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Depois da fotografia: uma literatura fora de si,

Natália Brizuela
After photography: a literature outside itself, by Natália Brizuela
Después de la imagen: una literatura fuera de sí mismo, de Natália Brizuela
Carolina Martins Etcheverry*

Depois da fotografia: uma literatura fora Rulfo) e como, em suas obras, a fotografia
de si, livro escrito na forma de ensaio, busca aparece em meio à escrita.
analisar e problematizar a questão das fron- Na primeira parte, temos um pequeno
teiras entre as diferentes linguagens, nota- ensaio sobre como a escrita assume a cate-
damente a literatura e a fotografia. Natalia goria de prática artística e sua relação com
Brizuela, professora da Universidade da outra linguagem, a fotografia. A partir do
Califórnia, em Berkeley, já é conhecida no escritor mexicano Mario Bellatin, criador
Brasil por sua publicação Fotografia e Império: da Escola Dinâmica de Escritores, Brizue-
paisagens para um Brasil Moderno (Cia das la mostra o apagamento das fronteiras que
Letras, 2012), em que aborda questões ati- separam as artes entre si, a partir de cru-
nentes à produção e circulação de fotogra- zamentos e passagens que servem para a
fias no Brasil do século XIX. desestruturação das categorias antes estan-
Em Depois da fotografia, temos a propos- ques. Segundo a autora,
ta de pensar as fronteiras entre a literatura e
as outras artes, fazendo-nos perceber como
os limites entre elas, atualmente, podem ser *
Doutora em História pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. Bolsista do
entendidos como uma zona porosa, que per- Programa Nacional de Pós-Doutorado no Progra-
mite diversas contaminações. A proposta de ma de Pós-Graduação em História da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Brizuela leva-nos a conhecer o trabalho de
diversos escritores latino-americanos (Mario Recebido em 01/04/2016 - Aprovado em 01/09/2016
Bellatin, Diamela Eltit, Nuno Ramos e Juan http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.16n.2.

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[...] o que me interessa explorar aqui são as fotografia encontra-se em uma “prisão do-
lógicas e mecanismos dessas transforma- cumental”, devido à crença de que ela era
ções, desses cruzamentos, e assinalar em
uma cópia fiel da realidade, ao inserir uma
particular alguns deslocamentos e meta-
morfoses nessa atividade da arte que cha- fotografia em um livro espera-se que ela re-
mamos literatura (BRIZUELA, 2014, p. 15). ferende o que ali está escrito, que sirva como
prova do que está sendo dito. É esse o papel
Nos romances analisados no livro, a
das fotografias em Shiki Nagaoka: atestar que
fotografia ocupa lugar expressivo, pois pro-
o personagem é uma pessoa real, que existe
porciona uma “passagem ao que não é”, faz
no mundo. No entanto, ao saber que esta-
com que a literatura, como diz o título do li-
mos diante de uma pseudobiografia, a foto-
vro, saia de si e explore outras linguagens.
grafia proporciona um outro entendimento
Na obra de Mario Bellatin, a fotografia, se-
sobre si, uma “desfamiliarização da realida-
gundo a autora, aparece como uma forma de
de”, uma descontinuidade.
deslocar a escrita, de levá-la para fora de sua
A autora entende a fotografia como
própria linguagem. No caso desse escritor,
“índice de opacidade”, pois os documen-
as fotografias integram seus livros (Perros
tos indexicais (a fotografia entendida aqui
héroes, Los fantasmas del masajista, Shiki Na-
como um índice no sentido peirciano) não
gaoka: una nariz de ficción e Demerol). Shiki
revelam, ao contrário, escondem a realida-
Nagaoka, por exemplo, é um livro bastante
de. “É a certeza que sabe que não se pode
exemplar dessa nova escrita, uma vez que
saber” (BRIZUELA, 2014, p. 27). Entende-
o personagem principal estava obcecado
-se, assim, que a fotografia não é documen-
pelas relações entre linguagem, fotografia e
to, mas ficção que emerge da realidade (e
literatura. Trata-se de uma pseudobiografia,
não da imaginação, como na literatura). A
na qual Bellatin narra a vida de um escritor
característica contraditória da fotografia
fictício, que reflete sobre a escrita e sobre o
(pertencer ao mundo, mas não ser o mundo;
papel da fotografia na escrita:
ser familiar, mas também ser estranha) é o
O narrador de Shiki Nagaoka: una nariz de que, segundo a autora, permite insistir na
ficción diz, relatando as opiniões do perso- opacidade da ficção e, também, na opacida-
nagem principal, que no porvir o escritor
de da realidade.
fará (não escreverá, mas fará) fotografias
narrativas: ‘A fotografia narrativa tenta re- As expansões da literatura (utilizando
almente estabelecer um novo tipo de meio, termo cunhado por Rosalind Krauss para
alternativo à palavra escrita, e que talvez falar da escultura) são variadas e não acon-
aquela seja a forma como serão concebidos tecem apenas a partir dos anos 1950, senão
os livros no futuro’. Um modo alternativo
vem acontecendo, em experiências isoladas,
à palavra escrita: uma fotografia escrita
(BRIZUELA, 2014, p. 17). desde o início do século XX – a primeira
edição de Os sertões, de Euclides da Cunha,
A fotografia funcionaria como deses- de 1902, por exemplo, tinha fotografias da
tabilizadora no romance pseudobiográfico. Guerra de Canudos, que em edições poste-
Uma vez que, desde o seu surgimento, a riores foram suprimidas. Mas é a partir dos

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anos 1950 que a prática torna-se mais fre- seu ensaio. Para esboçar uma resposta, os
quente na literatura. capítulos subsequentes nos apresentam ca-
Mas como acontece essa contaminação sos em que a literatura incorpora a fotogra-
entre a literatura e a fotografia? São diversas fia, fazendo com que haja uma expansão de
as maneiras. Pode acontecer por meio da in- ambas as linguagens.
clusão de fotografias em obras literárias ou Juan Rulfo, escritor mexicano, autor,
como entre outros, de Pedro Páramo, também era
fotógrafo. A autora propõe uma “narrativa
[...] paradigma de uma nova sintaxe e de
uma nova literatura utilizando certas ca- fotográfica” para entender o papel da foto-
racterísticas do dispositivo fotográfico – grafia na escrita de Rulfo, ainda que ela não
como a indexicalidade, o corte, o ponto de esteja presente em reproduções ao longo do
vista, o pôr em cena, a dupla temporalida- livro. Suas fotografias foram muitas vezes
de (passado-presente/o que foi – o agora),
o caráter documental, sua função mne- entendidas como uma ilustração de sua es-
mônica, o ser uma mensagem sem código crita, porém, Brizuela propõe-se a pensar
(BRIZUELA, 2014, p. 31). a fotografia em Rulfo “ao refletir sobre sua
escrita a partir de certos procedimentos foto-
Em Pedro Páramo, de Juan Rulfo, por
gráficos” (BRIZUELA, 2014, p. 116). Assim,
exemplo, a sintaxe e a forma estruturam-se
a partir da ideia de fragmento, de montagem
pela fotografia, mesmo que nenhuma foto-
e da temporalidade da fotografia é que a au-
grafia esteja nele presente.
tora consegue pensar sobre a relação da lite-
Da segunda metade do século XX em
ratura e da fotografia na obra de Rulfo.
diante a fotografia (e a televisão, um pouco
Em Diamela Eltit podemos perceber
depois) entram para a vida cotidiana, tor-
outra maneira a partir da qual há uma con-
nando o ver imagens algo comum. Nesse
taminação entre as linguagens literária e fo-
sentido, o livro nos propõe pensar a presen-
tográfica, incluindo, dessa vez, o teatro. Há,
ça de fotografias na literatura e a inserção da
nesse caso, uma crítica ao formato livro, de
fotografia no campo artístico, não como arte,
que ele não seria suficiente para dar conta
mas como conceito e como forma de registro
daquilo que Eltit queria escrever diante do
de outras práticas artísticas, como a perfor-
contexto político e social pelo qual passava
mance. A partir disso, a autora quer pensar
o Chile nos anos 1970. A escritora recorre,
no porquê de a literatura ter recorrido tantas
então, a diversos recursos, entre eles leituras
vezes à fotografia, uma vez que essa conta-
orais em espaços públicos, performances,
minação talvez lhe retirasse a autonomia.
trabalhos em vídeo. O recurso à teatralidade
De que modo há uma ruptura e des-
lhe serve como estratégia de desunificação,
truição da sintaxe das diferentes artes, e por-
de expansão.
que, a partir da metade do século XX, a espe-
A proposta de Natalia Brizuela mostra-
cificidade dos meios entra em crise, havendo
-se bastante pertinente e atual, uma vez que
uma necessidade de aproximações diversas?
os cruzamentos entre as linguagens – entre
Esse é, grosso modo, o resumo da proposta
literatura e fotografia, mas também entre
que Brizuela nos faz na primeira parte de

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fotografia e artes visuais, entre literatura e
teatro e muitas outras possibilidades – são
resultado de um processo longo de mutação
na nossa forma de produzir e de perceber a
literatura e a visualidade. Não encaixamos
mais as linguagens em espaços estanques,
como se queria no século XIX, mas percebe-
mos os cruzamentos entre elas.
Brizuela traz aportes importantes para
pensar a fotografia para além da ideia de
documento, apresentando-a, a partir de di-
versos autores, como um recorte, um frag-
mento de algo que já passou. Esse recorte,
no entanto, não é limitador da imaginação,
uma vez que permite a projeção do especta-
dor. É por isso, talvez, que a literatura tenha
recorrido à fotografia na busca de expandir
suas formas de representação. A fotografia
contribui para que a literatura questione,
por exemplo, a própria ideia de realidade e
ficção, desestruturando o leitor.

Referência
BRIZUELA, Natalia. Depois da fotografia: uma
literatura fora de si. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

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