublime. Recitei uma e

muitas vêzes a chave de ouro, depois repeti os dous versos


seguidamente, e dispus-me a ligá-los

pelos doze centrais. A idéia agora, à vista do último verso, pareceu-


me melhor não ser Capitu; seria

a justiça. Era mais próprio dizer que, na pugna pela justiça, perder-
se-ia acaso a vida, mas a batalha
ficava ganha. Também me ocorreu aceitar a batalha, no sentido
natural, e fazer dela a luta pela

pátria, por exemplo; nesse caso a flor do céu seria a liberdade. Esta
acepção porém, sendo o poeta

um seminarista, podia não caber tanto como a primeira, e gastei


alguns minutos em escolher uma ou

outra. Achei melhor a justiça, mas afinal aceitei definitivamente


uma idéia nova a caridade, e recitei

os dous versos, cada um a seu modo, um languidamente:

Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura

e o outro com grande brio:

Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

A sensação que tive é que ia sair um soneto perfeito. Começar bem


e acabar bem não era pouco.

Para me dar um banho de inspiração, evoquei alguns sonetos


célebres, e notei que os mais deles

eram facílimos; os versos saíam uns dos outros, com a idéia em si,
tão naturalmente, que se não

acabava de crer se ela é que os fizera, se eles é que a suscitavam.


Então tornava ao meu soneto, e

novamente repetia o primeiro verso e esperava o segundo; o


segundo não vinha, nem terceiro, nem

quarto; não vinha nenhum. Tive alguns ímpetos de raiva, e mais de


uma vez pensei em sair da cama

e ir ver tinta e papel; pode ser que, escrevendo, os versos


acudissem, mas...

Cansado de esperar, lembrou-me alterar o sentido do último verso,


com a simples transposição de
duas palavras, assim:

Ganha-se a vida, perde-se a batalha!

O sentido vinha a ser justamente o contrário; mas talvez isso


mesmo trouxesse a inspiração. Neste

caso, era uma ironia: não exercendo a caridade, pode-se ganhar a


vida, mas perde-se a batalha do

céu. Criei forças novas e esperei. Não tinha janela; se tivesse, é


possível que fosse pedir uma idéia à

noite. E quem sabe se os vagalumes luzindo cá embaixo, não


seriam para mim como rimas das

estrelas, e esta viva metáfora não me daria os versos esquivos,


com os seus consoantes e sentidos

próprios?

Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos.


Pelo tempo adiante escrevi algumas

páginas em prosa, e agora estou compondo esta narração, não


achando maior dificuldade que

escrever, bem ou mal. Pois, senhores, nada me consola daquele


soneto que não fiz. Mas, como eu

creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as


demais obras de arte, por uma

razão de ordem metafísica, dou esses dous versos ao primeiro


desocupado que os quiser. Ao

domingo, ou se estiver chovendo, ou na roça, em qualquer ocasião


de lazer, pode tentar ver se o

soneto sai. Tudo é dar-lhe uma idéia e encher o centro que falta.
CAPÍTULO LVI / UM SEMINARISTA

Tudo meia repetindo o diabo do opúsculo, com as suas letras velhas


e citações latinas. Vi sair

daquelas folhas muitos perfis de seminaristas, os irmãos


Albuquerques, por exemplo, um dos quais

é cônego na Bahia, enquanto o outro seguiu medicina e dizem


haver descoberto um específico

contra a febre amarela. Vi o Bastos, um magricela, que está de


vigário em Meia-Ponte, se não

morreu já; Luís Borges, apesar de padre, fez-se político, e acabou


senador do império... Quantas

outras caras me fitavam das páginas frias do Panegírico! Não, não


eram frias; traziam o calor da

juventude nascente, o calor do passado, o meu próprio calor. Queria


lê-las outra vez, e lograva

entender algum texto, tão recente como no primeiro dia. ainda que
mais breve. Era um encanto ir

por ele; às vezes, inconscientemente, dobrava a folha como se


estivesse lendo de verdade; creio que

era quando os olhos me caíam na palavra do fim da página, e a


mão, acostumada a ajudá-los, fazia o

seu ofício...

Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Sousa Escobar


era um rapaz esbelto, olhos

claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a


fala, como tudo. Quem não

estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se mal, não


sabendo por onde lhe pegasse. Não

fitava de rosto, não falava claro nem seguido as mãos não


apertavam as outras, nem se deixavam

apertar delas, por que os dedos, sendo delgados e curtos, quando a


gente cuidava tê-los entre os
seus, já não tinha nada. O mesmo digo dos pés, que lia depressa
estavam aqui como lá. Esta

dificuldade em pousar foi a maior obstáculo que achou para tomar


os costumes do seminário. O

sorriso era instantâneo, mas também ria folgado e largo. Uma


cousa não seria tão fugitiva, como o

resto, a reflexão; íamos dar com ele, muita vez, olhos enfiados em
si, cogitando. Respondia-nos

sempre que meditava algum ponto espiritual, ou então que


recordava a lição da véspera. Quando ele

entrou na minha intimidade pedia-me freqüentemente explicações


e repetições miúdas, e tinha

memória para guardá-las todas, até as palavras. Talvez esta


faculdade prejudicasse alguma outra.

Era mais velho que eu três anos, filho de um advogado de Curitiba,


aparentado com um comerciante

do Rio de Janeiro, que servia de correspondente ao pai. Este era


homem de fortes sentimentos

católicos. Escobar tinha uma irmã, que era um anjo, dizia ele.

--Não é só na beleza que é um anjo, mas também na bondade. Não


imagina que boa criatura que ela

é. Escreve-me muita vez, hei de mostrar-lhe as cartas dela.

De fato, eram simples e afetuosas, cheias de carícias e conselhos.


Escobar contava-me histórias

dela, interessantes, todas as quais vinham a dar na bondade e no


espírito daquela criatura; tais eram

que me fariam capaz de acabar casando com ela se não fosse


Capitu. Morreu pouco depois. Eu,

seduzido pelas palavras dele, estive quase a contar-lhe logo, logo,


a minha história. A princípio, fui
tímido, mas ele fez-se entrado na minha confiança. Aqueles modos
fugitivos, cessavam quando ele

queria, e o meio e o tempo os fizeram mais pousados. Escobar veio


abrindo a alma toda, desde a

porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é


uma casa assim disposta, não

raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também
as há fechadas e escuras, sem

janelas ou com poucas e gradeadas, à semelhança de conventos e


prisões. Outrossim, capelas e

bazares, simples alpendres ou paços suntuosos.

Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem dom
casmurro; o receio é que me tolhia

a franqueza, mas como as portas não tinham chaves nem


fechaduras, bastava empurrá-las, e

Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até


que...

CAPÍTULO LVII / DE PREPARAÇÃO

Ah! Mas não eram só os seminaristas que me iam saindo daquelas


folhas velhas do Panegírico. Elas

me trouxeram também sensações passadas, tais e tantas que eu


não poderia dizê-las todas, sem tirar

espaço ao resto. Uma dessas, e das primeiras quisera contá-la aqui


em latim. Não é que a matéria

não ache termos honestos em nossa língua, que é casta para os


castos, como pode ser torpe para os

torpes. Sim, leitora castíssima, como diria o meu finado José Dias
podeis ler o Capítulo até ao fim,

sem susto nem vexame.


Já agora meto a história em outro Capítulo. Por mais composto que
este me saia, há sempre no

assunto alguma cousa menos austera, que pede umas linhas de


repouso e preparação. Sirva este de

preparação. E isto é muito, leitor meu amigo; o coração, quando


examina a possibilidade do que há

de vir, as proporções dos acontecimentos e a cópia deles, fica


robusto e disposto, e o mal é menor

mal. Também, se não fica então, não fica nunca. E aqui verás tal ou
qual esperteza minha;

porquanto, ao ler o que vais ler, é provável que o aches menos cru
do que esperavas.

CAPÍTULO LVIII / O TRATADO

Foi o caso que, uma segunda-feira, voltando eu para o seminário, vi


cair na rua uma senhora. O meu

primeiro gesto, em tal caso, devia ser de pena ou de riso; não foi
uma nem outra cousa, porquanto (e

é isto que eu quisera dizer em latim), porquanto a senhora tinha as


meias mui lavadas, e não as

sujou, levava ligas de seda, e não as perdeu. Várias pessoas


acudiram, mas não tiveram tempo de a

levantar; ela ergueu-se muito vexada, sacudiu-se, agradeceu, e


enfiou pela rua próxima.

--Este gosto de imitar as francesas da Rua do Ouvidor, dizia-me José


Dias andando e comentando a

queda, é evidentemente um erro. As nossas moças devem andar


como sempre andaram, com seu

vagar e paciência, e não este tique-tique afrancesado...

Eu mal podia ouvi-lo. As meias e as ligas da senhora branqueavam


e enroscavam-se diante de mim,
e andavam, caíam, erguiam-se e iam-se embora. Quando chegamos
à esquina, olhei para a outra rua,

e vi, a distancia, a nossa desastrada, que ia no mesmo passo, tique-


tique, tique-tique...

--Parece que não se machucou, disse eu.

--Tanto melhor para ela, mas é impossível que não tenha arranhado
os joelhos; aquela presteza é

manha...

Creio que foi "manha" que ele disse; eu fiquei "nos joelhos
arranhados". Dali em diante, até o

seminário, não vi mulher na rua, a quem não desejasse uma queda,


a algumas adivinhei que traziam

as meias esticadas e as ligas justas... Tal haveria que nem levasse


meias... Mas eu as via com elas...

Ou então... Também é possível...

Vou esgarçando isto com reticências para dar uma idéia das minhas
idéias, que eram assim difusas e

confusas; com certeza não dou nada. A cabeça ia-me quente, e o


andar não era seguro. No

seminário, a primeira hora foi insuportável. As batinas traziam ar


de saias, e lembravam-me a queda

da senhora. Já não era uma só que eu via cair; todas as que eu


encontrara na rua, mostravam-me

agora de relance as ligas azuis; eram azuis. De noite, sonhei com


elas. Uma multidão de

abomináveis criaturas veio andar à roda de mim, tique-tique...


Eram belas, umas finas, outras

grossas, todas ágeis como o diabo. Acordei, busquei afugentá-las


com esconderijos e outros
métodos, mas tão depressa dormi como tornaram, e, com as mãos
presas em volta de mim, faziam

um vasto círculo de saias ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas


sobre a minha cabeça. Assim fui

até madrugada. Não dormi mais; rezei padre-nossos, ave-marias, e


credos, e sendo este livro a

verdade pura, é força confessar que tive de interromper mais de


uma vez as minhas orações para

acompanhar no escuro uma figura ao longe, tique-tique, tique-


tique... Pegava depressa na oração,

sempre no meio para concertá-la bem, como se não tivesse havido


interrupção, mas certamente não

unia a frase nova à antiga.

Vindo o mal pela manhã adiante, tentei vencê-lo, mas por um modo
que o não perdesse de todo.

Sábios da Escritura, adivinhai o que podia ser. Foi isto. Não


podendo rejeitar de mim aqueles

quadros, recorri a um tratado entre a minha consciência e a minha


imaginação. As visões feminis

seriam de ora avante consideradas como simples encarnações dos


vícios, e por isso mesmo

contempláveis, como o melhor modo de temperar o caráter e


aguerri-lo para os combates ásperos da

vida. Não formulei isto por palavras, nem foi preciso; o contrato
fez-se tacitamente, com alguma

repugnância, mas fez-se. E por alguns dias, era eu mesmo que


evocava as visões para fortalecer-me,

e não as rejeitava, senão quando elas mesmo de cansadas, se iam


embora.

CAPÍTULO LIX / CONVIVAS DE BOA MEMÓRIA


Há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou
a língua as publique. Um antigo

dizia arrenegar de conviva que tem boa memória. A vida é cheia de


tais convivas, e eu sou acaso

um deles, conquanto a prova de ter a memória fraca seja


exatamente não me acudir agora o nome de

tal antigo; mas era um antigo, e basta.

Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a


alguém que tivesse vivido por

hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente


raras circunstancias. A quem

passe a vida na mesma casa de família, com os seus eternos móveis


e costumes, pessoas e afeições,

é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. Como eu


invejo os que não esqueceram a cor

das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que
enfiei ontem Juro só que não eram

amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido
e confusão.

E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem


nos livros confusos, mas tudo

se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta
outra casta, não me aflijo nunca. O

que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as


cousas que não achei nele.

Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões


profundas! Os rios, as montanhas, as

igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com
as suas águas, as suas árvores, os

seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado


na bainha, e os clarins soltam as

notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma


imprevista que tudo se acha fora de um
livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim
podes também preencher as

minhas.

CAPÍTULO LX / QUERIDO OPÚSCULO

Assim fiz eu ao Panegírico de Santa Mônica, e fiz mais: pus-lhe não


só o que faltava da santa, mas

ainda cousas que não eram dela. Viste o soneto, as meias, as ligas,
o seminarista Escobar e vários

outros. Vais agora ver o mais que naquele dia me foi saindo das
páginas amarelas do opúsculo.

Querido opúsculo, tu não prestavas para nada, mas que mais presta
um velho par de chinelas?

Entretanto, há muita vez no casal de chinelas um como aroma e


calor de dous pés. Gastas e rotas,

não deixam de lembrar que uma pessoa as calçava de manhã, ao


erguer da cama, ou as descalçava à

noite, ao entrar ela. E se a comparação não vale, porque as chinelas


são ainda uma parte da pessoa e

tiveram o contacto dos pés, aqui estão outras lembranças, como a


pedra da rua, a porta da casa, um

assobio particular, um pregão de quitanda, como aquele das


cocadas que contei no cap. XVIII.

Justamente, quando contei o pregão das cocadas, fiquei tão curtido


de saudades que me lembrou

fazê-lo escrever por um amigo, mestre de música, e grudá-lo às


pernas do Capítulo. Se depois

jarretei o Capítulo, foi porque outro músico, a quem o mostrei, me


confessou ingenuamente não

achar no trecho escrito nada que lhe acordasse saudades. Para que
não aconteça o mesmo aos outros
profissionais que porventura me lerem, melhor é poupar ao editor
do livro o trabalho e a despesa da

gravura. Vês que não pus nada, nem ponho. Já agora creio que não
basta que os pregões de rua,

como os opúsculos de seminário, encerrem casos, pessoas e


sensações; é preciso que a gente os

tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo é calado e


incolor.

Mas, vamos ao mais que me foi saindo das páginas amarelas.

CAPÍTULO LXI / A VACA DE HOMERO

O mais foi muito. Vi saírem os primeiros dias da separação, duros e


opacos, sem embargo das

palavras de conforto que me deram os padres e os seminaristas, e


as de minha mãe e tio Cosme,

trazidas por José Dias ao seminário.

--Todos estão saudosos, disse-me este, mas a maior saudade está


naturalmente no maior dos

corações; e qual é ele? perguntou escrevendo a resposta nos olhos.

--Mamãe, acudi eu.

José Dias apertou-me as mãos com alvoroço, e logo pintou a


tristeza de minha mãe, que falava de

mim todos os dias, quase a todas as horas. Como a aprovasse


sempre, e acrescentasse alguma

palavra relativamente aos dotes que Deus lhe dera, o


desvanecimento de minha mãe nessas ocasiões
era indescritível; e contava-me tudo isso cheio de uma admiração
lacrimosa. Tio Cosme também se

enternecia muito.

--Ontem até se deu um caso interessante. Tendo eu dito à


Excelentíssima que Deus lhe dera, não um

filho, mas um anjo do céu e doutor ficou tão comovido que não
achou outro modo de vencer o

choro senão fazendo-me um daqueles elogios de galhofa que só ele


sabe. Não é preciso dizer que D.

Glória enxugou furtivamente uma lágrima. Ou ela não fosse mãe!


Que coração amantíssimo!

-- Mas, Sr. José Dias, e a minha saída daqui?

-- Isso é negócio meu. A viagem à Europa é o que é preciso, mas


pode fazer-se daqui a um ou dous

anos, em 1859 ou 1860.

--Tão tarde!

--Era melhor que fosse este mesmo ano, mas demos tempo em
tempo. Tenha paciência, vá

estudando, não se perde nada em ir sabendo já daqui alguma


cousa; e, demais, ainda não acabando

padre a vida do seminário é útil, e vale sempre entrar no mundo


ungido com os santos óleos da

teologia...

Neste ponto,--lembra-me como se fosse hoje,--os olhos de José Dias


fulguraram tão intensamente

que me encheram de espanto As pálpebras caíram depois, e assim


ficaram por alguns instantes, até
que novamente se ergueram, e os olhos fixaram-se na parede do
pátio, como que embebidos em

alguma cousa, se não era em si mesmos, depois despegaram-se da


parede e entraram a vagar pelo

pátio todo. Podia compará-lo aqui à vaca de Homero; andava e


gemia em volta da cria que acabava

de parir. Não lhe perguntei o que é que tinha, já por acanhamento,


já porque dous lentes, um deles

de teologia, vinham caminhando na nossa direção. Ao passarem por


nós, o agregado, que os

conhecia, cortejou-os com as deferências devidas, e pediu-lhes


notícias minhas.

--Por ora nada se pode afiançar, disse um deles, mas parece que
dará conta da mão.

--O que eu lhe dizia agora mesmo, acudiu José Dias. Conto ouvir-lhe
a missa nova; mas ainda que

não chegue a ordenar-se, no pode ter melhores estudos que os que


fizer aqui. Para a viagem da

existência, concluiu demorando mais as palavras, irá ungido com os


santos óleos da teologia...

Desta vez a fulguração dos olhos foi menor, as pálpebras não lhe
caíram nem as pupilas fizeram os

movimentos anteriores. Ao contrário, todo ele era atenção e


interrogação; quando muito, um sorriso

claro e amigo lhe errava nos lábios. O lente de teologia gostou da


metáfora, e disse-lho; ele

agradeceu, explicando que eram idéias que lhe escapavam no


correr da conversação; não escrevia

nem orava. Eu é que não gostei nada; e logo que os lentes se


foram, sacudi a cabeça:
--Não quero saber dos santos óleos da teologia; desejo sair daqui o
mais cedo que puder, ou já...

--Já, meu anjo, não pode ser; mas pode suceder que muito antes do
que imaginamos. Quem sabe se

este mesmo ano de 58? Tenho um plano feito, e penso já nas


palavras com que hei de expô-lo a D.

Glória; estou certo que ela cederá e irá conosco.

--Duvido que mamãe embarque.

--Veremos. Mãe é capaz de tudo; mas, com ela ou sem ela, tenho
por certa a nossa ida, e não haverá

esforço que eu não empregue, deixe estar. Paciência é que é


preciso. E não faça aqui nada que dê

lugar a censuras ou queixas; muita docilidade e toda a aparente


satisfação. Não ouviu o elogio dolente? É que você tem-se portado
bem. Pois continue.

--Mas, 1859 ou 1860 é muito tarde.

--Será este ano, replicou José Dias.

--Daqui a três meses?

--Ou seis.
--Não; três meses.

--Pois sim. Tenho agora um plano, que me parece melhor que outro
qualquer. É combinar a

ausência de vocação eclesiástica e a necessidade de mudar de ares.


Você por que não tosse?

--Por que não tusso?

--Já, já, não, mas eu hei de avisar você para tossir, quando for
preciso, aos poucos, uma tossezinha

seca, e algum fastio; eu irei preparando a Excelentíssima... Oh!


tudo isto é em benefício dela. Uma

vez que o filho não pode servir a Igreja, como deve ser servida, o
melhor modo de cumprir a

vontade de Deus é dedicá-lo a outra cousa. O mundo também é


igreja para os bons...

Pareceu-me outra vez a vaca de Homero, como se este "mundo


também é igreja para os bons", fosse

outro bezerro, irmão dos "santos óleos da teologia." Mas não dei
tempo à ternura materna, e

repliquei:

--Ah! entendo! mostrar que estou doente para embarcar, não é?

José Dias hesitou um pouco, depois explicou-se:

--Mostrar a verdade, porque, francamente, Bentinho, eu há meses


que desconfio do seu peito. Você

não anda bom do peito. Em pequeno, teve umas febres e uma


ronqueira... Passou tudo, mas há dias
em que está mais descorado. Não digo que já seria o mal, mas o
mal pode vir depressa. Numa hora

cai a casa. Por isso, se aquela santa senhora não quiser ir


conosco,--ou para que vá mais depressa,

acho que uma boa tosse... Se a tosse há de vir de verdade, melhor


é apressá-la... Deixe estar, eu

aviso...

--Bem, mas em saindo daqui não há de ser para embarcar logo; saio
primeiro, depois cuidaremos do

embarque; o embarque é que pode ficar para o ano. Não dizem que
o melhor tempo é abril ou

Maio? Pois seja maio. Primeiro deixo o seminário daqui a dous


meses...

E porque a palavra me estivesse a pigarrear na garganta, dei uma


volta rápida, e perguntei-lhe à

queima-roupa:

--Capitu como vai?

CAPÍTULO LXII / UMA PONTA DE IAGO

A pergunta era imprudente, na ocasião em que eu cuidava de


transferir o embarque. Equivalia a

confessar que o motivo principal ou único da minha repulsa ao


seminário era Capitu, e fazer crer

Improvável a viagem. Compreendi isto depois que falei; quis


emendar-me, mas nem soube como,

nem ele me deu tempo.

--Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo


enquanto não pegar algum peralta da
vizinhança, que case com ela...

Estou que empalideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo
todo. A notícia de que ela vivia

alegre, quando eu chorava todas as noites, produziu-me aquele


efeito, acompanhado de um bater de

coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvi-lo. Há alguma


exageração nisto; mas o discurso

humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e


partes diminutas, que se compensam,

ajustando-se. Por outro lado, se entendermos que a audiência aqui


não é das orelhas, senão da

memória, chegaremos à exata verdade. A minha memória ouve


ainda agora as pancadas do coração

naquele instante. Não esqueças que era a emoção do primeiro


amor. Estive quase a perguntar a José

Dias que me explicasse a alegria de Capitu, o que é que ela fazia,


se vivia rindo, cantando ou

pulando, mas retive-me a tempo, e depois outra idéia...

Outra idéia, não,--um sentimento cruel e desconhecido, o pulo


ciúme, leitor das minhas entranhas.

Tal foi o que me mordeu, ao repetir comigo as palavras de José


Dias: "Algum peralta da

vizinhança." Em verdade, nunca pensara em tal desastre. Vivia tão


nela, dela e para ela, que a

intervenção de um peralta era como uma noção sem realidade;


nunca me acudiu que havia peraltas

na vizinhança, vária idade e feitio, grandes passeadores das tardes.


Agora lembrava-me que alguns
olhavam para Capitu,--e tão senhor me sentia dela que era como se
olhassem para mim, um simples

dever de admiração e de inveja. Separados um do outro pelo


espaço e pelo destino, o mal aparecia-

me agora, não só possível mas certo. E a alegria de Capitu


confirmava a suspeita; se ela vivia alegre

é que já namorava a outro, acompanhá-lo-ia com os olhos na rua,


falar-lhe-ia à janela, às avemarias,

trocariam flores e...

E... quê? Sabes o que é que trocariam mais- se o não achas por ti
mesmo, escusado é ler o resto do

Capítulo e do livro, não acharás mais nada, ainda que eu o diga com
todas as letras da etimologia.

Mas se o achaste, compreenderás que eu, depois de estremecer,


tivesse um ímpeto de atirar-me pelo

portão fora, descer o resto dai ladeira, correr, chegar à casa do


Pádua, agarrar Capitu e intimar-lhe

que me confessasse quantos, quantos, quantos já lhe dera o


peralta da vizinhança. Não fiz nada. Os

mesmos sonhos que ora conto não tiveram, naqueles três ou quatro
minutos, esta lógica de

movimentos e pensamentos. Eram soltos, emendados e mal


emendados, com o desenho truncado e

torto, uma confusão, um turbilhão, que me cegava e ensurdecia.


Quando tornei a mim, José Dias

concluía uma frase, cujo princípio não ouvi, e o mesmo fim era
vago: "A conta que dará de si." Que

conta e quem? Cuidei naturalmente que falava ainda de Capitu, e


quis perguntar-lho, mas a vontade

morreu ao nascer, como tantas outras gerações delas. Limitei-me a


inquirir do agregado quando é

que iria a casa ver minha mãe.


-- Estou com saudades de mamãe. Posso ir já esta semana?

--Vai sábado.

--Vai sábado.

--Sábado? Ah! sim! sim! Peça a mamãe que me mande buscar


sábado! Sábado! Este sábado, não?

Que me mande buscar, sem falta.

CAPÍTULO LXIII / METADES DE UM SONHO

Fiquei ansioso pelo sábado. Até lá os sonhos perseguiam-me, ainda


acordado, e não os digo aqui

para não alongar esta parte do livro. Um só ponho, e no menor


número de palavras, ou antes porei

dous, porque um nasceu de outro, a não ser que ambos formem


duas metades de um só. Tudo isto é

obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso sexo, que perturbava


assim a adolescência de um

pobre seminarista. Não fosse ele, e este livro seria talvez uma
simples prática paroquial, se eu fosse

padre, ou uma pastoral, se bispo, ou uma encíclica, se papa, como


me recomendara tio Cosme:

"Anda lá, meu rapaz, volta-me papa!" Ah! por que não cumpri esse
desejo? Depois de Napoleão,

tenente e imperador, todos os destinos estão neste século.

Quanto ao sonho foi isto. Como estivesse a espiar os peraltas da


vizinhança, vi um destes que

conversava com a minha amiga ao pé da janela. Corri ao lugar, ele


fugiu; avancei para Capitu, mas
não estava só tinha o pai ao pé de si, enxugando os olhos e
mirando um triste bilhete de loteria. Não

me parecendo isto claro, ia pedir a explicação, quando ele de si


mesmo a deu; o peralta fora levar-

lhe a lista dos prêmios da loteria, e o bilhete saíra branco. Tinha o


número 4004. Disse-me que esta

simetria de algarismos era misteriosa e bela, e provavelmente a


roda andara mal; era impossível que

não devesse ter a sorte grande. Enquanto ele falava, Capitu dava-
me com os olhos todas as sortes

grandes e pequenas. A maior destas devia ser dada com a boca. E


aqui entra a segunda parte do

sonho. Pádua desapareceu, como as suas esperanças do bilhete,


Capitu inclinou-se para fora, eu

relancei os olhos pela rua, estava deserta. Peguei-lhe nas mãos,


resmunguei não sei que palavras, e

acordei sozinho no dormitório.

O interesse do que acabas de ler não está na matéria do sonho,


mas nos esforços que fiz para ver se

dormia novamente e pegava nele outra vez. Nunca dos nuncas


poderás saber a energia e obstinação

que empreguei em fechar os olhos, apertá-los bem, esquecer tudo


para dormir, mas não dormia.

Esse mesmo trabalho fez-me perder o sono até à madrugada. Sobre


a madrugada, consegui conciliálo,

mas então nem peraltas, nem bilhetes de loterias, nem sortes


grandes ou pequenas,--nada dos

nadas veio ter comigo. Não sonhei mais aquela noite, e dei mal as
lições daquele dia.
CAPÍTULO LXIV / UMA IDÉIA E UM ESCRÚPULO

Relendo o Capítulo passado, acode-me uma idéia e um escrúpulo. O


escrúpulo é justamente de

escrever a idéia, não a havendo mais banal na terra, posto que


daquela banalidade do sol e da lua,

que o céu nos dá todos os dias e todos os meses. Deixei o


manuscrito, e olhei para as paredes. Sabes

que esta casa do Engenho Novo, nas dimensões, disposições e


pinturas, é reprodução da minha

antiga casa de Mata-cavalos. Outrossim, como te disse no Capítulo


II, o meu fim em imitar a outra

foi ligar as duas pontas da vida, o que aliás na alcancei. Pois o


mesmo sucedeu àquele sonho do

seminário, por mais que tentasse dormir e dormisse. Donde concluo


que um dos oficiais do homem

é fechar e apertar muito os olhos a ver se continua pela noite velha


o sonho truncado da noite moça.

Tal é a idéia banal e nova que eu não quisera pôr aqui e só


provisoriamente a escrevo.

Antes de concluir este Capítulo, fui à janela indagar da noite por


que razão os sonhos hão de ser

assim tão tênues que se esgarçam ao menor abrir de olhos ou


voltar de corpo, e não continuam mais

A noite não me respondeu logo. Estava deliciosamente bela, os


morros palejavam de luar e o espaço

morria de silêncio. Como eu insistisse, declarou-me que os sonhos


já não pertencem à sua jurisdição

Quando eles moravam na ilha que Luciano lhes deu, onde ela tinha
o seu palácio, e donde os fazia

sair com as suas caras de vária feição, dar-me-ia explicações


possíveis. Mas os tempos mudaram

tudo. Os sonhos antigos foram aposentados, e os modernos moram


no cérebro da pessoa. Estes,
ainda que quisessem imitar os outros, não poderiam fazê-lo; a ilha
dos sonhos, como a dos amores,

como todas as ilhas de todos os mares, são agora objeto da


ambição e da rivalidade da Europa e dos

Estados Unidos.

Era uma alusão às Filipinas. Pois que não amo a política, e ainda
menos a política internacional,

fechei a janela e vim acabar este capítulo para ir dormir. Não peço
agora os sonhos de Luciano, nem

outros, filhos da memória ou da digestão; basta-me um sono quieto


e apagado. De manhã, com a

fresca, irei dizendo o mais da minha história e suas pessoas.

CAPÍTULO LXV / A DISSIMULAÇÃO

Chegou Sábado, chegaram outros sábados, e eu acabei afeiçoando


me à vida nova. Ia alternando a

casa e o seminário. Os padres gostavam de mim, os rapazes


também, e Escobar mais que os rapazes

e os padres. No fim de cinco semanas estive quase a contar a este


as minhas penas e esperanças;

Capitu refreou-me.

--Escobar é muito meu amigo, Capitu!

--Mas não é meu amigo.

--Pode vir a ser; ele já me disse que há de vir cá para conhecer


mamãe.
--Não importa; você não tem direito de contar um segredo que não
é só seu, mas também meu, e eu

não lhe dou licença de dizer nada a pessoa nenhuma.

Era justo, calei-me e obedeci. Outra cousa em que obedeci às suas


reflexões foi, logo no primeiro

sábado, quando eu fui à casa dela, e, após alguns minutos de


conversa, me aconselhou a ir embora.

--Hoje não fique aqui mais tempo; vá para casa, que eu lá vou logo.
É natural que D. Glória queira

estar com você muito tempo, ou todo, se puder.

Em tudo isso mostrava a minha amiga tanta lucidez que eu bem


podia deixar de citar um terceiro

exemplo, mas os exemplos não se fizeram senão para ser citados, e


este é tão bom que a omissão

seria um crime. Foi à minha terceira ou quarta vinda à casa. Minha


mãe, depois que lhe respondi às

mil perguntas que me fez sobre o tratamento que me davam, os


estudos, as relações, a disciplina, e

se me doía alguma cousa, e se dormia bem, tudo o que a ternura


das mães inventa para cansar a

paciência de um filho, concluiu voltando-se para José Dias:

--Sr. José Dias, ainda duvida que saia daqui um bom padre?

--Excelentíssima...
--E você, Capitu, interrompeu minha mãe voltando-se para a filha
do Pádua que estava na sala, com

ela,--você não acha que o nosso Bentinho dará um bom padre?

--Acho que sim, senhora, respondeu Capitu cheia de convicção.

Não gostei da convicção. Assim lhe disse, na manhã seguinte, no


quintal dela, recordando as

palavras da véspera, e lançando-lhe em rosto, pela primeira vez, a


alegria que ela mostrara desde a

minha entrada no seminário, quando eu vivia curtido de saudades.


Capitu fez-se muito séria, e

perguntou-me como é que queria que se portasse, uma vez que


suspeitavam de nós; também tivera

noites desconsoladas, e os dias, em casa dela, foram tão tristes


como os meus; podia indagá-lo do

pai e da mãe. A mãe chegou a dizer-lhe, por palavras encobertas,


que não pensasse mais em mim.

--Com D. Glória e D. Justina mostro-me naturalmente alegre, para


que não pareça que a denúncia

de José Dias é verdadeira. Se parecesse, elas tratariam de separar-


nos mais, e talvez acabassem não

me recebendo... Para mim, basta o nosso juramento de que nos


havemos de casar um com outro.

Era isto mesmo, devíamos dissimular para matar qualquer suspeita,


e ao mesmo tempo gozar toda a

liberdade anterior, e construir tranqüilos o nosso futuro. Mas o


exemplo completa-se com o que

ouvi no dia seguinte, ao almoço; minha mãe, dizendo tio Cosme que
ainda queria ver com que mão

havia eu de abençoar o povo à missa, contou que, dias antes,


estando a falar de moças que se casam
cedo, Capitu lhe dissera: "Pois a mim quem me há de casar há de
ser o padre Bentinho, eu espero

que ele se ordene!" Tio Cosme riu da graça, José Dias não
dessorriu, só prima Justina é que franziu

a testa, e olhou para mim interrogativamente. Eu, que havia olhado


para todos, não pude resistir ao

gesto da prima, e tratei de comer. Mas comi mal, estava tão


contente com aquela grande

dissimulação de Capitu que não vi mais nada, e, logo que almocei,


corri a referir-lhe a conversa e a

louvar-lhe a astúcia. Capitu sorriu de agradecida.

--Você tem razão, Capitu, concluí eu; vamos enganar toda esta
gente.

--Não é? disse ela com ingenuidade.

CAPÍTULO LXVI / INTIMIDADE

Capitu ia agora entrando na alma de minha mãe. Viviam o mais do


tempo juntas, falando de mim, a

propósito do sol e da chuva, ou de nada; Capitu ia lá coser, às


manhãs; alguma vez ficava para

jantar.

Prima Justina não acompanhava a parenta naquelas finezas, mas


não tratava de todo mal a minha

amiga. Era assaz sincera para dizer o mal que sentia de alguém, e
não sentia bem de pessoa alguma

Talvez do marido, mas o marido era morto; em todo caso, não


existiria homem capaz de competir

com ele na afeição, no trabalho e na honestidade, nas maneiras e


na agudeza de espírito. Esta
opinião, segundo tio Cosme, era póstuma, pois em vida andavam às
brigas, e os últimos seis meses

acabaram separados. Tanto melhor para a justiça dela; o louvor dos


mortos é um modo de orar por

eles. Também gostaria de minha mãe, ou se algum mal pensou dela


foi entre si e o travesseiro.

Compreende-se que, de aparência, lhe desse a estima devida. Não


penso que ela aspirasse a algum

legado- as pessoas assim dispostas excedem os serviços naturais,


fazem-se mais risonhas, mais

assíduas, multiplicam os cuidados, precedem os fâmulos. Tudo isso


era contrário à natureza de

prima Justina, feita de azedume e de implicância. Como vivesse de


favor na casa, explica-se que

não desestimasse a dona e calasse os seus ressentimentos, ou só


dissesse mal dela a Deus e ao

Diabo.

Caso tivesse ressentimentos de minha mãe, não era uma razão


mais para detestar Capitu, nem ela

precisava de razões suplementares. Contudo, a intimidade de


Capitu fê-la mais aborrecível à minha

parenta Se a princípio não a tratava mal, com o tempo trocou de


maneiras e acabou fugindo-lhe.

Capitu, atenta, desde que a não via, indagava dela e ia procurá-la.


Prima Justina tolerava esses

cuidados. A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por


mais vontade que tenha de as

infringir deslavadamente. Demais, Capitu usava certa magia que


cativa, prima Justina acabava

sorrindo, inda que azedo mas a sós com minha mãe achava alguma
palavra ruim que dizer da
menina.

Como minha mãe adoecesse de uma febre, que a pôs às portas da


morte, quis que Capitu lhe

servisse de enfermeira. Prima Justina, posto que isto a aliviasse de


cuidados penosos, não perdoou à

minha amiga a intervenção. Um dia. perguntou-lhe se não tinha que


fazer em casa, outro dia. rindo,

soltou-lhe este epigrama: "Não precisa correr tanto; o que tiver de


ser seu às mãos lhe há de ir".

CAPÍTULO LXVII / UM PECADO

Já agora não tiro a doente da cama sem contar o que se deu


comigo. Ao cabo de cinco dias, minha

mãe amanheceu tão transtornada que ordenou me mandassem


buscar ao seminário. Em vão tio

Cosme:

--Mana Glória, você assusta-se sem motivo, a febre passa...

--Não! não! mandem buscá-lo! Posso morrer, e a minha alma não se


salva, se Bentinho não estiver

ao pé de mim.

--Vamos assustá-lo.

--Pois não lhe digam nada, mas vão buscá-lo, já, já, não se
demorem.

Cuidaram fosse delírio- mas, não custando nada trazer-me, José


Dias foi incumbido do recado.
Entrou tão atordoado que me assustou. Contou particularmente ao
reitor o que havia, e recebi

licença para ir a casa. Na rua, íamos calados, ele não alterando o


passo do costume,-- a premissa

antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão,--mas


cabisbaixo e suspirando, eu

temendo ler no rosto dele alguma notícia dura e definitiva. Só me


falara na doença, como negócio

simples; mas o chamado, o silêncio, os suspiros podiam dizer


alguma cousa mais. O coração batia-

me com força, as pernas bambeavam-me, mais de uma vez cuidei


cair...

O anseio de escutar a verdade complicava-se em mim com o temor


de a saber. Era a primeira vez

que a morte me aparecia assim perto, me envolvia, me encarava


com os olhos furados e escuros.

Quanto mais andava aquela Rua dos Barbonos, mais me aterrava a


idéia de chegar a casa, de entrar,

de ouvir os prantos, de ver um corpo defunto... Oh! eu não poderia


nunca expor aqui tudo o que

senti naqueles terríveis minutos. A rua, por mais que José Dias
andasse superlativamente devagar,

parecia fugir-me debaixo dos pés, as casas voavam de um e outro


lado, e uma corneta que nessa

ocasião tocava no quartel dos Municipais Permanentes ressoava


aos meus ouvidos como a trombeta

do juízo final.

Fui, cheguei aos Arcos, entrei na Rua de Mata-cavalos. A casa não


era logo ali, mas muito além da

dos inválidos, perto da do Senado. Três ou quatro vezes, quisera


interrogar o meu companheiro,

sem ousar abrir a boca; mas agora, já nem tinha tal desejo. Ia só
andando, aceitando o pior, como
um gesto do destino, como uma necessidade da obra humana, e foi
então que a Esperança, para

combater o Terror, me segredou ao coração, não estas palavras,


pois nada articulou parecido com

palavras, mas uma idéia que poderia ser traduzida por elas:
"Mamãe defunta, acaba o seminário".

Leitor, foi um relâmpago. Tão depressa alumiou a noite, como se


esvaiu, e a escuridão fez-se mais

cerrada, pelo efeito do remorso que me ficou. Foi uma sugestão da


luxúria e do egoísmo. A piedade

filial desmaiou um instante, com a perspectiva da liberdade certa,


pelo desaparecimento da dívida e

do devedor; foi um instante, menos que um instante, o centésimo


de um instante, ainda assim o

suficiente para complicar a minha aflição com um remorso.

José Dias suspirava. Uma vez olhou para mim tão cheio de pena que
me pareceu haver-me

adivinhado, e eu quis pedir-lhe que não dissesse nada a ninguém,


que eu ia castigar-me, etc. Mas a

pena trazia tanto amor, que não podia ser pesar do meu pecado;
mas então era sempre a morte de

minha mãe... Senti uma angústia grande, um nó na garganta, e não


pude mais, chorei de uma vez.

--Que é, Bentinho?

--Mamãe...?
--Não! não! Que idéia é essa? O estado dela é gravíssimo, mas não
é mal de morte, e Deus pode

tudo. Enxugue os olhos, que é feio um mocinho da sua idade andar


chorando na rua. Não há de ser

nada, uma febre... As febres, assim como dão com força, assim
também se vão embora... Com os

dedos, não; onde está o lenço?

Enxuguei os olhos, posto que de todas as palavras de José Dias uma


só me ficasse no coração; foi

aquele gravíssimo. Vi depois que ele só queria dizer grave, mas o


uso do superlativo faz a boca

longa, e, por amor do período, José Dias fez crescer a minha


tristeza se achares neste livro algum

caso da mesma família, avisa-me, leitor para que o emende na


segunda edição; nada há mais feio

que dal pernas longuíssimas a idéias brevíssimas. Enxuguei os


olhos, repito, e fui andando, ansioso

agora por chegar a casa, e pedir perdão a minha mãe do ruim


pensamento que tive. Enfim,

chegamos, entramos, subi trêmulo os seis degraus da escada, e daí


a pouco, debruçado sobre a

cama, ouvia as palavras ternas de minha mãe que me apertava


muito as mãos, chamando-me seu

filho. Estava queimando os olhos ardiam nos meus, toda ela parecia
consumida por um vulcão

interno. Ajoelhei-me ao pé do leito, mas como este era alto, fiquei


longe das suas carícias:

--Não, meu filho, levanta, levanta!

Capitu, que estava na alcova, gostou de ver a minha entrada, os


meus gestos, palavras e lágrimas,
segundo me disse depois; mas não suspeitou naturalmente todas
as causas da minha aflição.

Entrando no meu quarto, pensei em dizer tudo a minha mãe, logo


que ela ficasse boa, mas esta idéia

não me mordia, era uma veleidade pura, uma ação que eu não faria
nunca, por mais que o pecado

me doesse Então levado do remorso, usei ainda uma vez do meu


velho meio das promessas

espirituais, e pedi a Deus que me perdoasse e salvasse a vida de


minha mãe, e eu lhe rezaria dous

mil padre-nossos. Padre que me lês, perdoa este recurso; foi a


última vez que o empreguei A crise

em que me achava, não menos que o costume e a fé, explica tudo.


Eram mais dous mil; onde iam os

antigos? Não paguei uns nem outros, mas saindo de almas cândidas
e verdadeiras tais promessas

são como a moeda fiduciária,--ainda que o devedor as não pague,


valem a soma que dizem.

CAPÍTULO LXVIII / ADIEMOS A VIRTUDE

Poucos teriam animo de confessar aquele meu pensamento da Rua


de Mata-cavalos. Eu confessarei

tudo o que importar à minha história. Montaigne escreveu de si: ce


ne sont pas mes gestes que

j'escris, c'est moi, c'est mon essence. Ora, há só um modo de


escrever a própria essência, é contá-la

toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai lembrando e
convidando à construção ou

reconstrução de mim mesmo. Por exemplo, agora que contei um


pecado, diria com muito gosto

alguma bela ação contemporânea, se me lembrasse, mas não me


lembra; fica transferida a melhor

oportunidade.
Nem perderás em esperar, meu amigo; ao contrário, acode-me
agora que... Não só as belas ações

são belas em qualquer ocasião como são também possíveis e


prováveis, pela teoria que tenho dos

pecados e das virtudes, não menos simples que clara. Reduz-se a


isto que cada pessoa nasce com

certo número deles e delas, aliados por matrimônio para se


compensarem na vida. Quando um de

tais cônjuges é mais forte que o outro, ele só guia o indivíduo, sem
que este, por não haver praticado

tal virtude ou cometido tal pecado se possa dizer isento de um ou


de outro; mas a regra é dar-se a

prática simultânea dos dous, com vantagem do portador de ambos,


e alguma vez com resplendor

maior da terra e do céu. ç pena que eu não possa fundamentar isto


com um ou mais casos estranhos;

falta-me tempo.

Pelo que me toca, é certo que nasci com alguns daqueles casais, e
naturalmente ainda os possuo. Já

me sucedeu, aqui no Engenho Novo, por estar uma noite com muita
dor de cabeça, desejar que o

trem da Central estourasse longe dos meus ouvidos e


interrompesse a linha por muitas horas, ainda

que morresse alguém; e no dia seguinte perdi o trem da mesma


estrada, por ter ido dar a minha

bengala a um cego que não trazia bordão. Voilà mes gestes, voilà
mon essence.

CAPÍTULO LXIX / A MISSA


Um dos gestos que melhor exprimem a minha essência foi a
devoção com que corri no domingo

próximo a ouvir missa em S. Antônio dos Pobres. O agregado quis ir


comigo, e principiou a vestir-

se, mas era tão lento nos suspensórios e nas presilhas, que não
pude esperar por ele. Demais, eu

queria estar só. Sentia necessidade de evitar qualquer conversação


que me desviasse o pensamento

do fim a que ia, e era reconciliar-me com Deus, depois do que se


passou no Capítulo LXVII. Nem

era só pedir-lhe perdão do pecado, era também agradecer o


restabelecimento de minha mãe, e, visto

que digo tudo, fazê-lo renunciar ao pagamento da minha promessa.


Jeová, posto que divino, ou por

isso mesmo, é um Rothschild muito mais humano, e não faz


moratórias, perdoa as dívidas

integralmente, uma vez que o devedor queira deveras emendar a


vida e cortar nas despesas. Ora, eu

não queria outra cousa; dali em diante não faria mais promessas
que não pudesse pagar, e pagaria

logo as que fizesse.

Ouvi missa; ao levantar a Deus, agradeci a vida e saúde de minha


mãe; depois pedi perdão do

pecado e revelação da dívida, e recebi a bênção final do oficiante


como um ato solene de

reconciliação. No fim, lembrou-me que a Igreja estabeleceu no


confessionário um cartório seguro, e

na confissão o mais autêntico dos instrumentos para o ajuste de


contas morais entre o homem e

Deus. Mas a minha incorrigível timidez me fechou essa porta certa;


receei não achar palavras com

que dizer ao confessor o meu segredo. Como o homem muda! Hoje


chego a publicá-lo.
CAPÍTULO LXX / DEPOIS DA MISSA

Rezei anda, persignei-me, fechei o livro de missa e caminhei para a


porta. A gente não era muita,

mas a igreja também não é grande, e não pude sair logo, logo, mas
devagar. Havia homens e

mulheres, velhos e moços, sedas e chitas, e provavelmente olhos


feios e belos, mas eu não vi uns

nem outros. Ia na direção da porta, com a onda, ouvindo as


saudações e os cochichos. No adro,

onde se fez claro, parei e olhei para todos. Vi então uma moça e um
homem, que saíam da igreja e

pararam; e a moça olhava para mim falando ao homem, e o homem


olhava para mim, ouvindo a

moça. E chegaram-me estas palavras:

--Mas que queres?

--Queria saber dela; papai pergunte.

Era sinhazinha Sancha, a companheira de colégio de Capitu que


queria notícias de minha mãe. O

pai veio a mim; disse-lhe que estava restabelecida. Depois saímos,


mostrou-me a casa dele, e, como

eu vinha na mesma direção, viemos juntos. Gurgel era homem de


quarenta anos ou pouco mais,

com propensão a engrossar o ventre; era muito obsequioso;


chegando à porta da casa, quis por força

que eu fosse almoçar com ele.

-- Obrigado; mamãe espera-me. [


-- Manda-se lá um preto dizer que o senhor fica almoçando, e ira
mais tarde.

--Venho outro dia.

Sinhazinha Sancha, voltada para o pai, ouvia e esperava. Não ela


feia; só se lhe podia notar a

semelhança do nariz, que também acabava grosso, mas há feições


que tiram a graça de uns para dála

a outros. Vestia simples. Gurgel era viúvo e morria pela filha. Como
eu recusasse o almoço, quis

que descansasse alguns minutos. Não pude recusar e subi. Quis


saber a minha idade, os meus

estudos, a minha fé, e dava-me conselhos para o caso de vir a ser


padre; disse me o número do

armazém, Rua da Quitanda. Enfim, despedi-me veio ao patamar da


escada; a filha deu-me

recomendações para Capitu e para minha mãe. Da rua olhei para


cima; o pai estava à janela e fez-

me um gesto largo de despedida.

CAPÍTULO LXXI / VISITA DE ESCOBAR

Em casa, tinham já mentido dizendo a minha mãe que eu voltara e


estava mudando de roupa.

"A missa das oito já há de ter acabado... Bentinho devia está de


volta... Teria acontecido alguma

cousa, mano Cosme?... Mandem ver..." Assim falava ela, de minuto


a minuto, mas eu entrei e
comigo a tranqüilidade.

Era o dia das boas sensações. Escobar foi visitar-me e saber da


saúde de minha mãe. Nunca me

visitara até ali, nem as nossas relações estavam Já tão estreitas,


como vieram a ser depois- mas

sabendo a razão da minha saída, três dias antes, aproveitou o


domingo para ir ter comigo e

perguntar se continuava o perigo ou não. Quando lhe disse que


não, respirou.

--Tive receio, disse ele.

--Os outros souberam?

--Parece que sim: alguns souberam.

Tio Cosme e José Dias gostaram do moço; o agregado disse-lhe que


vira uma vez o pai no Rio de

Janeiro. Escobar era muito polido e, conquanto falasse mais do que


veio a falar depois ainda assim

não era tanto como os rapazes da nossa idade; naquele dia achei-o
um pouco mais expansivo que de

costume. Tio Cosme quis que jantasse conosco. Escobar refletiu um


instante e acabou dizendo que

o correspondente do pai esperava por ele. Eu, lembrando-me das


palavras do Gurgel, repeti-as:

--Manda-se lá um preto dizer que o senhor janta aqui, e irá depois.

--Tanto incômodo!
--Incômodo nenhum, interveio tio Cosme.

Escobar aceitou e jantou. Notei que os movimentos rápidos que


tinha e dominava na aula, também

os dominava agora, na sala como na mesa. A hora que passou


comigo foi de franca amizade.

Mostrei-lhe os poucos livros que possuía. Gostou muito do retrato


de meu pai; depois de alguns

instantes de contemplação, virou-se e disse-me:

--Vê-se que era um coração puro!

Os olhos de Escobar, claros como já disse, eram dulcíssimos; assim


os definiu José Dias, depois que

ele saiu, e mantenho esta palavra, apesar dos quarenta anos que
traz em cima de si. Nisto não houve

exageração do agrado. A cara rapada mostrava uma pele alva e


lisa. A testa é que era um pouso

baixa, vindo a risca do cabelo quase em cima da sobrancelha


esquerda- mas tinha sempre a altura

necessária para não afrontar as outras feições, nem diminuir a


graça delas. Realmente, era

interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz curvo e


delgado. Tinha o sestro de sacudir o

ombro direito, de quando em quando e veio a perdê-lo, desde que


um de nós lhe notou um dia no

seminário; primeiro exemplo que vi de que um homem pode


corrigir-se muito bem dos defeitos

miúdos.

Nunca deixei de sentir tal ou qual desvanecimento em que os meus


amigos agradassem a todos. Em

casa, ficaram querendo bem a Escobar; a mesma prima Justina


achou que era um moço muito
apreciável, apesar... Apesar de quê? perguntou-lhe José Dias, vendo
que ela não acabava a frase.

Não teve resposta, nem podia tê-la; prima Justina provavelmente


não viu defeito claro ou

importante no nosso hóspede; o apesar era uma espécie de


ressalva para algum que lhe viesse a

descobrir um dia.; ou então foi obra de uso velho, que levou a


restringir, onde não achara restrição.

Escobar despediu-se logo depois de jantar; fui levá-lo à porta, onde


esperamos a passagem de um

ônibus. Disse-me que o armazém do correspondente era na Rua dos


Pescadores, e ficava aberto até

às nove horas: ele é que se não queria demorar fora. Separamo-nos


com muito afeto: ele, de dentro

do ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta,


a ver se, ao longe, ainda olharia

para trás, mas não olhou.

--Que amigo é esse tamanho? perguntou alguém de uma janela ao


pé.

Não é preciso dizer que era Capitu. São cousas que se adivinham na
vida, como nos livros, sejam

romances, sejam histórias verdadeiras. Era Capitu, que nos


espreitara desde algum tempo, por

dentro da veneziana, e agora abrira inteiramente a janela, e


aparecera. Viu as nossas despedidas tão

rasgadas e afetuosas, e quis saber quem era que me merecia tanto.


--É o Escobar, disse eu indo pôr-me embaixo da janela, a olhar para
cima.

CAPÍTULO LX / UMA REFORMA DRAMÁTICA

Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta história
poderia responder mais, tão

certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não anuncia as


peripécias nem o desfecho. Eles

chegam a seu tempo, até que o pano cai, apagam-se as luzes, e os


espectadores vão dormir. Nesse

gênero há porventura alguma cousa que reformar, e eu proporia,


como ensaio, que as peças

começassem pelo fim. Otelo mataria a si e a Desdêmona no


primeiro ato, os três seguintes seriam

dados à ação lenta e decrescente do ciúme, e o último ficaria só


com as cenas iniciais da ameaça dos

turcos, as explicações de Otelo e Desdêmona, e o bom conselho do


fino lago: "Mete dinheiro na

bolsa." Desta maneira, o espectador, por um lado, acharia no teatro


a charada habitual que os

periódicos lhe dão, por que os últimos atos explicam o desfecho do


primeiro, espécie de: conceito,

e, por outro lado, ia para a cama com uma boa impressão de


ternura e de amor:

Ela amou o que me afligira,

Eu amei a piedade dela.

CAPÍTULO LXXIII / O CONTRA-REGRA


O destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra-
regra, isto é, designa a entrada dos

personagens em cena, dá-lhes as cartas e outros objetos, e executa


dentro os sinais correspondentes

ao diálogo, uma trovoada, um carro, um tiro. Quando eu era moça


representou-se aí, em não sei que

teatro, um drama que acabar pelo juízo final. O principal


personagem era Asaverus, que no último

quadro concluía um monólogo por esta exclamação: "Ouço a


trombeta do arcanjo!" Não se ouviu

trombeta nenhuma. Asaverus, envergonhado, repetiu a palavra,


agora mais alto, para advertir o

contra-regra, mas ainda nada. Então caminhou para o fundo,


disfarçadamente trágico, mas

efetivamente com o fim de falar ao bastidor, e dizer em voz surda:


"O pisão! o pisão! o pisão!" O

público ouviu esta palavra e desatou a rir, até que, quando a


trombeta soou deveras, e Asaverus

bradou pela terceira vez que era a do arcanjo, um gaiato da platéia


corrigiu cá de baixo: "Não,

senhor, é o pistão do arcanjo"

Assim se explicam a minha estada debaixo da janela de Capitu e a


passagem de um cavaleiro, um

dandy, como então dizíamos. Montava um belo cavalo alazão, firme


na sela, rédea na mão esquerda

a direita à cinta, botas de verniz, figura e postura esbeltas: a cara


não me era desconhecida. Tinham

passado outros, e ainda outros viriam atrás; todos iam às suas


namoradas. Era uso do tempo

namorar a cavalo. Relê Alencar: "Porque um estudante (dizia um


dos seus personagens de teatro de

1858) não pode estar sem estas duas cousas, um cavalo e uma
namorada." Relê Alvares de
Azevedo. Uma das suas poesias é destinada a contar (1851) que
residia em Catumbi, e, para ver a

namorada no Catete, alugara um cavalo por três mil-réis... Três mil-


réis! tudo se perde na noite dos

tempos!

Ora, o dandy do cavalo baio não passou como os outros; era a


trombeta do juízo final e soou a

tempo; assim faz o Destino. que é o seu próprio contra-regra. O


cavaleiro não se contentou de ir

andando, mas voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitu e


olhou para Capitu, e Capitu

para ele; o cavalo andava, a cabeça do homem deixava-se ir


voltando para trás. Tal foi o segundo

dente de ciúme que me mordeu. A rigor, era natural admirar as


belas figuras; mas aquele sujeito

costumava passar ali, às tardes; morava no antigo Campo da


Aclamação, e depois... e depois... Vão

lá raciocinar com um coração de brasa, como era o meu! Nem disse


nada a Capitu; saí da rua à

pressa, enfiei pelo meu corredor, e, quando dei por mim, estava na
sala de visitas.

CAPÍTULO LXXIV / A PRESILHA

Na sala de visitas, tio Cosme e José Dias conversavam, um sentado,


outro andando e parando. A

vista de José Dias lembrou-me o que ele me dissera no seminário:


"Aquilo enquanto não pegar

algum peralta da vizinhança que case com ela..." Era certamente


alusão ao cavaleiro. Tal recordação

agravou a impressão que eu trazia da rua; mas não seria essa


palavra, inconscientemente guardada,
que me dispôs a crer na malícia dos seus olhares? A vontade que
tive foi pegar em José Dias pela

gola, levá-lo ao corredor e perguntar-lhe se falara de verdade ou


por hipótese; mas José Dias, que

parara ao ver-me entrar, continuou a andar e a falar. Eu,


impaciente, queria ir à casa ao pé,

imaginava que Capitu saísse da janela assustada e não tardasse a


aparecer, para indagar e explicar...

E os dous falavam, até que tio Cosme ergueu-se para ir ver a


doente, e José Dias veio ter comigo, ao

vão da outra janela.

Há um instante tinha eu desejo de lhe perguntar o que havia entre


Capitu e os peraltas do bairro;

agora, imaginando que vinha justamente dizer-mo, fiquei com medo


de ouvi-lo. Quis tapar-lhe a

boca. José Dias viu no meu rosto algum sinal diferente da


expressão habitual, e perguntou-me com

interesse:

--Que é, Bentinho?

Para não fitá-lo, deixei cair os olhos. Os olhos, caindo, viram que
uma das presilhas das calças do

agregado estava desabotoada, e, como ele insistisse em saber o


que é que eu tinha, respondi

apontando com o dedo:

--Olhe a presilha, abotoe a presilha.

José Dias inclinou-se, eu saí correndo.


CAPÍTULO LXXV / O DESESPERO

Escapei ao agregado, escapei a minha mãe não indo ao quarto dela,


mas não escapei a mim mesmo.

Corri ao meu quarto, e entrei atrás de mim. Eu falava-me, eu


perseguia-me, eu atirava-me à cama, e

rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços com a ponta do


lençol. Jurei não ir ver Capitu

aquela tarde, nem nunca mais, e fazer-me padre de uma vez. Via-
me já ordenado, diante dela, que

choraria de arrependimento e me pediria perdão, mas eu, frio e


sereno, não teria mais que desprezo,

muito desprezo; voltava-lhe as costas. Chamava-lhe perversa. Duas


vezes dei por mim mordendo os

dentes, como se a tivesse entre eles.

Da cama ouvi a voz dela, que viera passar o resto da tarde com
minha mãe, e naturalmente comigo,

como das outras vezes; mas, por maior que fosse o abalo que me
deu, não me fez sair do quarto e

Capitu ria alto, falava alto, como se me avisasse; eu continuei


surdo, a sós comigo e o meu

desprezo. A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no


pescoço, enterrá-las bem, até ver-lhe

sair a vida com o sangue...

CAPÍTULO LXXVI / EXPLICAÇÃO

Ao fim de algum tempo, estava sossegado, mas abatido. Como me


achasse estirado na cama, com

os olhos no tecto, lembrou-me a recomendação que minha mãe


fazia de me não deitar depois do

jantar para evitar alguma congestão. Ergui-me de golpe, mas não


saí do quarto. Capitu ria agora
menos e falava mais baixo; estaria aflita E com a minha reclusão,
mas nem por isso me abalou.

Não ceei e dormi mal. Na manhã seguinte não estava melhor,


estava diferente. A minha dor agora

complicava-se do receio de haver ido além do que convinha,


deixando de examinar o negócio.

Posto que a cabeça me doesse um pouco, simulei maior incômodo,


com o fim de não ir ao

seminário e falar a Capitu. Podia estar zangada comigo, podia não


querer-me agora e preferir o

cavaleiro. Quis resolver tudo, ouvi-la e julgá-la; podia ser que


tivesse defesa e explicação.

Tinha ambas as cousas. Quando soube a causa da minha reclusão


da véspera, disse-me que era

grande injúria que lhe fazia; não podia crer que depois da nossa
troca de juramentos, tão leviana a

julgasse que pudesse crer... E aqui romperam-lhe lágrimas, e fez


um gesto de separação; mas eu

acudi de pronto, peguei-lhe das mãos e beijei as com tanta alma e


calor que as senti estremecer.

Enxugou os olhos com os dedos, eu os beijei de novo, por eles e


pelas lágrimas; depois suspirou,

depois abanou a cabeça. Confessou-me que não conhecia o rapaz,


senão como os outros que ali

passavam às tardes, a cavalo ou a pé. Se olhara para ele, era prova


exatamente de não haver nada

entre ambos; se houvesse, era natural dissimular.


--E que poderia haver, se ele vai casar? concluiu.

--Vai casar?

Ia casar, disse-me com quem, com uma moça da Rua dos Barbonos.
Esta razão quadrou-me mais

que tudo, e ela o sentiu no meu gesto; nem por isso deixou de dizer
que, para evitar nova

equivocação, deixaria de ir mais à janela.

--Não! não! não! não lhe peço isto!

Consentiu em retirar a promessa, mas fez outra, e foi que, à


primeira suspeita da minha parte, tudo

estaria dissolvido entre nós Aceitei a ameaça, e jurei que nunca a


haveria de cumprir; era a primeira

suspeita e a última.

CAPÍTULO LXXVII / PRAZER DAS DORES VELHAS

Contando aquela crise do meu amor adolescente, sinto uma cousa


que não sei se explico bem, e é

que as dores daquela quadra, a tal ponto se espiritualizaram com o


tempo que chegam a diluir-se no

prazer. Não é claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros
A verdade é que sinto um gosto

particular em referir tal aborrecimento, quando é certo que ele me


lembra outros que não quisera

lembrar por nada.

CAPÍTULO LXXVIII / SEGREDO POR SEGREDO


De resto, naquele mesmo tempo senti tal ou qual necessidade de
contar a alguém o que se passava

entre mim e Capitu. Não referi tudo, mas só uma parte, e foi
Escobar que a recebeu. Quando voltei

ao seminário, na quarta-feira, achei-o inquieto; disse-me que era


sua intenção ir ver-me, se eu me

demorasse mais um dia em casa. Perguntava-me com interesse o


que é que tivera, e se estava bom

de todo.

--Estou.

Ouvia, espetando-me os olhos. Três dias depois disse que me


estavam achando muito distraído; era

bom disfarçar o mais que pudesse. Ele, à sua parte, tinha razões
para andar distraído também, mas

buscava ficar atento.

--Então parece-lhe?...

--Sim, você às vezes está que não ouve nada. olhando para ontem;
disfarce, Santiago.

--Tenho motivos...

--Creio; ninguém se distrai à toa.

--Escobar...

Hesitei; ele esperou.

--Que é?

--Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui ao


seminário você é a pessoa que
mais me tem entrado no coração, e lá fora, a não ser a gente da
família, não tenho propriamente um

amigo.

--Se eu disser a mesma cousa, retorquiu ele sorrindo, perde a


graça; parece que estou repetindo.

Mas a verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é
o primeiro e creio que já

notaram, mas eu não me importo com isso.

Comovido, senti que a voz se me precipitava da garganta.

--Escobar, você é capaz de guardar um segredo?

--Você que pergunta é porque duvida, e nesse caso. ..

--Desculpe, é um modo de falar. Eu sei que é moço sério, e faço de


conta que me confesso a um
padre.

--Se precisa de absolvição, está absolvido.

--Escobar, eu não posso ser padre. Estou aqui, os meus acreditam, e


esperam; mas eu não posso ser

padre.

--Nem eu, Santiago.

--Nem você?

--Segredo por segredo; também eu tenho o propósito de não acabar


o curso; meu desejo é o

comércio, mas não diga nada, absolutamente nada- fica só entre


nós. E não é que eu não seja

religioso; sou religioso, mas o comércio é a minha paixão.

--Só isso?

--Que mais há de ser?

Dei duas voltas e sussurrei a primeira palavra da minha


confidência, tão escassa e surda, que não a

ouvi eu mesmo; sei porém que disse "uma pessoa..." com


reticência. Uma pessoa?... Não foi preciso

mais para que ele entendesse. Uma pessoa devia ser uma moça.
Nem cuides que pasmou de me ver

namorado; achou até natural e espetou-me outra vez os olhos.


Então contei-lhe por alto o que podia,

mas demoradamente para ter o gosto de repisar o assunto Escobar


escutava com interesse; no fim da
nossa conversação declarou-me que era segredo enterrado em
cemitério. Deu-me de conselhos que

não me fizesse padre. Não podia levar para a igreja um coração que
não era do céu, mas da terra;

seria um mau padre, nem seria padre. Ao contrário, Deus protegia


os sinceros; uma vez que eu só

podia servi-lo no mundo, aí me cumpria ficar.

Não calculas o prazer que me deu a confidência que lhe fiz. Era
como que uma felicidade mais.

Aquele coração moço que me ouvia e me dava razão, trazia a este


mundo um aspecto

extraordinário. Era um grande e belo mundo, a vida uma carreira


excelente, e eu nem mais nem

menos um mimoso do céu; eis a minha sensação. Nota que eu não


lhe disse tudo, nem o melhor;

não lhe referi o Capítulo do penteado, por exemplo, nem outros


assim; mas o contado era multo.

Que voltamos ao assunto, não é preciso dizê-lo. Voltamos uma e


muitas vezes: eu louvava as

qualidades morais de Capitu, matéria adequada à admiração de um


seminarista, a simpleza, a

modéstia. O amor do trabalho e os costumes religiosos. Não lhe


tocava nas graças físicas, nem ele

me perguntava por elas; apenas insinuei a conveniência de a


conhecer de vista.

--Agora não é possível, disse-lhe na primeira semana, ao voltar de


casa; Capitu vai passar uns dias

com uma amiga da Rua dos Inválidos. Quando ela vier, você irá lá;
mas pode ir antes, pode ir

sempre; por que não foi ontem jantar comigo?


--Você não me convidou.

-- Pois precisa convidar? Lá em casa todos ficaram gostando muito


de você.

--Também eu fiquei gostando de todos, mas é possível fazer


distinção, confesso-lhe que sua mãe é

uma senhora adorável.

--Não é verdade? retorqui cheio de alvoroço.

CAPÍTULO LXXIX / VAMOS AO CAPÍTULO

Com efeito, gostei de ouvi-lo falar assim. Sabes a opinião que eu


tinha de minha mãe. Ainda agora,

depois de interromper esta linha para mirar-lhe o retrato que


pende da parede, acho que trazia no

rosto impressa aquela qualidade. Nem de outro modo se explica a


opinião de Escobar, que apenas

trocara com ela quatro palavras Uma só bastava a penetrar-lhe a


essência íntima; sim, sim, minha

mãe era adorável. Por mais que me estivesse então obrigando a


uma carreira que eu não queria, não

podia deixar de sentir que era adorável, como uma santa.


E porventura era certo que me obrigava à carreira eclesiástica?
Aqui chego a um ponto, que esperei

viesse depois tanto que já pesquisava em que altura lhe daria um


Capítulo. Realmente, não cabia

dizer agora o que só mais tarde presumi descobrir, mas, uma vez
que toquei no ponto, melhor éacabar com ele. É grave e complexo,
delicado e sutil, um destes em que o autor tem de atender ao

filho, e o filho há de ouvir o autor, para que um e outro digam a


verdade, só a verdade, mas toda a

verdade. Cabe ainda notar que esse ponto é que torna justamente a
santa mais adorável, sem

prejuízo (ao contrário!) da parte humana e terrestre que havia nela.


Basta de prefácio ao Capítulo;

vamos ao Capítulo.

CAPÍTULO LXXX / VENHAMOS AO CAPÍTULO

Venhamos ao Capítulo. Minha mãe era temente a Deus; sabes disto,


das suas práticas religiosas, e

da fé pura que as animava. Nem ignoras que a minha carreira


eclesiástica era objeto de promessa

feita quando fui concebido. Tudo está contado oportunamente.


Outorgam, sabes que para o fim de

apertar o vínculo moral da obrigação, confiou os seus projetos e


motivos a parentes e familiares. A

promessa, feita com fervor, aceita com misericórdia, foi guardada


por ela, com alegria, no mais

íntimo do coração. Penso que lhe senti o sabor da felicidade no


leite que me deu a mamar. Meu pai,

se vivesse, é possível que alterasse os planos, e, como tinha a


vocação da política, é provável que

me encaminhasse somente à política, embora os dous ofícios não


fossem nem sejam inconciliáveis,

e mais de um padre entre na luta dos partidos e no governo dos


homens. Mas meu pai morrera sem
saber nada, e ela ficou diante do contrato, como única devedora.

Um dos aforismos de Franklin é que, para quem tem de pagar na


páscoa, a quaresma é curta. A

nossa quaresma não foi mais longa que as outras, e minha mãe,
posto me mandasse ensinar latim edoutrina, começou a adiar a
minha entrada no seminário. É o que se chama, comercialmente

falando, reformar uma letra. O credor era arquimilionário, não


dependia daquela quantia para

comer, e consentiu nas transferências de pagamento, sem sequer


agravar a taxa do juro. Um dia.

porém, um dos familiares que serviam de endossantes da letra,


falou da necessidade de entregar o

preço ajustado; está num dos Capítulos primeiros. Minha mãe


concordou e recolhi-me a S. José.

Ora, nesse mesmo Capítulo, verteu ela umas lágrimas, que enxugou
sem explicar, e que nenhum

dos presentes nem tio Cosme, nem prima Justina, nem o agregado
José Dias entendeu

absolutamente: eu, que estava atrás da porta, não as entendi mais


que eles. Bem examinadas, apesar

da distancia, vê-se que eram saudades prévias, a mágoa da


separação, -- e pode ser também (é o

princípio do ponto), pode ser que arrependimento da promessa.


Católica e devota, sentia muito bem

que as promessas se cumprem; a questão é se é oportuno e


adequado fazê-las todas, e naturalmente

inclinava-se à negativa. Por que é que Deus a puniria, negando-lhe


um segundo filho? A vontade

divina podia ser a minha vida, sem necessidade de lhe dedicar ab


ovo. Era um raciocínio tardio:

devia ter sido feito no dia em que fui gerado. Em todo caso, era
uma conclusão primeira; mas, não
bastando concluir para destruir, tudo se manteve, e eu fui para o
seminário.

Um cochilo da fé teria resolvido a questão a meu favor, mas a fé


velava com os seus grandes olhos

ingênuos. Minha mãe faria, st pudesse, uma troca de promessa,


dando parte dos seus anos para

conservar-me consigo, fora do clero, casado e pai: é o que presumo,


assim como suponho que

rejeitou tal idéia, por lhe parecer uma deslealdade. Assim a senti
sempre na corrente da vida

ordinária.

Sucedeu que a minha ausência foi logo temperada pela assiduidade


de Capitu. Esta começou a

fazer-se-lhe necessária. Pouco a pouco veio-lhe a persuasão de que


a pequena me faria feliz. Então

(é o final do ponto anunciá-lo), a esperança de que o nosso amor,


tornando-me absolutamente

incompatível com o seminário, me levasse a não ficar lá nem por


Deus nem pelo Diabo, esta

esperança íntima e secreta entrou a invadir o coração de minha


mãe. Neste caso, eu romperia o

contrato sem que ela tivesse culpa. Ela ficava comigo sem ato
propriamente seu. Era como se, tendo

confiado a alguém a importância de uma dívida para levá-la ao


credor o portador guardasse o

dinheiro consigo e não levasse nada. Na vida comum, o ato de


terceiro não desobriga o contratante;

mas a vantagem de contratar com o céu é que intenção vale


dinheiro.
Hás de ter tido conflitos parecidos com esse, e, se és religioso,
haverás buscado alguma vez

conciliar o céu e a terra, por modo idêntico ou análogo. O céu e a


terra acabam conciliando-se; eles

são quase irmãos gêmeos, tendo o céu sido feito no segundo dia e
a terra no terceiro. Como Abraão,

minha mãe levou o filho ao monte da Visão, e mais a lenha para o


holocausto, o fogo e o cutelo. E

atou Isaac em cima do feixe de lenha, pegou do cutelo e levantou-o


ao alto. No momento de fazê-lo

cair, ouve a voz do anjo que lhe ordena da parte do Senhor: "Não
faças mal algum a teu filho;

conheci que temes a Deus". Tal seria a esperança secreta de minha


mãe.

Capitu era naturalmente o anjo da Escritura. A verdade é que minha


mãe não podia tê-la agora

longe de si. A afeição crescente era manifesta por atos


extraordinários. Capitu passou a ser a flor da

casa, o sol das manhãs, o frescor das tardes, a lua das noites; lá
vivia horas e horas, ouvindo,

falando e cantando. Minha mãe apalpava-lhe o coração, revolvia-lhe


os olhos, e o meu nome era

entre ambas como a senha da vida futura.

CAPÍTULO LXXXI / UMA PALAVRA

Assim contado o que descobri mais tarde, posso trasladar para aqui
uma palavra de minha mãe.

Agora se entenderá que ela me dissesse, no primeiro sábado,


quando eu cheguei a casa, e soube que

Capitu estava na Rua dos Inválidos, com sinhazinha Gurgel:


--Por que não vais vê-la? Não me disseste que o pai de Sancha te
ofereceu a casa?

--Ofereceu.

--Pois então? Mas é se queres. Capitu devia ter voltado hoje para
acabar um trabalho comigo;

certamente a amiga pediu-lhe que dormisse lá.

--Talvez ficassem namorando, insinuou prima Justina.

Não a matei por não ter à mão ferro nem corda, pistola nem punhal-
mas os olhos que lhe deitei, se

pudessem matar, teriam suprido tudo. Um dos erros da Providência


foi deixar ao homem

unicamente os braços e os dentes, como armas de ataque, e as


pernas como armas de fuga ou de

defesa. Os olhos bastavam ao primeiro efeito. Um mover deles faria


parar ou cair um inimigo ou

um rival, exerceriam vingança pronta, com este acréscimo que,


para desnortear a justiça, os mesmos

olhos matadores seriam olhos piedosos, e correriam a chorar a


vítima. Prima Justina escapou aos

meus; eu e que não escapei ao efeito da insinuação, e no domingo,


às onze horas, corri à Rua dos

Inválidos.

O pai de Sancha recebeu-me em desalinho e triste. A filha estava


enferma- caíra na véspera com

uma febre, que se ia agravando. Como ele queria muito à filha,


pensava já vê-la morta, e anunciou-

me que se mataria também. Eis aqui um Capítulo fúnebre como um


cemitério, mortes, suicídios e
assassinatos. Eu ansiava por um raio de luz clara e céu azul. Foi
Capitu que os trouxe à porta da

sala, vindo dizer ao pai de Sancha que a filha o mandara chamar.

--Está pior? perguntou Gurgel assustado.

--Não, senhor, mas quer falar-lhe.

--Fique aqui um bocadinho, disse-lhe ele; e voltando-se para mim: E


a enfermeira de Sancha, que

não quer outra; eu já volto.

Capitu trazia sinais de fadiga e comoção, mas tão depressa me viu,


ficou toda outra, a mocinha de

sempre, fresca e lepida, não menos que espantada. Custou-lhe a


crer que fosse eu. Falou-me, quis

que lhe falasse, e efetivamente conversamos por alguns minutos,


mas são tão baixo e abafado que

nem as paredes ouviram, elas que têm ouvidos. De resto, se elas


ouviram algo, nada entenderam,

nem elas nem os móveis, que estavam tão tristes como o dono.

CAPÍTULO LXXXII / O CANAPÉ

Deles, só o canapé pareceu haver compreendido a nossa situação


moral, visto que nos ofereceu os

serviços da sua palhinha, com tal insistência que os aceitamos e


nos sentamos. Data daí a opinião
particular que tenho do canapé. Ele faz aliar a intimidade e o
decoro, e mostra a casa toda sem sair

da sala. Dous homens sentados nele podem debater o destino de


um império, e duas mulheres a

graça de um vestido- mas, um homem e uma mulher só por


aberração das leis naturais dirão outra

cousa que não seja de si mesmos. Foi o que fizemos, Capitu e eu.
Vagamente lembra-me que lhe

perguntei se a demora ali seria grande...

--Não sei- a febre parece que cede... mas...

Também me lembra, vagamente, que lhe expliquei a minha visita à


Rua dos inválidos, com a pura

verdade, isto é, a conselho de minha mãe.

--Conselho dela? murmurou Capitu.

E acrescentou com os olhos, que brilhavam extraordinariamente --


Seremos felizes!

Repeti estas palavras, com os simples dedos, apertando os dela. O


canapé, quer visse ou não,

continuou a prestar os seus serviço às nossas mãos presas e às


nossas cabeças juntas ou quase

juntas.

CAPÍTULO LXXXIII / O RETRATO

Gurgel tornou à sala e disse a Capitu que a filha chamava por ela.
Eu levantei-me depressa e não
achei compostura; metia os olhos pelas cadeiras. Ao contrário,
Capitu ergueu-se naturalmente e

perguntou-lhe se a febre aumentará.

--Não, disse ele.

Nem sobressalto nem nada, nenhum ar de mistério da parte de


Capitu; voltou-se para mim, e disse-

me que levasse lembranças a minha mãe e a prima Justina, e que


até breve, estendeu-me a mão e

enfiou pelo corredor. Todas as minhas invejas foram com ela. Como
era possível que Capitu se

governasse tão facilmente e eu não?

--Está uma moça, observou Gurgel olhando também para ela.

Murmurei que sim. Na verdade, Capitu ia crescendo às carreiras as


formas arredondavam-se e

avigoravam-se com grande intensidade moralmente a mesma


cousa. Era mulher por dentro e por

fora, mulher à direita e à esquerda, mulher por todos os lados, e


desde os pés até à cabeça. Esse

arvorecer era mais apressado, agora que eu a via de dias a dias; de


cada vez que vinha a casa

achava-a mais alta e mais cheia; os olhos pareciam ter outra


reflexão, e a boca outro império.

Gurgel, voltando-se para a parede da sala, onde pendia um retrato


de moça, perguntou-me se Capitu

era parecida com o retrato.

Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a


opinião provável do meu interlocutor,
desde que a matéria não me agrava, aborrece ou impõe. Antes de
examinar se efetivamente Capitu

era parecida com o retrato, fui respondendo que sim. Então ele
disse que era o retrato da mulher

dele, e que as pessoas que a conheceram diziam a mesma cousa.


Também achava que as feições

eram semelhantes, a testa principalmente e os olhos. Quanto ao


gênio, era um, pareciam irmãs.

-- Finalmente, até a amizade que ela tem a Sanchinha- a mãe não


era mais amiga dela... Na vida há

dessas semelhanças assim esquisitas.

CAPÍTULO LXXXIV / CHAMADO

No saguão e na rua, examinei ainda comigo se efetivamente ele


teria desconfiado alguma cousa,

mas achei que não e pus-me a andar. Ia satisfeito com a visita, com
a alegria de Capitu, com os

louvores de Gurgel, a tal ponto que não acudi logo a uma voz que
me chamava:

--Sr. Bentinho! Sr. Bentinho!

Só depois que a voz cresceu e o dono dela chegou à porta é que eu


parei e vi o que era e onde

estava. Estava já na Rua de Matacavalos. A casa era uma loja de


louça, escassa e pobre: tinha as

portas meio cerradas, e a pessoa que me chamava era um pobre


homem grisalho e mal vestido.
--Sr. Bentinho, disse-me ele chorando; sabe que meu filho Manduca
morreu?

--Morreu?

--Morreu há meia hora, enterra-se amanhã. Mandei recado a sua


mãe agora mesmo, e ela fez-me a

caridade de mandar algumas flores para botar no caixão. Meu


pobre filho! Tinha de morrer, e foi

bom que morresse, coitado, mas apesar de tudo sempre dói. Que
vida que ele teve!... Um dia destes

ainda se lembrou do senhor, e perguntou se estava no seminário...


Quer vê-lo? Entre, ande vê-lo...

Custa-me dizer isto, mas antes peque por excessivo que por
diminuto. Quis responder que não, que

não queria ver o Manduca, e fiz até um gesto para fugir. Não era
medo; noutra ocasião pode ser até

que entrasse com facilidade e curiosidade, mas agora ia tão


contente! Ver um defunto ao voltar de

uma namorada... Há cousas que se não ajustam nem combinam. A


simples notícia era já uma

turvação grande. As minhas idéias de ouro perderam toda a cor e o


metal para se trocarem em cinza

escura e feia, e não distingui mais nada. Penso que cheguei a dizer
que tinha pressa, mas

provavelmente não falei por palavras claras, nem sequer humanas,


porque ele, encostado ao portal,

abria-me espaço com o gesto, e eu, sem alma para entrar nem fugir,
deixei ao corpo fazer o que

pudesse, e o corpo acabou entrando.

Não culpo ao homem; para ele, a cousa mais importante do


momento era o filho. Mas também não
me culpem a mim; para mim, a cousa mais importante era Capitu. O
mal foi que os dous casos se

conjugassem na mesma tarde, e que a morte de um viesse meter o


nariz na vida do outro. Eis o mal

todo. Se eu passasse antes ou depois, ou se o Manduca esperasse


algumas horas para morrer,

nenhuma nota aborrecida viria interromper as melodias da minha


alma. Por que morrer exatamente

há meia hora? Toda hora é apropriada ao óbito; morre-se muito bem


às seis ou sete horas da tarde.

CAPÍTULO LXXXV / O DEFUNTO

Tal foi o sentimento confuso com que entrei na loja de louça. A loja
era escura, e o interior da casa

menos luz tinha, agora que as janelas da área estavam cerradas. A


um canto da sala de jantar vi a

mãe chorando; à porta da alcova duas crianças olhavam espantadas


para dentro, com o dedo na

boca. O cadáver jazia na cama; a cama...

Suspendamos a pena e vamos à janela espairecer a memória.


Realmente, o quadro era feio, já pela

morte, já pelo defunto, que era horrível... Isto aqui, sim, é outra
cousa. Tudo o que vejo lá fora

respira vida, a cabra que rumina ao pé de uma carroça, a galinha


que marisca no chão da rua, o trem

da Estrada Central que bufa, assobia, fumega e passa, a palmeira


que investe para o céu, e

finalmente aquela torre de igreja, apesar de não ter músculos nem


folhagem. Um rapaz, que ali no

beco empina um papagaio de papel, não morreu nem morre, posto


também se chame Manduca.
Verdade é que o outro Manduca era mais velho. Teria dezoito ou
dezenove anos, mas tanto lhe

darias quinze como vinte e dous, a cara não permitia trazer a idade
à vista antes a escondia nas

dobras da... Vá, diga-se tudo; é morto, os seus parentes são


mortos, se existe algum não é em tal

evidência que se vexe ou doa. Diga-se tudo, Manduca padecia de


uma cruel enfermidade, nada

menos que a lepra. Vivo era feio- morto pareceu-me horrível.


Quando eu vi, estendido na cama, o

triste corpo daquele meu vizinho, fiquei apavorado e desviei os


olhos. Não sei que mão oculta me

compeliu a olhar outra vez, ainda que de fugida; cedi, olhei, tornei
a olhar, até que recuei de todo e

saí do quarto.

--Padeceu muito! suspirou o pai.

--Coitado de Manduca! soluçava a mãe.

Eu cuidei de sair, disse que era esperado em casa, e despedi-me O


pai perguntou-me se lhe faria o

favor de ir ao enterro; respondi com a verdade, que não sabia, faria


o que minha mãe quisesse. E

rápido saí, atravessei a loja, e saltei à rua.

CAPÍTULO LXXXVI / AMAI, RAPAZES!

Era tão perto, que antes de três minutos me achei em casa. Parei
no corredor, a tomar fôlego
buscava esquecer o defunto, pálido e disforme, e o mais que não
disse para não dar a estas páginas

um aspecto repugnante, mas podes imaginá-lo. Tudo arredei da


vista, em poucos segundos; bastou-

me pensar na outra casa, e mais na vida e na cara fresca e lépida


de Capitu... Amai, rapazes! e,

principalmente, amai moças lindas e graciosas; elas dão remédio ao


mal, aroma ao infecto, trocam a

morte pela vida... Amai, rapazes!

CAPÍTULO LXXXVII / A SEGE

Chegara ao último degrau, e uma idéia me entrou no cérebro, como


se estivesse a esperar por mim,

entre as grades da cancela. Ouvi de memória as palavras do pai de


Manduca pedindo-me que fosse

ao enterro no dia seguinte. Parei no degrau. Refleti um instante;


sim, podia ir ao enterro, pediria a

minha mãe que me alugasse um carro...

Não cuides que era o desejo de andar de carro, por mais que
tivesse o gosto da condução. Em

pequeno, lembra-me que ia assim muita vez com minha mãe às


visitas de amizade ou de cerimônia

e à missa, se chovia. Era uma velha sege de meu pai, que ela
conservou o mais que pôde. O

cocheiro, que era nosso escravo, tão velho como a sege, quando me
via à porta, vestido, esperando

minha mãe, dizia-me rindo:

--Pai João vai levar nhonhô!

E era raro que eu não lhe recomendasse:


--João, demora muito as bestas; vai devagar.

--Nhã Glória não gosta.

--Mas demora!

Fica entendido que era para saborear a sege, não pela vaidade,
porque ela não permitia ver as

pessoas que iam dentro. Era uma velha sege obsoleta, de duas
rodas, estreita e curta, com duas

cortinas de couro na frente, que corriam para os lados quando era


preciso entrar ou sair. Cada

cortina tinha um óculo de vidro, por onde eu gostava de espiar para


fora.

--Senta, Bentinho!

--Deixa espiar, mamãe!

E em pé, quando era mais pequeno, metia a cara no vidro, e via o


cocheiro com as suas grandes

botas, escanchado na mula da esquerda, e segurando a rédea da


outra; na mão levava o chicote

grosso e comprido. Tudo incômodo, as botas, o chicote e as mulas,


mas ele gostava e eu também.

Dos lados via passar as casas, lojas ou não, abertas ou fechadas,


com gente ou sem ela, e na rua as

pessoas que iam e vinham, ou atravessavam diante da sege, com


grandes pernadas ou passos

miúdos. Quando havia impedimento de gente ou de animais, a sege


parava, e então o espetáculo era
particularmente interessante; as pessoas paradas na calçada ou à
porta das casas, olhavam para a

sege e falavam entre si, naturalmente sobre quem iria dentro.


Quando fui crescendo em idadeimaginei que adivinhavam e diziam:
"É aquela senhora da Rua de Mata-cavalos, que tem um filho,

Bentinho..."

A sege ia tanto com a vida recôndita de minha mãe, que quando já


não havia nenhuma outra,

continuamos a andar nela, e era conhecida na rua e no bairro pela


"sege antiga." Afinal minha mãe

consentiu em deixá-la, sem a vender logo; só abriu mão dela


porque as despesas de cocheira a

obrigaram a isso. A razão de a guardar inútil foi exclusivamente


sentimental; era a lembrança do

marido. Tudo o que vinha de meu pai era conservado como um


pedaço dele, um resto da pessoa, a

mesma alma integral e pura. Mas o uso, esse era filho também do
carrancismo que ela confessava

aos amigos. Minha mãe exprimia bem a fidelidade aos velhos


hábitos, velhas maneiras, velhas

idéias, velhas modas. Tinha o seu museu de relíquias, pentes


desusados, um trecho de mantilha;

umas moedas de cobre datadas de 1824 e 1825, e, para que tudo


fosse antigo, a si mesma se queria

fazer velha; mas já deixei dito que, neste ponto, não alcançava
tudo o que queria.
CAPÍTULO LXXXVIII / UM PRETEXTO HONESTO

Não, a idéia de ir ao enterro não vinha da lembrança do carro e


suas doçuras. A origem era outra:

era porque, acompanhando o enterro no dia seguinte, não iria ao


seminário, e podia fazer outra

visita a Capitu, um tanto mais demorada. Bis aí o que era. A


lembrança do carro podia vir

acessoriamente depois, mas a principal e imediata foi aquela.


Voltaria à Rua dos Inválidos, a

pretexto de saber de sinhazinha Gurgel. Contava que tudo me


saísse como naquele dia. Gurgel

aflito, Capitu comigo no canapé, as mãos presas, o penteado...

--Vou pedir a mamãe.

Abri a cancela. Antes de transpô-la, assim como ouvira da memória


a palavra do pai do morto, ouvi

agora a da mãe, e repeti a meia voz:

--Coitado de Manduca!

Minha Mãe ficou perplexa quando lhe pedi para ir ao enterro.

--Perder um dia de seminário

Fiz-lhe notar a amizade que o Manduca me tinha, e depois era


gente pobre... Tudo o que me

lembrou dizer, disse. Prima Justina opinou pela negativa.

--Você acha que não deve ir? perguntou-lhe minha mãe.


--Acho que não. Que amizade é essa que eu nunca vi?

Prima Justina venceu. Quando referi o caso ao agregado, este sol


riu, e disse-me que o motivo

escondido da prima era provavelmente não dar ao enterro "o lustre


da minha pessoa". Fosse o que

fosse, fiquei amuado; no dia seguinte, pensando no motivo, não me


desagradou; mais tarde achei-

lhe um sabor particular.

CAPÍTULO XC / A POLÊMICA

No dia seguinte, passei pela casa do defunto, sem entrar nem parar
--ou, se parei, foi só um instante,

ainda mais breve que este em que vo-lo digo. Se me não engano,
andei até mais depressa, receando

que me chamassem como na véspera. Uma vez que não ia ao


enterro antes longe que próximo. Fui

andando e pensando no pobre-diabo.

Não éramos amigos, nem nos conhecíamos de muito. Intimidade


que intimidade podia haver entre a

doença dele e a minha saúde? Tivemos relações breves e distantes.


Fui pensando nelas, recordando

algumas. Reduziam-se todas a uma polêmica, entre nós, dous anos


antes, a propósito... Mal podeis

crer a que propósito foi. Foi a guerra da Criméia.

Manduca vivia no interior da casa, deitado na cama, lendo por


desfastio. Ao domingo, sobre a tarde,
o pai enfiava-lhe uma camisola escura, e trazia-o para o fundo da
loja, donde ele espiava um palmo

da rua e a gente que passava. Era todo o seu recreio. Foi ali que o
vi uma vez, e não fiquei pouco

espantado; a doença ia-lhe comendo parte das carnes, os dedos


queriam apertar-se; o aspecto não

atraía decerto. Tinha eu de treze para quatorze anos. Da segunda


vez que o vi ali, como falássemos

da guerra da Criméia, que então ardia e andava nos jornais,


Manduca disse que os aliados haviam

de vencer, e eu respondi que não.

--Pois veremos, tornou ele. Só se a justiça não vencer neste mundo,


o que é impossível, e a justiça

está com os aliados.

--Não, senhor, a razão é dos russos.

Naturalmente, íamos com o que nos diziam os jornais da cidade


transcrevendo os de fora, mas pode

ser também que cada um de nós tivesse a opinião do seu


temperamento. Fui sempre um tanto

moscovita nas minhas idéias. Defendi o direito da Rússia, Manduca


fez o mesmo ao dos aliados, e o

terceiro domingo em que entrei na loja tocamos outra vez no


assunto. Então Manduca propôs que

trocássemos a argumentação por escrito, e na terça ou quarta-feira


recebi duas folhas de papel
contendo a exposição e defesa do direito dos aliados, e da
integridade da Turquia, concluindo por

esta frase profética:

"Os russos não hão de entrar em Constantinopla!"

Li-a e meti-me a refutá-la. Não me recorda um só dos argumentos


que empreguei, nem talvez

interesse conhecê-los, agora que o século está a expirar; mas a


idéia que me ficou deles é que eram

irrespondíveis. Fui eu mesmo levar-lhe o meu papel. Fizeram-me


entrar na alcova, onde ele jazia

estirado na cama, mal coberto por uma colcha de retalhos. Ou


gosto da polêmica ou qualquer outra

causa que não alcanço, não me deixou sentir toda a repugnância


que saía da cama e do doente, e o

prazer com que lhe dei o papel foi sincero. Manduca, pela sua
parte, por mais nojosa que tivesse

então a cara, o sorriso que a acendeu dissimulou o mal físico. A


convicção com que me recebeu o

papel e disse que ia ler e responderia é que não tem palavras


nossas nem alheias que a digam de

todo e com verdade; não era exaltada, não era ruidosa, não tinha
gestos, nem a moléstia os

permitiria, era simples, grande, profunda, um gozo infinito de


vitória, antes de saber os meus

argumentos. Tinha já papel, pena e tinta ao pé da cama. Dias


depois recebi a réplica; não me lembra

se trazia cousas novas ou não; o calor é que crescia, e o final era o


mesmo:

"Os russos não hão de entrar em Constantinopla!"


Trepliquei, e daí continuou por algum tempo uma polêmica ardente,
em que nenhum de nós cedia,

defendendo cada um os seus clientes com força e brio. Manduca


era mais longo e pronto que eu.

Naturalmente a mim sobravam mil cousas que distraíam, o estudo,


os recreios, a família, e a própria

saúde, que me chamava a outros exercícios. Manduca, salvo o


palmo de rua ao domingo de tarde,

tinha só esta guerra, assunto da cidade e do mundo, mas que


ninguém ia tratar com ele. O acaso

dera-lhe em mim um adversário; ele, que tinha gosto à escrita,


deitou-se ao debate, como a um

remédio novo e radical. As horas tristes e compridas eram agora


breves e alegres; os olhos

desaprenderam de chorar, se porventura choravam antes. Senti


esta mudança dele nas próprias

maneiras do pai e da mãe.

--Não imagina como ele anda agora, depois que o senhor lhe
escreve aqueles papéis, dizia-me o

dono da loja, uma vez, à porta da rua. Fala e ri muito. Logo que eu
mando o caixeiro levar-lhe os

papéis dele, entra a indagar da resposta, e se demorará muito, e


que pergunte ao moleque, quando

passar. Enquanto espera, relê jornais e toma notas. Mas também,


apenas recebe os seus papéis,

atira-se a lê-los, e começa logo a escrever a resposta. Há ocasiões


em que não come ou come mal;

tanto que eu queria pedir-lhe uma cousa, é que não os mande à


hora do almoço ou de jantar...

Fui eu que cansei primeiro. Comecei a demorar as respostas, até


que não dei mais nenhuma- ele

ainda teimou duas ou três vezes depois do meu silêncio, mas não
recebendo contestação alguma,
por fadiga também ou por não aborrecer, acabou de todo com as
suas apologias. A última como a

primeira, como todas, afirmava a mesma predição eterna:

"Os russos não hão de entrar em Constantinopla!"

Não entraram, efetivamente, nem então, nem depois, nem até


agora. Mas a predição será eterna?

Não chegarão a entrar algum dia? Problema difícil. O próprio


Manduca, para entrar na sepultura,

gastou três anos de dissolução, tão certo é que a natureza, como a


história, não se faz brincando. A

vida dele resistiu como a Turquia se afinal cedeu foi porque lhe
faltou uma aliança como a anglofrancesa,

não se podendo considerar tal o simples acordo da medicina e da


farmácia. Morreu afinal,

como os Estados morrem; r nosso caso particular, a questão é


saber, não se a Turquia morre porque

a morte não poupa a ninguém, mas se os russos entrara algum dia


em Constantinopla; essa era a

questão para o meu vizinho leproso, debaixo da triste, rota e


infecta colcha de retalhos...

CAPÍTULO XCI / ACHADO QUE CONSOLA

É claro que as reflexões que aí deixo não foram feitas então, a


caminho do seminário, mas agora no

gabinete do Engenho Novo Então não fiz propriamente nenhuma, a


não ser esta: que servi de alívio

um dia ao meu vizinho Manduca. Hoje pensando melhor, acho que


não só servi de alívio, mas até
lhe dei felicidade. E o achado consola-me; já agora não esquecerei
mais que dei dous ou três mesesde felicidade a um pobre-diabo,
fazendo-lhe esquecer o mal e o resto. É alguma cousa na liquidação

da minha vida. Se há no outro mundo tal ou qual prêmio para as


virtudes sem intenção, esta pagará

um ou dous dos meus muitos pecados. Quanto ao Manduca, não


creio que fosse pecado opinar

contra a Rússia, mas, se era, ele estará purgando há quarenta anos


a felicidade que alcançou em

dous ou três meses,--donde concluirá (já tarde) que era ainda


melhor haver gemido somente, sem

opinar cousa nenhuma.

CAPÍTULO XCII / O DIABO NÃO É TÃO FEIO COMO SE PINTA

Manduca enterrou-se sem mim. A muitos outros aconteceu a


mesma cousa, sem que eu sentisse

nada, mas este caso afligiu-me particular mente pela razão já dita.
Também senti não sei que

melancolia ao recordar a primeira polêmica da vida, o gosto com


que ele recebia os meus papéis e

se propunha a refutá-los, não contando o gosto do carro... Mas o


tempo apagou depressa todas essas

saudades e ressurreições. Nem foi só ele; duas pessoas vieram


ajudá-lo, Capitu, cuja imagem

dormiu comigo na mesma noite, e outra que direi no Capítulo que


vem. O resto deste Capítulo é só

para pedir que, se alguém tiver de ler o meu livro com alguma
atenção mais da que lhe exigir o

preço do exemplar, não deixe de concluir que o Diabo não é tão feio
como se pinta. Quero dizer...

Quero dizer que o meu vizinho de Mata-cavalos, temperando o mal


com a opinião anti-russa, dava à
podridão das suas carnes um reflexo espiritual que as consolava.
Há consolação maiores, decerto e

uma das mais excelentes é não padecer esse nem outro mal
algumas a natureza é tão divina que se

diverte com tais contrastes, e aos mais nojentos ou mais aflitos


acena com uma flor. E talvez saia

assim a flor mais bela, o meu jardineiro afirma que as violetas, para
terem um cheiro superior, hão

mister de estrume de porco. Não examinei, mas deve ser verdade.

CAPÍTULO XCIII / UM AMIGO POR UM DEFUNTO

Quanto à outra pessoa que teve a força obliterativa, foi o meu


colega Escobar que no domingo,

antes do meio-dia, veio ter a Mata-cavalos. Um amigo supria assim


um defunto, e tal amigo que

durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as


suas, como se me não visse desde

longos meses.

--Você janta comigo, Escobar?

--Vim para isto mesmo.

Minha mãe agradeceu-lhe a amizade que me tinha, e ele respondeu


com muita polidez, ainda que

um tanto atado, como se carecesse de palavra pronta. Já viste que


não era assim, a palavra obedecia-

lhe, mas o homem não é sempre o mesmo em todos os instantes. O


que ele disse, em resumo, foi

que me estimava pelas minhas boas qualidades e aprimorada


educação; no seminário todos me
queriam bem, nem podia deixar de ser assim, acrescentou. Insistia
na educação, nos bons exemplos,

"na doce e rara mãe" que o céu me deu... Tudo isso com a voz
engasgada e trêmula.

Todos ficaram gostando dele. Eu estava tão contente como se


Escobar fosse invenção minha. José

Dias desfechou-lhe dous superlativos, tio Cosme dous capotes, e


prima Justina não achou tacha que

lhe pôr; depois, sim, no segundo ou terceiro domingo, veio ela


confessar-nos que o meu amigo

Escobar era um tanto metediço e tinha uns olhos policiais a que não
escapava nada.

--São os olhos dele, expliquei.

--Nem eu digo que sejam de outro.

--São olhos refletidos, opinou tio Cosme.

--Seguramente, acudiu José Dias; entretanto, pode ser que a


senhora D. Justina tenha alguma razão.

A verdade é que uma cousa não impede outra, e a reflexão casa-se


muito bem à curiosidade natura.

Parece curioso, isso parece, mas...

--A mim parece-me um mocinho muito sério, disse minha mãe.


--Justamente! confirmou José Dias, para não discordar dela.

Quando eu referi a Escobar aquela opinião de minha mãe (sem lhe


contar as outras naturalmente) vi

que o prazer dele foi extraordinário. Agradeceu, dizendo que eram


bondades, e elogiou também

minha mãe, senhora grave, distinta e moça, muito moça... Que


idade teria?

--Já fez quarenta, respondi eu vagamente por vaidade.

--Não é possível! exclamou Escobar. Quarenta anos! Nem parece


trinta- está muito moça e bonita.

Também a alguém há de você sair, com esses olhos que Deus lhe
deu; são exatamente os dela.

Enviuvou há muitos anos?

Contei-lhe o que sabia da vida dela e de meu pai. Escobar escutava


atento, perguntando mais,

pedindo explicação das passagens omissas ou só escuras. Quando


eu lhe disse que não me lembrava

nada da roça, tão pequenino viera, contou-me duas ou três


reminiscências dos seus três anos de

idade, ainda agora frescas. E não contávamos voltar

--Não, agora não voltamos mais. Olhe, aquele preto que ali vai
passando, é de lá. Tomás!

--Nhonhô!
Estávamos na horta da minha casa, e o preto andava em serviço;
chegou-se a nós e esperou.

--É casado, disse eu para Escobar. Maria onde está?

-- Está socando milho, sim, senhor.

--Você ainda se lembra da roça, Tomás?

--Alembra, sim, senhor.

-- Bem, vá-se embora.

Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquele José,
aquele outro Damião...

--Todas as letras do alfabeto, interrompeu Escobar.

Com efeito, eram diferentes letras, e só então reparei nisto;


apontei ainda outros escravos, alguns

com os mesmos nomes, distinguindo-se por um apelido, ou da


pessoa, como João Fulo, Maria

Gorda ou de nação como Pedro Benguela, Antônio Moçambique...

-- E estão todos aqui em casa? perguntou ele.

--Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados Não


era possível ter todos em casa.

Nem são todos os da rosa: a maior parte ficou lá.

-- O que me admira é que D. Glória se acostumasse logo a viver, em


casa da cidade, onde tudo é

apertado; a de lá é naturalmente grande.


--Não sei, mas parece. Mamãe tem outras casas maiores que esta;
diz porém que há de morrer aqui.

As outras estão alugadas. Algumas são bem grandes, como a da


Rua da Quitanda...

--Conheço essa, é bonita.

--Tem também no Rio Comprido, na Cidade-Nova, uma no Catete...

--Não lhe hão de faltar tectos, concluiu ele sorrindo com simpatia.

Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um


instante aí, mirando a pedra de

bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio; depois


continuamos. Quais foram as

reflexões não me lembra agora; lembra-me só que as achei


engenhosas, e ri, ele riu também. A

minha alegria acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão


claro, que a natureza parecia rir

também conosco. São assim as boas horas deste mundo. Escobar


confessou esse acordo do interno

com o externo, por palavras tão finas e altas que me comoveram;


depois, a propósito da beleza

moral que se ajusta à física, tornou a falar de minha mãe, "um anjo
dobrado", disse ele.
CAPÍTULO XCIV / IDÉIAS ARITMÉTICAS

Não digo o mais, que foi muito. Nem ele sabia só elogiar é pensar,
sabia também calcular depressa

e bem. Era das cabeças aritméticas de Holmes (2 + 2 = 4). Não se


imagina a facilidade com que ele

somava ou multiplicava de cor. A divisão que foi sempre uma das


operações difíceis para mim, era

para ele como nada: cerrava um pouco os olhos, voltados para


cima, e sussurrava as denominações

dos algarismos: estava pronto. Isto com sete, treze, vinte


algarismos. A vocação era tal que o fazia

amar os próprios sinais das somas, e tinha esta opinião que os


algarismos, sendo poucos, eram

muito mais conceituosos que as vinte e cinco letras do alfabeto.

--Há letras inúteis e letras dispensáveis, dizia ele. Que serviço


diverso prestam o d e o t? Têm quase

o mesmo som. O mesmo digo do b e do p, o mesmo do s, do c e do


z, o mesmo do k e do g, etc. São

trapalhices caligráficas. Veja os algarismos: não há dous que façam


o mesmo ofício; 4 é 4, e 7 é 7.

E admire a beleza com que um 4 e um 7 formam esta cousa que se


exprime por 11. Agora dobre 11

e terá 22; multiplique por igual número, dá 484, e assim por diante.
Mas onde a perfeição é maior é

no emprego do zero. O valor do zero é, em si mesmo, nada; mas o


ofício deste sinal negativo é

justamente aumentar. Um 5 sozinho é um 5; ponha-lhe dous 00, é


500. Assim, o que não vale nada

faz valer muito, cousa que não fazem as letras dobradas, pois eu
tanto aprovo com um p como com

dous pp.
Criado na ortografia de meus pais, custava-me a ouvir tais
blasfêmias, mas não ousava refutá-lo.

Contudo, um dia. proferi algumas palavras de defesa, ao que ele


respondeu que era um preconceito,

e acrescentou que as idéias aritméticas podiam ir ao infinito, com a


vantagem que eram mais fáceis

de menear. Assim que, eu não era capaz de resolver de momento


um problema filosófico ou

lingüístico, ao passo que ele podia somar. em três minutos,


quaisquer quantias.

--Por exemplo... dê-me um caso, dê-me uma porção de números que


eu não saiba nem possa saber

antes... olhe, dê-me o número das casas de sua mãe e os aluguéis


de cada uma, e se eu não disser a

soma total em dous, em um minuto, enforque-me!

Aceitei a aposta, e na semana seguinte levei-lhe escritos em um


papel os algarismos das casas e dos

aluguéis. Escobar pegou o papel, passou-os pelos olhos a fim de os


decorar. e enquanto eu fitava o

relógio, ele erguia as pupilas, cerrava as pálpebras, e sussurrava...


Oh! o vento não é mais rápido!

Foi dito e feito; em meio minuto bradava-me:

--Dá tudo 1:070$000 mensais.

Fiquei pasmado. Considera que eram não menos de nove casas, e


que os aluguéis variavam de uma

para outra, indo de 70$000 a 180$000. Pois tudo isto em que eu


gastaria três ou quatro minutos, --e

havia de ser no papel,--fê-lo Escobar de cor, brincando. Olhava-me


triunfalmente, e perguntava se
não era exato. Eu, só por lhe mostrar que sim, tirei do bolso o
papelinho que levava com a soma

total, e mostrei-lho; era aquilo mesmo, nem um erro: 1:070$000.

--Isto prova que as idéias aritméticas são mais simples, e portanto


mais naturais. A natureza é

simples. A arte é atrapalhada.

Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo,


que não pude deixar de abraçá-lo.

Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão; um


padre que estava com eles não gostou.

--A modéstia, disse-nos, não consente esses gestos excessivos


podem estimar-se com moderação.

Escobar observou-me que os outros e o padre falavam de inveja e


propôs-me viver separados.

Interrompi-o dizendo que não inveja, tanto pior para eles.

--Quebremos-lhe a castanha na boca!

-- Mas...

-- Fiquemos ainda mais amigos que até aqui.

Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda


me doem os dedos. É ilusão,
decerto, se não é efeito das longas horas que tenho estado a
escrever sem parar. Suspendamos a

pena por alguns instantes...

CAPÍTULO XCV / O PAPA

A amizade de Escobar fez-se grande e fecunda; a de José Dias não


lhe quis ficar atrás. Na primeira

semana disse-me este em casa:

--Agora é certo que você vai sair já do seminário.

--Como?

--Espere até amanhã. Vou jogar com eles que me chamaram,


amanhã, lá no quarto, no quintal, ou na

rua, indo à missa, conto-lhe o que há. A idéia é tão santa que não
está mal no santuário. Amanha,

Bentinho.

-- Mas é cousa certa?

--Certíssima!

No dia seguinte revelou-me o mistério. Ao primeiro aspecto


confesso que fiquei deslumbrado.

Trazia uma nota de grandeza e de espiritualidade que falava aos


meus olhos de seminarista. Era não

menos que isto. Minha mãe, ao parecer dele, estava arrependida do


que fizera, e desejaria ver-me cá

fora, mas entendia que o vínculo moral da promessa a prendia


indissoluvelmente. Cumpria rompêlo,
e para tanto valia a Escritura, com o poder de desligar dado aos
apóstolos. Assim que, ele e eu

iríamos a Roma pedir a absolvição do papa... Que me parecia?

-- Parece-me bem, respondi depois de alguns segundos de reflexão.


Pode ser um bom remédio.

--É o único, Bentinho, é o único! Vou já hoje conversar com D.


Glória, expondo-lhe tudo, e

podemos partir daqui a dous meses, ou antes...

-- Melhor é falar domingo que vem; deixe-me pensar primeiro...

-- Oh! Bentinho! interrompeu o agregado. Pensar em quê? Você o


que quer... Digo? Não se amofina

com o seu velho? Você o que quer é consultar a uma pessoa.

Rigorosamente, eram duas pessoas, Capitu e Escobar, mas eu


neguei a pés juntos que quisesse

consultar ninguém. E que pessoa, o reitor? Não era natural que lhe
confiasse tal assunto. Não, nem

reitor, nem professor, nem ninguém; era só o tempo de refletir, uma


semana, no domingo daria a

resposta, e desde já lhe dizia que a idéia não me parecia má.

-- Não?

--Pois resolvamos hoje mesmo.

--Não se vai a Roma brincando.


--Quem tem boca vai a Roma, e boca no nosso caso é a moeda. Ora,
você pode muito bem gastar

consigo... Comigo, não; um par de calças, três camisas e o pão


diário, não preciso mais. Serei como

S. Paulo, que vivia do ofício enquanto ia pregando a palavra divina.


Pois eu vou, não pregá-la, mas

buscá-la. Levaremos cartas do internúncio e do bispo, cartas para o


nosso ministro, cartas de

capuchinhos... Bem sei a objeção que se pode opor a esta idéia;


dirão que é dado pedir a dispensa cá

de longe; mas, além do mais que não digo, basta refletir que é
muito mais solene e bonito ver entrar

no Vaticano, e prostrar-se aos pés do papa o próprio objeto do


favor, o levita prometido, que vai

pedir para sua mãe terníssima e dulcíssima a dispensa de Deus.


Considere o quadro, você beijando o

pé ao príncipe dos apóstolos; Sua Santidade, com o sorriso


evangélico, inclina-se, interroga, ouve,

absolve e abençoa. Os anjos o contemplam, a Virgem recomenda ao


santíssimo filho que todos os

seus desejos, Bentinho, sejam satisfeitos, e que o que você amar na


terra seja igualmente amado no

céu...

Não digo mais, porque é preciso acabar o capítulo, e ele não acabou
o discurso. Falou a todos os
meus sentimentos de católico e de namorado. Vi a alma aliviada de
minha mãe, vi a alma feliz de

Capitu, ambas em casa, e eu com elas, e ele conosco, tudo


mediante uma pequena viagem a Roma,

que eu só geograficamente sabia onde ficava; espiritualmente,


também, mas a distancia que estaria

da vontade de Capitu é que não. Eis o ponto essencial. Se Capitu


achasse longe, não iria- mas era

preciso ouvi-la, e assim também a Escobar, que me daria um bom


conselho.

CAPÍTULO XCVI / UM SUBSTITUTO

Expus a Capitu a idéia de José Dias. Ouviu-me atentamente. e


acabou triste.

--Você indo, disse ela, esquece-me inteiramente.

--Nunca!

--Esquece. A Europa dizem que é tão bonita, e a Itália


principalmente. Não é de lá que vêm as

cantoras? Você esquece-me, Bentinho. E não haverá outro meio? D.


Glória está morta para que

você saia do seminário.

--Sim, mas julga-se presa pela promessa.

Capitu não achava outra idéia, nem acabava de adotar esta. De


caminho, pediu-me que, se acaso

fosse a Roma, jurasse que no fim de seis meses estaria de volta.


--Juro.

--Por Deus?

--Por Deus, por tudo. Juro que no fim de seis meses estarei de volta.

Mas se o papa não tiver ainda soltado a você? Mando dizer isso
mesmo.

E se você mentir?

Esta palavra doeu-me muito, e não achei logo que lhe replicasse
Capitu meteu o negócio à bulha,

rindo e chamando-me disfarçado Depois, declarou crer que eu


cumpriria o juramento, mas ainda

assim não consentiu logo; ia ver se não haveria outra cousa. e eu


que visse também por meu lado.

Quando voltei ao seminário, contei tudo ao meu amigo Escobar que


me ouviu com igual atenção e

acabou com a mesma tristeza da outra. Os olhos, de costume


fugidios, quase me comeram de

contemplação. De repente, vi-lhe no rosto um clarão, um reflexo de


idéia e ouvi-lhe dizer com

volubilidade:

--Não, Bentinho, não é preciso isso. Há melhor, --não dizia melhor,


porque o Santo Padre vale

sempre mais que tudo,--mas ha cousa que produz o mesmo efeito.

-- Que é?
--Sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote não é? Pois
bem, dê-lhe um sacerdote, que

não seja você. Ela pode muito bem tomar a si algum mocinho órfão,
fazê-lo ordenar à sua custa,

está dado um padre ao altar, sem que você...

--Entendo, entendo, é isso mesmo.

--Não acha? continuou ele. Consulte sobre isto o protonotário: ele


lhe dirá se não é a mesma cousa,

ou eu mesmo consulto, se quer e se ele hesitar, fala-se ao Sr. bispo.

Eu, refletindo:

--Sim, parece que é isso; realmente, a promessa cumpre-se, não se


perdendo o padre.

Escobar observou que, pelo lado econômico, a questão era fácil


minha mãe gastaria o mesmo que

comigo, e um órfão não precisaria grandes comodidades. Citou a


soma dos aluguéis das casas, ...

1.070$000, além dos escravos...

--Não há outra cousa, disse eu.


--E saímos juntos.

--Você também?

--Também eu. Vou melhorar o meu latim e saio; nem dou teologia. O
próprio latim não é preciso;

para que no comércio?

--In hoc signo vinces, disse eu rindo.

Sentia-me pilhérico. Oh! como a esperança alegra tudo. Escobar


sorriu, parecendo gostar da

resposta. Depois ficamos a cuidar de nós mesmos, cada um com os


seus olhos perdidos,

provavelmente. Os dele estavam assim. quando tornei de longe, e


agradeci de novo o plano

lembrado; não podia havê-lo melhor. Escobar ouviu-me


contentíssimo.

-- Ainda uma vez, disse ele gravemente, a religião c a liberdade


fazem boa companhia.

CAPÍTULO XCVII / A SAÍDA

Tudo se fez por esse teor. Minha mãe hesitou um pouco, mas
acabou cedendo, depois que o Padre

Cabral, tendo consultado o bispo. voltou a dizer-lhe que sim, que


podia ser. Saí do seminário no fim

to ano.

Tinha então pouco mais de dezessete... Aqui devia ser o meio do


livro, mas a inexperiência fez-me
ir atrás da pena, e chego quase ao fim do papel, com o melhor da
narração por dizer. Agora não há

mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pousa


emenda, pouca reflexão, tudo

em resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos,
e assim chegaremos ao fim. Um

dos sacrifícios que faço a esta dura necessidade é a análise das


minhas emoções dos dezessete anos.

Não sei se alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves saber
que é a idade em que a metade do

homem e a metade do menino formam um só curioso. Eu era um


curiosíssimo, diria o meu

agregado José Dias, e não diria mal. O que essa qualidade


superlativa me rendeu não poderia nunca

dizê-lo aqui, sem cair no erro que acabo de condenar; a análise das
minhas emoções daquele tempo

é que entrava no meu plano. Posto que filho do seminário e de


minha mãe, sentia já, debaixo do

recolhimento casto, uns assomos de petulância e de atrevimento;


eram do sangue, mas eram

também das moças que na rua ou da janela não me deixavam viver


sossegado. Achavam-me lindo, e

diziam-mo; algumas queriam mirar de mais perto a minha beleza, e


a vaidade é um princípio de

corrupção.

CAPÍTULO XCVIII / CINCO ANOS

Venceu a razão; fui-me aos estudos.

Passei os dezoito anos, os dezenove, os vinte, os vinte e um; aos


vinte e dous era bacharel em

Direito.
Tudo mudara em volta de mim. Minha mãe resolvera-se a
envelhecer; ainda assim os cabelos

brancos vinham de má vontade, aos poucos e espalhadamente; a


touca, os vestidos, os sapatos rasos

e surdos eram os mesmos de outrora. Já não andaria tanto de um


lado para outro. Tio Cosme

padecia do coração e ia descansar. A prima Justina apenas estava


mais idosa. José Dias também,

não tanto que me não fizesse a fineza de ir assistir à minha


graduação, e descer comigo a serra,

lépido e viçoso, como se o bacharel fosse ele. A mãe de Capitu


falecera, o pai aposentara-se no

mesmo cargo em que quis dar demissão da vida.

Escobar começava a negociar em café depois de haver trabalhado


quatro anos em uma das

primeiras casas do Rio de Janeiro. Era opinião de prima Justina que


ele afagara a idéia de convidar

minha mãe a segundas núpcias; mas, se tal idéia houve, cumpre


não esquecer a grande diferença de

idade. Talvez ele não pensasse em mais que associá-la aos seus
primeiros tentamens comerciais, e

de fato, a pedido meu, minha mãe adiantou-lhe alguns dinheiros,


que ele lhe restituiu, logo que

pôde, não sem este remoque: "D. Glória é medrosa e não tem
ambição."

A separação não nos esfriou. Ele foi o terceiro na troca das cartas
entre mim e Capitu. Desde que a
viu animou-me muito no nosso amor. As relações que travou com o
pai de Sancha estreitaram as

que já trazia com Capitu, e fê-lo servir a ambos nós, como amigo. A
princípio, custou-lhe a ela

aceitá-lo, preferia José Dias, mas José Dias repugnava-me por um


resto de respeito de criança.

Venceu Escobar posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira


carta, que foi mãe e avó das

outras. Nem depois de casado suspendeu ele o obséquio... Que ele


casou,--adivinha com quem,-casou

com a boa Sancha a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que
alguma vez, escrevendo-me,

chamava a esta a "sua cunhadinha." Assim se formam as afeições e


os parentescos, as aventuras e

os livros.

CAPÍTULO XCIX / O FILHO É A CARA DO PAI

Minha mãe, quando eu regressei bacharel quase estalou de


felicidade Ainda ouço a voz de José

Dias, lembrando o evangelho de São João, e dizendo ao ver-nos


abraçados:

-- Mulher, eis aí o teu filho! Filho, eis aí a tua mãe!

Minha mãe, entre lágrimas:

-- Mano Cosme, é a cara do pai, não é?

--Sim, tem alguma cousa, os olhos, a disposição do rosto. É o pai,


um pouco mais moderno,

concluiu por chalaça. E diga-me agora mana Glória, não foi melhor
que ele não teimasse em ser
padres Veja se este peralta daria um padre capaz.

--Como vai o meu substituto?

--Vai indo, ordena-se para o ano, respondeu tio Cosme. Hás de ir ver
a ordenação; eu também, se omeu senhor coração consentir. É bom
que te sintas na alma do outro, como se recebesses em ti

mesmo a sagração.

--Justamente! exclamou minha mãe. Mas veja bem, mano Cosme,


veja se não é a figura do meu

defunto. Olha, Bentinho, olha bem para mim. Sempre achei que te
parecias com ele, agora é muito

mais. O bigode é que desfaz um pouco...

--Sim, mana Glória, o bigode realmente... mas é muito parecido.

E minha mãe beijava-me com uma ternura que não sei escrever Tio
Cosme, para alegrá-la,

chamava-me doutor, José Dias também, e todos em casa, a prima,


os escravos, as visitas, Pádua, a

filha, e ela mesma repetiam-me o título.

CAPÍTULO C / "TU SERÁS FELIZ, BENTINHO"

No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de


dentro da lata, ia pensando na

felicidade e na glória. Via o casamento e a carreira ilustre,


enquanto José Dias me ajudava calado e

zeloso. Uma fada invisível desceu ali, e me disse em voz igualmente


macia e cálida: "Tu serás feliz,

Bentinho; tu vais ser feliz."


--E por que não seria feliz? perguntou José Dias, endireitando o
tronco e fitando-me.

--Você ouviu? perguntei eu erguendo-me também. espanta

--Ouviu o quê?

--Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz?

--É boa! Você mesmo é que está dizendo...

Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente
as fadas, expulsas dos contos e

dos versos, meteram-se no coração da gente e falam de dentro


para fora. Esta, por exemplo, muita

vez a ouvi clara e distinta. Há de ser prima das feiticeiras da


Escócia: "Tu serás rei, Macbeth!" -"

Tu serás feliz, Bentinho!" Ao cabo, é a mesma predição, pela mesma


toada universal e eterna.

Quando voltei do meu espanto, ouvi o resto do discurso de José


Dias:

-- Há de ser feliz, como merece, assim como mereceu esse diploma


que ali está, que não é favor de
ninguém. A distinção que tirou em todas as matérias é prova disso;
já lhe contei que ouvi da boca

dos lentes, em particular, os maiores elogios. Demais, a felicidade


não é só a glória, é também outra

cousa... Ah! você não confiou tudo ao velho José Dias! O pobre José
Dias está aí para um canto, é

caju chupado, não vale nada; agora são os novos, os Escobares...


Não lhe nego que é moço muito

distinto, e trabalhador, e marido de truz; mas, enfim, velho também


sabe amar...

--Mas que é?

--Que há de ser? Quem é que não sabe tudo?... Aquela intimidade


de vizinhos tinha de acabar nisto,

que é verdadeiramente uma bênção do céu, porque ela é um anjo, é


um anjíssimo... Perdoe a

cincada, Bentinho, foi um modo de acentuar a perfeição daquela


moça. Cuidei o contrário, outrora;

confundi os modos de criança com expressões de caráter, e não vi


que essa menina travessa e já de

olhos pensativos era a flor caprichosa de um fruto sadio e doce...


Por que é que não me contou

também o que outros sabem, e cá em casa está mais que


adivinhado e aprovado?

--Mamãe aprova deveras?

--Pois então? Temos falado sobre isso, e ela fez-me o favor de pedir
a minha opinião. Pergunte-lhe

o que é que eu lhe disse em termos claros e positivos; pergunte-


lhe. Disse-lhe que não podia desejar
melhor nora para si, boa, discreta, prendada, amiga da gente... e
uma dona de casa, que não lhe digo

nada. Depois da morte da mãe, tomou conta de tudo. Pádua, agora


que se aposentou, não faz mais

que receber o ordenado e entregá-lo à filha. A filha é que distribui o


dinheiro, paga as contas, faz o

rol das despesas, cuida de tudo, mantimento, roupa, luz; você já a


viu o ano passado. E quanto à

formosura você sabe melhor que ninguém...

--Mas, deveras, mamãe consultou o senhor sobre o nosso


casamento?

--Positivamente, não; fez-me o favor de perguntar se Capitu não


daria uma boa esposa; eu é que, na

resposta, falei em nora. D. Glória não negou e até deu um ar de


riso.

--Mamãe sempre que me escrevia, falava de Capitu.

--Você sabe que elas se dão muito, e por isso é que sua prima anda
cada vez mais amuada. Talvez

agora case mais depressa.

--Prima Justina?

--Não sabe? São contos, naturalmente; mas enfim, o Doutor João da


Costa enviuvou há poucos

meses, e dizem (não sei, o protonotário é que me contou) dizem


que os dous andam meio inclinados

a acabar com a viuvez, entre si, casando-se. Há de ver que não ha


nada, mas não é fora de propósito,

contanto ela sempre achasse que o doutor era um feixe de ossos...


Só se ela é um cemitério,
comentou rindo; e logo sério: Digo isto por gracejo...

Não ouvi o resto. Ouvia só a voz da minha fada interior, que me


repetia mas já então sem palavras:

"Tu serás feliz, Bentinho!" E a voz de Capitu me disse a mesma


cousa, com termos diversos, e

assim também a de Escobar, os quais ambos me confirmaram a


notícia de José Dias pela sua própria

impressão. Enfim, minha mãe, algumas semanas depois, quando lhe


fui pedir licença para casar,

além do consentimento, deu-me igual profecia, salva a redação


própria de mãe: "Tu serás feliz, meu

filho!

CAPÍTULO CII/ NO CÉU

Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si,
morto de esperar, e vá espairecer a

outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma tarde de março, por


sinal que chovia. Quando chegamos

ao alto da Tijuca, onde era o nosso ninho de noivos, o céu recolheu


a chuva e acendeu as estrelas,

não só as já conhecidas, mas ainda as que só serão descobertas


daqui a muitos séculos. Foi grande

fineza e não foi única. S. Pedro, que tem as chaves do céu, abriu-
nos as portas dele, fez-nos entrar, e

depois de tocar-nos com o báculo, recitou alguns versículos da sua


primeira epístola: "As mulheres

sejam sujeitas a seus maridos... Não seja o adorno delas o enfeite


dos cabelos riçados ou as rendas

de ouro, mas o homem que está escondido no coração... Do mesmo


modo, vós, maridos, coabitai
com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e
herdeiras convosco da graça da

vida..." Em seguida, fez sinal aos anjos, e eles entoaram um trecho


do cântico, tão concertadamente,

que desmentiriam a hipótese do tenor italiano, se a execução fosse


na terra; mas era no céu. A

música ia com o texto, como se houvessem nascido juntos, à


maneira de uma ópera de Wagner.

Depois, visitamos uma parte daquele lugar infinito. Descansa que


não farei descrição alguma, nem a

língua humana possui formas idôneas para tanto.

Ao cabo, pode ser que tudo fosse um sonho, nada mais natural a
um ex-seminarista que ouvir por

toda a parte latim e Escritura. A verdade que Capitu, que não sabia
Escritura nem latim, decorou

algumas palavras, como estas, por exemplo: "Sentei-me à sombra


daquele que tanto havia

desejado." Quanto às de S. Pedro, disse-me no dia seguinte que


estava por tudo, que eu era a única

renda e o único enfeite que jamais poria em si. Ao que eu repliquei


que a minha esposa teria sempre

as mais finas rendas deste mundo.

CAPÍTULO CII / DE CASADA

Imagina um relógio que só tivesse pêndulo, sem mostrador, de


maneira que não se vissem as horas

escritas. O pêndulo iria de um lado para outro mas nenhum sinal


externo mostraria a marcha do

tempo. Tal foi aquela semana da Tijuca.

De quando em quando, tornávamos ao passado e divertíamo-nos


em relembrar as nossas tristezas e
calamidades, mas isso mesmo era um modo de não sairmos de nós.
Assim vivemos novamente a

nossa longa espera de namorados, os anos da adolescência, a


denúncia que está nos primeiros

capítulos, e ríamos de José Dias que conspirou a nossa desunião, e


acabou festejando o nosso

consórcio. Uma ou outra vez, falávamos em descer, mas as manhãs


marcadas eram sempre de chuva

ou de sol, e nós esperávamos um dia encoberto, que teimava em


não vir.

Não obstante, achei que Capitu estava um tanto impaciente por


descer. Concordava em ficar, mas ia

falando do pai e de minha mãe, da falta de notícias nossas, disto e


daquilo, a ponto que nos

arrufamos um pouco. Perguntei-lhe se já estava aborrecida de mim.

--Eu?

--Parece.

--Você há de ser sempre criança, disse ela fechando-me a cara entre


as mãos e chegando muito os

olhos aos meus. Então eu esperei tantos anos para aborrecer-me


em sete dias? Não, Bentinho; digo

isto porque é realmente assim, creio que eles podem estar


desejosos de, ver-nos e imaginar alguma

doença, e, confesso, pela minha parte, que queria ver papai.

--Pois vamos amanhã.

--Não; há de ser com tempo encoberto, redargüiu rindo.


Peguei-lhe no riso e na palavra, mas a impaciência continuou, e
descemos com sol.

A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada


com que me deu a mão para entrar e

sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que a


causa da impaciência de Capitu

eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser


casada entre quatro paredes e algumas

árvores; precisava do resto do mundo também. E quando eu me vi


embaixo, pisando as ruas com

ela, parando, olhando, falando, senti a mesma cousa. Inventava


passeios para que me vissem, me

confirmassem e me invejassem. Na rua, muitos voltavam a cabeça


curiosos, outros paravam, alguns

perguntavam: "Quem são?" e um sabido explicava: "Este é o Doutor


Santiago, que casou há dias

com aquela moça, D. Capitolina, depois de uma longa paixão de


crianças; moram na Glória, as

famílias residem em Mata-cavalos." E ambos os dous: "A uma


mocetona!"

CAPÍTULO CIII / A FELICIDADE TEM BOA ALMA

Mocetona é vulgar; José Dias achou melhor. Foi a única pessoa cá


de baixo que nos visitou na

Tijuca, levando abraços dos nossos e palavras suas, mas palavras


que eram músicas verdadeiras;
não as ponho aqui para ir poupando papel, mas foram deliciosas.
Um dia. comparou-nos a aves

criadas em dous vãos de telhados contíguos. Imagina o resto, as


aves emplumando as asas e subindo

ao céu, e o céu agora mais largo para poder contê-las também.


Nenhum de nós riu, ambos

escutávamos comovidos e convencidos, esquecendo tudo, desde a


tarde de 1858... A felicidade tem

boa alça.

CAPÍTULO CIV / AS PIRÂMIDES

José Dias dividia-se agora entre mim e minha mãe, alternando os


jantares da Glória com os almoços

de Mata-cavalos. Tudo corria bem.

Ao fim de dous anos de casado, salvo o desgosto grande de não ter


um filho, tudo corria bem.

Perdera meu sogro, é verdade, e o tio Cosme estava por pouco, mas
a saúde de minha mãe era boa;

a nossa excelente.

Eu era advogado de algumas casas ricas, e os processos vinham


chegando. Escobar contribuíra

muito para as minhas estréias no foro. Interveio com um advogado


célebre para que me admitisse à

sua banca, e arranjou-me algumas procurações, tudo


espontaneamente.

Demais, as nossas relações de família estavam previamente feitas;


Sancha e Capitu continuavam

depois de casadas a amizade da escola, Escobar e eu a do


seminário. Eles moravam em Andaraí,
aonde que riam que fôssemos muitas vezes, e, não podendo ser
tantas como desejávamos, íamos lá

jantar alguns domingos, ou eles vinham fazê-lo conosco. Jantar é


pouco, íamos sempre muito cedo,

logo depois do almoço, para gozarmos o dia compridamente, e só


nos separávamos às nove, dez e

onze horas, quando não podia ser mais. Agora que penso naqueles
dias de Andaraí e da Glória, sinto

que a vida e o resto não sejam tão rijos como as Pirâmides.

Escobar e a mulher viviam felizes, tinham uma filhinha. Em tempo


ouvi falar de uma aventura do

marido, negócio de teatro, não sei que atriz ou bailarina, mas se foi
certo, não deu escândalo.

Sancha era modesta, o marido trabalhador. Como eu um dia


dissesse a Escobar que lastimava não

ter um filho, replicou-me:

--Homem, deixa lá. Deus os dará quando quiser, e se não der


nenhum é que os quer para si, e

melhor será que fiquem no céu.

--Uma criança, um filho é o complemento natural da vida.

--Virá, se for necessário.

Não vinha. Capitu pedia-o em suas orações, eu mais de uma vez


dava por mim a rezar e a pedi-lo.

Já não era como em criança; agora pagava antecipadamente, como


os aluguéis da casa.

CAPÍTULO CV / OS BRAÇOS
No mais, tudo corria bem. Capitu gostava de rir e divertir-se, e, nos
primeiros tempos, quando

íamos a passeios ou espetáculos, era como um pássaro que saísse


da gaiola. Arranjava-se com graça

e modéstia. Embora gostasse de jóias, como as outras moças, não


queria que eu lhe comprasse

muitas nem caras, e um dia afligiu-se tanto que prometi não


comprar mais nenhuma; mas foi só por

pouco tempo.

A nossa vida era mais ou menos plácida. Quando não estávamos


com a família ou com amigos, ou

se não íamos a algum espetáculo ou serão particular (e estes eram


raros) passávamos as noites à

nossa janela da Glória, mirando o mar e o céu, a sombra das


montanhas e dos navios, ou a gente que

passava na praia. As vezes, eu contava a Capitu a história da


cidade, outras dava-lhe notícias de

astronomia; notícias de amador que ela escutava atenta e curiosa,


nem sempre tanto que não

cochilasse um pouco. Não sabendo piano, aprendeu depois de


casada, e depressa, e daí a pouco

tocava nas casas de amizade. Na Glória era uma das nossas


recreações; também cantava, mas pouco

e raro, por não ter voz; um dia chegou a entender que era melhor
não cantar nada e cumpriu o

alvitre. De dançar gostava, e enfeitava-se com amor quando ia a


um baile; os braços é que... Os

braços merecem um período.


Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, não
creio que houvesse iguais na

cidade, nem os seus, leitora, que eram então de menina, se eram


nascidos, mas provavelmente

estariam ainda no mármore, donde vieram, ou nas mãos do divino


escultor. Eram os mais belos da

noite, a ponto que me encheram de desvane acontecimento.


Conversava mal com as outras pessoas,

só para vê-los, por mais que eles se entrelaçassem aos das casacas
alheias. lá não foi assim no

segundo baile; nesse, quando vi que os homens não se fartavam de


olhar para eles, de os buscar,

quase de os pedir, e que roçavam por eles as mangas pretas, fiquei


vexado e aborrecido. Ao terceiro

não fui, e aqui tive o apoio de Escobar, a quem confiei


candidamente os meus tédios, concordou

logo comigo.

--Sanchinha também não vai, ou irá de mangas compridas;

o contrário parece-me indecente.

--Não é? Mas não diga o motivo; hão de chamar-nos seminaristas.


Capitu já me chamou assim.

Nem por isso deixei de contar a Capitu a aprovação de Escobar.

Ela sorriu e respondeu que os braços de Sanchinha eram mal feitos,


mas cedeu depressa, e não foi

ao baile; a outros foi, mas levou-os meio vestidos de escumilha ou


não sei que, que nem cobria nem

descobria inteiramente, como o cendal de Camões.

CAPÍTULO CVI / DEZ LIBRAS ESTERLINAS


Eu já disse que era poupada, ou fica dito agora, e não só de
dinheiro mas também de cousas usadas,

dessas que se guardam por tradição, por lembrança ou por


saudade. Uns sapatos, por exemplo, uns

sapatinhos rasos de fitas pretas que se cruzavam no peito do pé e


princípio da perna, os últimos que

usou antes de calçar botinas, trouxe-os para casa, e tirava-os de


longe em longe da gaveta da

cômoda, com outras velharias, dizendo-me que eram pedaços de


criança. Minha mãe, que tinha o

mesmo gênio, gostava de ouvir falar e fazer assim. Quanto às puras


economias de dinheiro, direi um

caso, e basta.

Foi justamente por ocasião de uma lição de astronomia, à Praia da


Glória. Sabes que alguma vez a

fiz cochilar um pouco. Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal
força e concentração, que me

deu ciúmes.

--Você não me ouve, Capitu.

--Eu? Ouço perfeitamente.

--O que é que eu dizia?

--Você...você falava de Sírius.

--Qual Sírius, Capitu. Há vinte minutos que eu falei de Sírius.

--Falava de... falava de Marte, emendou ela apressada.


Realmente, era de Marte, mas é claro que só apanhara o som da
palavra, não o sentido. Fiquei sério,

e o ímpeto que me deu foi deixar a sala, Capitu, ao percebê-lo, fez-


se a mais mimosa das criaturas,

começou-me na mão, confessou-me que estivera contando, isto é,


somando uns dinheiros para

descobrir certa parcela que não achava. Tratava-se de uma


conversão de papel em ouro. A princípio

supus que era um recurso para desenfadar-me, mas daí a pouco


estava eu mesmo calculando

também, já então com papel e lápis, sobre o joelho, e dava a


diferença que ela buscava.

-- Mas que libras são essas? perguntei-lhe no fim.

Capitu fitou-me rindo, e replicou que a culpa de romper o segredo


era minha. Ergueu-se, foi ao

quarto e voltou com dez libras esterlinas, na mão; eram as sobras


do dinheiro que eu lhe dava

mensalmente para as despesas.

-- Tudo isto?
--Não é muito, dez libras só; é o que a avarenta de sua mulher pôde
arranjar, em alguns meses,

concluiu fazendo tinir o ouro na mão.

-- Quem foi o corretor?

-- O seu amigo Escobar.

--Como é que ele não me disse nada?

--Foi hoje mesmo.

-- Ele esteve cá?

--Pouco antes de você chegar; eu não disse para que você não
desconfiasse.

Tive vontade de gastar o dobro do ouro em algum presente


comemorativo, mas Capitu deteve-me.

Ao contrário, consultou-me sobre o que havíamos de fazer daquelas


libras.

--São suas, respondi.

--São nossas, emendou.

--Pois você guarde-as.

No dia seguinte, fui ter com Escobar ao armazém, e ri-me do


segredo de ambos. Escobar sorriu e
disse-me que estava para ir ao meu escritório contar-me tudo. A
cunhadinha (continuava a dar este

nome a Capitu) tinha-lhe falado naquilo por ocasião da nossa última


visita a Andaraí, e disse-lhe a

razão do segredo.

--Quando contei isto a Sanchinha, concluiu ele, ficou espantada:

"Como é que Capitu pode economizar, agora que tudo está tão
caro?"--"Não sei, filha; sei que

arranjou dez libras."

--Vê se ela aprende também.

--Não creio; Sanchinha não é gastadeira, mas também não


poupada; o que lhe dou chega, mas só

chega.

Eu, depois de alguns instantes de reflexão:

--Capitu é um anjo!

Escobar concordou de cabeça, mas sem entusiasmo, como quem


sentia não poder dizer o mesmo da

mulher. Assim pensarias m também, tão certo é que as virtudes das


pessoas próximas nos dão te ou

qual vaidade, orgulho ou consolação.

CAPÍTULO CVII / CIÚMES DO MAR


Se não fosse a astronomia, não descobriria eu tão cedo as dez
libras de Capitu; mas não é por isso

que torno a ela, é para que não cuides que a vaidade de professor é
que me fez padecer com a

desatenção de Capitu e ter ciúmes do mar. Não, meu amigo. Venho


explicar-te que tive tais ciúmespelo que podia estar na cabeça de
minha mulher, não fora ou acima dela. É sabido que as distrações

de uma pessoa podem ser culpadas, metade culpadas, um terço,


um quinto, um décimo de culpadas,

pois que em matéria de culpa a graduação é infinita. A recordação


de uns simples olhos basta para

fixar outros que os recordem e se deleitem com a imaginação deles.


Não é mister pecado efetivo e

mortal, nem papel trocado, simples palavra, aceno, suspiro ou sinal


ainda mais miúdo e leve. Um

anônimo ou anônima que passe na esquina da rua faz com que


metamos Sírius dentro de Marte, e tu

sabes, leitor, a diferença que há de um a outro na distancia e no


tamanho, mas a astronomia tem

dessas confusões. Foi isto que me fez empalidecer, calar e querer


fugir da sala para voltar, Deus

sabe quando; provavelmente, dez minutos depois. Dez minutos


depois, estaria eu outra vez na sala,

ao piano ou à janela, continuando a lição interrompida:

--Marte está a distancia de...


Tão pouco tempo? Sim, tão pouco tempo, dez minutos. Os meus
ciúmes eram intensos, mas curtos;

com pouco derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco ou menos


reconstruiria o céu, a terra e as

estrelas.

A verdade é que fiquei mais amigo de Capitu, se era possível, ela


ainda mais meiga, o ar mais

brando, as noites mais claras, e Deus mais Deus. E não foram


propriamente as dez libras esterlinas

que fizeram isto, nem o sentimento de economia que revelavam e


que eu conhecia, mas as cautelas

que Capitu empregou para o fim de descobrir-me um dia o cuidado


de todos os dias. Escobar

também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas


foram-se tornando mais próximas, e as

nossas conversações mais íntimas.

CAPÍTULO CVIII / UM FILHO

Pois nem tudo isso me matava a sede de um filho, um triste menino


que fosse, amarelo e magro,

mas um filho, um filho próprio da minha pessoa. Quando íamos a


Andaraí e víamos a filha de

Escobar e Sancha, familiarmente Capituzinha, por diferençá-la de


minha mulher, visto que lhe

deram o mesmo nome à pia, ficávamos cheios de invejas. A


pequena era graciosa e gorducha,

faladeira e curiosa. Os pais, como os outros pais, contavam as


travessuras e agudezas da menina, e

nós, quando voltávamos à noite para a Glória, vínhamos suspirando


as nossas invejas, e pedindo

mentalmente ao céu que no-las matasse...


...As invejas morreram, as esperanças nasceram, e não tardou que
viesse ao mundo o fruto delas.

Não era escasso nem feio, como eu já pedia, mas um rapagão


robusto e lindo.

A minha alegria quando ele nasceu, não sei dizê-la; nunca a tive
igual, nem creio que a possa haver

idêntica, ou que de longe ou de perto se pareça com ela. Foi uma


vertigem e uma loucura. Não

cantava na rua por natural vergonha, nem em casa para não afligir
Capitu convalescente. Também

não caía, porque há um deus para os pais novos. Fora, vivia com o
espírito no menino; em casa,

com os olhos a observá-lo, a mirá-lo, a perguntar-lhe donde vinha,


e por que é que eu estava tão

inteiramente nele, e várias outras tolices sem palavras, mas


pensadas ou deliradas a cada instante.

Talvez perdi algumas causas no toro por descuido.

Capitu não era menos terna para ele e para mim. Dávamos as mãos
um ao outro, e, quando não

olhávamos para o nosso filho, conversávamos de nós, do nosso


passado e do nosso futuro. As horas

de maior encanto e mistério eram as de amamentação. Quando eu


via o meu filho chupando o leite

da mãe, e toda aquela união da natureza para a nutrição e vida de


um ser que não fora nada, mas que

o nosso destino afirmou que seria, e a nossa constância e o nosso


amor fizeram que chegasse a ser.

ficava que não sei dizer nem digo; positivamente não me lembra, e
receio que o que dissesse me

saísse escuro. Escusai minúcias. Assim que, não é preciso contar a


dedicação da minha mãe e de
Sancha, que também foi passar com Capitu os primeiros dias e
noites. Quis rejeitar o obséquio de

Sancha; respondeu me que eu não tinha nada com isso; também


Capitu, em solteira, fora tratá-la à

Rua dos Inválidos.

--Não se lembra que o senhor foi lá vê-la?

--Lembra-me; mas Escobar...

--Eu virei jantar com vocês, e às noites sigo para Andaraí; oito dias,
e está tudo passado. Bem se vê

que você é pai de primeira viagem.

--Também você- onde está a segunda?

Usávamos então estas graças em família. Hoje, que me recolhi à


minha casmurrice, não sei se ainda

há tal linguagem, mas deve haver. Escobar cumpriu o que disse;


jantava conosco, e ia-se à noite.

Sobre tarde descíamos à praia ou íamos ao Passeio Público,


fazendo ele os seus cálculos, eu os

meus sonhos. Eu via o meu filho médico, advogado, negociante,


meti-o em várias universidades e

bancos, e até aceitei a hipótese de ser poeta. A possibilidade de


político foi consultada, e cri que me

saísse orador, e grande orador.


--Pode ser, redargüia Escobar; ninguém diria o que veio a se
Demóstenes.

Escobar acompanhava muita vez as minhas criancices; também


interrogava o futuro. Chegou a falar

da hipótese de casar o pequeno com a filha. A amizade existe;


esteve toda nas mãos com que apertei

as de Escobar, ao ouvir-lhe isto, e na total ausência de palavras com


que ali assinei o pacto, estas

vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com


grande força. Aceitei a lembrança,

e propus que os encaminhássemos a este fim, pela educação igual e


comum, pela infância unida e

correta.

Era minha idéia que Escobar fosse padrinho do pequeno; a


madrinha devia ser e seria minha mãe.

Mas a primeira parte se trocou por intervenção do tio Cosme, que,


ao ver a criança, disse-lhe entre

outros carinhos:

--Anda, toma a bênção a teu padrinho, velhaco.

E, voltando-se para mim:

--Não desisto do favor; e há de ser depressa o batizado, antes que a


minha doença me leve de vez.

Contei discretamente a anedota a Escobar, para que ele me


compreendesse e desculpasse; riu-se e

não se magoou. Fez mais, quis que o almoço do batizado fosse na


chácara dele, e foi. Eu ainda
tentei espaçar a cerimônia a ver se tio Cosme sucumbia primeiro à
doença, mas parece que esta era

mais de aborrecer que de matar. Não houve remédio senão levar o


menino à pia, onde se lhe deu o

nome de Ezequiel; era o de Escobar, e eu quis suprir deste modo a


falta de compadrio.

CAPÍTULO CIX / UM FILHO ÚNICO

Ezequiel, quando começou o capítulo anterior, não era ainda


gerado; quando acabou era cristão e

católico. Este outro é destinado a fazer chegar o meu Ezequiel aos


cinco anos, um rapagão bonito,

com os seus olhos claros, já inquietos, como se quisessem namorar


todas as moças da vizinhança,

ou quase todas.

Agora, se considerares que ele foi único, que nenhum outro veio,
certo nem incerto, morto nem

vivo, um só e único, imaginarás os cuidados que nos deu, os sonos


que nos tirou, e que sustos nos

meteram as crises dos dentes e outras, a menor febrícula, toda a


existência comum das crianças. A

tudo acudíamos, segundo cumpria e urgia, cousa que não era


necessário dizer, mas há leitores tão

obtusos, que nada entendem, se lhes não relata tudo e o resto.


Vamos ao resto.

CAPÍTULO CX / RASGOS DA INFÂNCIA

O resto come-me ainda muitos capítulos; há vidas que os têm


menos, e fazem-se ainda assim

completas e acabadas.
Aos cinco e seis anos, Ezequiel não parecia desmentir os meus
sonhos da Praia da Glória- ao

contrário, adivinhavam-se nele todas as vocações possíveis, desde


vadio até apóstolo. Vadio é aqui

posto no bom sentido, no sentido de homem que pensa e cala;


metia-se às vezes consigo, e nisto

fazia lembrar a mãe, desde pequena. Assim também, agitava-se


todo e instava por ir persuadir às

vizinhas que os doces que eu lhe trazia eram doces deveras; não o
fazia antes de farto deles, mas

também os apóstolos não levam a boa doutrina senão depois de a


terem toda no coração. Escobar,

bom negociante, opinava que a causa principal desta outra


inclinação, talvez fosse convidar

implicitamente as vizinhas a igual apostolado, quando os pais lhe


trouxessem doces; e ria-se da

própria graça, e anunciava-me que o fana seu sócio.

Gostava de música, não menos que de doce, e eu disse a Capitu que


lhe tirasse ao piano o pregão do

preto das cocadas de Matacavalos...

--Não me lembra.

--Não diga isso; você não se lembra daquele preto que vendia doce,
às tardes...

--Lembra-me de um preto que vendia doce, mas não sei mais da


toada.
-- Nem das palavras?

--Nem das palavras.

A leitora, que ainda se lembrará das palavras, dado que me tenha


lido com atenção, ficará espantada

de tamanho esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda as


vozes da sua infância e

adolescência haverá olvidado algumas, mas nem tudo fica na


cabeça. Assim me replicou Capitu, e

não achei tréplica. Fiz, porém, o que ela não esperava; corri aos
meus papéis velhos. Em S. Paulo,

quando estudante, pedi a um professor de música que me


transcrevesse a toada do pregão; ele o fez

com prazer (bastou-me repetir-lho de memória), e eu guardei o


papelinho; fui procurá-lo. Daí a

pouco interrompi um romance que ela tocava, com o pedacinho de


papel na mão. Expliquei-lho- ela

teclou as dezesseis notas.

Capitu achou à toada um sabor particular, quase delicioso- contou


ao filho a história do pregão, e

assim o cantava e teclava. Ezequiel aproveitou a música para pedir-


me que desmentisse o texto

dando-lhe algum dinheiro.

Fazia de médico de militar, de ator e bailarino. Nunca lhe dei


oratórios; mas cavalos de pau e

espada à cinta eram com ele. Já não falo dos batalhões que
passavam na rua, e que ele corria a ver;

todas as crianças o fazem. O que nem todas fazem é ter os olhos


que esta tinha. Em nenhuma vi as

ansias de gosto com que assistia à passagem da tropa e ouvia tocar


a marcha dos tambores.
-- Olha, papai! olha!

--Estou vendo, meu filho!

-- Olha o comandante! Olha o cavalo do comandante! Olha os


soldados!

Um dia amanheceu tocando corneta com a mão- dei-lhe uma


cornetinha de metal. Comprei-lhe

soldadinhos de chumbo, gravuras de batalhas que ele mirava por


muito tempo, querendo que lhe

explicasse uma peça de artilharia, um soldado caído, outro de


espada alçada, e todos os seus amores

iam para o de espada alçada. Um dia (ingênua idade!), perguntou-


me impaciente:

-- Mas, papai, por que é que ele não deixa cair a espada de uma
vez?

-- Meu filho, é porque é pintado.

-- Mas então por que é que ele se pintou?

Ri-me do engano e expliquei-lhe que não era o soldado que se tinha


pintado no papel, mas o

gravador, e tive de explicar também o que era gravador e o que era


gravura: as curiosidades de

Capitu, em suma.

Tais são os principais rasgos da infância: mais um e acabo o


capítulo Um dia. na chácara de
Escobar, deu com um gato que tinha um rato atravessado na boca.
O gato nem deixava a presa, nem

via por onde fugisse. Ezequiel não disse nada, deteve-se, acocorou-
se, e ficou olhando. Ao vê-lo

assim atento, perguntamos-lhe de longe o que era; fez-nos sinal


que nos calássemos. Escobar

concluiu:

--Vão ver que é o gato que apanhou algum rato. Os ratos continuam
a infestar-me a casa, que é o

diabo. Vamos ver Capitu quis também ver o filho; acompanhei-os.


Efetivamente, era um gato e um

rato, lance banal, sem interesse nem graça. A única circunstancia


particular era estar o rato vivo,

esperneando, e o meu pequeno enlevado. De resto, o instante foi


curto. O gato, logo que sentiu mais

gente, dispôs-se a correr; o menino, sem tirar-lhe os olhos de cima,


fez-nos outro sinal de silêncio; e

o silêncio não podia ser maior. Ia dizer religioso, risquei a palavra,


mas aqui a ponho outra vez, não

só por significar a totalidade do silêncio, mas também porque havia


naquela ação do gato e do rato

alguma cousa que prendia com ritual. O único rumor eram os


últimos guinchos do rato, aliás

frouxíssimos- as pernas mal se lhe moviam e desordenadamente.


Um tanto aborrecido, bati palmas

para que o gato fugisse, e o gato fugiu. 0s outros nem tiveram


tempo de atalhar-me, Ezequiel ficou

abatido.
--Ora, papai!

--Que foi? A esta hora o rato está comido.

--Pois sim, mas eu queria ver.

Os dous riram-se; eu mesmo achei-lhe graça.

CAPÍTULO CXI / CONTADO DEPRESSA

Achei-lhe graça, e não lhe nego ainda agora, apesar do tempo


passado, dos sucessos ocorridos, e da

tal ou qual simpatia ao rato que acho em mim; teve graça. Não me
pesa dizê-lo; os que amam a

natureza como ela quer ser amada, sem repúdio parcial nem
exclusões injustas, não acham nela

nada inferior. Amo o rato, não desamo o gato. Já pensei em os fazer


viver juntos, mas vi que são

incompatíveis. Em verdade, um rói-me os livros, outro o queijo; mas


não é muito que eu lhes

perdoe, se já perdoei a um cachorro que me levou o descanso em


piores circunstancias. Contarei o

caso depressa.

Foi quando nasceu Ezequiel; a mãe estava com febre, Sancha vivia
ao pé dela, e três cães na rua

latiam toda a noite. Procurei o fiscal, e foi como se procurasse o


leitor, que só agora sabe disto.

Então resolvi matá-los; comprei veneno, mandei fazer três bolas de


carne, e eu mesmo inseri nelas a

droga. De noite, saí; era uma hora; nem a doente. nem a


enfermeira podiam dormir, com a bulha dos
cães. Quando eles me viram, afastaram-se, dous desceram para o
lado da Praia do Flamengo, um

ficou a curta distancia, como que esperando. Fui-me a ele,


assobiando e dando estalinhos com os

dedos. O diabo ainda latiu, mas fiado nos sinais de amizade, foi-se
calando, até que se calou de

todo. Como eu continuasse, ele veio a mim, devagar, mexendo a


cauda, que é o seu modo de rir

deles; eu tinha já na mão as bolas envenenadas, e ia deitar-lhe uma


delas, quando aquele riso

especial, carinho, confiança ou o que quer que seja, me atou a


vontade; fiquei assim não sei como,

tocado de pena e guardei as bolas no bolso. Ao leitor pode parecer


que foi o cheiro da carne que

remeteu o cão ao silêncio. Não digo que não; eu cuido que ele não
me quis atribuir perfídia ao

gesto, e entregou-se-me. A conclusão é que se livrou.

Tal não faria Ezequiel. Não comporia bolas envenenadas, suponho,


mas não as recusaria também. O

que faria com certeza era ir atrás dos cães, a pedrada, até onde lhe
dessem as pernas. E se tivesse

um pau, iria a pau. Capitu morria por aquele batalhador futuro.

--Não sai a nós, que gostamos da paz, disse-me ela um dia. mas
papai em moço era assim também;

mamãe é que contava.

--Sim não sairá maricas, repliquei, eu só lhe descubro um


defeitozinho gosta de imitar os outros.

--Imitar como?
--Imitar os gestos, os modos, as atitudes; imita prima Justina, imita
José Dias; já lhe achei até um

jeito dos pés de Escobar e dos olhos...

Capitu deixou-se estar pensando e olhando para mim, e disse afinal


que era preciso emendá-lo.

Agora reparava que realmente era vezo do filho, mas parecia-lhe


que era só imitar por imitar, como

sucede a muitas pessoas grandes, que tomam as maneiras dos


outros; e para que não fosse mais

longe...

--Também não vamos mortificá-lo. Sempre há tempo de corrigi-lo.

--Há, vou ver. Você também não era assim, quando se zangava com
alguém...

--Quando me zangava, concordo; vingança de menino.

--Sim, mas eu não gosto de imitações em casa.

--E naquele tempo gostavas de mim? disse eu batendo-lhe na face.

A resposta de Capitu foi um riso doce de escárnio, um desses risos


que não se descrevem, e apenas
se pintarão, depois estirou os braços e atirou-mos sobre os ombros,
tão cheios de graça que

pareciam (velha imagem!) um colar de flores. Eu fiz o mesmo aos


meus, e senti não haver ali um

escultor que nos transferisse a atitude a um pedaço de mármore.


Só brilharia o artista, é certo.

Quando uma pessoa ou um grupo saem bem, ninguém quer saber


de modelo, mas da obra, e a obra

é que fica. Não importa; nós saberíamos que éramos nós.

CAPÍTULO CXIII / EMBARGOS DE TERCEIRO

Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão
cioso dela, não continuei a sê-lo

apesar do filho e dos anos. Sim. senhor, continuei. Continuei, a tal


ponto que o menor gesto me

afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez


só a indiferença bastava.

Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de


valsa, qualquer homem, moço oumaduro, me enchia de terror ou
desconfiança. É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio
mais

próprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver também, e


não há ver sem mostrar que se vê.

A senhora que me disse isto cuido que gostou de mim, e foi


naturalmente por não achar da minha

parte correspondência aos seus afetos que me explicou daquela


maneira os seus olhos teimosos.

Outros olhos me procuravam também, não muitos, e não digo nada


sobre eles, tendo aliás

confessado a princípio as minhas aventuras vindouras, mas eram


ainda vindouras. Naquele tempo,

por mais mulheres bonitas que achasse, nenhuma receberia a


mínima parte do amor que tinha a
Capitu. A minha própria mãe não queria mais que metade. Capitu
era tudo e mais que tudo; não

vivia nem trabalhava que não fosse pensando nela. Ao teatro íamos
juntos; só me lembra que fosse

duas vezes sem ela, um benefício de ator, e uma estréia de ópera, a


que ela não foi por ter adoecido,

mas quis por força que eu fosse. Era tarde para mandar o camarote
a Escobar, saí, mas voltei no fim

do primeiro ato. Encontrei Escobar à porta do corredor.

--Vinha falar-te, disse-me ele.

Expliquei-lhe que tinha saído para o teatro donde voltara receoso


de Capitu, que ficara doente.

--Doente de quê? perguntou Escobar.

--Queixava-se da cabeça e do estômago.

--Então, vou-me embora. Vinha para aquele negócio dos


embargos...

Eram uns embargos de terceiro; ocorrera um incidente importante,


e, tendo ele jantado na cidade,

não quis ir para casa sem dizer-me o que era, mas já agora falaria
depois...

--Não, falemos já, sobe; ela pode estar melhor. Se estiver pior,
desces.

Capitu estava melhor e até boa. Confessou-me que apenas tivera


uma dor de cabeça de nada, mas
agravara o padecimento para que eu fosse divertir-me. Não falava
alegre, o que me fez desconfiar

que mentia, para me não meter medo, mas jurou que era a verdade
pura. Escobar sorriu e disse:

--A cunhadinha está tão doente como você ou eu. Vamos aos
embargos.

CAPÍTULO CXIV / EM QUE SE EXPLICA O EXPLICADO

Antes de ir aos embargos, expliquemos ainda um ponto que já ficou


explicado, mas não bem

explicado. Viste que eu pedi (cap. CX) a um professor de música de


S. Paulo que me escrevesse a

toada daquele pregão de doces de Mata-cavalos. Em si, a matéria é


chocha, e não vale a pena de um

capítulo, quanto mais dous; mas há matérias tais que trazem


ensinamentos interessantes, senão

agradáveis. Expliquemos o explicado.

Capitu e eu tínhamos jurado não esquecer mais aquele pregão; foi


em momento de grande ternura, e

o tabelião divino sabe as cousas que se juram em tais momentos,


ele que as registra nos livros

eternos.

--Você jura?

--Juro, disse ela estendendo tragicamente o braço.


Aproveitei o gesto para beijar-lhe a mão; estava ainda no
seminário. Quando fui para S. Paulo,

querendo um dia relembrar a toada, vi que a ia perdendo


inteiramente; consegui recordá-la e corri

ao professor, que me fez o obséquio de a escrever no pedacinho de


papel.

Foi para não faltar ao juramento que fiz isto. Mas hás de crer que
quando corri aos papéis velhos,

naquela noite da Glória, também não me lembrava já da toada nem


do texto? Fiz-me de pontual ao

juramento, e este é que foi o meu pecado; esquecer, qualquer


esquece.

Ao certo, ninguém sabe se há de manter ou não um juramento.


Cousas futuras! Portanto, a nossa

constituição política, transferindo o juramento à afirmação simples,


é profundamente moral. Acabou

com um pecado terrível. Faltar ao compromisso é sempre


infidelidade, mas a alguém que tenha

mais temor a Deus que aos homens não lhe importará mentir, uma
vez ou outra, desde que não mete

a alma no purgatório. Não confudam purgatório com inferno, que é


o eterno naufrágio. Purgatório é

uma casa de penhores, que empresta sobre todas as virtudes, a


juro alto e prazo curto. Mas os prazos

renovam-se, até que um dia uma ou duas virtudes medianas pagam


todos os pecados grandes e

pequenos.

CAPÍTULO CXV / DÚVIDAS SOBRE DÚVIDAS

Vamos agora aos embargos... E por que iremos aos embargos? Deus
sabe o que custa escrevê-los,
quanto mais contá-los. Da circunstancia nova que Escobar me trazia
apenas digo o que lhe disse

então, isto é, que não valia nada.

--Nada?

--Quase nada.

--Então vale alguma cousa.

-- Para reforçar as razões que já temos vale menos que o chá que
você vai tomar comigo.

--É tarde para tomar chá.

--Tomaremos depressa.

Tomamos depressa. Durante ele, Escobar olhava para mim descer


fiado, como se cuidasse que eu

recusava a circunstancia nova para forrar-me a escrevê-la, mas tal


suspeita não ia com a nossa

amizade.

Quando ele saiu, referi as minhas dúvidas a Capitu; ela as desfez


com a arte fina que possuía, um

jeito uma graça toda sua, capaz de dissipar as mesmas tristezas de


Olímpio.

--Seria o negócio dos embargos, concluiu; e ele que veio até aqui. a
esta hora, é que está

impressionado com a demanda.


--Tens razão.

Palavra puxa palavra, falei de outras dúvidas. Eu era então um poço


delas; coaxavam dentro de

mim, como verdadeiras rãs, a ponto de me tirarem o sono algumas


vezes. Disse-lhe que começava a

achar minha mãe um tanto fria e arredia com ela. Pois aqui mesmo
valeu a arte fina de Capitu.

--Já disse a você o que é; cousas de sogra. Mamãezinha tem ciúmes


de você; logo que eles passem e

as saudades aumentem, ela torna a ser o que era. Em lhe faltando o


neto...

--Mas eu tenho notado que já é fria também com Ezequiel Quando


ele vai comigo, mamãe não lhe

faz as mesmas graças.

--Quem sabe se não anda doente?

--Vamos nós jantar com ela amanhã?

--Vamos... Não... Pois vamos.

Fomos jantar com a minha velha. Já lhe podia chamar assim, posto
que os seus cabelos brancos não
o fossem todos nem totalmente, e o rosto estivesse
comparativamente fresco- era uma espécie de

mocidade qüinquagenária ou de ancianidade viçosa, à escolha...


Mas nada de melancolias; não

quero falar dos olhos molhados, à entrada e à saída. Pouco entrou


na conversação. Também não era

diferente da costumada. José Dias falou do casamento e suas


belezas, da política, da Europa e da

homeopatia, tio Cosme das suas moléstias, prima Justina da


vizinhança, ou de José Dias, quando

este saía da sala.

Quando voltamos, à noite, viemos por ali a pé, falando das minhas
dúvidas. Capitu novamente me

aconselhou que esperássemos. Sogras eram todas assim; lá vinha


um dia e mudavam. Ao passo que

me falava, recrudescia de ternura. Dali em diante foi cada vez mais


doce comigo; não me ia esperar

à janela, para não espertar-me os ciúmes, mas quando eu subia, via


no alto da escada, entre as

grades da cancela, a cara deliciosa da minha amiga e esposa,


risonha como toda a nossa infância.

Ezequiel às vezes estava com ela; nós o havíamos acostumado a ver


o ósculo da chegada e da saída.

e ele enchia-me a cara de beijos.

CAPÍTULO CXVI / FILHO DO HOMEM

Apalpei José Dias sobre as maneiras novas de minha mãe; ficou


espantado. Não havia nada, nem

podia haver cousa nenhuma, tantos eram os louvores incessantes


que ele ouvia "à bela e virtuosa

Capitu."
--Agora, quando os ouço, entro também no coro, mas a princípio
ficava envergonhadíssimo. Para

quem chegou, como eu, a arrenegar deste casamento, era duro


confessar que ele foi uma verdadeira

bênção do céu. Que digna senhora nos saiu a criança travessa de


Mata-cavalos. O pai é que nos

separou um pouco, enquanto não nos conhecíamos, mas tudo


acabou em bem. Pois, sim, senhor,

quando D. Glória elogia a sua nora e comadre...

--Então mamãe?...

--Perfeitamente!

--Mas, por que é que não nos visita há tanto tempo?

--Creio que tem andado mais achacada dos seus reumatismos. Este
ano tem feito muito frio...

Imagine a aflição dela, que andava o dia inteiro; agora é obrigada a


estar quieta, ao pé do irmão, que

lá tem o seu mal...

Quis observar-lhe que tal razão explicava a interrupção das visitas,


e não a frieza quando íamos nós

a Mata-cavalos; mas não estendi tão longe a intimidade do


agregado. José Dias pediu para ver o

nosso "profetazinho" (assim chamava a Ezequiel) e fez-lhe as festas


do costume. Desta vez falou ao

modo bíblico (estivera na véspera a folhear o livro de Ezequiel,


como soube depois) e perguntava-

lhe: "Como vai isso, filho do homem?" "Dize-me, filho do homem,


onde estão os teus brinquedos?"

"Queres comer doce, filho do homem?"


--Que filho do homem é esse? perguntou-lhe Capitu agastada.

--São os modos de dizer da Bíblia.

--Pois eu não gosto deles, replicou ela com aspereza.

--Tem razão, Capitu, concordou o agregado. Você não imagina como


a Bíblia é cheia de expressões

cruas e grosseiras. Eu falava assim para variar... Tu como vais, meu


anjo? Meu anjo, como é que eu

ando na rua?

--Não, atalhou Capitu; já lhe vou tirando esse costume de imitar os


outros.

--Mas tem muita graça; a mim, quando ele copia os meus gestos,
parece-me que sou eu mesmo,

pequenino. Outro dia chegou a fazer um gesto de D. Glória, tão bem


que ela lhe deu um beijo em

paga. Vamos, como é que eu ando?

--Não, Ezequiel, disse eu, mamãe não quer.


Eu mesmo achava feio tal sestro. Alguns dos gestos já lhe iam
ficando mais repetidos, como os das

mãos e pés de Escobar, ultimamente, até apanhara o modo de


voltar a cabeça deste, quando falava,

e o de deixá-la cair, quando ria. Capitu ralhava. Mas o menino era


travesso, como o diabo; apenas

começamos a falar de outra cousa, saltou ao meio da sala, dizendo


a José Dias:

--O senhor anda assim.

Não podemos deixar de rir, eu mais que ninguém. A primeira pessoa


que fechou a cara, que o

repreendeu e chamou a si foi Capitu.

--Não quero isso, ouviu?

CAPÍTULO CXVII / AMIGOS PRÓXIMOS

Já então Escobar deixara Andaraí e comprara uma casa no


Flamengo, casa que ainda ali vi, há dias,

quando me deu na gana experimentar se as sensações antigas


estavam mortas ou dormiam só; não

posso dizê-lo bem, porque os sonos, quando são pesados,


confundem vivos e defuntos, a não ser a

respiração. Eu respirava um pouco, mas pode ser que fosse do mar,


meio agitado. Enfim, passei,

acendi um charuto, e dei por mim no Catete, tinha subido pela Rua
da Princesa, uma rua antiga... o

ruas antigas! ó casas antigas! ó pernas antigas! Todos nós éramos


antigos, e não é preciso dizer que

no mau sentido, no sentido de velho e acabado.


Velha é a casa, mas não lhe alteraram nada. Não sei até se ainda
tem o mesmo número. Não digo

que número é para não irem indagar e cavar a história. Não é que
Escobar ainda lá more nem sequer

viva; morreu pouco depois, por um modo que hei de contar.


Enquanto viveu, uma vez que

estávamos tão próximos, tínhamos por assim dizer uma só casa- eu


vivia na dele, ele na minha, e o

pedaço de praia entre a Glória e o Flamengo era como um caminho


de uso próprio e particular.

Fazia-me pensar nas duas casas de Mata-cavalos, com o seu muro


de permeio.

Um historiador da nossa língua, creio que João de Barros, põe na


boca de um rei bárbaro algumas

palavras mansas, quando os portugueses lhe propunham


estabelecer ali ao pé uma fortaleza, dizia o

rei que os bons amigos deviam ficar longe uns dos outros, não
perto, para se não zangarem como as

águas do mar que batiam furiosas no rochedo que eles viam dali.
Que a sombra do escritor me

perdoe, se eu duvido que o rei dissesse tal palavra nem que ela
seja verdadeira. Provavelmente foi o

mesmo escritor que a inventou para adornar o texto, e não fez mal,
porque é bonita; realmente, é

bonita. Eu creio que o mar então batia na pedra, como é seu


costume, desde Ulisses e antes. Agora

que a comparação seja verdadeira é que não. Seguramente há


inimigos contíguos, mas também há

amigos de perto e do peito. E o escritor esquecia (salvo se ainda


não era do seu tempo) esquecia o

adágio: longe dos olhos, longe do coração. Nós não podíamos ter os
corações agora mais perto. As

nossas mulheres viviam na casa uma da outra, nós passávamos as


noites cá ou lá conversando,
jogando ou mirando o mar. Os dous pequenos passavam dias, ora
no Flamengo, ora na Glória.

Como eu observasse que podia acontecer com eles o que se dera


entre mim e Capitu, acharam todos

que sim, e Sancha acrescentou que até já se iam parecendo. Eu


expliquei:

--Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros.

Escobar concordou comigo, e insinuou que alguma vez as crianças


que se freqüentam muito

acabam parecendo-se umas com as outras. Opinei de cabeça, como


me sucedia nas matérias que eu

não sabia bem nem mal. Tudo podia ser. O certo é que eles se
queriam muito, e podiam acabar

casados, mas não acabaram casados.

CAPÍTULO CXVIII / A MÃO DE SANCHA

Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar


que nem tudo o que dura muito

tempo. Esta segunda parte não acha crentes fáceis, ao contrário, a


idéia de que um castelo de vento

dura mais que o mesmo vento de que é feito, dificilmente se


despegará da cabeça, e é bom que seja

assim, para que se não perca o costume daquelas construções


quase eternas.

O nosso castelo era sólido, mas um domingo... Na véspera tínhamos


passado a noite no Flamengo,
não só os dous casais inseparáveis, como ainda o agregado e prima
Justina. Foi então que Escobar,

falando-me à janela, disse-me que fôssemos lá jantar no dia


seguinte; precisávamos falar de um

projeto em família, um projeto para os quatro.

--Para os quatro? Uma contradança.

--Não. Não és capaz de adivinhar o que seja, nem eu digo. Vem


amanhã.

Sancha não tirava os olhos de nós durante a conversa, ao canto da


janela. Quando o marido saiu,

veio ter comigo. Perguntou-me de que é que faláramos- disse-lhe


que de um projeto que eu não

sabia qual fosse, ela pediu-me segredo e revelou-me o que era:


uma viagem à Europa dali a dous

anos. Disse isto de costas para dentro, quase suspirando. O mar


batia com grande força na praia;

havia ressaca.

--Vamos todos? perguntei por fim.

--Vamos.

Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu,
graças às relações dela e Capitu,

não se me daria beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha


não convidavam a expansões

fraterais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra cousa, e


não tardou que se afastassem da

janela, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. A noite era


clara.
Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-
os em caminho. Pararam os

quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que os


outros passassem, mas nenhum

passavam. Tal se dá na rua entre dous teimosos. A cautela


desligou-nos eu tornei a voltar-me para

fora. E assim posto entrei a cavar na memória se alguma vez olhara


para ela com a mesma

expressão, e fiquei incerto. Tive um certeza só, é que um dia pensei


nela, como se pensa na bela

desconhecida que passa; mas então dar-se-ia que ela


adivinhando... Talvez o simples pensamento

me transluzisse cá fora, e ela me fugisse outrora irritada ou


acanhada, e agora por um movimento

invencível... Invencível; esta palavra foi como uma bênção de padre


à missa, que a gente recebe e

repete em si mesma.

--O mar amanhã está de desafiar a gente, disse-me a voz de


Escobar, ao pé de mim.

--Você entra no mar amanhã?

--Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. Você não


imagina o que é um bom mar emhora bravia. É preciso nadar bem,
como eu, e ter estes pulmões disse ele batendo no peito, e estes

braços; apalpa.

Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta


confissão, mas não posso

suprimi-la; era jarretar a verdade. Nem só os apalpei com essa


idéia, mas ainda senti outra cousa,
achei-os mais grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja;
acresce que sabiam nadar.

Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão


dela apertou muito a minha, e

demorou-se mais que de costume

A modéstia pedia então, como agora, que eu visse naquele gesto de


Sancha uma sanção ao projeto

do marido e um agradecimento. Assim devia ser. mas o fluido


particular que me correu todo o

corpo desviou de mim a conclusão que deixo escrita. Senti ainda os


dedos de Sancha entre os meus,

apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de


pecado. Passou depressa no relógio do

tempo; quando cheguei o relógio ao ouvido, trabalhavam só os


minutos da virtude e da razão.

-- ...Uma senhora deliciosíssima, concluiu José Dias um discurso que


vinha fazendo.

--Deliciosíssima! repeti com algum ardor, que moderei logo,


emendando-me: Realmente, uma bela

noite!

--Como devem ser todas as daquela casa, continuou o agregado. Cá


fora, não, cá fora o mar está

zangado; escute.
Ouvia-se o mar forte,--como já se ouvia de casa,--a ressaca era
grande e, a distancia, viam-se

crescer as ondas. Capitu e prima Justina, que iam adiante,


detiveram-se numa das voltas da praia, e

fomos conversando os quatro, mas eu conversava mal. Não havia


meio de esquecer inteiramente a

mão de Sancha nem os olhos que trocamos. Agora achava-lhes isto,


agora aquilo. Os instantes do

Daho intercalavam-se nos minutos de Deus, e o relógio foi assim


marcando alternativamente a

minha perdição e a minha salvação. José Dias despediu-se de nós à


porta. Prima Justina dormiu em

nossa casa; iria embora, no dia seguinte, depois do almoço e da


missa. Eu recolhi-me ao meu

gabinete, onde me demorei mais que de costume.

O retrato de Escobar, que eu tinha ali, ao pé do de minha mãe,


falou-me como se fosse a própria

pessoa. Combati sinceramente os impulsos que trazia do Flamengo,


rejeitei a figura da mulher do

meu amigo, e chamei-me desleal. Demais, quem me afirmava que


houvesse alguma intenção

daquela espécie no gesto da despedida e nos anteriores? Tudo


podia ligar-se ao interesse da nossa

viagem. Sancha e Capitu eram tão amigas que seria um prazer mais
para elas irem juntas. Quando

houvesse alguma intenção sexual, quem me provaria que não era


mais que uma sensação fulgurante,

destinada a morrer com a noite e o sono? Há remorsos que não


nascem de outro pecado, nem têm

maior duração. Agarrei-me a esta hipótese que se conciliava com a


mão de Sancha, que eu sentia de

memória dentro da minha mão, quente e demorada, apertada e


apertando...
Sinceramente, eu achava-me mal entre um amigo e a atração. A
timidez pode ser que fosse outra

causa daquela crise; não é só o céu que dá as nossas virtudes, a


timidez também, não contando o

acaso, mas o acaso é um mero acidente; a melhor origem delas é o


céu. Entretanto, como a timidez

vem do céu, que nos dá a compleicão, a virtude, filha dela, é,


genealogicamente, o mesmo sangue

celestial. Assim refletiria se pudesse, mas a princípio vaguei à toa.


Paixão não era nem insinuação.

Capricho seria ou quê? Ao fim de vinte minutos era nada,


inteiramente nada. O retrato de Escobar

pareceu falar-me- vi-lhe a atitude franca e simples, sacudi a cabeça


e fui deitar-me.

CAPÍTULO CXIX / NÃO FAÇA ISSO, QUERIDA!

A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de


descansar da cavatina de ontem para a

valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um


abismo. Não faça isso, querida; eu

mudo de rumo.

CAPÍTULO CXX / OS AUTOS

Na manhã seguinte acordei livre das abominações da véspera;


chamei-lhes alucinações, tomei café,

percorri os jornais e fui estudar uns autos. Capitu e prima Justina


saíram para a missa das nove, na

Lapa. A figura de Sancha desapareceu inteiramente no meio das


alegações da parte adversa, que eu

ia lendo nos autos, alegações falsas, inadmissíveis, sem apoio na


lei nem nas praxes. Vi que era

fácil ganhar a demanda- consultei Dalloz, Pereira e Sousa...


Uma só vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bela fotografia
tirada um ano antes. Estava de

pé, sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma


cadeira, a direita metida ao peito, o

olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e


naturalidade. A moldura que lhe

mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita embaixo, não nas


costas do cartão: "Ao meu querido

Bentinho o seu querido Escobar 20-4-70." Estas palavras


fortaleceram-me os pensamentos daquela

manhã, e espancaram de todo as recordações da véspera. Naquele


tempo a minha vista era boa; eu

podia lê-las do lugar em que estava. Tornei aos autos.

CAPÍTULO CXXI / A CATÁSTROFE

No melhor deles, ouvi passos precipitados na escada, a campainha


soou, soaram palmas, golpes na

cancela, vozes, acudiram todos, acudi eu mesmo. Era um escravo


da casa de Sancha que me

chamava

--Para ir lá... sinhô nadando, sinhô morrendo.

Não disse mais nada, ou eu não lhe ouvi o resto. Vesti-me, deixei
recado a Capitu e corri ao

Flamengo.
Em caminho, fui adivinhando a verdade. Escobar meteu-se a na dar,
como usava fazer, arriscou-se

um pouco mais fora que de costume, apesar do mar bravio, foi


enrolado e morreu. As canoas que

acudiram mal puderam trazer-lhe o cadáver.

CAPÍTULO CXXII / O ENTERRO

A Viúva... Poupo-vos as lágrimas da viúva, as minhas, as da outra


gente. Saí de lá cerca de onze

horas; Capitu e prima Justina esperavam-me, uma com o parecer


abatido e estúpido, outra

enfastiada apenas.

--Vão fazer companhia à pobre Sanchinha; eu vou cuidar do enterro.

Assim fizemos. Quis que o enterro fosse pomposo, e a afluência dos


amigos foi numerosa. Praia,

ruas, Praça da Glória, tudo eram carros, muitos deles particulares.


A casa não sendo grande, não

podiam lá caber todos, muitos estavam na praia, falando do


desastre, apontando o lugar em que

Escobar falecera, ouvindo referir a chegada do morto. José Dias


ouviu também falar dos negócios

do finado, divergindo alguns na avaliação dos bens, mas havendo


acordo em que o passivo devia ser

pequeno. Elogiavam as qualidades de Escobar, um ou outro discutia


o recente gabinete Rio Branco-

estávamos em março de 1871. Nunca me esqueceu o mês nem o


ano.

Como eu houvesse resolvido falar no cemitério, escrevi algumas


linhas e mostrei-as em casa a José
Dias, que as achou realmente dignas do morto e de mim. Pediu-me
o papel, recitou lentamente o

discurso, pesando as palavras, e confirmou a primeira opinião; no


Flamengo espalhou a notícia.

Alguns conhecidos vieram interrogar-me:

--Então, vamos ouvi-lo?

--Quatro palavras.

Poucas mais seriam. Tinha-as escrito com receio de que a emoção


me impedisse de improvisar. No

tílburi em que andei uma ou duas horas, não fizera mais que
recordar o tempo do seminário, as

relações de Escobar, as nossas simpatias, a nossa amizade,


começada, continuada e nunca

interrompida, até que um lance da fortuna fez separar para sempre


duas criaturas que prometiam

ficar por muito tempo unidas. De quando em quando enxugava os


olhos. O cocheiro aventurou duas

ou três perguntas sobre a minha situação moral; não me


arrancando nada, continuou o seu ofício.

Chegando a casa, deitei aquelas emoções ao papel; tal seria o


discurso.

CAPÍTULO CXXIII / OLHOS DE RESSACA

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis


despedir-se do marido, e o

desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens


choravam também, as mulheres todas.

Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma.


Consolava a outra, queria arrancá-la
dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns
instantes para o cadáver tão fixa, tão

apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas


lágrimas poucas e caladas...

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as


depressa, olhando a furto para a

gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis


levá-la; mas o cadáver parece

que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu


fitaram o defunto, quais os da

viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos,


como a vaga do mar lá fora, como

se quisesse tragar também o nadador da manhã.

CAPÍTULO CXXIV / O DISCURSO

--Vamos, são horas...

Era José Dias que me convidava a fechar o ataúde. Fechamo-lo, e eu


peguei numa das argolas;

rompeu o alarido final. Palavra que, quando cheguei à porta, vi o


sol claro, tudo gente e carros, as

cabeças descobertas, tive um daqueles meus impulsos que nunca


chegavam à execução: foi atirar à

rua caixão, defunto e tudo. No carro disse a José Dias que se


calasse. No cemitério tive de repetir a

cerimônia da casa, desatar as correias, e ajudar a levar o féretro à


cova. O que isto me custou
imagina. Descido o cadáver à cova, trouxeram a cal e a pá; sabes
disto, terás ido a mais de um

enterro, mas o que não sabes nem pode saber nenhum dos teus
amigos, leitor, ou qualquer outro

estranho, é a crise que me tomou quando vi todos os olhos em mim,


os pés quietos, as orelhas

atentas, e, ao cabo de alguns instantes de total silêncio, um


sussurro vago, algumas vozes

interrogativas, sinais, e alguém, José Dias, que me dizia ao ouvido:

--Então, fale.

Era o discurso. Queriam o discurso. Tinham jus ao discurso


anunciado. Maquinalmente, meti a mão

no bolso, saquei o papel e li-o aos trambolhões, não todo, nem


seguido, nem claro; a voz parecia-me

entrar cm vez de sair, as mãos tremiam-me. Não era só a emoção


nova que me fazia assim, era o

próprio texto, as memórias do amigo, as saudades confessadas, os


louvores à pessoa e aos seus

méritos; tudo isto que eu era obrigado a dizer e dizia mal. Ao


mesmo tempo, temendo que me

adivinhassem a verdade, forcejava por escondê-la bem. Creio que


poucos me ouviram, mas o gesto

geral foi de compreensão c de aprovação. As mãos que me deram a


apertar eram de solidariedade;

alguns diziam: "Muito bonito! muito bem! magnífico!" José Dias


achou que a eloqüência estivera

na altura da piedade. Um homem, que me pareceu jornalista, pediu-


me licença para levar o

manuscrito e imprimi-lo. Só a minha grande turvação recusaria um


obséquio tão simples.

CAPÍTULO CXXV / UMA COMPARAÇÃO


Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele
que lhe matou o filho. Homero

é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em


verso, mas há narrações exatas em

verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a


minha; eu acabava de louvar asvirtudes do homem que recebera,
defunto, aqueles olhos... É impossível que algum Homero não

tirasse da minha situação muito melhor efeito, ou quando menos


igual. Nem digas que nos faltam

Homeros, pela causa apontada em Camões; não, senhor, faltam-


nos, é certo, mas é porque os

Príamos procuram a sombra e o silêncio. As lágrimas, se as têm,


são enxugadas atrás da porta, para

que as caras apareçam limpas e serenas, os discursos são antes de


alegria que de melancolia, e tudo

passa como se Aquiles não matasse Heitor.

CAPÍTULO CXXVI / CISMANDO

Pouco depois de sair do cemitério, rasguei o discurso e deitei os


pedaços pela portinhola fora, sem

embargo dos esforços de José Dias para impedi-lo.

--Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação
de dá-lo a imprimir, fica já

destruído de uma vez. Não presta, não vale nada.

José Dias demonstrou longamente o contrário, depois elogiou o


enterro, e por último fez o

panegírico do morto, uma grande alma, espírito ativo, coração reto,


amigo, bom amigo, digno da

esposa amantíssima que Deus lhe dera...


Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar
comigo. O que cismei foi tão

escuro e confuso que não me deixou tomar pé. No Catete mandei


parar o carro, disse a José Dias

que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as levasse para casa;


eu iria a pé.

-- Mas...

--Vou fazer uma visita.

A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que


fosse adequada ao momento. O

carro andaria mais depressa que as pernas- estas iriam pausadas


ou não, podia afrouxar o passo.

parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse à vontade.


Fui andando e cismando. Tinha

já comparado o gesto de Sancha na véspera e o desespero daquele


dia; eram inconciliáveis. A viúva

era realmente amantíssima. Assim se desvaneceu de todo a ilusão


da minha vaidade. Não seria o

mesmo caso de Capitu. Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição


em que a vi, o ajuntamento de

pessoas que devia natural mente impor-lhe a dissimulação, se


houvesse algo que dissimular. O que

aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma
barafunda de idéias e sensações, graças
aos solavancos do carro e às interrupções de José Dias. Agora,
porém, raciocinava e evocava claro e

bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão que me
ofuscava ainda e me fazia desvairar

como sempre.

Quando cheguei a esta conclusão final, chegava também à porta de


casa, mas voltei para trás, e subi

outra vez a Rua do Catete. Eram as dúvidas que me afligiam ou a


necessidade de afligir Capitu com

a minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas;


andei largo espaço, até que me senti

sossegar, e endireitei para casa. Batiam oito horas numa padaria.

CAPÍTULO CXXVII / O BARBEIRO

Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava


a rebeca e não tocava

inteiramente mal. Na ocasião em que ia passando, executava não


sei que peça. Parei na calçada a

ouvi-lo (tudo são pretextos a um coração agoniado), ele viu-me, e


continuou a tocar. Não atendeu a

um freguês, e logo a outro, que ali foram, a despeito da hora e de


ser domingo, confiar-lhe as caras à

navalha. Perdeu-os sem perder uma nota- ia tocando para mim.


Esta consideração fez-me chegar

francamente à porta da loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando


a cortina de chita que fechava o

interior da casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido claro, flor


no cabelo. Era a mulher dele,

creio que me descobriu de dentro, e veio agradecer-me com a


presença o favor que eu fazia ao

marido. Se me não engano, chegou a dizê-lo com os olhos. Quanto


ao marido, tocava agora com
mais calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face ao
instrumento, passava a alma ao

arco, e tocava, tocava...

Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim


andando para casa; enfiei pelo

corredor e subi as escadas sem estrépito. Nunca me esqueceu o


caso deste barbeiro, ou por estar

ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta máxima,


que os compiladores podem tirar

daqui e inserir nos compêndios de escola. A máxima é que a gente


esquece devagar as boas ações

que pratica, e verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre


barbeiro! perdeu duas barbas naquela

noite, que eram o pão do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um
traunseunte. Supõe agora que

este, em vez de ir-se embora, como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e


a enamorar-lhe a mulher, então

é que ele, todo arco, todo rebeca, tocaria desesperadamente.


Divina arte!

CAPÍTULO CXXVIII / PUNHADO DE SUCESSOS

Como ia dizendo, subi as escadas sem estrépito, empurrei a


cancela, que estava apenas encostada, e

dei com prima Justina e José Dias jogando cartas na saleta próxima.
Capitu levantou-se do canapé e

veio a mim. O rosto dela era agora sereno e puro. Os outros


suspenderam o jogo, e todos falamos do

desastre e da viúva. Capitu censurou a imprudência de Escobar, e


não dissimulou a tristeza que lhe

trazia a dor da amiga. Perguntei-lhe por que não ficara com Sancha
aquela noite.
--Tem lá muita gente; ainda assim ofereci-me, mas não quis.
Também lhe disse que era melhor vir

para cá, e passar aqui uns dias conosco.

--Também não quis?

--Também não.

--Entretanto, a vista do mar há de ser-lhe penosa, todas as manhãs,


ponderou José Dias, e não sei

como poderá...

-- Mas passa; o que é que não passa? atalhou prima Justina.

E como em torno desta idéia começássemos uma troca de palavras,


Capitu saiu para ir ver se o filho

dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabelos tão


demoradamente que pareceria afetação, se

não soubéssemos que ela era muito amiga de si. Quando tornou,
trazia os olhos vermelhos; disse-

nos que, ao mirar o filho dormindo, pensara na filhinha de Sancha,


e na aflição da viúva. E, sem se

lhe dar das visitas, nem reparar se havia algum criado, abraçou-me
e disse-me que, se quisesse

pensar nela, era preciso pensar primeiro na minha vida. José Dias
achou a frase "lindíssima", e

perguntou a Capitu por que é que não fazia versos. Tentei meter o
caso à bulha, e assim acabamos a
noite.

No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não


que quisesse dá-lo a imprimir, mas

era lembrança do finado. Pensei em recompô-lo, mas só achei


frases soltas, que uma vez juntas não

tinham sentido. Também pensei em fazer outro, mas era já difícil, e


podia ser apanhado em falso

pelos que me tinham ouvido no cemitério. Quanto a recolher os


pedacinhos de papel deitados à rua,

era tarde; estariam já varridos.

Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze,


uma bengala de marfim, um

pássaro, o álbum de Capitu, duas paisagens do Paraná e outras.


Também ele as possuía de minha

mão. Vivemos assim a trocar memórias e regalos, ora em dia de


anos, ora sem razão particular.

Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornais do dia: davam


notícia do desastre e da morte

de Escobar, os estudos e os negócios deste, as qualidades pessoais,


a simpatia do comércio, e

também falavam dos bens deixados, da mulher e da filha. Tudo isso


foi na segunda-feira. Na terça-

feira foi aberto o testamento, que me nomeava segundo


testamenteiro; o primeiro lugar cabia a

mulher. Não me deixava nada, mas as palavras que me escrevera


em carta separada eram sublimes

de amizade e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas compôs-


se depressa.

Testamento, inventário, tudo andou quase tão depressa como aqui


vai dito. Ao cabo de pouco

tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Paraná.


CAPÍTULO CXXIX / A D. SANCHA

D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até
aqui, abandone o resto. Basta

fechá-lo; melhor será queimá-lo, para lhe não dar tentação e abri-lo
outra vez. Se, apesar do aviso,

quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo pelo mal que
receber. O que já lhe tiver feito,

contando os gestos daquele sábado, esse acabou, uma vez que os


acontecimentos, e eu com eles,

desmentimos a minha ilusão; mas o que agora a alcançar, esse é


indelével. Não, amiga minha, não

leia mais. Vá envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a


mesma cousa, e é ainda o melhor

que se pode fazer depois da mocidade. Um dia. iremos daqui até à


porta do céu, onde nos

encontraremos renovados, como as plantas novas, come piante


novelle,

Rinovellate di novelle fronde.

O resto em Dante.

CAPÍTULO CXXX / UM DIA...

Por enquanto, um dia Capitu quis saber o que é que me fazia andar
calado e aborrecido. E propôs-

me a Europa, Minas, Petrópolis, uma série de bailes, mil desses


remédios aconselhados aos

melancólicos. Eu não sabia que lhe respondesse; recusei as


diversões. Como insistisses repliquei-lhe

que os meus negócios andavam mal. Capitu sorriu para animar-me.


E que tinha que andassem mal?
Tornariam a andar bem, e até lá as jóias, os objetos de algum valor
seriam vendidos, e iríamos

residir em algum beco. Viveríamos sossegados e esquecidos; depois


tornaríamos à tona da água. A

ternura com que me disse isto era de comover as pedras. Pois nem
assim. Respondi-lhe secamente

que não era preciso vender nada. Deixei-me estar calado e


aborrecido. Ela propôs-me jogar cartas

ou damas, um passeio a pé, uma visita a Mata-cavalos; e, como eu


não aceitasse nada, foi para a

sala, abriu o piano, e começou a tocar; eu aproveitei a ausência,


peguei do chapéu e saí.

...Perdão, mas este capítulo devia ser precedido de outro, em que


contasse um incidente, ocorrido

poucas semanas antes, dous meses depois da partida de Sancha.


Vou escrevê-lo; podia antepô-lo a

este antes de mandar o livro ao prelo, mas custa muito alterar o


número das páginas; vai assim

mesmo, depois a narração seguirá direita até o fim. Demais, é


curto.

CAPÍTULO CXXXI / ANTERIOR AO ANTERIOR

Foi o caso que a minha vida era outra vez doce e plácida, a banca
do advogado rendia-me bastante,

Capitu estava mais bela, Ezequiel ia crescendo. Começava o ano de


1872.

--Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão


esquisita? perguntou-me Capitu. Só vi
duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar. Olha,
Ezequiel; olha firme, assim, vira

para o lado de papai, não precisa revirar os olhos, assim, assim...

Era depois de jantar, estávamos ainda à mesa, Capitu brincava com


o filho, ou ele com ela, ou um

com outro, porque, em verdade, queriam-se muito, mas é também


certo que ele me queria ainda

mais a mim. Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu tinha


razão; eram os olhos de Escobar,

mas não me pareceram esquisitos por isso. Afinal não haveria mais
que meia dúzia de expressões

no mundo, e muitas semelhanças se dariam naturalmente. Ezequiel


não entendeu nada, olhou

espantado para ela e para mim, e afinal saltou-me ao colo:

--Vamos passear, papai?

--Logo, meu filho.

Capitu, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa; mas,


dizendo-lhe eu que, na beleza, os

olhos de Ezequiel saíam aos da mãe, Capitu sorriu abanando a


cabeça com um ar que nunca achei

em mulher alguma, provavelmente porque não gostei tanto das


outras. As pessoas valem o que vale

a afeição da gente, e é daí que mestre Povo tirou aquele adágio


que quem o feio ama bonito lhe

parece. Capitu tinha meia dúzia de gestos únicos na terra. Aquele


entrou-me pela alma dentro.

Assim fica explicado que eu corresse à minha esposa e amiga e lhe


enchesse a cara de beijos; mas

este outro incidente não é radicalmente necessário à compreensão


do capítulo passado e dos futuros;
fiquemos nos olhos de Ezequiel.

CAPÍTULO CXXXII / O DEBUXO E O COLORIDO

Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a


pessoa inteira, iam-se apurando com o

tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo


e colorindo aos poucos, e a

figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, até que a família
pêndula o quadro na parede, em

memória do que foi e já não pode ser. Aqui podia ser e era. O
costume valeu muito contra o efeito

da mudança; mas a mudança fez-se, não à maneira de teatro, fez-se


como a manhã que aponta

vagarosa, primeiro que se possa ler uma carta, depois lê-se a carta
na rua, em casa, no gabinete, sem

abrir as janelas; a luz coada pelas persianas basta a distinguir as


letras. Li a carta, mal a princípio e

não toda, depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, é certo, metia o papel
no bolso, corria a casa, fechavame,

não abria as vidraças, chegava a fechar os olhos. Quando


novamente abria os olhos e a carta, a

letra era clara e a notícia claríssima.

Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do


Flamengo para se sentar comigo à

mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou


pedir-me à noite a bênção do

costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e


praticava as, para me não descobrir a

mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo,


não podia fazê-lo a mim, que

vivia mais perto de mim que ninguém. Quando nem mãe nem filho
estavam comigo o meu
desespero era grande, e eu jurava matá-los a ambos, ora de golpe,
ora devagar, para dividir pelo

tempo da morte todos os minutos da vida embaçada e agoniada.


Quando, porém, tornava a casa e

via no alto da escada a criaturinha que me queria e esperava,


ficava desarmado e diferia o castigo de

um dia para outro.

O que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, não


se notará aqui, por ser tão miúdo

e repetido, e já tão tarde que não se poderá dizê-lo sem falha nem
canseira. Mas o principal irá. E o

principal é que os nossos temporais eram agora contínuos e


terríveis.

Antes de descoberta aquela má terra da verdade, tivemos outros


de pouca dura; não tardava que o

céu se fizesse azul, o sol claro e o mar chão, por onde abríamos
novamente as velas que nos

levavam às ilhas e costas mais belas do universo, até que outro pé


de vento desbaratava tudo, e nós,

postos à capa, esperávamos outra bonança, que não era tardia nem
dúbia, antes total, próxima e

firme.

Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram


morte ao meu amigo e comborço

Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu. Assim,


posto sempre fosse homem de
terra, conto aquela parte da minha vida, como um marujo contaria
o seu naufrágio.

Já entre nós só faltava dizer a palavra última; nós a líamos, porém,


nos olhos um do outro, vibrante

e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha para nós não fazia mais
que separar-nos. Capitu propôs

metê-lo em um colégio, donde só viesse aos sábados; custou muito


ao menino aceitar esta situação.

--Quero ir com papai! Papai há de ir comigo! bradava ele.

Fui eu mesmo que o levei um dia de manhã, uma segunda-feira. Era


no antigo Largo da Lapa, perto

da nossa casa. Levei-o a pé, pela mão, como levara o ataúde do


outro. O pequeno ia chorando e

fazendo perguntas a cada passo, se voltaria para casa, e quando, e


se eu iria vê-lo...

--Vou.

--Papai não vai!

--Vou sim.

--Jura, papai!

--Pois sim.

--Papai não diz que jura.


--Pois juro.

E lá o levei e deixei. A ausência temporária não atalhou o mal, e


toda a arte fina de Capitu para

fazê-lo atenuar, ao menos, foi como se não fosse; eu sentia-me cada


vez pior. A mesma situação

nova agravou a minha paixão. Ezequiel vivia agora mais fora da


minha vista; mas a volta dele, ao

fim das semanas, ou pelo descostume em que eu ficava, ou porque


o tempo fosse andando e

completando a semelhança, era a volta de Escobar mais vivo e


ruidoso. Até a voz, dentro de pouco,

já me parecia a mesma. Aos sábados, buscava não andar em casa e


só entrar quando ele estivesse

dormindo; mas não escapava ao domingo, no gabinete, quando eu


me achava entre jornais e autos.

Ezequiel entrava turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor,


porque o demo do pequeno cada

vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora uma
aversão que mal podia disfarçar,

tanto a ela como aos outros. Não podendo encobrir inteiramente


esta disposição moral, cuidava de

me não fazer encontradiço com ele, ou só o menos que pudesse;


ora tinha trabalho que me obrigava

a fechar o gabinete, ora saía ao domingo para ir passear pela


cidade e arrabaldes o meu mal secreto.

CAPÍTULO CXXXIII / UMA IDÉIA

Um dia--era uma sexta-feira,--não pude mais. Certa idéia, que


negrejava em mim, abriu as asas e

entrou a batê-las de um lado para outro, como fazem as idéias que


querem sair. O ser sexta-feira
creio que foi acaso, mas também pode ter sido propósito; fui
educado no terror daquele dia. ouvi

cantar baladas, em casa, vindas da roça e da antiga metrópole, nas


quais a sexta-feira era o dia de

agouro. Entretanto, não havendo almanaques no cérebro, é


provável que a idéia não batesse as asas

senão pela necessidade que sentia de vir ao ar e à vida. A vida é


tão bela que a mesma idéia da

morte precisa de vir primeiro a ela, antes de se ver cumprida. Já me


vais entendendo; lê agora outro

capítulo.

CAPÍTULO CXXXIV / O DIA DE SÁBADO

A idéia saiu finalmente do cérebro. Era noite, e não pude dormir,


por mais que a sacudisse de mim.

Também nenhuma noite me passou tão curta. Amanheceu, quando


cuidava não ser mais que uma ou

duas horas.

Saí, supondo deixar a idéia em casa; ela veio comigo. Cá fora tinha
a mesma cor escura, as mesmas

asas trépidas, e posto avoasse com elas, era como se fosse fixa; eu
a levava na retina, não que me

encobrisse as cousas externas, mas via-as através dela, com a cor


mais pálida que de costume, e sem

se demorarem nada.

Não me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas,
comprei uma substancia, que
não digo, para não espertar o desejo de prová-la. A farmácia faliu, é
verdade; o dono fez-se

banqueiro, e o banco prospera. Quando me achei com a morte no


bolso senti tamanha alegria como

se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior, porque o


prêmio da loteria gasta-se, e a morte

não se gasta. Fui a casa de minha mãe, com o fim de despedir-me, a


título de visita. Ou de verdade

ou por ilusão, tudo ali me pareceu melhor nesse dia. minha mãe
menos triste, tio Cosme esquecido

do coração, prima Justina da língua. Passei uma hora em paz.


Cheguei a abrir mão do projeto. Que

era preciso para viver? Nunca mais deixar aquela casa ou prender
aquela hora a mim mesmo...

CAPÍTULO CXXXV / OTELO

Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente


Otelo, que eu não vira nem lera

nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as


grandes raivas do mouro, por causa

de um lenço. --um simples lenço!--e aqui dou matéria à meditação


dos psicólogos deste e de outros

continentes, pois não me pude furtar à observação de que um lenço


bastou a acender os ciúmes de

Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços


perderam-se. hoje são precisos os

próprios lençóis; alguma vez nem lençóis há e valem só as camisas.


Tais eram as idéias que me iam

passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro


rolava convulso, e Iago destilava a sua

calúnia. Nos intervalos não me levantava da cadeira- não queria


expor-me a encontrar algum

conhecido. As senhoras ficavam quase todas nos camarotes,


enquanto os homens iam fumar. Então
eu perguntava a mim mesmo se alguma daquelas não teria amado
alguém que jazesse agora no

cemitério, e vinham outras incoerências, até que o pano subia e


continuava a peça. O último ato

mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas
de Desdêmona, as suas palavras

amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu


entre aplausos frenéticos do

público.

--E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; -- que faria o público,
se ela deveras fosse culpada,

tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um


travesseiro não bastaria; era preciso

sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo,


e a reduzisse a pó, e o pó seria

lançado ao vento, como eterna extinção...

Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, é verdade um quase nada,


mas o bastante para ir até à

manhã. Vi as últimas horas da noite e as primeiras do dia, vi os


derradeiros passeadores e os

primeiros varredores, as primeiras carroças, os primeiros ruídos, os


primeiros albores, um dia que

vinha depois do outro e me veria ir para nunca mais voltar. As ruas


que eu andava como que me

fugiam por si mesmas. Não tornaria a contemplar o mar da Glória,


nem a serra dos órgãos, nem a

fortaleza de Santa Cruz e as outras. A gente que passava não era


tanta, como nos dias comuns da

semana, mas era já numerosa e ia a algum trabalho, que repetiria


depois; eu é que não repetiria mais

nada.
Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante pé, e meti-
me no gabinete, iam dar seis horas.

Tirei o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi


ainda uma carta, a última, dirigida a

Capitu. Nenhuma das outras era para ela; senti necessidade de lhe
dizer uma palavra em que lhe

ficasse o remorso da minha morte.

Escrevi dous textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O


segundo continha só o

necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem


as lutas havidas, nem alegria

alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer.

CAPÍTULO CXXXVI / A XÍCARA DE CAFÉ

O meu plano foi esperar o café, dissolver nele a droga e ingeri-la.


Até lá, não tendo esquecido de

todo a minha história romana, lembrou-me que Catão, antes de se


matar, leu e releu um livro de

Platão. Não tinha Platão comigo; mas um tomo truncado de


Plutarco, em que era narrada a vida do

célebre romano, bastou-me a ocupar aquele pouco tempo, e para


em tudo imitá-lo, estirei-me no

canapé. Nem era só imitá-lo nisso; tinha necessidade de incutir em


mim a coragem dele, assim

como ele precisara dos sentimentos do filósofo, para


intrepidamente morrer. Um dos males da

ignorância é não ter este remédio à última hora. Há muita gente


que se mata sem ele, e nobremente
expira, mas estou que muita mais gente poria termo aos seus dias,
se pudesse achar essa espécie de

cocaína moral dos bons livros. Entretanto, querendo fugir a


qualquer suspeita de imitação, lembrame

bem que, para não ser encontrado ao pé de mim o livro de Plutarco,


nem ser dada a notícia nas

gazetas com a da cor das calças que eu então vestia, assentei de


pô-lo novamente no seu lugar, antes

de beber o veneno.

O copeiro trouxe o café. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a mesa


onde ficara a xícara. Já a casa

estava em rumores; era tempo de acabar comigo. A mão tremeu-me


ao abrir o papel em que trazia a

droga embrulhada. Ainda assim tive animo de despejar a


substancia na xícara, e comecei a mexer o

café, os olhos vagos, a memória em Desdêmona inocente; o


espetáculo da véspera vinha intrometerse

na realidade da manhã. Mas a fotografia de Escobar deu-me o


animo que me ia faltando; lá

estava ele, com a mão nas costas da cadeira, a olhar ao longe...

"Acabemos com isto", pensei.

Quando ia a beber, cogitei se não seria melhor esperar que Capitu e


o filho saíssem para a missa;

beberia depois; era melhor. Assim disposto, entrei a passear no


gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no

corredor, vi-o entrar e correr a mim bradando:

--Papai! papai!
Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havê-lo
inteiramente esquecido, mas crê que

foi belo e trágico. Efetivamente, a figura do pequeno fez-me recuar


até dar de costas na estante.

Ezequiel abraçou-me os joelhos, esticou-se na ponta dos pés, como


que rendo subir e dar-me o beijo

do costume; e repetia, puxando-me:

--Papai! papai!

CAPÍTULO CXXXVII / SEGUNDO IMPULSO

Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não estivesse aqui


escrevendo este livro, porque o

meu primeiro ímpeto foi correr ao café e bebê-lo. Cheguei a pegar


na xícara, mas o pequeno

beijava-me a mão, como de costume, e a vista dele, como o gesto,


deu-me outro impulso que me

custa dizer aqui;- mas vá lá, diga-se tudo. Chamem me embora


assassino; não serei eu que os

desdiga ou contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso.


Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se

já tomara café.

--Já, papai; vou à missa com mamãe.

--Toma outra xícara, meia xícara só.

--E papai?

-- Eu mando vir mais; anda, bebe!


Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase
a entornei, mas disposto a fazêla

cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a


temperatura, porque o café estava frio...

Mas não sei que senti que me fez recuar. Pus a xícara em cima da
mesa, e dei por mim a beijar

doudamente a cabeça do menino.

--Papai! papai! exclamava Ezequiel.

--Não, não, eu não sou teu pai!

CAPÍTULO CXXXVIII / CAPITU QUE ENTRA

Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu diante de


mim. Eis aí outro lance, que

parecerá de teatro, e é tão natural como o primeiro, uma vez que a


mãe e o filho iam à missa, e

Capitu não saía sem falar-me. Era já um falar seco e breve; a maior
parte das vezes, eu nem olhava

para ela. Ela olhava sempre, esperando.

Desta vez, ao dar com ela, não sei se era dos meus olhos, mas
Capitu pareceu-me lívida. Seguiu-se
um daqueles silêncios, a que, sem mentir, se pode chamar de um
século, tal é a extensão do tempo

nas grandes crises. Capitu recompôs-se; disse ao filho que se fosse


embora, e pediu-me que lhe

explicasse...

--Não há que explicar, disse eu.

--Há tudo, não entendo as tuas lágrimas nem as de Ezequiel. Que


houve entre vocês?

--Não ouviu o que lhe disse?

Capitu respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Eu creio


que ouvira tudo claramente mas

confessá-lo seria perder a esperança do silêncio e da reconciliação


por isso negou a audiência e

confirmou unicamente a vista. Sem lhe contar o episódio do café,


repeti-lhe as palavras do final do

capítulo.

--O quê? perguntou ela como se ouvira mal.

--Que não é meu filho.

Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que


lhe sucedeu, tão naturais ambas

que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso


foro. Já ouvi que as há para vários

casos, questão de preço; eu não creio, tanto mais que a pessoa que
me contou isto acabava de perder
uma demanda. Mas, haja ou não testemunhas alugadas, a minha
era verdadeira; a própria natureza

jurava por si, e eu não queria duvidar dela. Assim que, sem atender
à linguagem de Capitu, aos seus

gestos, à dor que a retorcia, a cousa nenhuma, repeti as palavras


ditas duas vezes com tal resolução

que a fizeram afrouxar. Após alguns instantes, disse-me ela:

--Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera; entretanto


você que era tão cioso dos

menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança.


Que é que lhe deu tal idéia?

Diga,-- continuou vendo que eu não respondia nada, -- diga tudo;


depois do que ouvi, posso ouvir o

resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal convicção?
Ande, Bentinho, fale! fale!

Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.

--Há cousas que se não dizem.

--Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.

Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um


tanto confusa, o porte não era de

acusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.

--Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você


acha que tenho defesa, ou peçolhe

desde já a nossa separação: não posso mais!

--A separação é cousa decidida, redargüi pegando-lhe na proposta.


Era melhor que a fizéssemos por
meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma
vez, porém, que a senhora

insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.

Não disse tudo; mas pude aludir aos amores de Escobar sem
proferir-lhe o nome. Capitu não pôde

deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui;


depois, em um tom juntamente

irônico e melancólico:

--Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!

Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou,


enquanto eu, que não pedia outra

cousa mais que a plena justificação dela, disse-lhe não sei que
palavras adequadas a este fim. Capitu

olhou para mim com desdém, e murmurou:

--Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de


Deus explicará tudo... Ri-se? É

natural- apesar do seminário não acredita em Deus; eu creio... Mas


não falemos nisto; não nos fica

bem dizer mais nada.


CAPÍTULO CXXXIX / A FOTOGRAFIA

Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande
ilusão, uma fantasmagoria de

alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel,


gritando:--"Mamãe! mamãe! é hora da missa!"

restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu,


involuntariamente, olhamos para a fotografia

de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela


fez-se confissão pura. Este era

aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que


seria o nosso pequeno Ezequiel.

De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras,


puxou do filho e saíram para a

missa.

CAPÍTULO CXL / VOLTA DA IGREJA

Ficando só, era natural pegar do café e bebê-lo. Pois, não, senhor;
tinha perdido o gosto à morte. A

morte era uma solução; eu acabava de achar outra, tanto melhor


quanto que não era definitiva, e

deixava a porta aberta à reparação, se devesse havê-la. Não disse


perdão, mas reparação, isto é,

justiça. Qualquer que fosse a razão do ato, rejeitei a morte, e


esperei o regresso de Capitu. Este foi

mais demorado que de costume; cheguei a temer que ela houvesse


ido à casa de minha mãe, mas

não foi.

--Confiei a Deus todas as minhas amarguras, disse-me Capitu ao


voltar da igreja; ouvi dentro de

mim que a nossa separação é indispensável, e estou às suas


ordens.
Os olhos com que me disse isto eram embuçados, como espreitando
um gesto de recusa ou de

espera. Contava com a minha debilidade ou com a própria incerteza


em que eu podia estar da

paternidade do outro, mas falhou tudo. Acaso haveria em mim um


homem novo, um que aparecia

agora, desde que impressões novas e fortes o descobriam? Nesse


caso era um homem apenas

encoberto. Respondi-lhe que ia pensar, e faríamos o que eu


pensasse. Em verdade vos digo que tudo

estava pensado e feito.

No intervalo, evocara as palavras do finado Gurgel, quando me


mostrou em casa dele o retrato da

mulher, parecido com Capitu. Hás de lembrar-te delas; se não, relê


o capítulo, cujo número não

ponho aqui, por não me lembrar já qual seja, mas não fica longe.
Reduzem-se a dizer que há tais

semelhanças inexplicáveis... Pelo dia adiante, e nos outros dias,


Ezequiel ia ter comigo ao gabinete,

e as feições do pequeno davam idéia clara das do outro, ou eu ia


atentando mais nelas. De envolta,

lembravam-me episódios vagos e remotos, palavras, encontros e


incidentes, tudo em que a minha

cegueira não pôs malícia, e a que faltou o meu velho ciúme. Uma
vez em que os fui achar sozinhos

e calados, um segredo que me fez rir, uma palavra dela sonhando,


todas essas reminiscências

vieram vindo agora, em tal atropêlo que me atordoaram... E por


que os não esganei um dia. quando

desviei os olhos da rua onde estavam duas andorinhas trepadas no


fio telegráfico? Dentro, as

minhas outras andorinhas estavam trepadas no ar, os olhos


enfiados nos olhos, mas tão cautelosos
que se desenfiaram logo, dizendo-me uma palavra amiga e alegre.
Contei-lhes o namoro das

andorinhas de fora, e acharam-lhe graça; Escobar declarou que,


para ele, seria melhor se as

andorinhas, em vez de trepadas no fio de arame, estivessem à


mesa do jantar cozidas. "Nunca comi

os ninhos delas, continuou, mas devem ser bons, se os chins os


inventaram." E ficamos a tratar dos

chins e dos clássicos que falaram deles, enquanto Capitu,


confessando que a aborrecíamos, foi a

outros cuidados. Agora lembrava-me tudo o que então me pareceu


nada.

CAPÍTULO CXLI / A SOLUÇÃO

Aqui está o que fizemos. Pegamos em nós e fomos para a Europa,


não passear, nem ver nada, novo

nem velho; paramos na Suíça. Uma professora do Rio Grande, que


foi conosco, ficou de companhia

a Capitu, ensinando a língua materna a Ezequiel, que aprenderia o


resto nas escolas do país. Assim

regulada a vida, tornei ao Brasil.

Ao cabo de alguns meses, Capitu começara a escrever-me cartas, a


que respondi com brevidade e

sequidão. As dela eram submissas, sem ódio, acaso afetuosas, e


para o fim saudosas; pedia-me que

a fosse ver. Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti


a viagem com o mesmo
resultado. Na volta, os que se lembravam dela, queriam notícias, e
eu dava-lhes, como se acabasse

de viver com ela; naturalmente as viagens eram feitas com o intuito


de simular isto mesmo, e

enganar a opinião. Um dia, finalmente...

CAPÍTULO CXLII / UMA SANTA

Entenda-se que, se nas viagens que fiz à Europa, José Dias não foi
comigo, não é que lhe faltasse

vontade; ficava de companhia a tio Cosme, quase inválido e a


minha mãe, que envelheceu depressa.

Também ele estava velho, posto que rijo. Ia a bordo despedir-se de


mim, e as palavras que me dizia,

os gestos de lenço, os próprios olhos que enxugava eram tais que


me comoviam também. A última

vez não foi a bordo.

--Venha...

--Não posso.

--Está com medo?

--Não; não posso. Agora, adeus, Bentinho, não sei se me verá mais;
creio que vou para a outra

Europa, a eterna...

Não foi logo; minha mãe embarcou primeiro. Procura no cemitério


de S. João Batista uma sepultura

sem nome, com esta única indicação: Uma santa. É aí. Fiz fazer essa
inscrição com alguma
dificuldade. O escultor achou-a esquisita, o administrador do
cemitério consultou o vigário da

paróquia; este ponderou-me que as santas es tão no altar e no céu.

-- Mas, perdão, atalhei, eu não quero dizer que naquela sepultura


está uma canonizada. A minha

idéia é dar com tal palavra uma definição terrena de todas as


virtudes que a finada possuiu na vida.

Tanto é assim que, sendo a modéstia uma delas, desejo conservá-la


póstuma, não lhe escrevendo o

nome.

--Todavia, o nome, a filiação, as datas...

-- Quem se importará com datas, filiação, nem nomes, depois que


eu acabar?

-- Quer dizer que era uma santa senhora, não?

--Justamente. O protonotário Cabral, se fosse vivo, confirmaria aqui


o que lhe digo.

--Nem eu contesto a verdade, hesito só, na fórmula. Conheceu


então o protonotário?

-- Conheci-o. Era um padre-modelo.

-- Bom canonista, bom latinista, pio e caridoso, continuou o vigário.

--E possuía algumas prendas de sociedade, disse eu; lá em casa


sempre ouvi que era insigne

parceiro ao gamão...

--Tinha muito bom dado! suspirou lentamente o vigário. Um dado de


mestre!
--Então, parece-lhe...?

--Uma vez que não há outro sentido, nem poderia havê-lo, sim,
senhor, admite-se...

José Dias assistiu a estas diligências, com grande melancolia. No


fim, quando saímos, disse mal do

padre, chamou-lhe meticuloso. Só lhe achava desculpa por não ter


conhecido minha mãe, nem ele

nem os outros homens do cemitério.

--Não a conheceram; se a conhecessem mandariam esculpir


santíssima.

CAPÍTULO CXLIII / O ÚLTIMO SUPERLATIVO

Não foi o último superlativo de José Dias. Outros teve que não vale
a pena escrever aqui, até que

veio o último, o melhor deles, o mais doce, o que lhe fez da morte
um pedaço de vida. Já então

morava comigo; posto que minha mãe lhe deixasse uma pequena
lembrança, veio dizer-me que,
com legado ou sem ele, não se separaria de mim. Talvez a
esperança dele fosse enterrar-me.

Correspondia-se com Capitu, a que pedia que lhe mandasse o


retrato de Ezequiel; mas Capitu ia

adiando a remessa de correio a correio, até que ele não pediu mais
nada, a não ser o coração do

jovem estudante; pedia-lhe também que não deixasse de falar a


Ezequiel no velho amigo do pai e do

avô, "destinado pelo céu a amar o mesmo sangue." Era assim que
ele preparava os cuidados da

terceira geração; mas a morte veio antes de Ezequiel. A doença foi


rápida. Mandei chamar um

médico homeopata.

--Não, Bentinho, disse ele- basta um alopata; em todas as escolas


se morre. Demais, foram idéias da

mocidade, que o tempo levou; converto-me à fé de meus pais. A


alopatia é o catolicismo da

medicina...

Morreu sereno, após uma agonia curta. Pouco antes ouviu que o
céu estava lindo, e pediu que

abríssemos a janela.

--Não, o ar pode fazer-lhe mal.

--Que mal? Ar é vida.

Abrimos a janela. Realmente, estava um céu azul e claro. José Dias


soergueu-se e olhou para fora;

após alguns instantes, deixou cair a cabeça, murmurando:


Lindíssimo! Foi a última palavra que
proferiu neste mundo. Pobre José Dias! Por que hei de negar que
chorei por ele?

CAPÍTULO CXLIV / UMA PERGUNTA TARDIA

Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que


deixo neste mundo, mas não é

provável. Tenho-me feito esquecer. Moro longe e saio pouco. Não é


que haja efetivamente ligado as

duas pontas da vida. Esta casa do Engenho Novo, conquanto


reproduza a de Mata-cavalos, apenas

me lembra aquela, e mais por efeito de comparação e de reflexão


que de sentimento. Já disse isto

mesmo.

Hão de perguntar-me por que razão, tendo a própria casa velha, na


mesma rua antiga, não impedi

que a demolissem e vim reproduzi-la nesta. A pergunta devia ser


feita a princípio, mas aqui vai a

resposta. A razão é que, logo que minha mãe morreu, querendo ir


para lá, fiz primeiro uma longa

visita de inspeção por alguns dias, e toda a casa me desconheceu.


No quintal a aroeira e a

pitangueira, o poço, a caçamba velha e o lavadouro, nada sabia de


mim. A casuarina era a mesma

que eu deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de reto, como


outrora, tinha agora um ar de ponto de

interrogação; naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo


ar, buscando algum pensamento

que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem


começou a sussurrar alguma cousa

que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs
novas. Ao pé dessa música sonora e
jovial, ouvi também o grunhir dos porcos, espécie de troça
concentrada e filosófica.

Tudo me era estranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e,


mais tarde, quando vim para o

Engenho Novo, lembrou-me fazer esta reprodução por explicações


que dei ao arquiteto, segundo

contei em tempo.

CAPÍTULO CXLV / O REGRESSO

Ora, foi já nesta casa que um dia. estando a vestir-me para almoçar,
recebi um cartão com este

nome:

EZEQUIEL A. DE SANTIAGO

--A pessoa está aí? perguntei ao criado.

--Sim senhor, ficou esperando.

Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala.
Só depois é que me lembrou

que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçá-lo, falar-lhe na mãe.


A mãe,--creio que ainda não

disse que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha


Suíça. Acabei de vestir-me às

pressas. Quando saí do quarto, com ares de pai, um pai entre


manso e crespo, metade Dom
Casmurro Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, mirando
o busto de Massinissa, pintado

na parede. Vim cauteloso, e não fiz rumor Não obstante, ouviu-me


os passos, e voltou-se depressa.

Conhece-me pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era


nem mas nem menos o meu antigo

c jovem companheiro do seminário de José, um pouco mais baixo,


menos cheio de corpo e, salvo as

cores que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. Trajava à


moderna naturalmente, e as maneiras

eram diferentes, mas o aspecto geral reproduzia a pessoa morta.


Era o próprio, o exato, o verdadeiro

Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pai. Vestia de luto
pela mãe; eu também estava de

preto. Sentamo-nos.

--Papai não faz diferença dos últimos retratos, disse-me ele

A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancesado.


Expliquei-lhe que realmente pouco

diferia do que era, e comecei um interrogatório para ter menos que


falar e dominar assim a minha

emoção. Mas isto mesmo dava animação à cara dele, e o meu


colega do seminário ia ressurgindo

cada vez mais do cemitério. Ei-lo aqui. diante de mim, com igual
riso e maior respeito; total, o

mesmo obséquio e a mesma graça. Ansiava por ver-me. A mãe


falava muito em mim, louvando-me

extraordinariamente, como o homem mais puro do mundo, o mais


digno de ser querido.

-- Morreu bonita, concluiu.

--Vamos almoçar.
Se pensas que o almoço foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos
de aborrecimento, é verdade; a

princípio doeu-me que Ezequiel não fosse realmente meu filho, que
me não completasse e

continuasse. Se o rapaz tem saído à mãe, eu acabava crendo tudo,


tanto mais facilmente quando que

ele parecia haver-me deixado na véspera evocava a meninice,


cenas e palavras, a ida para o

colégio...

--Papai ainda se lembra quando me levou para o colégio? perguntou


rindo.

--Pois não hei de lembrar-me?

--Era na Lapa; eu ia desesperado, e papai não parava, dava-me


cada puxão, e eu com as perninhas...

Sim, senhor, aceito.

Estendeu o copo ao vinho que eu lhe oferecia, bebeu um gole, e


continuou a comer. Escobar comia

assim também, com a cara metida no prato. Contou-me a vida na


Europa, os estudos,

particularmente os de arqueologia, que era a sua paixão. Falava da


antiguidade com amor, contava o

Egito e os seus milhares de séculos, sem se perder nos algarismos;


tinha a cabeça aritmética do pai.

Eu, posto que a idéia da paternidade do outro me estivesse já


familiar, não

gostava da ressurreição. Às vezes, fechava os olhos para não ver


gestos nem nada, mas o diabrete
falava e ria, e o defunto falava e ria por ele.

Não havendo remédio senão ficar com ele, fiz-me pai deveras. A
idéia de que pudesse ter visto

alguma fotografia de Escobar, que Capitu por descuido levasse


consigo, não me acudiu, nem se

acudisse, persistiria. Ezequiel cria em mim como na mãe. Se fosse


vivo José Dias, acharia nele a

minha própria pessoa. Prima Justina quis vê-lo, mas estando


enferma, pediu-me que o levasse lá.

Conhecia aquela parenta. Creio que o desejo de ver Ezequiel era


para o fim de verificar no moço o

debuxo que porventura houvesse achado no menino. Seria um


regalo último; atalhei-o a tempo.

--Está muito mal, disse eu a Ezequiel que queria ir vê-la, qualquer


emoção pode trazer-lhe a morte.

Iremos vê-la, quando ficar melhor.

Não fomos; a morte levou-a dentro de poucos dias. Ela descansa no


Senhor ou como quer que seja.

Ezequiel viu-lhe a cara no caixão e não a conheceu, nem podia, tão


outra a fizeram os anos e a

morte. No caminho para o cemitério, iam-lhe lembrando uma


porção de cousas, alguma rua, alguma

torre, um trecho de praia, e era todo alegria. Assim acontecia


sempre que voltava para casa, ao fim

do dia; contava-me as recordações que ia recebendo das ruas e das


casas. Admirava-se que muitas

destas fossem as mesmas que ele deixara, como se as casas


morressem meninas.
Ao cabo de seis meses, Ezequiel falou-me em uma viagem à Grécia,
ao Egito, e à Palestina, viagem

científica, promessa feita a alguns amigos.

--De que sexo? perguntei rindo.

Sorria vexado, e respondeu-me que as mulheres eram criaturas tão


da moda e do dia que nunca

haviam de entender uma ruína de trinta séculos. Eram dous colegas


da universidade. Prometi-lhe

recursos, e dei-lhe logo os primeiros dinheiros precisos. Como disse


que uma das conseqüências

dos amores furtivos do pai era pagar eu as arqueologias do filho;


antes lhe pagasse a lepra... Quando

esta idéia me atravessou o cérebro, senti-me tão cruel e perverso


que peguei no rapaz e quis apertálo

ao coração, mas recuei; encarei-o depois, como se faz a um filho de


verdade; os olhos que ele me

deitou foram ternos e agradecidos.

CAPÍTULO CXLVI / NÃO HOUVE LEPRA

Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas,
sejam velhas ou novas. Onze meses

depois, Ezequiel morreu de uma febre tifóide, e foi enterrado nas


imediações de Jerusalém, onde os

dous amigos da universidade lhe levantaram um túmulo com esta


inscrição, tirada do profeta

Ezequiel, em grego: "Tu eras perfeito nos teus caminhos."


Mandaram-me ambos os textos, grego e

latino, o desenho da sepultura, a conta das despesas e o resto do


dinheiro que ele levava; pagaria o

triplo para não tornar a vê-lo.


Como quisesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, achei
que era exato, mas tinha ainda um

complemento: "Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia da


tua criação." Parei e perguntei

calado: "Quando seria o dia da criação de Ezequiel?" Ninguém me


respondeu. Eis aí mais um

mistério para ajuntar aos tantos deste mundo. Apesar de tudo,


jantei bem e fui ao teatro.

CAPÍTULO CXLVII / A EXPOSIÇÃO RETROSPECTIVA

Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não
ficou aí para um canto como uma

flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou descor. Vivi o melhor
que pude, sem me faltarem

amigas que me consolassem da primeira. Caprichos de pouca dura,


é verdade. Elas é que me

deixavam como pessoas que assistem a uma exposição


retrospectiva, e, ou se fartam de vê-la, ou a

luz da sala esmorece. Uma só dessas visitas tinha carro à porta e


cocheiro de libré. As outras iam

modestamente, cal cante pede, e, se chovia, eu é que ia buscar um


carro de praça, e as metia dentro, com grandes despedidas, e
maiores recomendações.

-- Levas o catálogo?

-- Levo; até amanhã.

--Até amanhã.
Não voltavam mais. Eu ficava à porta, esperando, ia até à esquina,
espiava, consultava o relógio, e

não via nada nem ninguém. Então, se aparecia outra visita, dava-
lhe o braço, entrávamos, mostravalhe

as paisagens, os quadros históricos ou de gênero, uma aquarela,


um pastel, uma gouache, e

também esta cansava, e ia embora com o catálogo na mão...

CAPÍTULO CXLVIII / E BEM, E O RESTO?

Agora , por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez


esquecer a primeira amada do meu

coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os


de cigana oblíqua e

dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto


é saber se a Capitu da Praia da

Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada


naquela por efeito de algum caso

incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros


ciúmes, dir-me-ia, como no seu

cap. IX, vers. 1: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não
se meta a enganar-te com a

malícia que aprender de ti". Mas eu creio que não, e tu concordarás


comigo; se te lembras bem da

Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra,


como a fruta dentro da casca.

E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das
sumas, ou o resto dos restos, a
saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão
extremosos ambos e tão queridos

também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-


me... A terra lhes seja leve! Vamos

à "História dos Subúrbios.

FIM

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