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CARCARÁ
ROMANCE
Prefácio de
ANTÔNIO CARLOS VILLAÇA
Capa de
CYRO
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
__________________________________
Para MIRTES
e para os filhos José
Humberto, Ivan, Maria
Lavínia, Jeannine,
George, João Augusto e
Paulo.
“Falo somente por quem falo,
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas.”
PREFÁCIO
CARCARÁ
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
NOTA DA EDITORA
DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DO AUTOR
CRONOLOGIA
HÁ SEIS MESES passados, tarde da noite, seu sono fora interrompido por
batidas secas na janela e, depois, na porta da frente.
Avivou o candeeiro de querosene, logo que se levantou da rede; vestiu
as calças largas, enfiando o camisão dentro delas e, já bem desperto,
perguntou:
– Quem é?
Alguém com a voz abafada, mas audível, esclareceu:
– É Laurindo, Anastácio.
A cabeça ficou dando voltas: Laurindo... Laurindo... ah! Era um cabra
de Lampião. Aquilo cheirava a encrenca. E se dessem notícia de um
cangaceiro entrando em sua casa àquela hora da noite? Devia abrir?
Resolveu perguntar:
– Que é que o amigo quer?
Laurindo foi incisivo, mas suave:
– Sou de paz. Preciso falar com você. É da parte de Sabino, do tenente
Sabino Gomes. Conversa ligeira.
– Você está só?
Vira, pela fresta da janela, que havia dois vultos, pelo menos. O cabra
não mentiu:
– Tou eu e Bem-te-vi, companheiro. Gente minha.
Quando abriu a porta, os dois homens entraram com rapidez e o
seguraram, tomando o candeeiro que erguera com a mão esquerda. Diante
do ar doméstico e da serenidade de Raimundo Anastácio, ficaram sem jeito,
largando-o. Laurindo quase se desculpou:
– Não é nada, seu Raimundo; o Chefe quer falar com você, hoje. Está
esperando. Arrume-se para viajar.
Raimundo, calmo, indagou:
– O Chefe? Quem é o Chefe? É o Capitão Virgolino?
– Não, homem. O Chefe é o Tenente Sabino, que tem, como o Capitão,
patente oficial dada pelo meu Padim Pade Cisso. A gente vai agora e bem
cedinho você está de volta.
– Onde é que ele está? – perguntou Anastácio.
– Você é besta, homem? Porque é que vamos lhe dizer onde o homem
está? Deixe de conversa e venha com a gente.
Bem-te-vi, até então calado, mas segurando, por hábito, o cabo longo
do punhal, que alisava com o polegar da mão direita, dirigiu-se a Laurindo:
– Tá ficando tarde. Já devia estar voltando.
Raimundo tinha receio que a mulher acordasse. A sorte é que Dorinha
tinha o um sono de pedra. Se se levantasse, ia fazer uma confusão danada.
Para sair da confusão era preciso arriscar. E ponderou, com tranquilidade:
– Hoje não pode ser. Amanhã sim.
– Por que não agora?
– Quero pedir a vocês que falem mais baixo. É que o Cabo Zé
Gonçalves, primo e irmão de criação da minha mulher, está dormindo no
quarto dos fundos do quintal. Se ele me pegar encilhando o animal a essa
hora, vai fazer perguntas. É desconfiado como os seiscentos diabos.
– Podemos acabar com ele – alvitrou Bem-te-vi.
Laurindo olhou com ar de espanto para o lado do seu companheiro e
não disse nada. Raimundo aproveitou o momento da dúvida e falou, como
coisa assentada:
– Vocês me esperam, amanhã, na Rodagem, e de lá a gente vai junto.
Tenho negócios para as bandas de Alagoinha e Baixio; ninguém vai
estranhar mais uma viagem minha. Agora, sair nas barbas de Cabo Zé, que
é esperto, me parece arriscado tanto para mim como para vocês.
Laurindo demorou um pouco, mas, afinal, concordou:
– Amanhã, não. Depois de amanhã, quinta-feira. Espero você no sitio
Remédios. Coisa certa. O Chefe não brinca.
Raimundo Anastácio se fez de distraído:
– É o Capitão Virgolino Ferreira?
– Não, homem – esclareceu, ríspido, o cangaceiro Laurindo. – O
Capitão Virgolino não está nessa. O Chefe do Grupo é o tenente Sabino,
entendeu?
– Entendi. Pois digam ao Tenente Sabino que quinta-feira vou falar
com ele,
Laurindo recomendou:
– Essa conversa fica entre nós, ouviu?
– Não sou menino. Passei minha vida na vida que vocês estão
começando agora.
– Depois de amanhã no sítio Remédios.
– Certo, Laurindo.
– Nem sua mulher precisa saber disso.
– Fique descansado. Confie na minha experiência.
Laurindo foi saindo, parou na soleira da porta, ia dizer alguma coisa,
mas não disse. O olhar duro de gavião fixou-se nos olhos de Raimundo
Anastácio, como se fosse uma espécie de última advertência. Raimundo
sabia que estava falando com um homem frio, decidido, acostumado a
matar. Apesar de estar vestido como um matuto, não disfarçava, de forma
nenhuma, os gestos medidos e cautelosos do caçador. Ouviu, distintamente,
ainda na calçada de sua casa, Bem-te-vi, o cangaceiro mais novo, dizer ao
outro:
– Não confio nesse sujeito. Ou ele é muito esperto, ou já está meio
besta. Foi preciso você dizer duas vezes que o Chefe era Sabino e não o
Capitão. Sei não...
Como ia sair dessa? Estava em papos de aranha. O perigo imediato era
os bandidos descobrirem sua mentira sobre o Cabo Zé Gonçalves, que não
dormia no fundo do quintal e só era parente de sua mulher por parte de
Adão. Fechou a porta com um suspiro de alívio. Entrou no quarto onde a
mulher dormia, apanhou o rifle 44, papo amarelo, e ficou na porta da
cozinha à espera. Passou, ali, até ouvir, lá pelas cinco horas da madrugada,
os galos começarem a cantar, desanimadamente.
Pensou em contar a visita ao Delegado de então, Sargento Inaldo
Pedrosa, mas não o fez: ia aumentar a desconfiança da cidade contra a sua
pessoa e comprar, para toda a vida, o ódio de Sabino. Decisão que lhe
parecera menos ruim: não ir ao encontro marcado com Sabino e não falar
no assunto com ninguém.
VIU, LOGO, que o Tenente Elino Fernando era um homem justo, quando
ficou ao lado de Romeu e Enéas Cruz, expulsos de sua propriedade pelos
cabras do coronel Matias Alencar. Um homem justo e forte, também, pois
era preciso ter peito para desalojar os invasores e assegurar a posse dos
irmãos, baseado num papel assinado pelo Doutor Juiz de Direito. Quantas
ordens desse tipo não se perderam no mundo!
Sabendo que o destacamento policial era muito reduzido, quando
ouviu falar que o Delegado e dois soldados iam mandar cumprir a ordem do
Juiz, foi à Delegacia oferecer-se para acompanhar o Tenente alourado que,
ou parecia não ter medo de nada ou era inocente.
O Delegado agradeceu com satisfação, seu oferecimento, mas explicou
que, por detrás dele, estava toda a Polícia, o Governo do Estado e a Justiça
Togada.
Perguntou ao Tenente:
– Por que a Justiça Togada, como o senhor chama, não resolve, ela
mesma, esse problema? Ou o Presidente do Estado?
O Tenente lhe explicou, então, o seguinte:
– Eu sou, no caso, o instrumento tanto do Governo como da Justiça.
– Entendo, seu Tenente, o que o senhor quer dizer, mas há muita gente
que não tem medo dessas “ordens”, mata e ganha os paus, confiada em que
“Deus é grande, mas o mato é maior”.
– Isso, Raimundo, serve para quem não tem o que perder; não é o caso
do coronel Matias, dono de propriedades espalhadas pelo Ceará e pela
Paraíba.
E não é que o Tenente tinha razão? Foi, resolveu o caso sem um tiro,
sem um grito, e voltou com a mesma tranquilidade, achando que não fizera
nada de mais.
Agora, diante da ameaça dos cangaceiros, não havia ninguém para
proteger as suas costas, Governo, Presidente do Estado, Comandante da
Polícia, Justiça Togada. Estava só. Não ia dizer isso a ninguém, mas tinha
pena do rapaz. Negaram-lhe tudo da Paraíba: um soldado a mais, munição,
nada. Nem promessa. E quem vinha contra ele não era um coronel que tinha
terras, gado, mulher, filhos a perder. Era um grupo de cangaceiros chefiados
por um doido, um destemperado, uma praga com o nome de Sabino Gomes.
Foi Romeu Cruz quem lhe falou, primeiro, sobre a necessidade de
juntar alguns amigos para ajudarem o Delegado na defesa da cidade. Não
morria de amores pelos “macacos”, de quem havia recebido, a vida toda,
mesmo depois de regenerar-se, cumprir pena e tornar-se um cidadão pacato,
o tratamento mais injusto. Quando havia desconfiança da presença de
cangaceiros nas imediações, ou quando uma fazenda era assaltada por
bandidos, era ele invariavelmente preso como “suspeito”. Pensara, por isso,
em ir embora de Cajazeiras. Mas Dorinha, sua mulher, aconselhava com
segurança: “Se aqui, onde você mora há mais de cinco anos, lhe tratam
assim, imagine numa terra nova, estranha; aqui nós temos alguns amigos,
pobres, como nós, mas que sabem ser você um homem decente, um homem
direito.”
Um dia, já cansado de ser levado para o xadrez como bode expiatório
de Sargentos e Delegados, foi à presença do Juiz de Direito, Doutor Victor
Jurema, na companhia do filho deste, Doutor Otacílio Jurema. O Doutor
Juiz ouviu sua história, inquieto, afobado, mandando todo mundo pros
infernos (“Vão pros infernos, viu?”), não lhe tendo prometido nada. Mas a
verdade é que, desse dia em diante, não foi mais preso “por medida de
precaução”.
Agora (o mundo dá muitas voltas!), estava ao lado do Tenente para
defender, com armas na mão, a cidade contra a invasão dos cangaceiros.
Engraçado: nunca dera muita atenção à boataria que corria,
frequentemente, fechando o comércio, acabando as feiras, assustando o
povo, deixando-o inquieto e infeliz. Tinha que se aliar ao Tenente, não por
amor à cidade ou ódio aos cangaceiros, mas por uma questão de
sobrevivência: Sabino não perdoaria, nunca, ao fato de ter faltado ao seu
chamado.
***
4
NÃO CONHECERA o pai, mas o avô, que vivera 98 anos, contava histórias
estranhas sobre o seu bisavô, o índio velho: suas “meisinhas” milagrosas,
suas rezas, suas visões. Colava o ouvido no chão e “via” coisas: perigos,
doenças, mortes, os passos dum animal perdido, de uma onça traiçoeira, do
inimigo macio e feroz.
Não sabia explicar, mas achava que os cangaceiros estavam chegando.
Na última feira, no Mercado, onde vendia carne-seca, viu dois matutos
comprando mantimentos e olhando muito em derredor. Desconfiou tratar-se
de cangaceiros, pois o olhar deles era inquieto, desassossegado, como o dos
passarinhos. Um dos moços chegou a pegar numa manta de carne,
perguntando o preço. Antes de responder, viu o outro, nervoso, puxar o
companheiro pelo braço. Nesse instante, acercou-se de seu Raimundo o
Cabo Zé Gonçalves:
– Tudo bem, seu Raimundo? Vendendo muito?
– Alguma coisa, Cabo.
E, como fazia habitualmente, cortou um pedaço de chã e entregou ao
militar.
– Mas, seu Raimundo, não precisava disso.
– É de gosto, Cabo. Convém tirar algum sal.
Ainda Pensou em chamar a atenção do Cabo, mas os homens já tinham
sumido. Que adiantava? Nem armado o militar estava. Lembrou-se de que
ingressara no cangaço com a idade dos dois suspeitos. Tudo começou na
noite infeliz em que seu irmão, Zé Menino, furou um “macaco”. Contra sua
vontade e seus conselhos, o irmão comprou meia dúzia de “rojões”,
divertindo-se com as peripécias dos fogos malcomportados, que se metiam
entre as pernas dos homens e as saias das mulheres. O rojão saía, ora
pulando como um doido, rente ao chão, ora se elevava, no escuro, deixando
um rastro de luz coruscante, cheio de fagulhas de vida luminosa e
brevíssima. Por um desses azares da vida, um rojão atrevido fez uma série
de piruetas e ziguezagues nas polainas envernizadas de um soldado de
grande bigode. O soldado se chamava Álvaro e era conhecido pela sua
valentia e afobação. Não lhe foi difícil localizar seu irmão, que não tinha
percebido a irritação da autoridade, e continuava a brincadeira, soltando o
último busca-pé. O soldado aberturou Zé Menino, segurando a camisa
frouxa na altura do pescoço. O irmão, apesar da surpresa, se aquietou,
conformado, confuso, mas sorridente. O soldado, ainda segurando-o pela
camisa, com a mão esquerda, deu-lhe duas bofetadas dessas de estalar.
Tentou ajeitar as coisas, explicando ao soldado que seu irmão não regulava
bem, era meio acriançado, mas a autoridade, vendo o povo em derredor
gostando, aí é que dava na cara de Zé Menino. Este, com a rapidez do
relâmpago, tirou o punhal da cintura do soldado e o enfiou entre o umbigo e
a caixa dos peitos, derrubando-o. Com a mesma rapidez, Zé Menino
desapareceu no escuro, no caminho de casa, afastando povo ainda com a
faca na mão, os olhos aboticados de quem perdera o resto de juízo. A
multidão recuou, espantada, com um grito de pavor. Quando os dois outros
soldados apareceram, armados até os dentes, só restava, no largo círculo
silencioso formado com o recuo do povo, o soldado Álvaro, caído, agarrado
nas tripas, e ele, abestalhado, morto de pena do irmão. Recolheram o ferido,
com a ajuda solícita de várias pessoas e, quanto a ele, levaram-no para a
cadeia debaixo de murros, cacetadas e lapadas de sabre. Não apareceu
vivalma para dizer aos soldados que não fora ele e, sim, o irmão, o autor da
façanha. Passou uma semana na cadeia imunda, sofrendo o que o diabo
enjeitou, nu, com fome, numa cela sem luz, fedendo a cães mortos. Soube,
depois, que algumas pessoas procuraram o Delegado, declarando que fora
Zé Menino e não ele o autor da facada fatal. Na cadeia, no meio de seus
padecimentos, seu pensamento estava na mãe, para quem só existia, no
mundo, uma pessoa: Zé Menino. Pensava na dor que ia sofrer e nos
aborrecimentos que ia passar com as visitas da polícia. É verdade que havia
a tia Rosário, que morava com eles e tomava conta da casa. No dia que saiu
da cadeia, sujo, fedendo como um gambá, seu desejo era sair correndo até
em casa para prevenir as duas mulheres, mas não o deixaram ir só; dois
soldados o acompanharam, pois precisavam prender o “assassino”. Não
aperrearam mais sua mãe, porque a tia Rosário, mulher forte, gritou para os
soldados: “Vocês não estão vendo que ela é uma mulher doente?” A mãe,
acuada, num canto da sala, rezava, absorta, o rosário. Quando os dois
soldados se retiraram, ela olhou para Raimundo e gritou: “Perdi meu filho!”
“Zé Menino não tem mais irmão!” “Zé Menino ganhou o mundo!” “Perdi
meu filho!” Alguns dias depois, disse à tia que iria procurar Zé Menino.
Chamou antigo vaqueiro de seu pai para cuidar do gado e ajudar tia
Rosário. Arrumou a trouxa e saiu no rumo do mar. Onde chegava,
procurava saber de Zé Menino: nas fazendas, nos povoados, nas casas de
beira da estrada. Ninguém lhe dava a menor notícia de seu irmão. Parecia
ter desaparecido no ar! Trabalhando por um prato de comida, hoje aqui,
amanhã acolá, findou se deparando com um grupo de cangaceiros.
Conheceu-os pela vestimenta e pela arrogância com que exibiam os rifles e
as facas de ponta, estas arrumadas com dificuldade na cintura. Era na boca
da noite. Estavam assando preá, pelo cheiro. O que parecia o chefe, homem
alto, de braços compridos, com ares de gente da cidade, mandou que ele se
sentasse, perguntando, a seguir, que tinha feito para estar com cara de quem
viu alma. Respondeu a primeira coisa que lhe veio à cabeça: “Matei um
‘macaco’ em Crateús”. Desse momento em diante sentou praça no cangaço.
Notou, logo, que seus companheiros eram pouco experientes e inseguros.
Verificou, com o passar dos dias, que Mané Canuto, o chefe, era assaltante
de estrada; atacava os matutos, esvaziava-lhes os bolsos, tomando armas,
munição e até comida. Sua carreira ao lado do cangaceiro Canuto durou
pouco. Estavam próximos de Canindé, e o chefe resolveu fazer uma
promessa a São Francisco. O santo atendeu ao que mereciam Canuto e seus
cabras: foram presos, sem nenhuma reação de sua parte, na entrada da
cidade. Podia estar enganado, mas o chefe, ao ser preso, parecia estar
satisfeito. De cangaceiro ele só possuía, mesmo, a pose e o gosto de ser
tomado como tal. Além do mais, o ofício rendia pouco. Passou bem dois
anos na cadeia do Canindé. Um dia o chamaram para fugir. “Fugir para
onde?”, perguntou. Não lhe deram resposta e ele ficou onde estava. Sua
atitude não agradou ao carcereiro: é que não havia verba para a comida dos
presos e a fuga sem nenhum atropelo fora estimulada pelo carcereiro.
FEZ ESFORÇO para levantar-se. Estava com sono, ainda. Dorinha, à noite, se
aninhou na rede grande, e fizeram amor silenciosa e brandamente.
Abriu a porta da cozinha para ver o tempo. O frio da madrugada o
envolveu dos pés à cabeça, num instante. Pôs a chaleira no fogo para o café
e foi arrumar a burra pedrês, no fundo do quintal. Companheira de suas
viagens, curtas ou longas, os dois se entendiam muito bem. Falou com o
animal, coçando-lhe a testa, alisando-lhe o pêlo antes de jogar a sela em
cima do lombo. Fosse alguém, no escuro, fazer aquilo e o coice ia comer.
Pôs-lhe as rédeas, os arreios, apertando-os, mas sempre falando e alisando a
alimária. Voltou à cozinha, coou o café e o tomou, bem quente, na caneca
de flandres. Coisa rara na vida deles: Dorinha não assistira à sua partida.
Não levava arma de fogo, o que poderia despertar suspeitas, caso se
encontrasse com algum cangaceiro. Abriu o portão, montou a burra e
começou a viagem. Dessa vez havia uma novidade: estava com medo, com
cisma. Medo, sim, pois só os mortos não têm medo.
A cidade dormia tranquilamente. Nem o vento dava sinal de vida, pois
as folhas pareciam pregadas nos galhos, fixas.
O destino era a fazenda do major Serafim, seu amigo de longa data, de
quem já tinha sido vaqueiro, depois de deixar a vida do cangaço. Comprava
gado ao amigo, pagava direitinho, não abusava da amizade. Serafim, como
os demais fazendeiros da região, recebia a visita de um ou outro cangaceiro.
Tratava-os bem, como fazia, aliás, a polícia do Ceará, que não tomava
conhecimento de sua presença e dos constantes deslocamentos. Pouca gente
sabia ou se lembrava de que Serafim guardava uma grande mágoa: o irmão
mais novo fora morto, numa feira de Alagoinha, por um cabra de Lampião,
“Rio Preto”, não fazia quatro anos. Se soubesse alguma coisa, o amigo lhe
diria.
Uma noite acertaram uma visita a seu Alexandre. Lá, na casa do Alto
do Cabelão, já estavam Manoel Santana. David Casimiro e Dimas Andriola,
irmão do Chiquinho.
Conversaram sobre os assuntos mais diversos: Lampião, Padre Cícero,
o Delegado, o Prefeito, o Doutor Juiz de Direito. Este continuava, no meio
de qualquer conversa, a mandar todo mundo para o inferno (“Vão pros
infernos, viu?”). Já perto de sair, vencendo a timidez, João insinuou:
– Graças a Deus, seu Alexandre, o senhor não foi mais molestado por
esses bandidos...
– É a lei da compensação, meu amigo: nunca mais mexi com alguém.
– Não é melhor assim?
O cego demorou a responder. Trincou os dentes, mastigou em seco,
coçando os cabelos brancos. Quando falou, a voz estava contida:
– Compreendo sua preocupação, mas não houve progresso, nesse
sentido. O que tem me faltado é assunto. Na minha idade não se muda mais.
Torto até agora, torto até o fim.
Referindo-se à ameaça, à nova ameaça de Lampião em atacar a cidade,
David perguntou ao cantador:
– O cangaceirismo, um dia, terá fim? Era a pobreza da região
responsável pela existência do cangaço?
Luíza apareceu com uma bandeja e algumas xícaras de café. Dimas
Andriola acendeu um cigarro para seu Alexandre, que se voltou na direção
de David:
– De certo modo, sim. Mesmo no sul, na zona rural, ocorre o mesmo
fenômeno. No Nordeste, pelo que me foi dado observar, o cangaço passou a
ser, de uns tempos para cá, um meio de vida. Entra-se num bando como
quem senta praça na Polícia. As secas prolongadas ou repetidas, além de
destruírem os laços familiares, geram o desemprego em massa, as retiradas,
os famintos, os doentes da fome, os revoltados. Desse meio saem os
assaltantes das estradas e das fazendas e os bandos de cangaceiros.
João Boanova entrou no assunto:
– Onde houver ou quando houver fome, seca, miséria, há de aparecer o
bandido?
– Com esse rigor, não. Além dessas causas próximas, visíveis, há
outras, remotas, distantes, que ajudam a explicar a origem do cangaceiro.
Na Paraíba, por exemplo, pode-se apontar, nas milícias formadas pelos
donos das sesmarias ou seus herdeiros, o aparecimento de chefes e
bandoleiros, na medida em que tais milícias iam se extinguindo.
Deu uma boa tragada no cigarro de palha e continuou:
– Falei em causas remotas. Vocês sabem que a quase totalidade da
população sertaneja é de origem índia. Guarda-se de geração para geração a
marca do ressentimento, pois os antigos moradores destas terras foram delas
desalojados a ferro e fogo. Os criadores de gado, além de massacrá-los,
tomavam suas mulheres, seus filhos e a longa paz que conheciam.
David, com jeito, objetou:
– Mas os índios não se caracterizaram pelo nomadismo? Não paravam,
não criavam raízes...
– Nem tanto assim. Onde existiam condições favoráveis, como no
Cariri cearense, eles se fixavam de modo permanente. Voltando à praga do
cangaceirismo, um dia desaparecerá. A estrada, a água represada, o governo
sensível e responsável, tudo junto poderá realizar esse milagre. Quem sabe
se você, David, com sua engenharia, poderá ajudar nessa transformação...
***
***
Depois que David se retirou, sem aceitar o convite para cear, Manoel
Santana ficou a remoer a conversa do amigo, que estava vivendo momentos
amargos, dilacerado pela decisão tomada.
Jantou e foi à casa de David. No meio da conversa, arriscou esta
sugestão:
– Que tal uma volta pelo “Gato Preto”? Toma-se uma bebida, puxa-se
conversa com as meninas e... se dança. Você precisa levar uma boa
recordação da terra.
Era sempre calma a noite da terça-feira no cabaré “O Gato Preto”.
Sentaram-se numa mesa e pediram genebra. Havia alguns conhecidos,
alguns meio encabulados, e o pequeno conjunto tocava um fox suave e
langoroso. Manoel parecia muito à vontade, conversando com uns e outros,
falando com Dona Neném, a dona da pensão. Quando duas meninas,
alegres, bem pintadas, passaram por eles, Manoel as chamou. Uma delas
falou: daqui a pouco. David, no mais íntimo de sua natureza, sentia estranha
piedade por essas moças sorridentes e tristes. Era um pensamento estúpido,
uma coisa de maluco, mas via, nelas refletida, a imagem da irmã que não
tivera.
As duas mulheres voltaram e se sentaram na mesa deles. A moreninha,
de olhos castanhos, vivos, os lábios e as maçãs do rosto bem vermelhos,
falou com David, em tom brejeiro:
– Mamãe deixou o menino solto, hoje?
David, desajeitado, deu, afinal, a resposta que foi tida como engraçada,
mas que era, somente, a verdade:
– Não tenho mãe.
Cremilda, era o nome da mulher, conteve sua expansão ao ver que fora
indelicada, sem querer. Mudou de assunto:
– É a primeira vez que apareço por essas bandas. Ouvi falar que a
cidade é bonita...
David lhe respondeu:
– E é mesmo; se você quisesse ver a cidade ia gostar dela, do Açude
Grande, da Igreja que tem duas torres, das casas bem cuidadas, das ruas
limpas. A terra é pobre, mas o povo é caprichoso.
Cremilda teve vontade de soltar outra brincadeira (“O menino fala!”),
mas se conteve. Percebeu que, além de desambientado, o moço trazia,
escrita na testa, uma tristeza parecida com noivado desfeito.
Aproveitando a saída de Manoel Santana, que estava dançando, David
foi para o quarto com a moça. Passaram, juntos, uma noite rica, feita com a
experiência da mulher e o fervor e a delicadeza do rapaz.
Acordou, tarde, no dia seguinte, por insistência de Felismina. Estava
menos tenso. Seu Raimundo Casimiro chegou à cidade antes do almoço.
Era o dia 19 de setembro de 1926. Foram ao Cartório, onde assinaram, com
testemunhas, os papéis preparados por Dimas Andriola.
Voltou, à tarde, à fazenda para despedir-se do irmão. Era, para ele, o
momento mais doloroso e pungente. Abraçou-se com Cazuza, que o
envolveu com seus braços finos e não pôde conter as lágrimas. Cazuza
sorria, entretanto, ao ser levado por Antônia para dormir. Seu pai entrou no
quarto, brusco, para fugir da despedida. David saiu da fazenda com o
coração aos pedaços, descobrindo, com o que lhe estava acontecendo, que
não devia haver alegria completa.
Voltou para a cidade, noite ainda, com um pressentimento que tentava
afugentar: o de que tinha visto seu Casimiro pela última vez.
Quatro
O TENENTE Elino Fernando estava com medo. Podia esconder isso dos
outros, mas dele mesmo era impossível. Não era um medo definido, como
pensar num tiro na cabeça, em ser sangrado no meio da rua. Não; era um
medo difuso, vago, mas envolvente, que tomava conta de suas pernas, de
seus braços, do seu corpo, deixando-o inseguro, vacilante, perplexo. Se o
povo da cidade pudesse ler o que se passava no seu íntimo! Logo ele, o
Delegado, o responsável pela proteção de todos! Sacudiu, com energia, a
cabeça, como se o gesto pudesse libertar os receios que lhe roíam o coração.
Manhã de 1º de setembro de 1926. Fazia seis meses que estava à frente
da Delegacia de Polícia do município de Cajazeiras. A cidade era tranquila.
Não lhe dava muito trabalho. O povo, ordeiro e quieto, vivia da agricultura
e da criação, lutando contra a inclemência da natureza. O comércio,
entretanto, tinha um ar de prosperidade, graças à ligação com Fortaleza pela
Rede Viação Cearense. Havia, no município, vários descaroçadores de
algodão e pequenos engenhos, localizados nas melhores terras, produzindo
rapadura e aguardente. A Usina Santa Cecília, do Coronel Joaquim Matos,
beneficiava e prensava algodão, dele extraindo o óleo que era vendido em
toda a região.
Mas, o maior orgulho da terra, sempre lembrado, era ter-se a cidade
formado em torno do colégio fundado pelo Padre Inácio de Sousa Rolim,
que era um santo e um sábio de reconhecido valor. Dispondo de dois
colégios, de dois jornais (O Rio do Peixe e O Rebate), Cajazeiras se
orgulhava, também, do número de doutores que nela habitavam.
Sede de um bispado, o domínio dos padres e freiras era absoluto em
quaisquer atividades educacionais e culturais. Coisa curiosa: Cajazeiras era
famosa pela sua vida noturna, seus “cabarés” na Rodagem, que atraíam
clientela de toda a região. A virtude e o pecado conviviam, assim, na cidade
sossegada. Raras as questões de terra que não terminavam por um acordo,
sem o argumento final dos bacamartes e dos rifles 44 de papo amarelo.
Ultimamente, essa paz estava sendo ameaçada pela presença de
Lampião e seu bando, em terras vizinhas da fronteira com o Ceará. O sertão
inteiro, aliás, vivia sob esse estado de espírito, enfrentando uma praga igual
à seca. Quando não eram os cangaceiros, violentos e cruéis, atacando
fazendas e povoados, eram as volantes policiais, ineficientes, despreparadas
para o sistema de guerrilhas adotado pelos bandoleiros. Nas raras
oportunidades que as volantes alcançavam os cangaceiros, estes, no fragor
da peleja, desapareciam no ar. Segundo se dizia, o milagre se devia às
orações fortes, aos bentinhos, aos escapulários, às medalhas de Nossa
Senhora, do Coração de Jesus e do Padre Cícero, que traziam no pescoço,
“fechando” seus corpos ou os tornando invisíveis. Pior é que, na
perseguição aos “coiteiros”, as volantes causavam tantos vexames quanto
os bandidos, prendendo, surrando, aterrorizando.
Limitando-se com o Ceará, onde Lampião e seu bando tinham passe
livre, Cajazeiras vivia sobressaltada com essa proximidade. Tornara-se
comum e rotineiro o espetáculo constrangedor da cidade convulsionada pela
boataria. Parecia coisa feita de propósito para abalar o moral da população.
Dum instante para outro, espalhava-se – ninguém sabia a origem – a notícia
de que os cangaceiros estavam nas Capoeiras: o comércio cerrava as portas,
os homens corriam para casa, fechavam-se portas e janelas, ouvindo-se,
num crescendo assustador, o estalejar da madeira contra madeira. Nos dias
de sábado, raro, de uns dois meses até o presente, quando não se
desmanchava a feira, num passe de mágica: recolhiam-se as barracas;
fechavam-se os sacos de cereais; metia-se a mercadoria nos baús e nas
malas, e todo o ajuntamento popular se dissolvia como por encanto. E,
sempre, como nos dias comuns, a corrida para dentro de casa, batendo
portas e janelas num ritmo contagiante, nervoso, alucinante.
Não esqueceria mais, nunca, enquanto vivesse, o ruído que se
propagava de casa em casa, de rua em rua, enchendo de pânico toda a
cidade. Nada podia fazer, a não ser andar pelas ruas, acompanhado do
sargento e alguns soldados para demonstrar que estava tudo em ordem.
Pensava: que poderia fazer com seus quatro gatos pingados e alguns
paisanos se um dia os cangaceiros resolvessem invadir Cajazeiras? Seria o
fim de sua carreira, de sua vida, de sua honra? Temia acontecesse com ele o
que se dera, há dois anos passados, em Sousa: o Delegado se recolheu à
cadeia, acompanhado de seus subordinados, por ordem de Lampião, para
evitar derramamento de sangue. Enquanto isso ocorria, o “rei do cangaço”
saqueava o comércio. Mas ali mesmo, em Sousa, alguns civis reagiram,
atirando, desordenadamente, contra os bandidos. Pois bastou essa reação
para que os visitantes abreviassem sua estada naquela cidade.
É o que pensava fazer. Não tinha homens e armas e munição
suficientes para rechaçar os cangaceiros, mas podia resistir, podia lutar,
podia obrigá-los a desistir do saque. Alguns amigos já tinham se
prontificado a ajudar. Era uma meia dúzia, mas de gente boa e firme. Com o
concurso desses amigos e cinco elementos do destacamento, ele daria
trabalho a Lampião, Sabino ou quem diabo fosse.
Estava tomando café, quando lhe apareceu o Sargento Rangel, com o
ar animado de quem guardava uma boa notícia. Recebeu a continência do
subordinado, mandou que ele se sentasse na mesa e esperou que o Sargento
falasse. Transmitiu-lhe este o efeito causado pelo sermão do Padre Gervásio
na missa do último domingo. O vigário recomendara aos homens que
azeitassem os seus rifles, pois Lampião não tinha dia para atacar a cidade.
Palavras do padre: “Se reagirmos, os bandidos voltarão em cima dos pés. A
não ser que vocês queiram morrer como passarinho ou ver suas mulheres e
filhas dançando para deleite dos cangaceiros. Se não querem, só há uma
solução: pegar em armas e repelir os agressores. De forma ordenada e sob o
comando do Delegado de Polícia do Município, o Tenente Elino Fernando,
homem capaz, digno e experimentado. Ou fazem isso, já, ou se preparem
para morrer como um cordeiro, ou uma galinha, nas mãos cruéis dos
bandoleiros.”
– Mas, Sargento, essa é uma boa noticia. Pode-se dizer: uma ajuda do
Alto.
– Pois é, Tenente, na cidade só se fala nisso.
Um belo dia, Aloísio Alencar, para agradar o futuro sogro, que ainda
estava convalescendo das febres, levou-o para a Fazenda da Serra,
acompanhado de dona Emerenciana e Mariá. Tinha sabido do doutor
Otacílio que mestre Joaquim precisava de cuidados especiais, sob pena de ir
desta para melhor.
– Precisa – argumentava o noivo – de tomar água de coco, suco de
lima-da-pérsia, chá de sabugueiro, de erva-doce, de canela e, acima de tudo,
de descanso, de despreocupação com os negócios que não andam bem.
Mariá reagia:
– O doutor disse que o perigo de morte já passou.
– Mas não o de uma recaída. E essa é sempre fatal, segundo o próprio
doutor Otacílio.
Dona Emerenciana liquidou qualquer dúvida:
– Vamos, Aloísio. A data quem marca é você.
– Amanhã, mesmo. Quanto mais cedo, melhor.
Tudo aquilo eram manobras para envolver os pais e ela também.
Para Mariá, havia alguma coisa por detrás daquele interesse todo por
seu pai. Fosse o que fosse, aquela preocupação com a saúde do mestre
Joaquim tocava seu coração.
Dias antes, quando Manoel viera buscar suas coisas, ela estava na
oficina. Pensou em retirar-se para evitar nova discussão. Mas reagiu e
decidiu falar com o rapaz para que se separassem em boa paz. Não era fácil,
pois sempre terminavam brigando, mas ia fazer tudo para não ser
desagradável, pois não podia esquecer o quanto Manoel ajudara na cura do
pai. Forçara, quase, a mãe a chamar um médico, foi buscá-lo e acompanhou
o estado de saúde do mestre com todo interesse. E não podia esconder que
Manoel gostava dela e que não era indiferente à paixão recolhida do rapaz.
Isso a divertia e enchia de vaidade. Foi falar com ele, longe de Malaquias e
de Pedro Inácio:
– Bom dia, Manoel. Queria pedir desculpas pelas palavras que ontem
lhe disse.
Ele olhou para ela sem mágoa e sem inibição:
– Você não tem nada do que pedir desculpas; fui grosseiro e infantil. E
pretensioso, pois não tinha, nem tenho direito de dar palpites sobre sua vida.
Quem deve desculpar-se sou eu.
Ela teve vontade de chorar, pois aquela era a despedida. Talvez a
última vez que se falassem. Com a voz embargada, completou:
– Tive que tomar uma decisão. Dependia de mim salvar meu pai ou
deixar que se perdesse.
Manoel foi conciliatório:
– Eu sei, Mariá. Se pudesse ao menos oferecer-lhe ajuda e aos seus
pais... Sou um pobretão cheio de dívidas e compromissos. Compreendo que
você procure amparo e segurança para sua vida. A mulher é, sempre, no
final das contas, pela sua fraqueza, a vítima de tudo.
– Fraqueza? – indagou Mariá. – Nada de fraqueza. Precisei de ânimo,
de coragem, de força para decidir como decidi. É fácil julgar os outros de
longe.
– Perdão, Mariá. Não quis reviver discussão que a nada leva. Procuro
compreender você e o assunto para mim está encerrado. Faço de conta que
você morreu e... pronto! Tudo se resolverá.
– Vá rogar praga à sua mãe ou à sua irmã; a mim, não. Você não
compreende que é preciso ter força para decidir, para escolher o caminho
que escolhi.
– Força e estômago – concluiu Manoel Santana.
– Que tem o estômago com o meu caso?
– Nada, Mariá.
– Não arrodeie. Já que começou, diga o que tem a dizer. Tenha
coragem...
– É que dizem, Mariá (eu nada tenho com isso), que o estômago da
mulher é mais forte do que o do homem. A mulher é capaz de engolir e
digerir coisas inacreditáveis.
– Lá vem você querendo ofender-me. Vim me despedir como amiga.
– Podia ter ficado no seu canto, fazendo de conta que eu não existia.
Foi assim que me tratou, varreu-me de sua vida com a simplicidade com
que tira o cisco de sua blusa.
Pegou o saco em que juntava suas coisas, jogou-o para o ombro e saiu,
em passo lento, da vida de Mariá Torquato. Antes de deixar a oficina,
voltou-se para falar com Pedro Inácio e viu que Mariá chorava. Não teve
pena das lágrimas que desciam, abundantes, pelo rosto lindo. Chorava por
ela mesma.
O Cabo José Gonçalves fez continência e pediu licença para falar. Não
eram 7 horas e o Tenente já estava na Delegacia.
– Pode falar, Cabo.
O militar ficou parado, olhando para Raimundo Anastácio. O
Delegado compreendeu:
– Pode falar na frente do mestre Raimundo; não há segredos que ele
não possa saber.
– É o seguinte, Tenente. Ontem no primeiro dia de treinamento, havia
um camarada que se dizia morador de Marcolino Diniz. Ninguém o
conheceu, nem nunca o tinha visto, antes.
– Pois veja se ele ainda está na cidade.
– Está. Valões, o soldado Valões, quando vinha de casa, viu um
homem saltar do cavalo em frente à residência de seu Marcolino Diniz.
– Arranje um cavalo, que não seja lerdo demais, e procure seguir o
camarada. Antes, diga ao Valões que preciso falar com ele imediatamente.
Depois que o cabo se retirou, Raimundo Anastácio resmungou:
– É danado...
– Danado o quê, mestre Raimundo?
– É o seguinte: o senhor diz, com razão, que Sabino pode ter uma
surpresa se houver uma reação de nossa parte.
– Continuo pensando assim. Qual é a dúvida?
– Essa conversa do Cabo Gonçalves me deixou de orelha em pé. Acho
que Marcolino pode tentar informar Sabino de que o senhor está
conseguindo recrutar alguns homens para a luta. Desmancha-se, assim, a
vantagem da surpresa.
O Tenente já tinha pensado nisso, também. Tanto que se informara, no
dia anterior, com o agente dos Correios, sobre os telegramas recebidos de
Lavras ou dirigidos a essa cidade, que era, no Ceará, a Agência dos
Correios mais próxima. O resultado fora negativo. Havia, entretanto, esse
outro meio de comunicação, que era o mensageiro.
O soldado Valões apareceu na Delegacia, apresentando-se. Faltava um
botão na túnica, as perneiras estavam sujas, mas não era hora de fazer
exigências. O Tenente narrou a suspeita do Cabo Gonçalves e as ordens que
lhe havia dado. E completou:
– Quero que você dê cobertura ao Cabo Gonçalves, que vai sair no
encalço de um morador suspeito de Marcolino Diniz. Vocês vão me trazer
esse homem, escondido, sem ninguém ver.
– Como é ele, Tenente?
– Pelo que me disseram, é um homem de seus 35 anos, baixo, moreno
carregado, forte, cabelo ruim; anda gingando como vaqueiro, fala pouco e
tem cara fechada.
– Levamos o sujeito para a cadeia?
– Não; vai ficar uns dias na fazenda de seu Chicão, depois do Serrote.
– E se o homem reagir?
– Só não quero baixa do nosso lado. Mas, façam força para trazer o
bicho vivo; é importante. Entendido?
– Entendido, senhor.
Depois da saída do soldado Valões, o Tenente pediu a Raimundo
Anastácio para avisar Chicão que precisava falar com ele.
Antes das 8 horas, o Cabo Gonçalves apareceu com a notícia de que o
vaqueiro ainda estava na cidade. Tinha dormido na casa do patrão.
– Pois fique grudado a ele. Já preparou sua montaria?
– Já, sim senhor.
– Boa sorte, Cabo.
O subordinado levou a mão ao quepe e fez uma continência frouxa e
desajeitada.
Moisés pediu à sogra, dona Zefa, para vir morar uns dias com eles. Ela
já sabia que a filha estava um pouco prejudicada... Com a presença da mãe,
talvez se abrisse, mudasse de pensar, falasse noutras coisas. Sentia que
estava morrendo, devagar, com a doença da mulher. Levavam uma vida
calma e sossegada; vida de pobre, com dificuldades, sem ter, certos dias, o
que botar no fogo, mas uma vida serena, feliz, baseada no amor que os unia.
Era tudo tão simples, tão arrumado, tão bom, que não pedia a Deus outra
coisa, quando se lembrava de rezar. Veio o emprego na olaria; ganhava
pouco, mas certo, e o trabalho completou o quadro de sua felicidade.
Zulmira continuava ajudando seus pobres, seus velhos, mas até nisso se
modificou seu modo de agir: dava a comida, o vintém, a pequena ajuda,
mecanicamente, o rosto suave impassível, distante. Eram uns demônios
esses cangaceiros. Ainda não haviam entrado na cidade e já causavam
sofrimento e dor, na casa do rico, do remediado, do pobre. Ouvira falar que
a filha de seu Modesto, comerciante, dera para gritar, querendo sair de casa
do jeito que estava, os olhos arregalados de pavor.
Dona Josefa, sua sogra, não sabia o que fizesse. Vivia dando à filha
chá de flor de laranjeira, de camomila, para acalmar os nervos. Conseguira
um remédio com Doutor Higino Rolim e Zulmira pelo menos dormia
direito. Mas, chegado o novo dia, continuava chorando pelos cantos da
casa, com um terço na mão, rezando, e, de vez em quando, murmurava:
“Não matarás.”
A mãe pensou em levá-la para casa. No meio das irmãs, fazendo renda,
ia mudar de conversa, ia se distrair. Ela reagiu, zangada:
– Não vou deixar Moisés; Moisés tem uma arma escondida. Vou
encontrar essa arma; vou jogar ela no fogo. Moisés vai matar. Tá escrito:
“Não matarás.”
Era de machucar o coração, ver como ela sofria com as coisas que
inventava. E como mudava de feição: seus olhos cresciam, apagava-se a
doçura de seus olhos, de sua boca, de seus gestos.
Lembraram que Siá Joaquina, rezadeira, vinda do Juazeiro, fazia
milagres. “Se for um encosto, como parece, Siá Joaquina resolve.” A
dificuldade era tirar Zulmira de casa, mas não houve pedido, nem rogo que
modificassem sua resolução de não deixar a casa. Moisés conseguiu trazer
Siá Joaquina, prometendo-lhe pagar bem. A consulta durou mais de uma
hora. A rezadeira saiu do quarto com ar desanimado. Falou a Moisés:
– Só poderes mais fortes do que os meus podem libertar sua mulher
desse encosto. Usei as rezas mais poderosas; invoquei a Santíssima
Trindade, os Santos mais conhecidos, repeti palavras do Livro de São
Cipriano, benzi ela com ramo de arruda, dei-lhe para beijar a imagem do
Padre Cícero, meu padrinho, mas nada adiantou.
Agradeceu o trabalho da Siá Joaquina e foi de volta, com ela, até à sua
casa. E pagou dois mil réis pela reza.
Mas Zulmira não mudava; estava ficando áspera, agressiva, recusando
um afago, um agrado. Repelia Moisés:
– Não toque em mim; você tem uma arma, uma arma de fogo. Você vai
matar. E morrer por dentro, devagar, até o fim. Está escrito: “Não matarás.”
Moisés refletia, amargo: sem um tiro, com a fama de seus crimes,
Sabino estava matando, lentamente, sua mulher.
Aquele domingo que findava, 26 de setembro de 1926, foi o mais triste
de sua vida.
Dois dias depois, ao cair da tarde, Sabino entrava em Cajazeiras.
***
Zulmira nunca soubera disso, mas há alguns meses tivera uma primeira
experiência com os cangaceiros. Essa lembrança diminuía um pouco o
medo da briga. Seu amigo Raimundo Anastácio – ainda era solteiro e só
depois do casamento passou a chamar o “velho” de padrinho – convidou-o
para fazer serviço de alvenaria no quarto dos fundos de sua casa no fim da
rua Sete de Setembro. Ficou meio intrigado, pois tratava-se de reforçar o
portão do quintal e a janela de um depósito que ficava fora do corpo da
casa. No portão foram colocadas duas tramelas largas e resistentes, uma
delas com alça para cadeado. Além disso seu Raimundo lhe pedira para
recolher garrafas nalgumas casas. Depois de trazer três ou quatro sacos de
garrafas vazias, seu Raimundo e ele as reduziram a pedaços. Os cacos
foram colocados em cima do muro, com massa forte, para dificultar o
ingresso de quem? De algum inimigo?
Quando viu seu Raimundo, depois que ele substituiu a madeira da
janela por barras de ferro enviesadas, experimentar o movimento do cano
do rifle nas frestas, compreendeu que seu amigo estava temendo ser
atacado. Falou com jeito:
– Seu Raimundo, o senhor está temendo algum inimigo?
– Não, Moisés. É que esse quarto, que é depósito da casa, não pode
ficar fechado, nem é bom que fique aberto...
– Por que esse sorriso safado no canto dos beiços?
– Que tem o abafado do quarto com um cano de rifle saindo das
frestas?
– Tá vendo? Vou lhe contar para evitar que você, de tanto imaginar, vá
conversar com alguém.
– Não estou pedindo seus segredos, homem.
– Mas eu quero falar no assunto para me livrar dele, pois não há coisa
pior do que guardar um segredo sozinho.
– Não estou pedindo...
– Eu sei, Moisés. Mas o que vou lhe dizer você não passe nem à
Dorinha, minha mulher. Ouviu?
– Ouvi, sim senhor.
Raimundo Anastácio falou-lhe, então, na “visita” dos cangaceiros
Laurindo e Bem-te-vi e do compromisso por ele não cumprido.
– Tenho por mim que eles não vão deixar passar o desaforo.
– Que desaforo, seu Raimundo?
– O fato de ter dito que ia me encontrar com Sabino no sítio
“Remédios” e lá não ter aparecido.
– Eles vêm, então, se vingar do senhor?
– É mais ou menos isso. Sabino não vai me perdoar. Vou ser castigado
para servir de exemplo.
– Não é melhor o senhor prevenir o Delegado?
– Quem vai entender, fora você e poucos amigos, essa história? Vão
dizer que estou em combinação com meus antigos companheiros.
O negro Moisés ficou parado, pensando, imaginando o aperreio do seu
amigo. Disse:
– Venho ficar com o senhor.
– Nada disso, Moisés. Você nunca pegou numa arma.
– Tem sempre uma primeira vez...
– De jeito nenhum, Moisés. Obrigado mas de jeito nenhum.
– Não sou obrigado; venho porque quero. Penso o seguinte: o senhor
pode ficar uma noite ou duas acordado, mas passou daí não há quem
aguente, nem o senhor.
Depois de muito relutar, seu Raimundo findou aceitando, que Moisés
fosse dormir no depósito, alternando as noites de vigilância. “Como
explicar isso a Dorinha?”, pensou.
Ensinou ao rapaz como usar o rifle, carregá-lo, descarregá-lo, carregá-
lo de novo; como fazer pontaria, amortecer o coice do rifle e tudo mais.
Pois não é que na quarta noite, de lua cheia, a segunda que Moisés
dormia ali, os cangaceiros apareceram! Seguindo as instruções de seu
Raimundo, ele não se mexeu. Ouvia o rangido do portão e as tramelas
aguentando o repuxo. Aquilo já tinha demorado um tempão. Por fim, viu
um vulto passando a coronha da arma nos cacos de vidro de cima do muro,
e, depois de algum tempo, pular para dentro do quintal. Já estava de
pontaria firmada, quando o cabra pisou no chão. Não teve dúvida: atirou no
vulto desenhado pela lua, com calma e firmeza. Ouviu o camarada gritar:
“Fui ferido!” Uma outra voz gritou:
– Abre o portão!
Mas o ferido parado estava, parado ficou. Foi quando seu Raimundo
apareceu e deu dois ou três tiros. Perguntou:
– Tudo bem, Moisés?
– Parece que não, seu Raimundo. Acertei num homem.
Ouviram tropel de cavalos na terra dura, e, depois, o silêncio total
restaurou a quietude da madrugada. Aguardou certo tempo para aproximar-
se do ferido, pedindo a Moisés que ficasse observando se alguém tentava
alguma coisa. Voltou logo depois, e disse para Moisés:
– O cabra está ferido.
Moisés ficou apavorado e lamentou:
– Fui eu que fiz isso!
Seu Raimundo não lhe respondeu, mas disse com firmeza:
– Era ele ou você. Está lamentando não ter recebido um tiro na testa?
Fique aí. Não deixe entrar ninguém.
Nessa ocasião, dona Dorinha, com um candeeiro na mão, chamava o
marido:
– Raimundo! Raimundo! O que foi que aconteceu?
O velho gritou:
– Apague esse candeeiro, mulher!
Mas foi preciso ele mesmo chegar perto de dona Dorinha e soprar na
chama acesa.
Depois de mandar a mulher para dentro de casa, fechou a porta da
cozinha por fora e disse para Moisés:
– Vou levar esse camarada daqui. Não fale. Não diga nada, nem
mesmo a Dorinha. Você dormiu aqui e não viu nada, entendeu?
Moisés balançou a cabeça, concordando. Raimundo Anastácio,
passada uma meia hora, disse para Moisés:
– Ajude-me a colocar o sujeito no meu ombro.
Abriu o portão, deu ordens para Moisés fechá-lo e só abrir se ouvisse
sua voz, e saiu carregando o fardo pesado nos ombros largos.
Uma hora depois, seu Raimundo chamou, do lado de fora:
– Moisés!
Abriu o portão e fechou-o cuidadosamente.
– Fique aí e vá dormir que, hoje, não vai acontecer mais nada.
Deitou-se na rede e não dormiu mais. Levantava-se, olhava pelas
grades de ferro, e voltava de novo para a rede. Tinha perdido o sono e sabia
que não ia dormir mais. Não era medo da nova aparição; era o horror de ter
atirado num homem e de o haver matado, talvez.
Aquela história de que o homem estava ferido era conversa de seu
Raimundo. O homem estava morto. Morto da Silva. E fora ele, Moisés,
quem lhe tirara a vida.
Tomou café, sem gosto, com seu Raimundo e dona Dorinha, que não
escondia seu nervosismo. O casal já devia ter conversado bastante, pelo
silêncio que guardavam. Não disse uma palavra. Manhãzinha cedo foi para
sua casa, para a casa do pai, Benício, e nada contou do ocorrido. Nem lhe
foi perguntado.
Mas na cidade, soube logo depois, corria a notícia de que um
cangaceiro fora morto por um soldado na frente da Delegacia. Corria que o
bandido, acompanhado, tentara libertar os presos, mas o soldado Madruga,
heroicamente, havia abatido o assaltante com tiro certeiro no coração. Mais:
pusera para correr outros dois bandidos que descarregaram suas armas em
cima do bravo militar, que era de pequena estatura, mas se revelara um
herói.
Só ele e seu Raimundo (autor da façanha) sabiam da verdade. Uma
verdade que enchia de sombras e apreensões sua alma simples.
Por isso, também, atendera sem demora ao pedido do padrinho
Raimundo para ajudar a polícia na defesa da cidade.
Quando Zulmira lhe dizia, em prantos, que ele iria usar uma arma para
matar, ele recordava aquela madrugada fria e distante em que ele abatera
um homem. Era um cangaceiro, dizia o mestre Raimundo. Para sua aflição
era um homem, um filho de Deus como ele. Mas a vida era assim e lá ia ele,
outra vez, atirar para matar.
Zulmira vivia pelos cantos, triste, definhando a olhos vistos, correndo
as contas de um rosário e murmurando, sem cessar: “não matarás”, “não
matarás”.
Sentia-se muito só com a “esquisitice” da mulher. Poucos tomavam
conhecimento de sua existência. Era a cor, sua cor, que criava uma barreira
entre ele e as pessoas com quem se encontrara na vida. Desde a Escola de
dona Elisa, na rua da Matança, que começara a perceber a realidade:
tratavam-no como se fosse um ser inferior. Antes da escola, sentira essa
diferença, a dificuldade em misturar-se com os meninos da sua idade. Na
escola, a distância aumentou: ninguém queria sentar-se perto dele. A
professora, paciente e bondosa, imaginou uma solução para evitar a
irritação e os maus tratos dos colegas: colocou-o perto dela, de frente para
os outros meninos. Era centro de todas as caretas e línguas estiradas, ao
voltar-se a professora para o quadro-negro. Havia as sabatinas, modo de
recordar as lições da semana. Grupos do mesmo nível eram formados, em
semicírculo, em torno da mesa de dona Elisa. Esta fazia as perguntas, com
uma palmatória na mão:
– 7 vezes 9?
– 53.
– Adiante!
– 56.
– Dê um bolo na mão de Joca – dizia a professora.
Às vezes, a pergunta atravessava todo o semicírculo, findando em
Deusdedit, o filho da mestra, magro, esperto, um raio na tabuada. A
palmatória estalava nas mãos menos sábias, para deleite do filho de dona
Elisa, que não perdoava (nem podia perdoar) e dava bolos que estalavam na
manhã tranquila.
Moisés não era bom na matéria. E pagava por isso. Tinha a impressão
de que os outros meninos, que não acertavam, recebiam um bolo choco, de
que mal se ouvia o estalo. Quando chegava sua vez, o menino que vinha
manejando a palmatória de modo convencional, frouxo, levantava o
instrumento e o pedaço de madeira estalava, seco, na sua mão preta.
Na hora do recreio, ficava num canto, calado, só. Ninguém o
molestava, mas não o chamavam para jogar com a bola de pano. Na
ausência de quem quisesse ser goleiro, chamavam-no, raramente. E ele ia,
feliz, de alma leve, esquecendo tudo, como um cachorro vadio diante de
osso inesperado jogado no seu lombo.
Conversou, muitas vezes, com o pai, narrando essas desventuras. O
negro Benício, pitando o cachimbo de barro, procurava atenuar sua raiva:
– Vai ser assim a vida toda. O único meio de lhe darem um pouco de
atenção é saberem que você sabe ler, escrever e contar. Faça isso com
vontade, com força, seja correto, e o resto Deus lhe dará com acréscimo.
Ele é o Pai de todos, de brancos e de pretos.
Talvez por serem poucos, no sertão, os negros, Deus se esquecia deles
a maior parte do tempo.
Seu casamento com Zulmira, a coisa mais importante de sua vida, fora
realizado sem muita gente, a conselho do sacristão:
– Pouca gente, Moisés. Os noivos, os padrinhos, os irmãos. Para não
dar na vista, compreende?
Não compreendia, mas não interessava conversar com o velho. Ele
estava cumprindo instruções, certamente.
Mas ele contava com alguns amigos, poucos e bons. Seu Raimundo
Anastácio, Gineto, filho do coronel Galdino Pires, Manoel Santana, dono da
olaria onde trabalhava. Este não era um patrão bom, só; era um amigo, que
o chamava para almoçar na sua casa, que se interessava por sua vida, que
lhe ensinava, sem reservas, a arte do barro, pelo que participava do trabalho
com alegria, a alegria de ser tratado como gente.
Zulmira estava carregada de razão ao lhe dizer, antes de sua
perturbação:
– Fora dois ou três amigos, quem se lembra de você?
Mas não podia esquecer que ali nascera; que seus filhos, que um dia
iam aparecer, com a graça de Deus, poderiam ter, talvez, destino mais claro
do que ele. Só desejava, hoje, uma coisa, e a pedia a Deus: que tirasse
Zulmira dos caminhos tortuosos, da escuridão da loucura. O resto não tinha
importância.
Pensava: foi bom, apesar de tudo, o padrinho ter-se lembrado de
chamá-lo para lutar contra esse bicho desalmado, que ataca e mata pelo
prazer da destruição; que traz o terror, a desgraça e a infelicidade até para as
criaturas mais inocentes, como Zulmira. Cruel, sanguinário como um
carcará, surge, de repente, no fim da tarde, agressivo e feroz, atacando as
cidades, os sítios, as pessoas, roubando-lhes a tranquilidade, a paz, a vida,
para saciar sua sede e sua fome de sangue. Esse sentimento abafava, por
momentos, o medo de morrer...
Oito
A VIDA perdera a graça sem Aninha. Fazia oito meses que a mulher morrera,
de parto, cheia de saúde e contentamento, aos 21 anos de idade. Sim,
Aninha não era só alegre, era cheia de vida, transmitindo às pessoas sua
felicidade, dela impregnando tudo que tocava. Como a vida dele mudara
desde que se conheceram e casaram! A casa pobre da fazenda se
transformara pelo mistério e pelo trabalho de suas mãos. Comprara, em
Fortaleza, mesas, cadeiras para a sala grande; uma cama nova, grande, com
um colchão de crina; reformara o velho fogão de lenha, nele colocando
bocas e trempes de ferro; envernizara o guarda-louças e o enchera de pratos,
de copos, de xícaras, de talheres; mandara consertar o piso da casa toda,
inclusive da cozinha, onde colocara uma janela nova, dizendo a Chicão: é
aqui que vou viver enquanto você estiver no mato. A casa parecia outra; e
tudo era ela, o seu toque, o ar de alegria e de felicidade que ela transmitia.
Os parentes, os amigos, brincavam com ele: “Casa de lorde, Chicão!”
Tudo corria tão bem! O ano, de inverno prometedor, poderia dar boa
colheita de algodão. Nem a gravidez alterou o bom humor de Aninha; era
um motivo de nova alegria, com a feitura do enxoval para o “Chicão novo”.
Nos dois últimos meses, começara a sentir algumas dores persistentes,
que a preocuparam um pouco. Foi ela quem sugeriu:
– Acho bom ir para a casa de sua mãe, na cidade. Não é nada de mais,
homem. Mude essa cara de quem viu fantasma. Essas coisas são assim
mesmo; quero estar perto da parteira quando o moleque decidir vir ao
mundo.
– Não é melhor um médico, Ana? Você está escondendo alguma coisa
de mim...
– Nada disso, Chicão. Um parto é a coisa mais natural do mundo. Se
houver necessidade...
Era o que devia ter feito, logo, não se fiando na conversa de Ana, da
parteira e de dona Letícia, também. Quando chegou o dia e as dores se
anunciaram, pela manhã mesmo, quis chamar o médico, Doutor Celso
Matos, que era seu parente, ainda. Só o fez às 10 horas da noite depois de
brigar com a parteira, que falava em paciência, paciência e paciência.
Depois de demorado exame, o doutor falou com ele, fora do quarto:
– A situação é muito delicada; deviam ter-me chamado mais cedo. Ela
chegou ao ponto da completa exaustão e não há, ainda, o menor sinal de
dilatação. Vou ter de operar. Acho que é difícil os dois sobreviverem.
Não pensou duas vezes:
– Salve minha mulher, doutor.
Foi uma noite longa e desesperada. Gritos, gemidos que lhe
dilaceravam a alma, correrias, soluços, choro. E, afinal, o desfecho que não
queria admitir, gritando como um louco, desesperado e infeliz: a morte de
Aninha e da criança, também. Um menino. Que não chegou a viver.
Fazia oito meses e parecia ter sido ontem, agora, nesse instante.
Perdera o gosto de viver. Trabalhava, por hábito, e por uma questão de
dignidade. Passara um tempo bebendo como um perdido, mas reagira, pois
a bebida só aumentava sua infelicidade. Na fazenda se dedicava ao trabalho
mais pesado, destocando, limpando a terra, preparando-a para receber a
sementeira: o algodão, o milho, o feijão, espaçadamente. Eram bons os
sinais do céu: uma barra escura, de nuvens pesadas, aparecia no nascente; e,
à noite, a lua estava cercada pela bolandeira, um círculo de cor rosa, azul,
roxa, que a envolvia. Examinara o leito do rio ainda seco, e não vira as
formigas de roça se concentrando por ali, o que segundo seu pai era um
bom sinal de inverno.
Pensava, às vezes, ao voltar do campo: para que trabalhar? Ana, sua
amiga, não o estava esperando mais, ao cair da tarde, com seu banho
preparado, sua roupa de mudar e uma fumegante caneca de café. Sua vida
era a sucessão de dias e noites iguais, amargas, infindáveis. Nunca mais se
deitara na cama de casal. Passara para a rede, que armava na sala da frente,
mas ela mesma estava impregnada do cheiro do seu corpo, das recordações
mais dolorosas. Quantas vezes não se tinham amado na rede grande,
transportando o céu para dentro das quatro paredes da pequena casa!
Quando adormecia, a mulher procurava a cama, pois aprendera a dormir
daquele jeito, em Fortaleza, enquanto ele, pelo hábito da vida sertaneja,
gostava mesmo era da rede, dos embalos, do rangido dos armadores. Tudo
mudara: ela se fora para sempre. Tinha horror desse sentimento: fora
melhor, mesmo, a criança não ter sobrevivido, pois não poderia amar,
nunca, quem trouxera a morte de Ana.
Conheceu Ana no casamento de seu irmão, Eduardo, que saíra de casa
aos sete anos e fora morar com o tio Felipe, sucedendo-o na propriedade
duma farmácia no centro de Fortaleza. Dona Letícia, sua mãe, ainda
pensara em acompanhá-lo, num gesto de atenção ao filho que a
“abandonara”, mas findou desistindo, à última hora, por motivos de saúde.
Mandou um presente, cuja escolha ia ficar a cargo de Chicão: a mobília da
sala de jantar ou do quarto de dormir.
Mas o noivo já comprara tudo. Ana, amiga e parenta da noiva, Djanira,
se ofereceu para ajudar Chicão a comprar, dentro da quantia estipulada, os
presentes para o novo casal. Chicão gostou do jeito da moça, do seu
desembaraço, dos olhos castanhos, do corpo bem feito, do modo de falar e
de andar, do sorriso doce e meigo. Foi ela quem sugeriu, também, o
presente de Chicão. Nesse dia, que era uma sexta-feira, bem como no dia
do casamento, conversaram bastante, parecendo velhos conhecidos.
Estava conversando, animado, com Ana, num canto da sala, quando
Eduardo o arrastou, no almoço do casamento, para uma roda onde
pontificava o jornalista Leonardo Mota. De lá fez um sinal para Ana, dando
a entender que não iria demorar-se. O jornalista, que era um conversador
admirável, contava histórias sobre cangaceiros, assombrações, furtos de
moça, desafio de violeiros. Virou-se para Chicão:
– Eduardo me falou que você tem algumas histórias boas...
– São histórias de matuto.
– Essas é que são boas, meu rapaz. Vamos, conte uma, pelo menos,
pois já estou de goela seca.
Chicão não se fez de rogado:
– Vou repetir a história que estava contando ainda há pouco. Tomás é
um morador da nossa fazenda. Homem bom, calado, trabalhador, de poucos
amigos e de conversa rara. Sua mulher, Deodora, o ajuda na lida do campo
e é uma boa dona-de-casa. Todo ano, invariavelmente, Dora aparece de
barriga grande. O filho nasce sem problema, normalmente, mas tem vida
curta. Vai definhando, parece que não tem tutano para viver, e morre no
mesmo ano do nascimento. Um dia, resolvi conversar com Dora, com a
intenção de levá-la a um médico, pois não era normal o que estava
acontecendo com as crias dela. É muito difícil falar com uma sertaneja
sobre esses assuntos. Fui, com muito jeito, conversando sobre o tempo, a
plantação e, por fim, toquei no caso dos meninos que não conseguiam viver.
Em determinado momento, perguntei-lhe se ela amamentava as crianças, ou
se não aparecia leite. Disse, nessa altura, que tivesse confiança em mim,
que era amigo de Tomás e dela, também. Com os olhos baixos, torcendo a
barra da saia, confessou: “– Leite eu tenho, seu Chicão, e muito. O negócio
é Tomás.” Não tendo alcançado o que quisera dizer, indaguei: “– Que tem
Tomás com isso. Ele não deixa você amamentar as crianças, é isso?” “–
Não senhor, não é isso; ele é doido pelo meu leite e mama antes dos
meninos, sobrando pouco pros bichinhos...”
Deixou o pessoal sorrindo e foi procurar Ana. Ela já tinha deixado a
festa. Viajou no dia seguinte, com a imagem da moça morena
acompanhando-o durante a longa viagem de volta. Escrevera, depois, ao
irmão, falando no casamento e contando as novidades a respeito da
propriedade como, habitualmente, fazia. Na carta pedia à cunhada, Djanira,
notícias a respeito de Aninha. Não foi pequena a surpresa ao receber um
bilhete da própria Ana, brincando com ele e agradecendo, de coração, as
lembranças enviadas.
Na primeira carta que fez à moça, embora arrodeando um pouco,
confessou seus sentimentos:
ANA.
Acredite ou não, desde o dia do casamento de Eduardo e
Djanira que não consigo tirar você de minha cabeça. Por que
dizer isso, se não posso esconder que sou um “beradeiro” sem
futuro, sócio de uma pequena fazenda nos confins da Paraíba?
Ouvi as palavras com que você se referia à sua profissão de
professora, ao gosto que tinha em ensinar, em ver o progresso dos
alunos, em ajudá-los na descoberta de suas inteligências e dos
conhecimentos pouco a pouco antevistos e conquistados. Tudo
isso ficou girando na minha cabeça, mas só por alguns instantes,
pois o que ficou, mesmo, impressa no meu coração, foi você, seu
olhar, seu modo de sorrir, sua graça, seu encanto, sua beleza.
Antes de escrever estas linhas, pensava: confessando isso à
Aninha eu alivio o coração e me curo, talvez, dessa saudade a
que você não deu motivo. Pura ilusão: criei uma nova aflição,
que é o receio de molestá-la. Nem mesmo sua carta, tão gentil,
tão alegre, tão parecida com você, tentando jogar gelo em brasa,
me impediu de sonhar que um dia você pudesse ser minha
namorada, minha mulher.
Não sei como terminar a carta. Talvez lhe dizendo, me
perdoe.
Francisco de A. Ferreira (Chicão).
CHICO.
Respondo sua carta de 20 do mês próximo passado. Antes do
mais, nada tenho a lhe perdoar. Muita gente gostaria de ter um
admirador como você. Agradeço de coração suas palavras. Não
quero, de nenhum modo, ser causa de aborrecimentos para você.
Pretendo conservar o privilégio de ser sua amiga; por isso, tenho
de ser sincera. Você tocou num ponto essencial: minha profissão.
Não é vaidade, pois não teria de que envaidecer-me. Moça pobre,
criada, por favor, em casa de parentes, a carreira me deu certa
confiança, uma não-dependência dos outros para viver, mesmo
modestamente. Não penso, assim, em deixar de ensinar. Vi você,
sem você notar, e gostei muito do seu jeito natural, simpático.
Continue sendo meu amigo; é uma alegria contar com sua
amizade.
Sua amiga,
ANA.
Decidiu ir a Fortaleza. Foi, viu Ana e casou. Ninguém podia ser mais
feliz do que ele. Depois...
Passava o tempo todo na fazenda, só vindo à cidade aos sábados. A
mãe reclamava, dizia que ele precisava divertir-se, conversar com gente da
mesma idade; que estava se matando de tanto trabalhar, fazendo serviço que
podia passar para outro. Perguntou:
– Que serviço, mãe? Alguém anda me espionando?
– Fazer cerca, por exemplo. Arranje gente para executar esse trabalho.
Sei que você quer encher o tempo, que isso é uma forma de esquecer...
– Mamãe, me faça um favor: deixe que leve a minha vida como achar
melhor.
– Não, meu filho, não posso deixar que você estrague sua vida...
– Mas trabalho é bom, é salutar. Não faz mal a ninguém.
– Você sabe que não é o trabalho que me preocupa. Eu só tenho você
no mundo, meu filho. Nós, mães, somos egoístas, mas não me incluo entre
as piores. Sempre respeitei sua vontade. Seu casamento, mesmo repentino
como foi, não me contrariou, pois você estava procurando sua felicidade,
seu destino. Sempre quis ser amiga de Ana, mas ela achava melhor vocês
viverem na sua própria casa. Não me opus a isso, nunca, você sabe. Você
não pode ter queixas de mim a esse respeito...
Nunca vira sua mãe falar tanto. E ela tinha razão: estava levando a
vida dura que levava para esquecer Ana.
Dona Letícia fora muito compreensiva, tratando sua mulher com
amizade, mas respeitando seus desejos e sua vontade. Mudou o tom de voz:
– A senhora tem razão, mãe. Mas, se não tivesse a vida tão ocupada,
rebentaria.
– Eu compreendo, meu filho; já passei pelo seu sofrimento. Perdi seu
pai aos 23 anos de idade. Ele foi para a Amazônia e de lá não mais voltou.
Eduardo tinha um ano e estava grávida de você. Respeito sua dor, seu
desespero, e acho que se justifica, até certo ponto, seu isolamento. Mas já
está passando da conta, meu filho. Ou não existo para você? Já pensou nisso
alguma vez?
Em verdade não pensara em sua mãe. Culpa dela, talvez, do seu ânimo
forte, de sua frieza (não teria sido isso que levara seu pai a tentar a aventura
da borracha?), da sua conformação com as coisas da vida. Era outra pessoa
a que falava com ele, naquele instante, sem choro, sem lágrimas, mas com
sentimento e mágoa. Ficou surpreendido e chocado, sem saber o que
responder. Estava ceando. Ficou com um pedaço de queijo de qualho no
garfo, entre o prato e a boca, durante algum tempo. Não comeu mais.
Levantou-se e foi para a rua. Não havia, no seu gesto, irritação ou rebeldia.
Parecia um autômato a pessoa que percorria a cidade, àquela hora quase
sem vivalma. Alguém lhe deu boa noite e ele não respondeu, pois estava
longe, muito longe dali. Descobrira uma verdade resultante da queixa de
dona Letícia. A mãe não chegara a dizer isso, mas surgiu, na sua mente
cansada e maltratada, um clarão na noite vazia: Ana não haveria de querer
que ele transformasse sua vida naquele pesadelo, no sofrimento
irremediável, num desengano feroz e absorvente. Quase se choca com
Manoel Santana, que vinha caminhando em sentido contrário, na calçada
estreita:
– Hein! Chicão! Tudo bem, homem?
Acordou de sua abstração e viu, com alegria, que era Manoel Santana
que estava falando com ele.
– Oh! Manoel, como vai você?
– Vou bem, Chicão. E você? Dizem que está transformando a fazenda,
é verdade?
Espantava-se de estar conversando, ali, naquela hora, de forma
desprevenida, natural:
– Conversa, Manoel. Tenho trabalhado muito, trabalhado demais,
mesmo, mas o rendimento é o de sempre, nesse sertão brabo. E o negócio,
como vai?
– Vou levando. Estou vendendo ferragens e materiais para construção,
numa pequena loja que abri há pouco tempo.
– Muito bem, Manoel. E a olaria? Fechou?
– Não, Chicão. Continuo fazendo potes, panelas, jarras. E estou
pensando em fabricar telha, pois toda a telha aqui empregada vem de fora,
sabia? Está magro e queimado como um matuto do eito.
– Mas é isso que sou, Manoel. E ou a gente fica na frente do negócio,
ou ele vai de águas abaixo.
– Pois, Chicão, fiquei satisfeito em revê-lo. Pode crer.
– Eu também, amigo.
Surpreendeu-se a conversar, assim, revelando interesse pelos outros.
Gostava de Manoel Santana, admirando seu esforço em continuar
trabalhando na pequena olaria de seu Antônio. Devia ter o quê? Uns vinte
anos, talvez, mas era um lutador.
Passou pelo Cinema Moderno, na rua Sete de Setembro, que levava
um filme de Tarzan, com Elmo Lincoln. Já tinha começado, mas entrou,
assim mesmo, no cinema. Queria limpar a cabeça.
Quando voltou para casa, sua mãe já estava dormindo. Amanhã falaria
com ela. Melhor, ficaria em casa todo o domingo, que era o melhor modo
de dizer que tinha ouvido suas palavras.
Quem apareceu, pela manhã, foi Raimundo Anastácio para acertar as
contas. Apreciava esse homem calado, de fisionomia fechada, que parecia
ter vencido a resistência da cidade em aceitá-lo como um dos seus
habitantes. A condição de ex-cangaceiro lhe trouxera aborrecimentos
terríveis. Consciente ou instintivamente, a terra recusara sua participação na
vida da comunidade. Primeiro, fora obrigado a fechar a oficina de selas,
arreios, roupas de vaqueiro e outros objetos de couro; segundo, quase o
boicotaram, totalmente, no seu novo negócio: a venda de quartos de
cabritos ou carneiros pelas portas das casas. Dona Letícia se apiedara do ex-
cangaceiro e lhe emprestava dinheiro ou vendia gado miúdo para suas
transações. Por isso, o homem era profundamente agradecido à mãe e ao
filho. Quando Ana morreu e ele se enfurnou na fazenda, Raimundo
Anastácio passou lá bem uns quinze dias com prejuízo dos seus negócios,
conversando, obrigando-o a comer, andando com ele pelo campo.
Agradecia ao ex-cangaceiro não ter ido dessa para melhor. Ninguém pedira
ao “índio” para fazer aquilo. Ou sua mãe insinuara alguma coisa?
Gostava muito do velho índio, que, mesmo depois da crise, apareceu
na fazenda, fazendo-lhe companhia, contando histórias de sua vida, em que
sempre saía perdendo. Ele ouvia, ouvia, e mal falava. Percebera, depois,
como essa companhia fora importante para sua recuperação. Nunca tivera
uma palavra de agradecimento para o amigo, mas este não andava atrás de
agradecimentos. Revoltava-se, assim, quando alguém da cidade,
maldosamente, afirmava que seu Raimundo tinha ligações com seus antigos
companheiros do cangaço. E defendia seu amigo com vigor e raiva. Sabia
que o “velho” desaparecia dois ou três dias, às vezes, procurando gado mais
barato para fazer carne-seca. Andava uma légua quando sabia da existência
de uma vaca de peito perdido. Sabia que o índio era esperto, vivo, vivido,
mas nunca um traidor, um homem de duas caras. Confiava nele cegamente.
Naquela manhã notou que seu Raimundo estava muito preocupado.
Pagou o que devia, despediu-se, quando Chicão o abordou:
– Você já tem cara fechada. Não precisa exagerar, seu Raimundo.
Alguma coisa errada?
Fora pegado de surpresa: Chicão estava falando. Mais: estava dizendo
uma brincadeira com sua cara. Olhou espantado para o rapaz, desanuviando
um pouco a fisionomia com a expansão do amigo.
– Dá pra ver, assim, que estou preocupado?
– A mim você não engana. Alguma doença? Dona Dorinha está bem?
– Tá tudo bem, Chicão; quero dizer, está tudo muito ruim.
– Uma coisa ou outra, seu Raimundo.
– Quanto a mim e à patroa, tudo bem. O ruim é saber que os
cangaceiros estão se preparando para atacar a cidade e o povo vive na maior
indiferença do mundo. O pobre do Tenente Delegado está no mato sem
cachorro, com sete soldados para defender a população. Uma noite dessas
foi feita uma reunião na Prefeitura. O Prefeito Sabino Rolim fez um apelo
para ajudar o Delegado e sabe qual foi o resultado?
– Sei – respondeu Chicão. – Ninguém se manifestou. Não é frouxidão;
é que ninguém acredita que os bandidos venham até aqui. Os boatos
anestesiaram o instinto de sobrevivência do povo.
– Você me perdoe, Chicão. Não tem nada de instinto; o que há é medo.
Pode ser que a boataria seja responsável por alguma coisa...
– Como é que se formou esta certeza, seu Raimundo?
Omitindo a morte do cangaceiro, Raimundo Anastácio contou a
viagem a Alagoinha, o incidente com o cabo José Gonçalves e o bilhete
encontrado no bolso do morto. E para que o rapaz não pensasse que estava
delirando, falou no compadre Serafim e deu a data do ataque: 28 de
setembro de 1926.
– Que dia é hoje?
– Hoje é 17.
– Faltam onze dias, então?
– Onze dias.
– Quantas pessoas há no destacamento?
– Dez: o Tenente, o Sargento, o Cabo e sete soldados.
– Está tudo perdido. Os bandidos vão fazer aqui o mesmo que fizeram
em Sousa, o ano passado.
– O ano retrasado: 1924. Mas o Delegado tem feito alguma coisa. Está
treinando alguns voluntários. Conta com algumas pessoas que têm alguma
experiência no ramo: eu, Romeu Cruz, Marechal, Manoel Nóbrega, José
Teberges, dois dos empregados do Engenheiro das Secas.
Chicão ficou algum tempo parado, olhando para nada, a muitas léguas
dali. Depois, voltando ao presente, exclamou:
– Mas vocês vão ser massacrados! Sete gatos pingados contra 30 ou 40
cangaceiros. É uma loucura. Não pode ser. Vou procurar esse Tenente.
Como é o nome dele?
– Tenente Elino. Mas, se é uma loucura, por que você quer se meter no
fogo?
– Querer me meter no fogo uma ova! Eu estou no fogo; eu sou daqui,
nasci aqui. Vou me colocar à disposição do Delegado. Quer ir comigo, seu
Raimundo?
– Vou, Chicão, com muito gosto. Mas pensou bem no que vai fazer? E
dona Letícia, sua mãe, que vai dizer disso?
– Vai concordar comigo, homem.
Como se estivesse esperando ser chamada, dona Letícia apareceu. E
falou para seu Raimundo:
– Meu filho está certo.
– Mas dona Letícia...
Chicão interveio:
– Não tem mais nem menos. Deixe seu espanto. Não estou tomando
essa atitude por bravata; estou com medo; sei que estou arriscando minha
vida. Não acontecerá a mesma coisa se eu ficar parado, esperando a visita
de Lampião?
– De Sabino, Chicão.
– De Sabino ou de quem diabo for. Mãe, me desculpe. Vamos, seu
Raimundo?
A Delegacia estava cheia. Será que o “índio” estava enganado? Era
gente querendo saber notícia ou confirmação sobre o ataque dos
cangaceiros, se podiam viajar para as cidades mais próximas. Ninguém,
entretanto, se oferecia para ajudar. O Tenente falou sem irritação:
– Não sou adivinho, nem profeta. Estou me preparando, com o que
tenho, para defender a cidade. Quem de vocês quer ajudar?
Um matuto mais teimoso insistiu:
– Posso viajar para São José de Piranhas?
– Pode, se é isso que quer ouvir.
– Mas não há perigo, Delegado?
– Não sei lhe dizer. Sou de opinião que cada um deve ficar onde está.
– Mas eu estou pagando pensão, Delegado, e não tenho recursos.
Chicão e Raimundo Anastácio chegaram perto do Tenente. O índio
falou:
– O Chicão quer falar com o senhor.
Este foi logo dizendo:
– Vim me oferecer para ajudar o senhor na luta contra os cangaceiros.
Sou proprietário, sei atirar...
– Conheço o senhor, seu Chicão. Passei o dia a ouvir queixas e
desculpas; até que enfim apareceu alguém, uma pessoa que acha necessário
lutar para defender a terra. Alguém mais quer assumir o mesmo
compromisso? Se não, vão para suas casas ou para onde bem quiserem.
Entenderam?
O pessoal foi saindo, devagar, alguns com a cabeça baixa,
encabulados, olhando de viés para o rapagão que estava querendo bancar o
valente.
Quando saíram todos, Chicão explicou ao Delegado:
– Quero que o senhor saiba que não estou assumindo uma atitude
precipitada ou irrefletida. Acho que ficar em casa é tão perigoso como
enfrentar os bandidos. Faço isso com medo, compreende o senhor?
– Compreendo, seu Chicão.
– Chicão, só, Tenente.
– Pois é, Chicão. Com medo estamos todos, talvez eu mais do que os
demais, pois minha responsabilidade é maior. Acho, porém, que, se nos
unirmos, poderemos fazer com que os cangaceiros desistam do propósito de
saquear a cidade. Tem sido assim em toda parte onde há reação, mesmo
fraca.
Raimundo entrou na conversa:
– Ele veio porque quis. Não influí na sua decisão.
– Pelo contrário, fez algumas ponderações desanimadoras.
O Tenente amenizou a conversa, perguntando a Raimundo se ele
estava bancando o bandido.
– Conversa de Chicão, Delegado. Disse que queria vir falar com o
senhor e estou aqui com ele.
O Cabo Zé Gonçalves entrou, alvoroçado, na Delegacia.
– Uma briga feia lá na Rodagem. Com morte. Posso levar alguém
comigo?
– Pode.
Virando-se para Chicão:
– É isso toda semana. A cachaça mata mais gente do que Lampião.
– Só quando não se sabe tomar, Tenente. Agora mesmo, depois dessa
conversa, vou tomar uma pinga. Raimundo, você tem cachaça em casa?
– Não bebo, você sabe.
– E para os amigos? – perguntou Chicão.
– Os amigos vão beber noutro lugar.
Chicão despediu-se do Delegado e do “índio” e foi para casa. Uma
lassidão avassaladora tomou conta de seu coração, de sua cabeça, de suas
pernas, até. Havia sido precipitado? Não devia ter examinado com mais
frieza a situação? Quem sabe se já não estava mudando?... Teria sido a
conversa com a mãe? Procurava, inconscientemente, na luta desigual, uma
solução para seu desespero? Jamais teria coragem de se matar. Nem nos
momentos mais angustiantes, os primeiros dias após a morte de Ana,
chegara a pensar no assunto. Era contra sua natureza, contra a força que
emanava dos seus músculos, do seu sangue, dos seus nervos, dos seus
órgãos. Tinha medo. Dissera a Raimundo Anastácio e ao Delegado. Medo
de morrer? Ou medo de não morrer?
Dona Letícia era muito religiosa. Quando ceava, na noite de 23 de
setembro, disse ao filho, com muito jeito:
– Chico, como você sabe, amanhã faz um ano que Ana morreu. Pedi
ao Padre Adonias para que a missa de amanhã fosse celebrada em intenção
dela. Você não foi à missa de sétimo dia, nem à dos 30 dias. Quero lhe
pedir, em nome de sua mulher, que vá, amanhã, à igreja comigo. Tenho
certeza de que ela vai gostar de ver você na igreja, rezando por ela.
– Mamãe, a senhora sabe...
– Sei que você considera a missa um ato social; que ninguém
comparece à igreja por sentimento verdadeiro de amizade; mas não é pelos
outros, é por ela que você deve ir. É um pedido que lhe faço.
Demorou a responder. Ultimamente andava se lembrando muito de
Deus. Devia ser o receio de morrer. Tentara umas orações, mas, no final,
ficava na intenção. Sua mãe esperava, com um ar aflito, sua resposta.
– Vou, mãe. Vou pela senhora, pelo seu pedido.
– E por Ana, meu filho; pela alma de sua mulher. Ela ainda existe, meu
filho.
– Já lhe disse que ia, mãe.
Havia pouca gente na igreja: as pessoas de amizade de dona Letícia e
dois ou três parentes. Assistiu à missa, calado, imóvel. Mas por dentro,
inquieto, constatara que sua dor já não era a mesma; doía, ainda, a
lembrança de Ana, mas era uma dor alongada, espalhada, que não lhe
tomava a respiração como antigamente. O padre Adonias não falou.
Durante a celebração, mencionou o nome de ANA algumas vezes: ANA,
ANA, ANA. Sentiu uma vontade enorme de chorar, mas se conteve. No fim
da missa, algumas pessoas vieram falar com ele e com sua mãe. Viu bem
dona Laura e suas filhas: Irene e Ilina. O sol da manhã brincava nos cabelos
da menina mais clara e criava um halo de ouro em torno dela.
Sentiu um choque quando Ilina falou com ele. Reagiu, pensando: “Mas
é uma menina!” Ela apertou sua mão e, se falou, não percebeu. Parecia, no
entanto, que ela estava mais perto dele, do seu sentimento, do que qualquer
pessoa. Reteve, sem querer, a mão de Ilina, distraído. Ela olhou para ele,
espantada. Os olhos azuis, abertos, surpresos, é que o recolocaram na
realidade. Encabulou-se com a distração, pensando que os presentes podiam
ter percebido o choque que levara. A imagem de Ilina, dourada, banhada de
luz, tocara as fibras adormecidas do seu coração. Mas seu agradecimento
foi convencional:
– Obrigado, Ilina.
Continuaram os cumprimentos, pois tinha aparecido mais gente na
igreja, mas todo mundo se parecia com Ilina, os seus olhos azuis, a face
dourada, a boca pequena e carnuda articulando seu pesar.
Mesmo em casa, ainda perdurava tanto a impressão violenta que
sofrera como o constrangimento em pensar que alguém tivesse percebido
alguma coisa. Que importava? Dona Letícia avisou que o café estava na
mesa. Os gestos habituais da mãe, colocando o leite e café na sua xícara,
tranquilizaram seu espírito.
Foi para o quarto e, só, recordou o instante iluminado que vivera. Pôde
admitir que tudo aquilo era insensato, pueril; um sonho retardado da
adolescência que já se fora; mas a verdade é que se comovera, no momento,
e, agora mesmo, recordando, sofria a dor e a ilusão de um sentimento
perdido. Estava ficando maluco duma vez. Ora, além de Ilina ser uma
criança, ele era um... viúvo. Lembrou os olhos azuis, vivos, profundos,
surpreendidos com o gesto dele, segurando, sem querer, a mão da moça.
Teria ela percebido alguma coisa? Ou atribuía a distração ao seu pesar?
Pela primeira vez, nos últimos dias, começou a achar precipitado o
gesto de oferecer-se como voluntário para lutar contra os cangaceiros. Era
medo de morrer o que perturbava, agora, o coração insensato? Mas, nesta
altura, não podia recuar. Precisava, entretanto, ter uma conversa com
Raimundo Anastácio. Queria lutar, mas não queria morrer. Precisava
aprender a defender-se. Ninguém melhor do que seu velho amigo poderia
dar-lhe os conselhos de que precisava.
Antes do almoço, procurou Raimundo Anastácio. Recordou a
resistência oferecida pelo amigo quando se decidiu a falar com o Tenente
Elino.
O “índio”, que tinha o hábito de almoçar cedo (“Às cinco horas já
estou no mundo”, dizia), às 11 horas palitava os dentes fortes e separados.
Quando Chicão apareceu, foi logo perguntando:
– Alguma novidade, Chico? (Só sua mãe e Raimundo o chamavam
assim).
– Novidade? Não; não se trata de novidade. Queria conversar com o
senhor, com a franqueza de sempre. Estou achando, pelo que ouvi, um
pouco solto, ou frouxo, o plano de defesa do Delegado.
– Que é que você quer dizer com isso?
– É que ninguém sabe o que vai fazer exatamente, onde vai ficar, ao
lado de quem vai lutar...
Anastácio entendeu, logo, que as dúvidas eram do próprio Chicão.
Reagiu quando o moço, impulsivamente, decidira oferecer seus serviços ao
Delegado. Passando, ainda, por momentos difíceis, pois era, ainda, um
inconformado com a morte da mulher, Chicão tomara, a seu ver, uma
atitude precipitada. Conhecia bem o filho de dona Letícia. Agitado, falando
alto, gostando de nomes feios, ele sabia que Chicão era um coração bom.
Só tinha alvoroço, zoada, exaltação, mas no íntimo era uma natureza boa.
Acontecia, agora, o que previu: na hora de pensar em matar, revelaram-se as
suas entranhas, tudo o que havia de bom e delicado no rapagão barulhento.
Tinha que dizer alguma coisa. Falou:
– Não é possível estabelecer nenhum plano para enfrentar os
cangaceiros. Eles também não agem a não ser em função do momento.
Pensam, antes, ligeiramente, como devem atacar, mas deixam para a hora o
que têm de fazer. Tudo neles é de surpresa. O Tenente não vai indicar para a
gente um modo único de lutar. Tem coisas assentadas na cabeça, mas o que
terá de fazer será na hora da briga. Conversei com ele sobre tudo isso mais
de uma vez.
E, como se quisesse atenuar as dúvidas de Chicão:
– Vamos ficar juntos na hora da briga. Tenho prática e posso lhe
ajudar, já que é sua primeira luta.
Chicão reagiu, percebendo onde seu Raimundo queria chegar:
– Não é isso, seu Raimundo. Isto é, acho que o Delegado é quem vai
dizer onde cada um fica. Claro que se ficar com o senhor ou com Romeu é
melhor pra mim...
– Não há lugar melhor, nem pior. É tudo ruim, meu filho. É um
inferno. Mas o difícil é começar. Dados os primeiros tiros, o resto é fácil,
você vai ver. Não é consolo, mas a gente morre sem sentir.
Disse a seu Raimundo que precisava ir à fazenda no dia seguinte,
sexta-feira, 24 de setembro. Precisava dar algumas ordens ao vaqueiro. O
“índio” velho concordou:
– É bom, Chico. Mas volte logo. Sábado tem uma reunião importante
em que algumas dúvidas, como as suas, serão discutidas. Você, se achar
conveniente, pode dar seus palpites.
Bem cedo viajou para a fazenda.
Não queria assombrar o vaqueiro Malaquias, nem dona Zezé com seus
nove filhos, mas tinha o dever de prevenir. Foi até a casa do vaqueiro e
ficou impressionado com a confusão e a sujeira reinantes. Ana tinha lhe
pedido autorização para fazer mais um quarto e ajeitar a casa, achando que
a vergonha não era para os moradores e, sim, para os donos. Voltara tudo ao
que era antes... Depois falaria nisso com Malaquias. A conversa agora era
outra.
– Malaquias, vou passar uns cinco dias sem vir à fazenda. Estão
dizendo que os cangaceiros vão atacar a cidade. Vou ajudar o Delegado. Eu,
seu Raimundo Anastácio e outros.
Zezé, com um menino escanchado nos quartos e outro por nascer, fez
uma pergunta que facilitou o que Chicão queria dizer:
– Pode ser que os cangaceiros passem por aqui?
– Não sei lhe dizer, Zezé. Pode ser que sim e pode ser que não.
– E a gente, seu Chicão, que vai fazer? – perguntou Malaquias.
– Nada. Fiquem aqui calmos, no seu canto, que eles não mexerão com
vocês. Deixe eles entrarem de casa a dentro, se servirem do que tiver,
quebrarem os móveis, essas coisas. Se pedirem para Zezé cozinhar alguma
coisa, Zezé cozinha. Entendeu, Zezé?
– Mas, seu Chicão, e esse meu bucho? E se com o medo eu tiver
menino antes do tempo?
– Isso não acontecerá, Zezé, tenho certeza. Mesmo porque é muito
provável que eles escolham outro caminho. Façam o que eu disse e nada de
mal acontecerá.
Malaquias tirou o chapéu de couro, coçou a cabeça, virou-se para
Chicão e arrematou:
– Seja o que Deus quiser. Se eu tivesse uns quatro homens como eu, a
coisa podia ser diferente.
Zezé atalhou a valentia do marido:
– Deixe de besteira, Malaquias. É como seu Chicão disse e acabou-se
a história.
Chicão ficou pensando: “E se eles pedirem para ir para Cajazeiras, o
que posso fazer?” Mas o vaqueiro era responsável, sabia que não podia
deixar a fazenda por causa do gado, principalmente os bezerros novos que
iam aparecer.
Malaquias deu a palavra final:
– Fique sem cuidado, seu Chicão. Vou fazer como o senhor mandou,
tim-tim por tim-tim. Mas vou pedir a Deus que leve essas desgraças para
bem longe daqui. E o senhor, patrão, tenha cuidado com sua vida. O senhor
é obrigado a isso?
– Não, Malaquias; obrigado mesmo não sou. Mas se a gente toda se
encolher, os bandidos vão fazer miséria, você compreende?
Malaquias balançou a cabeça pra baixo e pra cima, concordando.
No cavalo baixeiro, que parecia satisfeito no seu ofício, em passo
ligeiro, macio, confortável, sentiu, de novo, que redescobrira o gosto pela
vida. E foram uns olhos azuis, inocentes, os responsáveis por esse
sentimento diferente, simples e profundo. Engraçado é que a dona deles,
mais menina do que mulher, não sabia ter realizado o milagre de sua
reconciliação com a vida, com a natureza. Um pedaço de estrada, um
juazeiro verde, solitário, os pássaros cantando, o céu azul ofuscante, o
cheiro forte do suor do cavalo, as nuvens brancas, afinal, tudo era novo,
belo como a graça de viver.
Constatava agora, na marcha macia do cavalo, que sentia menos
angústia, menos sofrimento, na saudade de Ana. Quando chegava à
fazenda, mesmo muitos meses depois da sua morte, a presença de Ana, na
casa que arrumara e criara com suas mãos, era um sentimento palpável,
forte, doloroso. Dessa vez, lembrava-se dela em tudo que via e tocava (não
entrara no quarto de dormir), mas de modo diferente, sem angústia, sem
dor, sem agonia. Era efeito da luta próxima com os cangaceiros, ou era a
ilusão de que Ilina aparecera na sua vida para integrá-lo na realidade?
Ria do fato de estar enamorado por alguém que não sabia de sua
existência.
Distraía-se olhando, nos dois lados da estrada, a terra ora castanha, ora
vermelha, ora cinzenta, as feridas abertas no chão dilacerado, parecendo
doente, condenada a morrer como um ser abandonado pelo destino. As
árvores mirradas, secas, mostrando os galhos nus, como braços decepados,
nem sombra podiam oferecer. Misturavam-se com as pedras inumeráveis as
cercas irregulares, tortas, marcando a posse de pedaços do deserto. As aves
retardatárias, em vôos isolados, pareciam sustar, por um instante, o ato final
da morte do dia.
Lá estava, adiante, sua terra, sua cidade, que só agora, na hora do
perigo, percebia que amava. Via as casas humildes, aconchegadas pela
pobreza, o colégio no alto, a lâmina azul-escura da água do Açude Grande
e, mais próximas, como braços levantados para o céu distante, as duas
torres da Igreja Matriz.
Nove
PARA SABINO, aquele era o dia mais importante de sua vida. A longa espera
teria, afinal, a recompensa desejada. Afora meia dúzia de camaradas, que
entraram no bando há pouco tempo, podia confiar nos demais, na
experiência, na destreza, na raça com que brigavam. O bote, armado com
vagar e obstinação, tinha tudo para dar certo.
Tomava corpo a oportunidade de afirmar-se como chefe, temido e
respeitado como Virgolino Ferreira, o Lampião. Se não tinha a lábia do
Capitão, pois mal desenhava o nome, iria, agora, mostrar seu poder de fogo,
seu poder de matar, de comandar cabras valentes.
Libertava-se, com aquele assalto, do domínio de Lampião, que não
deixava ninguém perto dele crescer ou ficar rico. O homem ficava com
tudo. Não era menino: percebera, de há muito, que o Capitão tinha receio
de atacar Cajazeiras, alegando, quando se falava no assunto, que era de boa
regra não atacar cidade onde a igreja tivesse duas torres.
Não dormira direito na noite passada, lembrando-se que ia ficar
famoso em todo o sertão da Paraíba, do Ceará, de Pernambuco e do Rio
Grande do Norte. Seriam obrigados a reconhecer, mesmo que não
gostassem, que Sabino Gomes era tão importante como Virgolino Ferreira
da Silva; que deixava um rasto de sangue por onde passava; que tinha feito
uma coisa que Lampião não tentara: dominar Cajazeiras. Uma cidade
importante, com um bispo, com dois colégios, um comércio movimentado e
uma usina de algodão.
Quem o despertou da modorra foi o negro Bastião, encarregado da
cozinha e rezador. Tinham acertado as rezas para aquela madrugada. Só um
homem de corpo fechado podia escapar das armadilhas e dos cercos,
desaparecendo no meio da fumaça e do pipocar dos tiros. Era assim que
fazia o Capitão.
Andaram uns cinquenta passos e pararam numa pequena clareira,
cercada de juremas pretas. Bastião trazia um barrete vermelho enterrado na
cabeça, um bastão de penitente na mão direita e, na esquerda, uma bacia
com água que ninguém havia tocado. O sol ainda não nascera, mas os
passarinhos mais inquietos, despertados pelo cerimonial de Bastião, já se
agitavam nos galhos mais altos das árvores. Bastião, magro, grande,
imponente, fez um sinal para Sabino ajoelhar-se, mas este não lhe
obedeceu:
– Vamo fazê tudo de pé, mesmo.
Bastião começou pelo Credo. Pediu a Sabino para repetir as palavras
que ia articulando. Quando chegou na passagem que fala em “morto e
sepultado”, mudou para o seguinte: “GUARDADO E FECHADO SEJA O
MEU CORPO PARA TODOS OS MEUS INIMIGOS, ENCARNADOS
OU DESENCARNADOS”.
Bastião levantou a vara e a cabeça para o alto, gritando na fria manhã
que começava: “FECHA-TE ÓRGÃO PELO VAJUCÁ, PRA TODOS OS
MALES QUE NO MUNDO HÁ. FECHA-TE CORPO, GUARDA-TE
IRMÃO NA SANTA COVA DE SALOMÃO”.
Depois, o negro tirou água da bacia e aspergiu a cabeça descoberta de
Sabino, rezando, contrito, com unção, a oração de São Cipriano.
Sabino saiu do cerimonial mais animado e mais tranquilo. Era assim
que fazia o Capitão. Estava de corpo fechado e ia mostrar sua força.
Não tinha motivos para desânimo. É verdade que seu grupo poderia
estar mais forte se Jararaca, seu rival na amizade com o chefe, não tivesse
soltado sua peçonha. Pois o safado tinha dito ao Capitão que ele, Sabino,
estava querendo abafar o nome do Chefe. Isso começaria a acontecer se o
ataque a Cajazeiras fosse bem sucedido. Ora, o Capitão, curando-se de
ferimento numa perna, ia passar algum tempo parado. Por isso, a pedido
dele, Sabino, ia emprestar mais homens para reforçar seu bando. Pois não é
que, dois dias antes de deixar o município de Lavras, Lampião desistira da
ideia! Tinha certeza de que por ali andara o dedo podre de Jararaca. O
Capitão tinha umas fraquezas. Uma delas era acreditar no cumpadre
Jararaca, cabra vagabundo e ladrão.
Conseguira, à última hora, arranjar uns cinco rapazes com experiência
de fogo, que Manoel Laurindo estava a treinar.
Precisava, mesmo, fechar o corpo. Havia alguma coisa em Cajazeiras
que contrariava seus planos. Há meses passados, o safado do índio
Raimundo Anastácio tinha se negado a falar com ele. Pior: quando três
cabras bons foram escolhidos para dar uma lição no índio, ele acabou com
um deles, Lua Nova, cabra leal, valente. Não fazia quinze dias sucedeu o
mistério do desaparecimento de Valdevino, na fazenda de Manoel Serafim,
este homem incapaz de matar uma mosca. Na semana passada, mandaram
Cobra Verde falar com o compadre Marcolino e o homem não voltara até
hoje, ninguém sabendo do seu destino. Era um azar dos infernos. Por isso
ficou mais aliviado com as rezas do negro Bastião. Por essas e outras,
adiara o ataque a Cajazeiras para hoje, 28 de setembro. O dia é o homem
quem faz, dizia o Capitão Virgolino. Diabo! Por que vivia a lembrar,
sempre, o nome do homem? Precisava acabar com essa mania. Daquele dia
em diante o sertão ia conhecer um novo dono: Sabino Gomes. E a cidade
dos padres e beatas ia ajoelhar-se aos seus pés.
O pessoal estava em frente duma casa arruinada do Major Torquato,
que conhecera próspero em outros tempos. Pensando bem, percebeu que
não havia motivo para desanimar; havia gente boa e experimentada como
Laurindo, Bem-te-vi, Marcelino, Rio Preto, Dois de Ouro, Baraúna,
Picapau, Namorado, Formiga, Maçarico, Jurema e outros em quem podia
confiar. Havia, também, um pessoal novo (uns seis ou sete) que não sabia o
que era tiroteio. Com esses era preciso conversar. Trepou-se no último
degrau da escadinha que dava para o alpendre e ficou, algum tempo,
esperando que todos sentissem sua presença. Sua figura era impressionante,
apesar da baixa estatura. Chapéu de couro igual ao de Lampião, mal
escondendo a cabeça grande, os cabelos acobreados, abundantes e duros,
vestia roupa de brim cáqui, parecida com a farda da Policia; o peito largo
era atravessado por duas cartucheiras de ombro, com pentes de cinco balas;
dois embornais, carregados, aumentavam sua largura; pendurados no
pescoço, nas cartucheiras, no cinto-cartucheira, medalhas de Nossa
Senhora, do Coração de Jesus, do Padre Cícero, santinhos, escapulários
contendo rezas fortes e medalhas de ouro ou douradas que cintilavam ao
sol; tinha na mão direita um mosquetão de cano cortado e, enfiadas na
cartucheira, uma faca enorme, de uns 60 centímetros, e outra, menor; o
olhar duro, enviesado, marcava, com um traço malévolo, a cara sinistra do
homem acostumado à vida dura do cangaço. Sua voz era rouca, mas forte.
O silêncio do sol a pino, com a natureza amortalhada de luz, aumentava o
som grave das palavras diretas, firmes, densas. Às vezes, numa pausa,
parecia sorrir, mordendo os lábios carnudos; engano: era o esgar do gato do
mato ao arriscar um salto no meio do perigo. Não impunha, ainda, o
respeito e a confiança do outro, do Chefe; mas despertava o terror em
muitos que podiam dar testemunho de sua fria crueldade. Assim era Sabino
Gomes. Disse aos cabras que olhavam para o seu lado:
– Esta tarde vamos entrar em Cajazeiras. Tou avisado que o
destacamento conta com sete soldados, um Cabo, um Sargento e um
Tenente novo, um rapazola, que é o Delegado. Dois dos nossos estiveram lá
e confirmaram isso. São dez macacos contra nós, 23 homens, sem contar o
pessoal que vai ficar tomando conta dos animais. Dizem que três ou quatro
paisanos vão ajudar a Polícia. Morei, ali, uns dois anos, e sei que o povo de
Cajazeiras não sabe usar uma arma, a não ser uma espingarda de espoleta
para caçar arribaçã. O único tiroteio que assisti, na cidade, foi um dia de
sábado de aleluia. Colocavam o “Judas”, na véspera, num pau bem alto,
todo vestido, com sapato e chapéu. Quando o sino da igreja, rompendo a
madrugada, começou a badalar, o tiro comeu. Era pedaço de pano pra todo
lado, sujo de encarnado, pois o “Judas”, o boneco, tinha como bucho um
fato de carneiro cheio de anilina vermelha.
Enquanto dizia essas coisas, se lembrava do conselho do Capitão
Virgolino: “Atacar fazendas e povoados é uma coisa; atacar uma cidade
pode trazer muitas surpresas.” Reagiu à recordação incômoda e prosseguiu:
– Dois de Ouro conversou, faz alguns dias, na feira da cidade, com
gente de todo tipo. Chegou a falar com o Cabo e este não escondeu o medo
dos macacos diante de um ataque dos cangaceiros. O Delegado não tem
experiência, nunca tomou parte numa briga. Secou a goela pedindo reforço,
mas o governo não mandou um cartucho ou um só mata-cachorro para
reforçar o destacamento. Mesmo assim, não vamos dar um passeio. Vamos
lutar, vamos brigar de verdade, sabendo que a vantagem está toda com a
gente. Quando limpar a rua, a gente toma conta do comércio, escolhe boas
mercadorias e arranca o dinheiro dos ricos e as jóias das mulheres. Quando
a gente chegar mais perto, vou dar as instruções derradeiras.
Dizia aquilo antegozando o prazer de uma vingança alimentada há
muito tempo na solidão da vida errante de cangaceiro. Ainda não tinha
entrado no cangaço, quando cinco macacos de Cajazeiras lhe pegaram,
numa noite escura, vindo da “zona”, e lhe deram uma surra dessas que,
quando não matam, deixam o cristão aleijado. Se não fosse o compadre
Marcolino ter arranjado um doutor para tratar dos seus ferimentos e das
costelas quebradas, ele hoje devia estar inutilizado. Tudo por causa de um
namoro besta com a mulher de um mata-cachorro chamado Lourenço. Ia
pegar os macacos, amarrá-los, surrá-los e depois sangrá-los um a um,
devagar, o sangue rebentando das goelas abertas. Ia fazer o tenente louro
caminhar nu, pelas ruas da cidade, com os bagos balançando e, depois,
cortava-os e dava aos cachorros. Raimundo Anastácio, o traidor, ia pagar o
velho e o novo que lhe devia. Devia estar por detrás dessas desgraças que
estavam acontecendo. Uma coisa o incomodava: por que o compadre
Marcolino não lhe dera o acertado aviso final? Onde andava Cobra Verde
que não voltara da viagem a Cajazeiras, e de quem ninguém sabia o
paradeiro? Daí a pouco ia apurar tudo isso.
Chamou o negro Bastião e perguntou as horas.
O negro tirou um relógio enorme do bolso e proclamou, com uma voz
um pouco fina para o seu tamanho:
– 11 hora, meu chefe!
Gritou para o bando:
– Vamos fazer ponto para o almoço na fazenda de Leopoldo Batista.
Nada de alteração. Come-se, e ganha os paus.
Com a boa notícia da hora da comida, Namorado, voz entoada, clara,
cantou, acompanhado pelos companheiros:
As moças de Cajazeira
Não querem mais trabalhar,
Passam o dia na janela
Pra ver Sabino passar.
Olê, muié rendeira,
Olê, muié rendá,
Tu me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a namorar.
***
Romeu Cruz tinha grande amizade pelo Tenente. Não era somente pelo
favor que dele recebera: a amizade se baseava, também, na admiração pela
sua conduta à frente da Delegacia durante esses últimos seis meses.
Naquela noite, de luta violenta e desigual, ele mostrara ser um homem de
fibra, corajoso, firme. Achava, entretanto, que seu amigo já estava pecando
por excessiva prudência. Se eles tivessem aproveitado a correria dos
cangaceiros ao deixarem a igrejinha e se meterem na rua da Tamarineira,
talvez, naquela hora, tudo estivesse resolvido. Seu amigo temera que a
manobra, muito apressada, escondesse a astúcia de uma emboscada.
Consolava-se em saber que, afora dois ou três feridos, o pessoal estava
inteiro. E o fato era motivo de satisfação.
Já se preparava para ir ao encontro do Tenente, quando viu, do seu
posto, e ouviu, troca de tiros na altura da casa do Major Epifânio Sobreira,
que ficava perto do balde do Açude Grande. Chamou seus amigos
cearenses, Pedro e Paulo Lucas, e saíram em socorro do Major. No
caminho, lembrara que não tinha avisado ao Delegado. Esperava não
demorar. Tomou uma viela, acompanhado de seus amigos, contornou o
muro do grande quintal da casa, e alcançaram o balde do açude. Os
cangaceiros continuavam a atirar para dentro de casa, mas o Major
Sobreirinha e outra pessoa respondiam aos tiros com firmeza. A uns
sessenta passos da casa, Romeu e seus amigos começaram a atirar. Os
cabras, desnorteados, reagiram, disparando na sua direção. Depois,
afastaram-se correndo.
Ao avistar-se com o Tenente, narrou o incidente. Olhou em derredor e
não viu medo na cara dos homens que estavam ao lado do Delegado.
Animou-se. Notou a falta do “índio” e perguntou:
– Cadê Raimundo Anastácio?
Apontando o fim da rua, o Tenente Elino lhe disse:
– Neste momento está na casa de seu João Bichara. Fez-nos um susto
danado. Parecia estar caminhando para a morte...
– Por que o senhor deixou, Tenente? É uma loucura. Se há uma pessoa
que eles querem pegar é Raimundo.
– Quando cheguei aqui, ele já estava no meio da rua. Não adiantaram
as ponderações do Sargento Rangel, nem as minhas. Acha que dona
Dorinha está nas mãos dos cangaceiros.
Daí a pouco chegaram os soldados Ricarte e Valões, com mais
munição, tendo sido feita sua distribuição. O Tenente perguntou por Manoel
Santana.
– O rapaz foi ferido?
O soldado Ricarte esclareceu:
– Manoel Santana viu dois cangaceiros tentando entrar na casa do
Coronel Matias de Alencar. Apesar dos nossos conselhos, e de lembrar as
ordens recebidas, tomou o mosquetão e seguiu naquela direção.
Estava afrouxando o comando, ruminou o Oficial para ele mesmo.
Romeu, há pouco; Raimundo Anastácio, e, agora, Manoel Santana,
justamente na hora decisiva para atacar os cangaceiros! Felizmente enviara
alguns homens para a casa do Doutor Draenner, das Secas, que ficava perto
da Usina da Luz e quase defronte da casa de Raimundo Anastácio.
Nessa ocasião, vindo da rua Grande, em trajes civis, com o andar
desajeitado de Padre sem batina, lhe apareceu o Padre Gervásio Coelho,
com um rifle na mão e uma cartucheira na cintura.
– Venho me juntar ao senhor.
Era difícil e delicado recusar o oferecimento do vigário. Fez um
arrodeio:
– Padre Gervásio, agradeço de coração seu oferecimento; mas um dos
nossos pontos fracos é a defesa da casa do Prefeito, que fica em frente a do
senhor, não é verdade? Não posso tirar ninguém de lá; gostaria que o
senhor, mesmo da sua casa, reforçasse aquele setor.
O Padre não insistiu, mas falou meio zangado:
– Se é a minha condição de Padre que lhe atrapalha, eu lhe digo que só
sou Padre porque sou homem. Mas o senhor é quem manda. Obedeço.
O Tenente agradeceu e teve a seguinte conversa com os homens que
estavam na porta do Mercado:
– Vamos, desta vez, tomar a ofensiva; vamos atacar. Sabino e seus
cabras estão na casa de Anastácio, que é uma casa pequena, como vocês
sabem. Há um grupo nosso que já começou a atirar da casa do Doutor
Draenner, incluídos dois ou três empregados dele. Se os bandidos
permanecerem ali, nós vamos atacá-los pela frente e pelas traseiras da casa
de Raimundo Anastácio. Cabeça fria e mãos quentes.
Desceram, em marcha lenta, pela rua Sete de Setembro. O tiroteio
entre a casa do Engenheiro e os bandidos enchia a noite com seu estrondo, o
sibilar das balas e as chispas de fogo furando a semi escuridão da noite. Os
bandidos se revezavam nas janelas e alguns, mais afoitos, como Sabino,
atiravam da calçada, pulavam, berravam e entravam, de novo, na casa.
O Tenente Elino viu o esforço desesperado de Raimundo Anastácio,
atirando da casa de seu João Bichara. A hora estava madura. Mandou
Romeu, Ricarte, Valões, Manoel Santana, José Teberges e mais três para as
traseiras da casa do “índio” e os demais iriam com ele, pela frente. Era
agora ou nunca! Nessa ocasião, do lado da Usina da Luz, vinha o estrondo
de estranhos estampidos, com uma cadência impressionante. Parou um
pouco para apurar o que era aquilo. Algum reforço dos municípios
vizinhos? A coisa já demorava uns dez minutos, quando Chicão sorrindo,
no meio da confusão, explicou:
– Não é nada demais. O mecânico que cuida do motor esclareceu que o
estampido resulta da quebra da polia da roda grande do motor, partida ao
meio. Toda vez que a metade da correia bate na parede estronda como um
tiro.
O tiroteio, por sua vez, havia cessado completamente. Fez-se um
silêncio pesado. Romeu disse:
– Parece que não há mais ninguém na casa de Anastácio. Quer que vá
ver, Tenente?
O soldado Misael Pereira, ouvindo a conversa, saiu do meio do pessoal
e, sem consultar ninguém, avançou, em linha reta, atravessando a rua, à
procura dos bandidos. O Tenente, advertido, quis gritar para que parasse,
mas não adiantava mais, pois o soldado já havia alcançado a metade da rua;
nesse instante, vários tiros partidos da casa o alcançaram, levantando,
também, uma onda de poeira em torno dele. Sua arma voou das mãos
desgovernadas e o rapaz ensaiou dois ou três passos pesados, sem direção,
como se estivesse embriagado, desabando sob a fuzilaria dos bandidos.
Refazendo-se da surpresa, responderam ao fogo com veemência, e os
cangaceiros se retraíram mais uma vez. Do lado da Usina da Luz
continuava a partir o som dos estampidos com uma cadência regular e
firme.
Não houve mais nenhuma movimentação por parte dos ocupantes da
casa de Raimundo Anastácio. O Tenente determinou, então, que sob o
comando do Sargento Rangel, metade dos homens se deslocasse para a
traseira da casa. Dentro de cinco minutos, ele atacaria pela frente, com o
pessoal restante, numa ação que, para ele, ia decidir o novo impasse.
Daí a pouco, acenando com um lenço branco, Chicão apareceu na
janela da casa invadida, gritando, com visível satisfação:
– Foram embora! Foram embora!
FIM
J.O.
CÓD. JO: 02254