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"Quando o mundo estiver


unido na busca do
conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e poder,
então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um
novo nível."
CARCARÁ
IVAN BICHARA SOBREIRA

CARCARÁ
ROMANCE

Prefácio de
ANTÔNIO CARLOS VILLAÇA

JOSÉ OLYMPIO EDITORA


RIO DE JANEIRO/1984
Copyright © 1984 by Ivan Bichara Sobreira

Todos os direitos dessa edição reservados à


LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA S.A.
Rua Marquês de Olinda, 12
Rio de Janeiro – República Federativa do Brasil
Printed in Brazil / Impresso no Brasil

Capa de
CYRO

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
__________________________________

Sobreira, Ivan Bichara


S661c Carcará : romance / Ivan Bichara Sobreira. – Rio de Janeiro : J. Olympio, 1984
Indicações biobibliográficas sobre o autor
1. Romance Brasileiro I. Título
CDD – 869.93
84-0824 CDU – 869.0(81)-31
À memória de
JOSÉ
AMÉRICO DE
ALMEIDA.

Para MIRTES
e para os filhos José
Humberto, Ivan, Maria
Lavínia, Jeannine,
George, João Augusto e
Paulo.
“Falo somente por quem falo,
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas.”

JOÃO CABRAL DE MELO NETO,


(do poema “Graciliano Ramos”,
em Terceira feira).
SUMÁRIO

NOTA DA EDITORA (Dados Biobibliográficos do Autor) - CRONOLOGIA

PREFÁCIO

CARCARÁ
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
NOTA DA EDITORA
DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DO AUTOR
CRONOLOGIA

1918 – No dia 24 de maio nasce IVAN BICHARA [SOBREIRA] em


Cajazeiras, na rua Sete de Setembro, filho de João Bichara e de
Hermenegilda Bichara Sobreira.
1924-1925 – Estuda primeiras letras na escola particular de dona Elisa
e no Instituto São Luís.
1926 – Seu pai traz para Cajazeiras o primeiro automóvel, um Ford de
bigode. A casa em que nasceu o escritor se transforma no Cinema Moderno,
de propriedade do seu pai. Nesse ano, Sabino Gomes, com um grupo de 25
cangaceiros, ataca a cidade. Ouviu o tiroteio embaixo da cama, no meio de
outros meninos.
1929 – Faz exame de admissão para o curso ginasial no Colégio Padre
Rolim.
1930 – O Presidente João Pessoa passa por Cajazeiras. Diante dos
alunos formados, detém-se de frente para o escritor e lhe pergunta, tocando
no seu lenço vermelho: “Você é mesmo liberal?” O menino Ivan ficou
engasgado e nada respondeu.
1932 – Interrompe os estudos (o Colégio suspende as aulas em virtude
da seca) e vai trabalhar no hospital da IFOCS, em São Gonçalo, sob as
ordens do Dr. Otacílio Jurema. Ganhava 800 réis de diária.
1934 – Volta ao Colégio Padre Rolim, onde estuda e ensina algumas
matérias do curso elementar.
1936 – Vai morar em João Pessoa. Trabalha no jornal A Imprensa, a
convite do Padre Carlos Coelho, como revisor, repórter e redator. Matricula-
se no Liceu Paraibano, onde completa o curso secundário e faz, depois, o
curso Pré-Jurídico.
1937 – Obtém o 1º lugar, na Paraíba, no concurso público para o I.A.P.
dos Industriários.
1941 – Exames vestibulares na Faculdade de Direito de Alagoas, onde
cursa o primeiro ano, transferindo-se para a faculdade do Recife.
1943 – Casa-se com dona Mirtes de Almeida Bichara Sobreira.
1945 – Diploma-se em Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Escola do Recife. Toma parte em Recife e João Pessoa no movimento pela
redemocratização do País. Escolhido pela turma para falar na homenagem a
Demócrito de Sousa Filho, vitima da polícia num comício da Praça do
Diário de Pernambuco.
1946 – Elege-se deputado estadual pela UDN.
1950 – Reelegeu-se para a Assembléia Legislativa tendo sido um dos
constituintes de 1947.
1950 – Dirigiu o jornal O Norte.
1951 – Ensinou Literatura Portuguesa na Faculdade de Filosofia e
Letras. Professor catedrático de Direito da Paraíba, de que foi um dos
fundadores.
1955 – Elegeu-se deputado federal pela legenda do Partido Libertador.
Na legislatura foi vice-líder da Minoria (UDN-PL).
1961 – Integrou o serviço jurídico do IAPI.
1964 – Membro do Conselho Superior das Caixas Econômicas
Federais.
1969 – Secretário Geral e Consultor Jurídico da Associação Comercial
do Rio de Janeiro.
1971 – Publicou um ensaio O Romance de José Lins do Rego (A
União Editora), reeditado em 1978 pela UFPB.
1975 – Eleito pela Assembléia Legislativa governador do Estado da
Paraíba.
1978 – Candidatou-se ao Senado (Arena), não logrando êxito na
eleição.
1980 – Publicou José Vieira e os Caminhos do seu Romance. Tem, em
preparo, o romance Anos de Servidão sobre a Ditadura de 1945, no Recife.
Mora no Rio e tem um pequeno sitio em Itaipava, construído em 1971
onde escreveu a maior parte do romance Carcará.
É membro da Academia Paraibana de Letras e da Associação
Paraibana de Imprensa.
Rio de Janeiro, setembro de 1984.
OBRAS DO AUTOR
ENSAIOS LITERÁRIOS
O romance de José Lins do Rego. João Pessoa, A União Editora, 1971; 2ª
edição, João Pessoa, Editora Universitária/UFPB, 1978.
José Vieira e os caminhos do seu romance. João Pessoa, Gráfica da UFPB,
1978.

PALESTRAS, DISCURSOS, TESES


Função criadora da critica literária (Estudo apresentado no IV Congresso
Nacional de Crítica Literária em Campina Grande, 1977) João Pessoa, A
União Editora, s/d.
Primeiros pronunciamentos (Discursos e palestras). João Pessoa, A União
Editora, s/d.
Morte, tua vitória onde está? (Discurso no centenário de nascimento de
João Pessoa). João Pessoa, A União Editora, 1978.
Pio XII, o pontífice da paz (Tese apresentada no II Congresso Internacional
Luso-Hispano-Filipino-Brasileiro, em São Paulo, 1952). Separata da
gráfica do jornal O Norte, João Pessoa, s/d.
Caminhos da critica (Tristão de Athayde e Álvaro Lins). João Pessoa.
Separata da gráfica do jornal O Norte, João Pessoa, s/d.
Em preparo
Tempo de servidão (romance) (Título provisório).
PREFÁCIO

ANTONIO CARLOS VILLAÇA

ESTE É UM ROMANCE DE ESCRITOR VIGOROSO. Ivan Bichara Sobreira já nos


habituara aos seus ensaios penetrantes, bem escritos, modernos, como o que
dedicou a José Lins do Rego. Recebeu ele grande influência de José
Américo de Almeida, a cuja memória, aliás, consagra o seu livro. Ensaísta
conhecido, homem público de renome, íntimo da literatura, deu-nos agora
um romance de grandes proporções, um romance ambicioso. Mas não é o
romance de um ensaísta. O seu estilo é adequado ao tema. Um excelente,
um esplêndido estilo literário. E aqui está, palpitante, o Nordeste, a força
telúrica do Nordeste, aquele mundo agreste de violência, sofrimento,
provação, esperança, conflitos. Ivan Bichara conhece admiravelmente o seu
Nordeste. E nos traz um romance nordestino que o consagra. Carcará é
toda a intensidade do Nordeste, captada, recriada por um autêntico escritor,
um romancista maduro, que daria enorme prazer a José Américo, se ele
pudesse ler. O Vento Nordeste (o título de Permínio Asfora) sopra nestas
páginas vivas, ardentes, verdadeiras, de um homem público, que, como
Ernani Sátiro ou José Sarney, é um ficcionista de amplos recursos,
simultaneamente. Livro que exprime uma realidade social e humana,
habilmente.
Estou a vê-lo a presidir ao IV Congresso Nacional de Crítica Literária,
em Campina Grande, setembro de 1977, como Governador da Paraíba. O
teatro Severino Cabral, repleto. Gente moça. Intelectuais de todo o Brasil,
até Fernando Namora, vindo de Portugal. E Ivan Bichara ali entre os
intelectuais como um companheiro, como um confrade, fiel ao seu destino
de escritor literário. Falou co segurança e dignidade. E exprimiu
nobremente, sobriamente, o seu amor à palavra, a sua convicção, a sua
certeza de que o intelectual e o homem público nele, de fato, constituíram
uma unidade superior.
A Paraíba de Augusto dos Anjos, de José Américo de Almeida e de
José Lins do Rego revive nele.

Rio de Janeiro, setembro de 1984


CARCARÁ

A narrativa se reporta ao assalto do bando de cangaceiros


chefiados por Sabino Gomes a Cajazeiras, PB, em 1926.
Qualquer semelhança com pessoas da vida real terá sido,
entretanto, mera coincidência.
Depois de peneirar, um instante, no azul,
desceu como uma flecha, as asas meio fechadas,
até o ponto de visitar a caça escolhida,
e precisar o bote.
A serpente ainda ensaiou uma volta, tentando
defender-se, mas as garras de aço a
imobilizaram, e as unhas recurvadas e fortes,
completaram o golpe certeiro,
esmagando-lhe a cabeça.
Rápido, levantando a presa, alçou vôo na direção
da grande árvore solitária. Construíra,
ali, seu ninho desajeitado, disforme, com
gravetos e restos de raízes úmidas da beira
do rio seco, distante o mais possível da passagem
habitual do homem. Seu pior inimigo era
este, com sua língua de fogo, longa,
ligeira e traiçoeira.
Para viver, era preciso caçar. Sentia prazer
no momento do ataque, na surpresa, no medo
da vítima e, principalmente, no gosto de
sangue que lhe molhava o bico e as ventas
no ato de matar.
Era seu destino.
Um

HÁ SEIS MESES passados, tarde da noite, seu sono fora interrompido por
batidas secas na janela e, depois, na porta da frente.
Avivou o candeeiro de querosene, logo que se levantou da rede; vestiu
as calças largas, enfiando o camisão dentro delas e, já bem desperto,
perguntou:
– Quem é?
Alguém com a voz abafada, mas audível, esclareceu:
– É Laurindo, Anastácio.
A cabeça ficou dando voltas: Laurindo... Laurindo... ah! Era um cabra
de Lampião. Aquilo cheirava a encrenca. E se dessem notícia de um
cangaceiro entrando em sua casa àquela hora da noite? Devia abrir?
Resolveu perguntar:
– Que é que o amigo quer?
Laurindo foi incisivo, mas suave:
– Sou de paz. Preciso falar com você. É da parte de Sabino, do tenente
Sabino Gomes. Conversa ligeira.
– Você está só?
Vira, pela fresta da janela, que havia dois vultos, pelo menos. O cabra
não mentiu:
– Tou eu e Bem-te-vi, companheiro. Gente minha.
Quando abriu a porta, os dois homens entraram com rapidez e o
seguraram, tomando o candeeiro que erguera com a mão esquerda. Diante
do ar doméstico e da serenidade de Raimundo Anastácio, ficaram sem jeito,
largando-o. Laurindo quase se desculpou:
– Não é nada, seu Raimundo; o Chefe quer falar com você, hoje. Está
esperando. Arrume-se para viajar.
Raimundo, calmo, indagou:
– O Chefe? Quem é o Chefe? É o Capitão Virgolino?
– Não, homem. O Chefe é o Tenente Sabino, que tem, como o Capitão,
patente oficial dada pelo meu Padim Pade Cisso. A gente vai agora e bem
cedinho você está de volta.
– Onde é que ele está? – perguntou Anastácio.
– Você é besta, homem? Porque é que vamos lhe dizer onde o homem
está? Deixe de conversa e venha com a gente.
Bem-te-vi, até então calado, mas segurando, por hábito, o cabo longo
do punhal, que alisava com o polegar da mão direita, dirigiu-se a Laurindo:
– Tá ficando tarde. Já devia estar voltando.
Raimundo tinha receio que a mulher acordasse. A sorte é que Dorinha
tinha o um sono de pedra. Se se levantasse, ia fazer uma confusão danada.
Para sair da confusão era preciso arriscar. E ponderou, com tranquilidade:
– Hoje não pode ser. Amanhã sim.
– Por que não agora?
– Quero pedir a vocês que falem mais baixo. É que o Cabo Zé
Gonçalves, primo e irmão de criação da minha mulher, está dormindo no
quarto dos fundos do quintal. Se ele me pegar encilhando o animal a essa
hora, vai fazer perguntas. É desconfiado como os seiscentos diabos.
– Podemos acabar com ele – alvitrou Bem-te-vi.
Laurindo olhou com ar de espanto para o lado do seu companheiro e
não disse nada. Raimundo aproveitou o momento da dúvida e falou, como
coisa assentada:
– Vocês me esperam, amanhã, na Rodagem, e de lá a gente vai junto.
Tenho negócios para as bandas de Alagoinha e Baixio; ninguém vai
estranhar mais uma viagem minha. Agora, sair nas barbas de Cabo Zé, que
é esperto, me parece arriscado tanto para mim como para vocês.
Laurindo demorou um pouco, mas, afinal, concordou:
– Amanhã, não. Depois de amanhã, quinta-feira. Espero você no sitio
Remédios. Coisa certa. O Chefe não brinca.
Raimundo Anastácio se fez de distraído:
– É o Capitão Virgolino Ferreira?
– Não, homem – esclareceu, ríspido, o cangaceiro Laurindo. – O
Capitão Virgolino não está nessa. O Chefe do Grupo é o tenente Sabino,
entendeu?
– Entendi. Pois digam ao Tenente Sabino que quinta-feira vou falar
com ele,
Laurindo recomendou:
– Essa conversa fica entre nós, ouviu?
– Não sou menino. Passei minha vida na vida que vocês estão
começando agora.
– Depois de amanhã no sítio Remédios.
– Certo, Laurindo.
– Nem sua mulher precisa saber disso.
– Fique descansado. Confie na minha experiência.
Laurindo foi saindo, parou na soleira da porta, ia dizer alguma coisa,
mas não disse. O olhar duro de gavião fixou-se nos olhos de Raimundo
Anastácio, como se fosse uma espécie de última advertência. Raimundo
sabia que estava falando com um homem frio, decidido, acostumado a
matar. Apesar de estar vestido como um matuto, não disfarçava, de forma
nenhuma, os gestos medidos e cautelosos do caçador. Ouviu, distintamente,
ainda na calçada de sua casa, Bem-te-vi, o cangaceiro mais novo, dizer ao
outro:
– Não confio nesse sujeito. Ou ele é muito esperto, ou já está meio
besta. Foi preciso você dizer duas vezes que o Chefe era Sabino e não o
Capitão. Sei não...
Como ia sair dessa? Estava em papos de aranha. O perigo imediato era
os bandidos descobrirem sua mentira sobre o Cabo Zé Gonçalves, que não
dormia no fundo do quintal e só era parente de sua mulher por parte de
Adão. Fechou a porta com um suspiro de alívio. Entrou no quarto onde a
mulher dormia, apanhou o rifle 44, papo amarelo, e ficou na porta da
cozinha à espera. Passou, ali, até ouvir, lá pelas cinco horas da madrugada,
os galos começarem a cantar, desanimadamente.
Pensou em contar a visita ao Delegado de então, Sargento Inaldo
Pedrosa, mas não o fez: ia aumentar a desconfiança da cidade contra a sua
pessoa e comprar, para toda a vida, o ódio de Sabino. Decisão que lhe
parecera menos ruim: não ir ao encontro marcado com Sabino e não falar
no assunto com ninguém.

Os cangaceiros continuaram de forma intermitente, realizando


pequenos assaltos nas fazendas e povoações. O Sargento Pedrosa, vermelho
e atrabiliário, fora substituído pelo Tenente Elino Fernando. Ouvira dizer
que era um homem educado e calmo. Boas qualidades para um oficial
residente na Capital; no sertão brabo, o posto reclamava o contrário: um
homem duro, valente, com experiência de luta.
Quanto a ele, Raimundo Anastácio, a posição era inalterada, pois era
objeto de desconfiança de algumas pessoas da cidade e, ainda, mal visto
pelos bandoleiros...
Romeu Menandro Cruz, seu amigo, foi quem lhe falou, primeiro, sobre
o novo Delegado, cobrindo-o de elogios. Um dia, levou-o à presença do
Tenente Elino. Conversaram bastante, falando Raimundo do tempo em que
estivera no cangaço. Aproveitou para queixar-se de ter sido durante muito
tempo bode expiatório de tudo o que era autoridade policial que passava
pela cidade. O Tenente repetiu a pergunta:
– Você conheceu Lampião?
– Sim, senhor. Vi Lampião muitas vezes, mas nunca pertenci ao bando
dele.
– Ele é valente, seu Raimundo?
– É, Tenente. É muito esperto, muito matreiro, dá a alma por uma boa
fuga, mas é cabra valente, destemido, perigoso.
– Acha que ele está por perto? E que é capaz de assaltar a cidade?
– Pode ser, Tenente; mas é homem cauteloso, esperto, não se metendo
em coisas complicadas, difíceis, incertas.

VIU, LOGO, que o Tenente Elino Fernando era um homem justo, quando
ficou ao lado de Romeu e Enéas Cruz, expulsos de sua propriedade pelos
cabras do coronel Matias Alencar. Um homem justo e forte, também, pois
era preciso ter peito para desalojar os invasores e assegurar a posse dos
irmãos, baseado num papel assinado pelo Doutor Juiz de Direito. Quantas
ordens desse tipo não se perderam no mundo!
Sabendo que o destacamento policial era muito reduzido, quando
ouviu falar que o Delegado e dois soldados iam mandar cumprir a ordem do
Juiz, foi à Delegacia oferecer-se para acompanhar o Tenente alourado que,
ou parecia não ter medo de nada ou era inocente.
O Delegado agradeceu com satisfação, seu oferecimento, mas explicou
que, por detrás dele, estava toda a Polícia, o Governo do Estado e a Justiça
Togada.
Perguntou ao Tenente:
– Por que a Justiça Togada, como o senhor chama, não resolve, ela
mesma, esse problema? Ou o Presidente do Estado?
O Tenente lhe explicou, então, o seguinte:
– Eu sou, no caso, o instrumento tanto do Governo como da Justiça.
– Entendo, seu Tenente, o que o senhor quer dizer, mas há muita gente
que não tem medo dessas “ordens”, mata e ganha os paus, confiada em que
“Deus é grande, mas o mato é maior”.
– Isso, Raimundo, serve para quem não tem o que perder; não é o caso
do coronel Matias, dono de propriedades espalhadas pelo Ceará e pela
Paraíba.
E não é que o Tenente tinha razão? Foi, resolveu o caso sem um tiro,
sem um grito, e voltou com a mesma tranquilidade, achando que não fizera
nada de mais.
Agora, diante da ameaça dos cangaceiros, não havia ninguém para
proteger as suas costas, Governo, Presidente do Estado, Comandante da
Polícia, Justiça Togada. Estava só. Não ia dizer isso a ninguém, mas tinha
pena do rapaz. Negaram-lhe tudo da Paraíba: um soldado a mais, munição,
nada. Nem promessa. E quem vinha contra ele não era um coronel que tinha
terras, gado, mulher, filhos a perder. Era um grupo de cangaceiros chefiados
por um doido, um destemperado, uma praga com o nome de Sabino Gomes.
Foi Romeu Cruz quem lhe falou, primeiro, sobre a necessidade de
juntar alguns amigos para ajudarem o Delegado na defesa da cidade. Não
morria de amores pelos “macacos”, de quem havia recebido, a vida toda,
mesmo depois de regenerar-se, cumprir pena e tornar-se um cidadão pacato,
o tratamento mais injusto. Quando havia desconfiança da presença de
cangaceiros nas imediações, ou quando uma fazenda era assaltada por
bandidos, era ele invariavelmente preso como “suspeito”. Pensara, por isso,
em ir embora de Cajazeiras. Mas Dorinha, sua mulher, aconselhava com
segurança: “Se aqui, onde você mora há mais de cinco anos, lhe tratam
assim, imagine numa terra nova, estranha; aqui nós temos alguns amigos,
pobres, como nós, mas que sabem ser você um homem decente, um homem
direito.”
Um dia, já cansado de ser levado para o xadrez como bode expiatório
de Sargentos e Delegados, foi à presença do Juiz de Direito, Doutor Victor
Jurema, na companhia do filho deste, Doutor Otacílio Jurema. O Doutor
Juiz ouviu sua história, inquieto, afobado, mandando todo mundo pros
infernos (“Vão pros infernos, viu?”), não lhe tendo prometido nada. Mas a
verdade é que, desse dia em diante, não foi mais preso “por medida de
precaução”.
Agora (o mundo dá muitas voltas!), estava ao lado do Tenente para
defender, com armas na mão, a cidade contra a invasão dos cangaceiros.
Engraçado: nunca dera muita atenção à boataria que corria,
frequentemente, fechando o comércio, acabando as feiras, assustando o
povo, deixando-o inquieto e infeliz. Tinha que se aliar ao Tenente, não por
amor à cidade ou ódio aos cangaceiros, mas por uma questão de
sobrevivência: Sabino não perdoaria, nunca, ao fato de ter faltado ao seu
chamado.

Realizavam-se, na cidade, as “missões” promovidas pelos


franciscanos. Percebeu, logo, o motivo por que Dorinha, sua mulher, o
arrastava, toda noite, para as pregações. Um frade de olhos de fogo
incendiava os corações adormecidos. Seus gritos dobravam a multidão,
fazendo-a comover-se, chorar, bradar como um ser vivo, ondulante, vasto,
sacudido por emoções estranhas e dolorosas. O frade falava no pecado
como uma coisa viva, sensível, que combatia com palavras ardentes. “NÃO
MATARÁS”, gritava o irmão com voz trovejante e o povo repetia o grito
que o vento da noite erguia para o céu: “NÃO MATARÁS!” Dorinha o
cutucou algumas vezes e, ao fim, já estava gritando com os outros, sem
constrangimento: “NÃO MATARÁS!”, “NÃO MATARÁS!”, “NÃO
MATARÁS!”
Na volta para casa, impressionado pelo espetáculo, perguntava à
mulher:
– E o que já aconteceu? E quem matou para não morrer?
– O que vale, agora, é a intenção de não matar mais, de reconhecer que
a vida pertence a Deus.
Raimundo Anastácio insistia:
– O frade falou em remorsos, no peso da consciência, no desassossego
do coração. Não sinto nada disso, para falar a verdade. Será que nunca serei
um bom cristão?
A mulher sofria ao ver que as palavras do franciscano não tinham
tocado o coração do companheiro. Explicava:
– Tudo depende de arrepender-se, com firmeza, dos atos praticados.
– Mas, Dorinha, não me arrependo dos cabras ou macacos que matei
para eles não me matarem. Me lembro, realmente, daquele caso que já lhe
contei: a morte de um rapaz da minha idade, ou, talvez, mais novo do que
eu. Estávamos quase em campo raso, nós dois, depois de trocarmos um
bocado de tiros. Duma hora para outra, minha munição se acabou e a dele
também. Ficamos olhando um para o outro; então corri pra cima do moço e
lhe meti a faca comprida nos peitos, lá nele. Tive pena na ocasião, e,
quando me lembrava dos olhos espantados do rapaz, essa pena reaparecia.
Era como se ele fosse meu irmão, Zé Menino, ou um menino qualquer. Mas,
depois, fico pensando: matei pra não morrer. Fui somente mais ligeiro do
que ele. Será que remorso é isso?
Dorinha, da Irmandade do Coração de Jesus, achava estar diante dum
milagre. As palavras do franciscano tinham tocado o coração do seu
marido, que não era uma criatura sem sentimento; seu começo de vida é que
fora ruim. Doutrinava o “índio”:
– Pois é, meu amigo. Arrependimento é isso que você falou.
Não insistiu na rudeza de suas palavras anteriores. O silêncio era uma
forma de concordância com a mulher, que vivia rezando terço e acendendo
vela para ele não ser morto. Para ele não fazia sentido dizer que ia para o
inferno pelo fato de ter acabado com alguns cabras ruins. Agora mesmo,
com os cangaceiros de Sabino ameaçando assaltar a cidade, tinha sentido
cruzar os braços e gritar NÃO MATARÁS? Deus Nosso Senhor tinha de
fechar os olhos para certas coisas. Mas não ia falar dessas coisas a Dorinha.
Não queria tirar a alegria que brilhava nos olhos dela com a certeza de que
ele era um homem arrependido. Era melhor assim.

BEM CEDO, no momento em que ia sair de casa, Raimundo Anastácio viu


chegar à sua casa João Boanova, filho de dona Adelina, a quem devia
muitas atenções. Era uma segunda-feira de agosto, mês do desgosto. Disse
o rapaz, no início da conversa, que fora o Cego Alexandre, o cantador,
quem lhe aconselhara a procurá-lo. Pensou: por que seu Alexandre lembrara
seu nome? O homem, além de cego, chegara à cidade há menos de seis
meses. Deixou isso de lado e perguntou ao rapaz:
– Em que lhe posso ser útil?
– Minha mãe, dona Adelina, tem necessidade de viajar ao Crato.
Doença em pessoa da família, minha avó e mãe dela.
Devia muitos favores à dona Adelina que, nem ralado, podia pagar.
Era arriscado demais viajar, agora, para aquelas bandas. Antes de ele dar
sua opinião, Boanova esclareceu que encontrara Romeu Cruz na casa do
cantador:
– Seu Romeu acha a viagem uma temeridade.
Raimundo se sentiu mais confiante em dar sua impressão:
– Romeu conhece a região tão bem quanto eu. É um homem sensato,
valente e calado. Minha opinião é a mesma dele.
– Sei, seu Raimundo. Minha mãe, também, está ciente dessas
dificuldades. Quando ouviu falar no nome do senhor, instou para que o
procurasse.
– A viagem não pode ser adiada para um momento mais conveniente?
– O perigo maior é a presença dos cangaceiros no cariri, não é?
– É. A zona está infestada de bandidos. Não são bandos organizados;
são cabras, dois ou três, que se juntam para a pilhagem, pois depois de
deixarem o cangaço não sabem mais fazer outra coisa que assaltar, roubar e
matar.
– O senhor quer que eu arranje alguém para nos ajudar, caso aceite a
incumbência?
– Você falou em alguém que poderia ser de grande ajuda na travessia:
Romeu Cruz. Ele, no momento, não está passando bem de saúde. Não é
coisa grave, mas está impedido de fazer uma viagem desse tipo. Você sabe
manejar uma arma?
– Mais ou menos.
– Tem que ser sim ou não, meu amigo. Vamos treinar um pouco, antes
da viagem. E procure conversar, de novo, com dona Adelina, mostrando o
perigo que ela vai correr.
João Boanova transmitiu à mãe as apreensões de seu Raimundo,
aceitando-as como justas e reais. Dona Adelina quis conversar
pessoalmente com o “índio”. Quando este apareceu, à noite, foi diretamente
ao assunto:
– Compreendo seus cuidados. Mas não estou querendo dar um passeio.
Conforme meu filho deve ter dito ao senhor, minha mãe está à morte. Sou
sua única filha; tenho obrigação de estar ao lado dela nessa hora. O senhor
disse a João que a presença duma mulher vai complicar, em muito, as
coisas.
– É verdade, dona Adelina. Há perigo certo no caminho.
– E se eu disser ao senhor que, mesmo correndo perigo de morrer,
estou disposta a fazer essa viagem?
– Vamos ser atacados no caminho, com toda certeza. O que não falta,
no cariri, é malfeitor esperando uma oportunidade.
Dona Adelina insistiu:
– Com tudo isso, seu Raimundo, eu quero ir, eu tenho de ir. Peço ao
senhor para nos levar, a mim e ao meu filho, até Crato. Eu pagarei bem...
– Não se trata de dinheiro, dona Adelina. Devo favores à senhora que
nem ralado posso pagar; eu e Dorinha, minha mulher.
– Me desculpe, seu Raimundo. É a aflição que me leva a falar desse
modo.
– Está bem; compreendo seu aperreio. Disponha desse seu criado.
Dirigindo-se a Boanova:
– Amanhã, de manhã, vamos treinar. É necessário.
Antes de viajar para o Crato, acompanhando a mãe, João Boanova
convidou Manoel Santana e David para um jantar de despedida.
Depois do jantar, resolveram dar uma volta pela rua. Ouviram o amigo
explicar os motivos da viagem tão temerária. David lhe perguntou:
– Pensa em voltar para Cajazeiras?
– Eu volto, mas minha mãe vai ficar com a família. E volto para
vender a fazenda e a casa da cidade, quando encontrar um preço razoável. E
você, David? Em que ficou o desejo de transformar-se num geólogo?
Manoel Santana, no silêncio de David, esclareceu:
– O mal de David é sua indecisão. Se sair daqui, está com a vida
arrumada. Além disso, sofre do coração... e não quer abandonar o objeto
dos seus sonhos. Quanto a mim, vou empenhar-me em ganhar um
dinheirinho nas minhas atividades comerciais. Minha devoção é mais
prosaica. Adoro Mercúrio, Deus dos comerciantes...
– Dos tribunos e dos ladrões... – arrematou David. – Não tenho,
infelizmente, nenhum jeito para a agricultura, mas o velho só tem a mim,
pois meu irmão é, como vocês sabem, uma criança doente, que será,
sempre, dependente de alguém.
João Boanova indagou:
– Já falou com seu pai sobre o desejo que tem de estudar?
– Não, Boanova. Tem me faltado coragem para tocar no assunto. O pai
é um homem sofrido, amargo, solitário. A perda de minha mãe desnorteou
completamente sua vida. Pra mim é muito doloroso, também, deixar meu
irmão, indo para tão longe...
Manoel Santana pigarreou, antes de falar, mas ponderou:
– Mas, David, você não dispõe de tempo ilimitadamente. E tempo de
pobre é curto. Faça como João, apesar de ter ele outras possibilidades...
– Nem tanto – ponderou Boanova. – Vai tudo depender da venda da
fazenda, do andamento dos negócios de minha mãe. Mas Santana tem
razão. Nosso tempo é apertado. O moço do interior está condenado a
emigrar. Ou emigra, ou se dissolve na vida limitada e pobre da região.
Como se não bastasse a seca para nos empobrecer, vivemos sob o terror do
cangaceirismo. Os bandidos vivem rondando, como cães famintos, em
torno das fazendas, dos povoados, das vilas, das cidades. Não se vive em
paz; não se tem gosto de viver.
Manoel, que David chamava, carinhosamente, de o oleiro, dando um
longo suspiro, comentou:
– A cidade, agora mesmo, sofre, como se pagasse um castigo, o terror
de cada dia. Perdi meu pai, como vocês sabem, há poucos anos, assassinado
por um bandido, no meio da rua, às 11 horas do dia. Quem foi? Ninguém
sabe. E, se sabe, tem medo de dizer. Vi o monstro esfaquear meu velho
pelas costas, no meio da feira, entre suas panelas de barro. Vi-o sair,
tranquilo, limpando a faca na palha da bananeira, como se nada tivesse
feito. Vivemos, hoje, debaixo de tensão insuportável.
David ajuntou às palavras de Manoel Santana:
– Nas fazendas e povoados a presença dos bandidos já faz parte da
rotina. Por que é que a maioria dos proprietários mora na cidade? É o único
meio de preservar as famílias. Por outro lado, como pode prosperar um
negócio sob esse clima? Pergunte a um dono de terra, grande ou pequeno,
como vai, e ele lhe responderá: “escapando”.
Voltando-se para João Boanova:
– A propósito, não é muita temeridade essa viagem que sua mãe
pretende fazer a Crato? Vocês vão atravessar uma zona apinhada de
bandoleiros.
Boanova coçou a cabeça, e respondeu:
– Sei que é, homem, mas que posso fazer? Minha mãe sabe disso. É
que a avô está muito mal, segundo carta que recebeu. Seu Raimundo
Anastácio vai nos acompanhar. Ele conhece a rota como a palma da mão.
A pergunta foi feita por Manoel Santana:
– Seu Raimundo não chamou atenção para os perigos que a viagem vai
acarretar?
– Falou claro à minha mãe; pediu para que a viagem fosse adiada. Ela
lhe respondeu que, se ele não quisesse ir, iria procurar outro guia. Ele
cedeu.
– Melhor do que ele é difícil – adiantou David. – Seguro, corajoso,
prudente, é, sem dúvida, o melhor homem para a tarefa. Dizem que tem boa
dosagem de sangue índio nas veias. Deve ser verdade; basta olhar para a
cara dele: a cor, os cabelos corridos, as maçãs do rosto salientes. Conhece,
além do mais, as manhas dos bandidos e as veredas e os atalhos mais
convenientes. A noite é sua amiga e nela anda macio como uma raposa.
Manoel Santana ajuntou:
– Mesmo tirando os excessos do retrato desenhado por David, o
homem é assim mesmo. O Cego Alexandre, o cantador, que é seu amigo e
gosta de brincar com o “índio”, já disse que as aventuras de Raimundo
Anastácio davam um bom folheto. Lamenta, em tom amável, que seu amigo
se tenha transformado em rezador, não perdendo missa, novena ou
procissão.
João Boanova sorriu, acrescentando:
– Vai fazer essa viagem pelo mais puro sentimento de gratidão. Meu
pai o ajudou um pouco em fase difícil da vida dele. Coisa de pouca monta,
diz minha mãe. Acha, por isso, certamente, que não pode faltar à minha
mãe, apesar de saber que a viagem é arriscada e perigosa. Mas, vamos
deixar de pensar em coisa ruim; no fim tudo dará certo.
– Claro! – disseram em coro os dois amigos.
Manoel Santana propôs um salto até à Praça da Matriz, onde se
realizava, aos sábados, retreta animada pela banda de música da Prefeitura.
Depois de darem algumas voltas, os três amigos se sentaram num banco.
Boanova, depois de ver as primas de David, disse para ele:
– As meninas estão cada dia mais bonitas. Você é um primo de sorte.
Manoel Santana completou:
– Talvez esse parentesco se modifique um dia, não é, David?
Este sorriu, nem confirmando, nem desmentindo. Daí a pouco, Irene e
Ilina, as primas de David, pararam em frente ao banco onde eles estavam.
Levantaram-se, ofereceram o banco mas Irene foi logo dizendo o que
queria:
– Vocês podem soltar o David por um instante, enquanto nos leva à
casa?
Boanova, em tom de brincadeira, adiantou:
– David, só, não; vamos os três mosqueteiros, juntos, para proteger
damas tão preciosas e bonitas! Ou atrapalhamos alguma coisa?
Você sabe que não, Boanova – disse Irene. – É na condição de primo
que David é convidado, às vezes, pra prestar serviço tão aborrecido.
David entrou na conversa:
– Está, hoje, de venta acesa, hein, prima querida! Se há um serviço que
presto, com prazer e alegria, é o de acompanhar vocês, não é, Ilina?
Ilina, desmanchando-se num sorriso cheio de doçura, concordou:
– É verdade, David. E ela diz essas coisas por graça.
Saíram os três rapazes e as duas moças da Praça da Matriz, que já se
esvaziava, em direção à casa de seu Leopoldo Batista. João Boanova
aproveitou a ocasião para despedir-se. (“Estou com um pé no estribo para
viajar para Crato com minha mãe.”) Voltou-se para Ilina:
– Como você está crescendo, Ilina? Com licença do primo, crescendo
em tamanho e beleza! São duas primas especiais, essas, David!
Ilina enrubesceu, mas Irene resolveu provocar Santana:
– E você, Manoel, não diz nada? Aprenda a fingir como seu amigo
João e nos faça um elogio, também.
– Não seria preciso fingir, Irene, para dizer ou repetir o que João disse.
Concordo em gênero, número e grau.
Boanova e Santana retiraram-se, mas David demorou um pouco na
frente da casa. Não haviam sido recolhidas, ainda, as cadeiras da calçada.
Sentaram-se um pouco para gozar a brisa fresca e suave do Aracati.
Irene perguntou:
– A viagem de João e dona Adelina é, realmente, perigosa? Por que
não deixam para mais tarde, quando as coisas melhorarem?
– É que a mãe de dona Adelina está à morte. Me entristece saber que
Boanova está se preparando para ir embora definitivamente. É um bom
partido que as moças daqui vão perder, não é, Irene?
– De minha parte, ele já podia ter ido – respondeu Irene, repelindo a
insinuação. – Ilina é que o acha muito bonito.
– Você, também, não se faça de sonsa – respondeu Ilina. – Ainda hoje,
na pracinha, você elogiou com entusiasmo o professor João Boanova. Ou
não foi?
Irene não se defendeu; sorriu. E perguntou a David:
– Toma um copo de aluá?
– Não, obrigado. Vou para casa dormir cedo, pois amanhã irei à
fazenda.
– Demora?
– Não, minha flor. Não vou lhe dar tempo de ter saudade.
– Ora, David, por mim você podia ficar lá...

***

Alguns dias depois viajaram com destino à cidade de Crato, no Ceará.


Ananias, o vaqueiro, trouxera da fazenda cinco animais: um, para dona
Adelina, com sela de mulher; o ruço, do Boanova, e três éguas para
transportarem a mudança. Raimundo Anastácio preferiu ir na sua burra
pedrês, que não corria, mas não cansava.
Arrumaram a carga em grandes caçuás presos nas cangalhas. Eram as
roupas e pertences da senhora, mantimentos de boca, esteiras, cobertores,
dois rifles, uma pá, uma foice, trempe para fazer café ou cozinhar, panelas,
caçarolas, pratos, talheres, depósitos d’água, uma verdadeira mudança.
Raimundo, que escolhera o material, justificava:
– Se precisar dormir no mato, coisa que vamos procurar evitar,
estamos prontos.
Partiram de madrugada. Dona Adelina chorou na saída. Tocava nos
móveis, alisava as portas, abraçava Antônia, a empregada. Foi necessária a
interferência de João Boanova:
– Temos de ir, mãe, para aproveitar a fresca da manhã.
A viagem transcorria calma, sem novidade. O pior era o calor, que
aumentava de meio-dia às quatro horas da tarde. Dormiram as primeiras
noites em dois povoados. A terceira, numa fazenda. A casa era pequena,
mas dona Adelina foi tratada com toda atenção. Raimundo e Boanova
dormiram ao relento, depois de descarregarem a bagagem, tirarem as selas
dos animais e alimentá-los.
Era difícil arrancar uma palavra do velho, mas Boanova insistia:
– Tudo correndo bem até agora, não é, seu Raimundo?
– Graças a Deus, João. Mas o trecho pior está na nossa frente. Mas,
vamos chegar lá.
Demoraram um pouco a sair da fazenda, pois os donos da casa
quiseram caprichar no café com tapioca, queijo de manteiga, cuscuz,
macaxeira.
Raimundo Anastácio chamou a atenção de Boanova para o cansaço
refletido nos olhos, no andar, nos gestos de dona Adelina. Perguntou:
– Dona Adelina, quer descansar um dia, aqui?
– Não, seu Raimundo. Temos que continuar. Quero encontrar minha
mãe com vida.
– É que tanto seu filho como eu achamos que a senhora está fazendo
esforço superior às suas forças. É melhor parar um pouco aqui do que no
mato...
– O senhor, acha que chegaremos, hoje, à vila de...
– São Domingos... Pode ser, mas andando um pouco mais depressa.
Nesse dia, por volta de 4 horas da tarde, Raimundo viu que dona
Adelina não podia continuar. Como se tivesse lido seu pensamento, parou o
cavalo numa clareira, cercada de árvores, e indagou:
– Quantas horas daqui à povoação?
Três ou quatro, nesse passo.
Olhou para o filho e disse, em tom de quem vai chorar:
– João, eu não aguento mais. Vamos parar um pouco. Andar a cavalo,
mais, não. Fale com seu Raimundo.
Já tinha percebido que sua mãe havia chegado ao extremo da fadiga,
limite onde nem o medo da morte existe mais. Pediu a seu Raimundo para
ajudá-lo a descer dona Adelina do cavalo.
Esta voltou-se para o velho e, com os olhos cheios d’água, implorou:
– Seu Raimundo, pelo amor de Deus, vamos parar.
– Pois não, dona Adelina. O lugar tem um pouco de sombra, até.
Estendeu uma esteira, lençóis, cobertores, improvisando um leito no
chão duro.
Dona Adelina adormeceu imediatamente.
Seu Raimundo amarrou os animais, mas não tirou a carga.
João Boanova, vendo a cara amarrada de seu Raimundo, indagou:
– Perigo?
– Sim, perigo. Vou dar uma volta por aí, mas não vou sair de perto.
– Bandidos?
– É o que parece. Dois, pelo menos, estavam nos seguindo, de longe,
esperando que a gente parasse para dormir. Parar, agora, em plena luz do
dia, foi uma surpresa para eles.
Numa voz diferente, calma e dura, encarou João e lhe disse:
– Veja suas armas, o revólver e o rifle; carregue-os e junte munição
perto de você. Fique sentado perto de dona Adelina, encostado naquela
árvore mais grossa. Se aparecerem dois vultos, calados, andando macio, não
pense duas vezes, atire. Lembre-se do que lhe ensinei: empunhe a arma com
firmeza e atire para matar. Faça pontaria na caixa dos peitos. Não atire no
meio como se quisesse acertar os dois; esse é o melhor modo de errar. Atire
num e, depois, no outro, com calma e segurança. Errar é morrer, você sabe.
– Entendi, seu Raimundo. E o senhor?
– Por ora, vou dar uma volta por aí para atalhá-los.
O velho saiu, silencioso, como se não pisasse no chão. De vez em
quando imitava o canto da nambu para mostrar a João que estava por perto.
A noite caiu, rápida. O tempo escureceu. Olhava, seguidamente, para a mãe,
que dormia como um anjo e se enchia de ternura pela sua coragem em
enfrentar essa viagem, só pensando na avó. Começou a ouvir sons a que
antes não dava a menor atenção: o vento ciciando nos galhos secos, que
estalavam; os passos furtivos de um preá (ou de uma cobra?), o som cavo
do bacurau, que só aparece à noite...
Quanto tempo já se passara, depois da saída de seu Raimundo? Não
escutara, mais, sua imitação do canto do nambu. Os minutos de chumbo
aumentavam sua inquietação. Longe, mas não muito longe, alguns disparos
quebraram o silêncio da noite. Procurou aguçar os ouvidos, mas tudo
voltara à quietude aparente das coisas. Pensou: acertaram seu Raimundo.
Ficou mais tenso, ainda, tocando ora no revólver, ora no rifle deitado nas
pernas. Levantava-se, andava um pouco e voltava a se sentar no lugar
indicado pelo índio. Não seria melhor acordar dona Adelina? Ouviu, então,
perto, o nambu cantar e, logo em seguida, passos ligeiros sobre as folhas
secas e a voz rouca de seu Raimundo:
– João! Sou eu, Raimundo. Tudo bem?
– Tudo, seu Raimundo.
O velho sentou-se, com a ajuda do rifle, perto de João e soltou um
suspiro que vinha do mais fundo de sua natureza. Dirigiu-se ao moço:
– Agora, pode dormir, também.
– Como é que eu posso dormir, depois duma zuada dessas?
Raimundo Anastácio tirou o rolo de fumo e começou a picá-lo com
uma faca pequena. Enrolou o fumo picado na palha de milho e a umedeceu
com os lábios. Acendeu com um fósforo o cigarro malfeito e chupou forte.
Depois, devagar, soltou uma boa e demorada baforada. Falou a João:
– Matei os dois bandidos, João. Não tinha outra solução.
Boanova demorou algum tempo a responder, gozando intimamente, o
prazer daquela confidência.
– Compreendo, seu Raimundo. O senhor fez o que devia fazer. Nem
mais, nem menos.
Já em casa, na cidade de Crato, de que muito gostava, depois de uma
noite bem dormida, João Boanova conversava com dona Adelina sobre o
sono que a derrubara, no caminho.
– Fiz um papel feio, não foi, meu filho? A verdade é que eu preferia
morrer a dar um passo mais naquele cavalo. Foi boa e parada. Aqui pra nós,
eu já estava que não aguentava mais. Fora isso, tudo correu bem, não é,
meu filho?
– Tudo, mamãe. Correu tudo às mil maravilhas.
– A propósito, João, quero que você pague a seu Raimundo dobro do
preço que acertou com ele.
– A senhora sabe por quanto acertei o serviço?
– Não; nem quero saber. Mas é bom você aprender que, às vezes, a
pessoa dormindo ouve muita coisa. Mas não é isso só. A viagem me deu a
alegria de ver mamãe bem melhor e fora de qualquer perigo. Devo isso a
quem? A seu Raimundo e a você, também.

Raimundo Anastácio regressou, logo, a Cajazeiras. A princípio não


quis receber o reforço do pagamento. Só depois que João lhe disse que a
ideia tinha sido de dona Adelina, e que esta ficaria ofendida com a recusa, é
que mudou de opinião. No final, pensava com os seus botões, o serviço
valera. Fazia semana e meia que saíra de casa.

4
NÃO CONHECERA o pai, mas o avô, que vivera 98 anos, contava histórias
estranhas sobre o seu bisavô, o índio velho: suas “meisinhas” milagrosas,
suas rezas, suas visões. Colava o ouvido no chão e “via” coisas: perigos,
doenças, mortes, os passos dum animal perdido, de uma onça traiçoeira, do
inimigo macio e feroz.
Não sabia explicar, mas achava que os cangaceiros estavam chegando.
Na última feira, no Mercado, onde vendia carne-seca, viu dois matutos
comprando mantimentos e olhando muito em derredor. Desconfiou tratar-se
de cangaceiros, pois o olhar deles era inquieto, desassossegado, como o dos
passarinhos. Um dos moços chegou a pegar numa manta de carne,
perguntando o preço. Antes de responder, viu o outro, nervoso, puxar o
companheiro pelo braço. Nesse instante, acercou-se de seu Raimundo o
Cabo Zé Gonçalves:
– Tudo bem, seu Raimundo? Vendendo muito?
– Alguma coisa, Cabo.
E, como fazia habitualmente, cortou um pedaço de chã e entregou ao
militar.
– Mas, seu Raimundo, não precisava disso.
– É de gosto, Cabo. Convém tirar algum sal.
Ainda Pensou em chamar a atenção do Cabo, mas os homens já tinham
sumido. Que adiantava? Nem armado o militar estava. Lembrou-se de que
ingressara no cangaço com a idade dos dois suspeitos. Tudo começou na
noite infeliz em que seu irmão, Zé Menino, furou um “macaco”. Contra sua
vontade e seus conselhos, o irmão comprou meia dúzia de “rojões”,
divertindo-se com as peripécias dos fogos malcomportados, que se metiam
entre as pernas dos homens e as saias das mulheres. O rojão saía, ora
pulando como um doido, rente ao chão, ora se elevava, no escuro, deixando
um rastro de luz coruscante, cheio de fagulhas de vida luminosa e
brevíssima. Por um desses azares da vida, um rojão atrevido fez uma série
de piruetas e ziguezagues nas polainas envernizadas de um soldado de
grande bigode. O soldado se chamava Álvaro e era conhecido pela sua
valentia e afobação. Não lhe foi difícil localizar seu irmão, que não tinha
percebido a irritação da autoridade, e continuava a brincadeira, soltando o
último busca-pé. O soldado aberturou Zé Menino, segurando a camisa
frouxa na altura do pescoço. O irmão, apesar da surpresa, se aquietou,
conformado, confuso, mas sorridente. O soldado, ainda segurando-o pela
camisa, com a mão esquerda, deu-lhe duas bofetadas dessas de estalar.
Tentou ajeitar as coisas, explicando ao soldado que seu irmão não regulava
bem, era meio acriançado, mas a autoridade, vendo o povo em derredor
gostando, aí é que dava na cara de Zé Menino. Este, com a rapidez do
relâmpago, tirou o punhal da cintura do soldado e o enfiou entre o umbigo e
a caixa dos peitos, derrubando-o. Com a mesma rapidez, Zé Menino
desapareceu no escuro, no caminho de casa, afastando povo ainda com a
faca na mão, os olhos aboticados de quem perdera o resto de juízo. A
multidão recuou, espantada, com um grito de pavor. Quando os dois outros
soldados apareceram, armados até os dentes, só restava, no largo círculo
silencioso formado com o recuo do povo, o soldado Álvaro, caído, agarrado
nas tripas, e ele, abestalhado, morto de pena do irmão. Recolheram o ferido,
com a ajuda solícita de várias pessoas e, quanto a ele, levaram-no para a
cadeia debaixo de murros, cacetadas e lapadas de sabre. Não apareceu
vivalma para dizer aos soldados que não fora ele e, sim, o irmão, o autor da
façanha. Passou uma semana na cadeia imunda, sofrendo o que o diabo
enjeitou, nu, com fome, numa cela sem luz, fedendo a cães mortos. Soube,
depois, que algumas pessoas procuraram o Delegado, declarando que fora
Zé Menino e não ele o autor da facada fatal. Na cadeia, no meio de seus
padecimentos, seu pensamento estava na mãe, para quem só existia, no
mundo, uma pessoa: Zé Menino. Pensava na dor que ia sofrer e nos
aborrecimentos que ia passar com as visitas da polícia. É verdade que havia
a tia Rosário, que morava com eles e tomava conta da casa. No dia que saiu
da cadeia, sujo, fedendo como um gambá, seu desejo era sair correndo até
em casa para prevenir as duas mulheres, mas não o deixaram ir só; dois
soldados o acompanharam, pois precisavam prender o “assassino”. Não
aperrearam mais sua mãe, porque a tia Rosário, mulher forte, gritou para os
soldados: “Vocês não estão vendo que ela é uma mulher doente?” A mãe,
acuada, num canto da sala, rezava, absorta, o rosário. Quando os dois
soldados se retiraram, ela olhou para Raimundo e gritou: “Perdi meu filho!”
“Zé Menino não tem mais irmão!” “Zé Menino ganhou o mundo!” “Perdi
meu filho!” Alguns dias depois, disse à tia que iria procurar Zé Menino.
Chamou antigo vaqueiro de seu pai para cuidar do gado e ajudar tia
Rosário. Arrumou a trouxa e saiu no rumo do mar. Onde chegava,
procurava saber de Zé Menino: nas fazendas, nos povoados, nas casas de
beira da estrada. Ninguém lhe dava a menor notícia de seu irmão. Parecia
ter desaparecido no ar! Trabalhando por um prato de comida, hoje aqui,
amanhã acolá, findou se deparando com um grupo de cangaceiros.
Conheceu-os pela vestimenta e pela arrogância com que exibiam os rifles e
as facas de ponta, estas arrumadas com dificuldade na cintura. Era na boca
da noite. Estavam assando preá, pelo cheiro. O que parecia o chefe, homem
alto, de braços compridos, com ares de gente da cidade, mandou que ele se
sentasse, perguntando, a seguir, que tinha feito para estar com cara de quem
viu alma. Respondeu a primeira coisa que lhe veio à cabeça: “Matei um
‘macaco’ em Crateús”. Desse momento em diante sentou praça no cangaço.
Notou, logo, que seus companheiros eram pouco experientes e inseguros.
Verificou, com o passar dos dias, que Mané Canuto, o chefe, era assaltante
de estrada; atacava os matutos, esvaziava-lhes os bolsos, tomando armas,
munição e até comida. Sua carreira ao lado do cangaceiro Canuto durou
pouco. Estavam próximos de Canindé, e o chefe resolveu fazer uma
promessa a São Francisco. O santo atendeu ao que mereciam Canuto e seus
cabras: foram presos, sem nenhuma reação de sua parte, na entrada da
cidade. Podia estar enganado, mas o chefe, ao ser preso, parecia estar
satisfeito. De cangaceiro ele só possuía, mesmo, a pose e o gosto de ser
tomado como tal. Além do mais, o ofício rendia pouco. Passou bem dois
anos na cadeia do Canindé. Um dia o chamaram para fugir. “Fugir para
onde?”, perguntou. Não lhe deram resposta e ele ficou onde estava. Sua
atitude não agradou ao carcereiro: é que não havia verba para a comida dos
presos e a fuga sem nenhum atropelo fora estimulada pelo carcereiro.

Um menino interrompeu seu mergulho no passado:


– Um quilo de carne boa, seu Raimundo.
Embrulhou a carne, recebeu o dinheiro e mergulhou, de novo, nas suas
lembranças. Recordou sua luta, depois que saiu da cadeia, à procura de um
emprego em que pudesse demorar algum tempo. Só depois de transpor a
porteira de cerca de vinte propriedades é que encontrou um lugar que lhe
parecera tranquilo e seguro. Ajudava o vaqueiro, percorrendo as mangas,
tangendo o gado para os açudes onde havia, ainda, água, cortando cardos,
mandacarus, xiquexiques e facheiros, que serviam de alimento para o gado,
depois de queimados e deles serem extraídos os espinhos duros e
agressivos. Vivia em paz, gostava do trabalho e gostavam dele, também.
Mas, não há bem que sempre dure... Uma tarde, quando trazia as vacas para
o curral, viu, na frente da casa, um grupo de cangaceiros. Seu Feliciano, o
dono das terras, não era um coiteiro, mas não negava um prato de comida a
quem chegava à sua casa. Terminada a ordenha, veio deixar o leite com
Rita. Passou pelo meio dos homens, bem armados, não parecendo hostis.
Seu Feliciano estava com o chefe do bando no alpendre. Dona Isolda, sua
mulher, tinha ido para a cidade, de manhã. Felizmente. Cumprimentou o
cangaceiro com um “Boa tarde.” (tarde ou noite?) e entrou com os
vasilhames na casa, em direção à cozinha. Voltou para onde estava o patrão
e perguntou se ele queria alguma coisa. Seu Feliciano disse que não. O
chefe do bando, “Baraúna”, puxou conversa com ele: de onde era, de que
família, desde quando trabalhava ali e outras conversas de encher tempo.
Quando se levantou para despedir-se de seu Feliciano, sua atenção foi
despertada para um cabra que vinha correndo à toda velocidade, gritando:
“A estrada está cheia de ‘macacos’. De vinte pra riba. E vêm pra cá!” Os
cangaceiros – era inevitável – correram para dentro de casa, levando seu
Feliciano e ele também. Quando a polícia cercou a casa, depois de falar
com Baraúna, seu Feliciano gritou: “Quem fala aqui é Feliciano Alves,
dono da propriedade. Deixem o pessoal passar; vamos evitar mortes.” Do
lado da polícia, alguém gritou: “Nós vamos pegar eles e você, também, seu
coiteiro!” Seu Feliciano respondeu: “Não sou coiteiro; sou homem do meu
trabalho.” De novo a voz lhe deu resposta: “Ou sai todo mundo de braços
levantados, depois de jogarem as armas, ou a bala vai comer!” Passados uns
dois minutos, começou o tiroteio, que perdurou algumas horas. Dentro da
casa havia um cangaceiro morto e outro ferido. Raimundo pediu a arma do
ferido e começou a atirar. Viu quando seu Feliciano foi atingido na cabeça e
no peito, morrendo imediatamente. Na breve trégua, no meio da fuzilaria,
Pedro Salustino disse para os seus cabras: “Vamos sair correndo e furar o
cerco pela frente; os ‘macacos’ estão cercando pelos lados e por detrás.
Com a fuga pode ser que alguém escape; ficando, morre todo mundo.”
Virou-se para Raimundo: “Vamos embora, rapaz; se ficar aqui vão lhe
matar.” Carregaram as armas e saíram da casa gritando e atirando. A frente
estava meio desguarnecida e se chegou do outro lado. Na correria foi
atingido outro cangaceiro. Raimundo conseguiu, também, ganhar o mato.
Nessa vida de correrias e atropelos passou mais de três anos, atirando,
assaltando, levando tiro, roubando, matando, dormindo no mato, comendo
mal, sem ver nem sombra de mulher. Tempo duro e ruim, aquele.
Enganava-se ao pensar que nunca matara ninguém a sangue frio e, sim, no
calor da briga? Veio um bom inverno e o bando se dissolveu. Estavam na
fronteira do Ceará com a Paraíba. Cada um tomou seu rumo,
separadamente, despojando-se de suas armas e dos seus trajes de
bandoleiro.
Fregueses despertavam sua atenção, faziam os pedidos, e ele os
atendia, solícito. Depois, mergulhava, de novo, no mundo de suas
recordações.

No fim da feira, quando envolvia em folhas de bananeira a carne que


sobrara, é que se lembrou de que devia contar ao Tenente a passagem dos
dois cangaceiros pela sua barraca.
O Tenente estava no hotel. Levou-o para o quarto e lá Raimundo lhe
falou na impressão que tivera dos dois jovens bandoleiros. Não tinha dúvida
de que os bandidos estavam espionando, conversando, perguntando.
Quando avistaram o Cabo Zé Gonçalves, adiantou Raimundo, eles
desapareceram com a rapidez de um raio. O Delegado lhe deu inteira razão:
– Não tenho dúvidas de que estão rondando por perto. Falei, ontem, na
cadeia, com dois ciganos presos numa briga na feira de gado. O Sargento
Rangel, que os prendeu, me disse que um deles, irritado com a prisão,
murmurara que a polícia devia estar se preocupando com os cangaceiros e
não com briga entre ciganos. Resolvi, eu mesmo, falar com os dois ciganos
antes de soltá-los. Um não disse nada, com raiva dos empurrões que levara.
O outro, mais maduro, instado por mim, confidenciou: “É verdade que em
Alagoinha se tem como certa a invasão de Cajazeiras. É Sabino, segunda
pessoa de Lampião, quem está recrutando gente com esse pretexto.”
O Tenente continuou:
– Me pediu, por tudo quanto é sagrado, que não dissesse ter ouvido
essa história de um cigano, pois se encontram, sempre, à toda hora, com os
cangaceiros. A coisa está ficando preta, não lhe parece?
– Acho que sim, Tenente. E é Sabino, mesmo, quem vem por aí.
Lampião é mais frio, mais sensato, mais experimentado. Se achasse a
empreitada segura, quem vinha era ele e não um dos seus cabras. Uma
pessoa tem que ir até àquelas bandas...
O Tenente fez que não ouviu; mudou de conversa:
– Os exercícios de tiro têm dado algum resultado. Rangel, o Sargento
Rangel, é meio pessimista, mas ninguém pode ser exigente numa hora
dessas...
Passou pela cabeça de Raimundo a lembrança da visita dos
cangaceiros Laurindo e Bem-te-vi, há meses passados, na calada da noite.
Contava ao Tenente? Não. Falou noutra coisa:
– Severino Queimado me procurou para dizer que queria ajudar. Levei-
o para o treino. Vi a agonia dele, fechando os olhos, que desapareciam
debaixo das pregas. Comprei a um vendedor do Quixadá, que passa, às
vezes, pela feira, uns óculos para Queimado. Agora, está vendo tudo, alegre
como um menino. Me disse: “Se o Capitão Virgolino usa óculos e atira
como um cão, por que não posso fazer o mesmo?” Ele é muito engraçado.
Brinca, afirmando que os vidros lhe trouxeram um desengano: Maricas, a
mulher dele, está mais velha do que pensava.
O Tenente riu e ficou olhando para Raimundo sem ver nada. (“Se isso
acontecer no dia do tiroteio, tá tudo perdido”, pensou o índio.) Sacudiu a
cabeça, como quem viu a morte passar por perto, e exclamou:
– Se eu tivesse mais gente, faria uma patrulha de reconhecimento todo
dia. Mas somos tão poucos!
14 de setembro de 1926. A noite estava chegando devagar; o sol,
vermelho, se escondia pro lado do Ceará. Um manto escuro cobria os
serrotes, os campos, as estradas, as casas, os animais, as pessoas. A luz
elétrica, vacilante, aparecia nos postes e nas casas do centro da cidade.
Raimundo Anastácio despediu-se do Delegado, dizendo-lhe:
– Amanhã, cedinho, vou para Alagoinha. A negócios.
O Tenente Elino estava recebendo uma comunicação e não uma
consulta.
– Tenha cuidado, homem. Vai se meter no meio das feras.

FEZ ESFORÇO para levantar-se. Estava com sono, ainda. Dorinha, à noite, se
aninhou na rede grande, e fizeram amor silenciosa e brandamente.
Abriu a porta da cozinha para ver o tempo. O frio da madrugada o
envolveu dos pés à cabeça, num instante. Pôs a chaleira no fogo para o café
e foi arrumar a burra pedrês, no fundo do quintal. Companheira de suas
viagens, curtas ou longas, os dois se entendiam muito bem. Falou com o
animal, coçando-lhe a testa, alisando-lhe o pêlo antes de jogar a sela em
cima do lombo. Fosse alguém, no escuro, fazer aquilo e o coice ia comer.
Pôs-lhe as rédeas, os arreios, apertando-os, mas sempre falando e alisando a
alimária. Voltou à cozinha, coou o café e o tomou, bem quente, na caneca
de flandres. Coisa rara na vida deles: Dorinha não assistira à sua partida.
Não levava arma de fogo, o que poderia despertar suspeitas, caso se
encontrasse com algum cangaceiro. Abriu o portão, montou a burra e
começou a viagem. Dessa vez havia uma novidade: estava com medo, com
cisma. Medo, sim, pois só os mortos não têm medo.
A cidade dormia tranquilamente. Nem o vento dava sinal de vida, pois
as folhas pareciam pregadas nos galhos, fixas.
O destino era a fazenda do major Serafim, seu amigo de longa data, de
quem já tinha sido vaqueiro, depois de deixar a vida do cangaço. Comprava
gado ao amigo, pagava direitinho, não abusava da amizade. Serafim, como
os demais fazendeiros da região, recebia a visita de um ou outro cangaceiro.
Tratava-os bem, como fazia, aliás, a polícia do Ceará, que não tomava
conhecimento de sua presença e dos constantes deslocamentos. Pouca gente
sabia ou se lembrava de que Serafim guardava uma grande mágoa: o irmão
mais novo fora morto, numa feira de Alagoinha, por um cabra de Lampião,
“Rio Preto”, não fazia quatro anos. Se soubesse alguma coisa, o amigo lhe
diria.

Às duas horas da tarde (o sol já começava a descer para o poente),


chegou à Fazenda Velame. Era luz demais, mesmo para quem nascera,
crescera e vivera sob o seu domínio. Faiscava nas pequenas pedras do
caminho; arrancava chicotadas luminosas das grandes pedras; clareava o
azul limpíssimo do firmamento, afugentando as sombras amáveis das
nuvens, que corriam rápidas. A paisagem ainda conservava vestígios do
verde disseminado pelas chuvas dos últimos meses.
À sombra de copado juazeiro, na beira da estrada, Raimundo
Anastácio parou para comer um pouco de carne seca batida no pilão junto
da farinha de mandioca. Todas as vezes que, viajando, mordia um pedaço
de carne, vinha à sua lembrança o tempo que estivera no cangaço, levando
vida de judeu-errante, fugindo, brigando, saqueando, matando os
“macacos”, sem pouso, sem teto, pior do que aquele gavião pousado nos
galhos secos da árvore comprida, que tinha, certamente, um lugar para
dormir.
Passos leves na estrada o despertaram das recordações. Continuou
comendo e observando o viandante. O andar era o de quem estava
acostumado às grandes caminhadas. Mal pisava no chão; não tinha dúvida,
era um cangaceiro. Com visível desconfiança, o homem foi se chegando.
Vendo a tranquilidade de Anastácio, chegou perto e indagou:
– O amigo, me desculpe a pergunta, para onde vai?
– Pra fazenda de seu Serafim. Comprar gado. Sou amigo dele e dos
Augustos. Todo santo mês venho por essas bandas.
Num tom mais calmo:
– Quer comer um pouco de paçoca?
– Não. E o senhor é mesmo amigo dos Augustos?
– Sou, sim. Por quê?
– Por nada.
– Pois é uma amizade de muitos anos.
O cabra não se alterou com a menção do nome dos Augustos, velhos
amigos de Lampião. Fitou Raimundo, desconfiado, mas sem lhe dar a
mínima importância. Não se despediu. Continuou sua marcha. Adiante,
virou-se, vendo que Raimundo olhava na sua direção, mas não disse nada.
Nesse momento é que o “índio” se lembrou onde o tinha visto: no mercado,
na sua banca de carne, na última feira. Quando prestava atenção a uma
pessoa, guardava sua cara. Aquele olhar duro, de gavião, era inconfundível.
Continuou comendo e o homem prosseguiu viagem. Sentiu um frio na boca
do estômago. Não devia ter falado em compra de gado: o cangaceiro devia
ter imaginado que conduzia dinheiro, como, de fato, conduzia. Tinha que
ver o major Serafim (a casa da fazenda era a menos de meia légua) e voltar
imediatamente. Convenceu-se, duma vez, que a viagem era uma loucura.
Chegou a arrepender-se de tê-la inventado. Terminou de comer, tomou um
pouco d’água morna do cantil e limpou a boca com a manga da camisa.
Montou a burra e apressou o passo do animal para chegar o mais depressa
possível à casa de seu amigo. E se o cangaceiro resolvesse emboscá-lo?
Ficava com seu dinheiro, a burra pedrês, e dava sumiço ao corpo. Tudo era
fácil naquela solidão, onde não se via nem sinal de gente. Estava com
medo? Vendo visagens ao meio-dia? Ou era a idade que o tornava frouxo?
Não; não se enganava com as pessoas. O olhar enviesado e cobiçoso do
bandido estava plantado na sua cabeça. Tirou a faca da sela e a ajeitou no
cinturão grosso, cobrindo-a com a camisa de algodãozinho. Lembrou-se de
um ditado que corria como uma regra no cangaço: “Lugar de uma só
entrada é cova de defunto.” Isso porque, à sua frente, estava uma passagem
estreita, entre as pedras. Não adiantava parar, deixar o animal de lado e
contornar a pedreira. O cangaceiro devia estar acompanhando todos os seus
movimentos. O jeito era continuar. Podia ser, aquela, a sua vez. Levava –
era o que pensava – a pobre vantagem de saber que ia ser atacado. Tudo
podia ser, afinal, pura cisma e nada mais. Era a idade? Não diminuiu a
marcha do animal. O cabra devia estar num ponto em que pudesse cair em
cima dele, derrubá-lo e sangrá-lo. A coisa era simples, o bandido sabia
disso e ele também. Deu outra pontada na boca do estômago. Podia parar,
voltar, não importando o que o inimigo ficasse pensando. Mas, para que
viera até ali? Estava a trinta, a vinte, a dez passos do ponto perigoso. Se
fosse ele, escolheria o lado direito, onde as pedras eram maiores e estavam
cobertas por uma touceira de xiquexique. Quando atingiu o meio da
passagem, ficou o mais distante possível da moita de xiquexique. Passou a
faca para a mão esquerda, pois era canhoto. Talvez tudo aquilo fosse
nervoso. Já estava no fim da passagem. Olhou rápido para um lado e para o
outro, mas não viu sinal de ninguém. Reduziu o passo da burra por causa
dos pedregulhos. Tirou os pés dos estribos: se o animal se espantasse, não
seria arrastado pelo chão de pedras, preso pelo pé. Foi quando sentiu um
vulto jogar-se em cima dele. Ainda parou a burra, mas não evitou que o
impacto do corpo do cangaceiro o derrubasse da sela. Rolaram os dois pelo
chão duro, numa confusão dos infernos. Só pararam uns oito passos adiante,
numa touceira de marmeleiro. Segurou a mão do bandido, que empunhava
uma faca longa, brilhando ao sol. Sua faca, mais curta, era melhor de
manejar. Enfiou-a, ligeiro, no vazio do cabra e viu o espanto e o pavor no
rosto contraído pela dor. Ser canhoto era, às vezes, uma vantagem
inesperada. E, agora, que fazer? Acabar o serviço? Amarrar o camarada?
Com que, se o animal correra para longe? Se deixasse o homem vivo,
estaria tudo perdido. Sabino era o diabo feito gente. Não o perdoaria, nunca,
pela morte do seu cabra. Já agora, em cima do atacante, não pensou mais:
passou-lhe a faca no pescoço. Foi sangue pra todo lado. O sujeito morreu
logo. Um suor frio desceu pela testa e cobriu-lhe os olhos. Experimentou
grande alívio, despertando-o da confusão dos sentimentos, ver que o animal
tinha retornado, e o esperava, adiante. Precisava esconder o corpo, apagar
as marcas da luta e falar com seu amigo Serafim. Estava tremendo dos pés à
cabeça. Que diabo era aquilo? Frouxidão, pena do morto, remorso? Rezou:
“Meu Padim Pade Cisso, me ajude, com seus poderes, a sair desse
aperreio.” Saiu do caminho, contornou o monte de pedras, e viu uma loca
invadida por facheiros e mofumbos. Com a faca afastou a vegetação
espinhenta e avaliou que podia ali esconder o corpo. Era uma saída
provisória, pois daí a pouco os urubus iriam descobrir a novidade. Arrastou
o cangaceiro pelos ombros sobre o leito de pedregulhos, que estalavam na
sua passagem. Empurrou, sem jeito, pois o ombro começara a latejar, o
corpo para dentro da pequena furna; recolheu os pertences do defunto: o
chapéu de massa, o embornal, as alpercatas e a faca de ponta com cabo de
prata, e colocou tudo junto ao dono. Dispôs algumas pedras na boca da loca
e completou a vedação com galhos de mofumbo, velame e facheiro.
Agradeceu a Nossa Senhora ninguém ter aparecido naquele momento. Com
um galho de velame apagou, cuidadosamente, os sinais da luta e a
caminhada com o corpo. Não havia era jeito de limpar o sangue que lhe
manchava a camisa com uma nódoa enorme. Não poderia viajar naquelas
condições. Se encontrasse alguém do bando de Sabino, estaria descoberta a
morte do cangaceiro, pois nada mais fácil do que ligar seu desaparecimento
a alguém, naquelas bandas, todo manchado de sangue... Mesmo se topasse
com um morador da fazenda de seu amigo Serafim, que explicações poderia
dar? O mais acertado era esconder-se. Lembrou-se, então, das oiticicas da
beira do rio, com sua folhagem verde-escura arrastando-se até o chão. Para
lá se dirigiu, constatando que o esconderijo era bom. Se até a noite ninguém
o enxergasse, voltaria. Uma pontada no coração trouxe-lhe, de volta, o
problema do morto. Tirou a sela da burra, deu-lhe milho e água do próprio
cantil. De onde estava podia ver, no alto, a passagem de pedra. Algumas
pessoas apareceram, mas não pararam. Um moço, que vinha a pé, se deteve
no local da briga. O coração de Raimundo Anastácio ficou do tamanho dum
caroço de feijão. Viu quando o cabra arrodeou e trepou na pedra mais alta,
olhando para um lado e para outro. Ouviu seu grito: “Valdevino!
VALDEVINO!” Devia ser o nome do morto. Raimundo, escondido sob a
folhagem da oiticica, não tirava os olhos do viandante. Este olhou na
direção do rio, e gritou, mais uma vez: “VALDEVINO!” Raimundo pensou:
será que o moço vem pra cá? O ombro esquerdo começou a dar sinal de que
caíra daquele lado. Viu, com alívio, o camarada descer da pedra e tomar o
rumo da casa da Fazenda Velame. Fazia três horas que estava ali? A dor no
ombro aumentava. Era só o que faltava: ter quebrado um osso, a pá, uma
costela! Duma hora para outra, o céu escureceu, nuvens pesadas, escuras,
baixavam para a terra, um vento fresco, úmido, sucedia ao mormaço, e a
chuva, forte, grossa, inesperada, desabou duma vez. Relâmpagos
iluminavam trechos do céu, e os trovões de estalo rasgavam o silêncio com
a violência de suas descargas.
Depois de algum tempo, a chuva ficou mais fina, mas as folhas das
oiticicas e canafístulas soltavam gotas pesadas, molhando as roupas do
homem agachado e desperto. Os caborés, os bacuraus, as corujas soltavam
seus pios sem graça, e uma ou outra raposa rasgava o silêncio com seus
uivos famintos.
Oito horas da noite, mais ou menos. Podia chegar à casa da fazenda
sem que ninguém o visse. Manoel Serafim já devia estar deitado, não
havendo, certamente, nenhum morador nas proximidades. Selou a burra e
caminhou em direção à casa, aproveitando a estiagem. Uns cem metros
antes da casa, amarrou o animal numa cerca e fez o resto da viagem a pé.
Caminhava devagar, olhos e ouvidos abertos. Sabia onde o fazendeiro
dormia; bateu, de leve, na janela, dizendo:
– Major Serafim! É Raimundo Anastácio. Ouviu, major?
Percebeu o armador chiar, como se alguém tivesse se levantado da
rede.
– Quem é? – perguntou o fazendeiro.
– Sou eu, Raimundo Anastácio. Preciso falar com o senhor. Não
acenda a luz.
Contornou a casa e esperou que o amigo abrisse a porta da frente.
Entrou na casa todo molhado, empurrado pela ventania.
– Mas, Anastácio, que diabo está fazendo aqui, estas horas?
Antes de o visitante falar, continuou:
– Vamos mudar essas roupas molhadas e tomar um bom gole de
cachaça.
Quando o “índio” apareceu, vestido com a camisa do dono da casa e as
calças apertadas, deram uma boa risada. Seu Serafim foi buscar uma garrafa
e um copo pequeno, enchendo-o para Raimundo Anastácio, que o tomou
em dois tragos.
– Caiu do cavalo, Raimundo?
– É verdade; mas a história é mais complicada do que você pensa.
Contou, então, minuciosamente, o que acontecera por volta de duas
horas da tarde. E arrematou:
– Não quis aparecer antes para não complicar a vida do amigo. Esperei
a noite chegar e aqui estou.
– Quer dizer que levou essa chuvarada toda no lombo?
– Passei a chuva debaixo das oiticicas da beira do rio, onde me protegi
um pouco.
Falou, então, na finalidade da viagem, mencionando, entre outras, a
conversa do cigano com o Delegado. Depois de voltar a encher o copo do
visitante, Manoel Serafim lhe disse:
– Não sei de nada positivo, Anastácio. Os cangaceiros estão rondando
por aqui há vários dias; por isso é que mandei a mulher e os filhos para
Lavras. Corre, de vez em quando, um desses boatos: vão atacar Cajazeiras;
outra vez, falam em São José de Piranhas. Mas essa gente, como você sabe,
é muito esperta.
Anastácio insistiu:
– Parece, Serafim, que a coisa agora é pra valer no que se refere a
Cajazeiras. E não demora. Não ouviu nada a esse respeito?
– Não. Uma coisa é certa: a presença de Sabino Gomes; outra, que ele
está recrutando gente. Esse cabra que você matou, Valdevino, é dele.
Dirigia-se para aqui à procura de comida. A morte dele pode me trazer uma
encrenca dos infernos. Tem certeza de que ninguém viu a briga?
– Tenho.
– Amanhã, esse camarada vai começar a feder. E os urubus vão
começar a voar em torno da pedreira.
– É por isso que estou aqui. Sei que se descobrirem o corpo dentro de
sua propriedade, você está enrascado.
– Que vamos fazer, então, Raimundo? Pelo amor de Deus me diga o
que devemos fazer.
– O vaqueiro é homem de absoluta confiança? Se for, vou acordá-lo e,
juntos, vamos enterrar o bandido num lugar seguro.
– Onde?
– Perto do riacho, embaixo das oiticicas.
Serafim frisou a testa larga, mordeu os lábios e resolveu:
– Vamos nós dois, só. Como as coisas estão, a gente não pode confiar
em todo mundo.
– Então arranje uma pá e uma picareta, e vamos embora. E me dê essa
garrafa de aguardente; vamos precisar dela.
A chuva estava fina, mas o céu permanecia carregado de nuvens.
Enquanto Anastácio se encaminhava para pegar sua montaria, Manoel
Serafim selou o cavalo e saiu na direção do visitante.
Não foi fácil retirar o corpo de debaixo das pedras, na loca, tateando,
no escuro. O cabra já estava duro. Não podiam, devido ao escuro, carregar o
cadáver até à beira do riacho. Raimundo Anastácio tirou uma corda da sela,
amarrou o corpo bem amarrado e, montado na burra pedrês, o arrastou,
devagar, até o ponto determinado. Abriram uma cova de mais de um metro
de profundidade e colocaram o morto dentro dela, recolocando a terra que
havia sido retirada. Depois, Anastácio espalhou pelo local folhas e gravetos,
que ali havia em abundância.
Em silêncio trabalharam, sem que uma só palavra tivesse sido
pronunciada. Sentaram no chão frio, cansados do esforço e da tensão.
Raimundo tomou um gole de aguardente e passou a garrafa para Serafim,
que se serviu, também, fazendo careta. Ficou com a garrafa na mão,
absorto. Depois, exclamou, alteando a voz:
– Ora, ia-me esquecendo de tocar numa coisa que, talvez, possa ter
importância. Quando você me falou sobre os boatos, não fiz a ligação que
faço, agora, depois do que aconteceu. É o seguinte, Raimundo: encontrei,
ontem, em Alagoinha, meu parente, Pedro Batista, proprietário da Fazenda
Três Caminhos, onde Sabino e seus cabras estão acoitados há vários dias.
Meu parente já está subindo pelas paredes, pois os bandidos não davam o
menor sinal de que pretendiam viajar. Mas, ontem, muito feliz, ele me
contou que Sabino pediu, para o dia 28, às 10 horas, cinco animais
descansados. Mais: que pagaria bom preço na troca dos cavalos. O ponto de
entrega seria em São Gonçalo, antes de Sousa, no caminho para Piancó. Isto
quer dizer que nesse dia, 28, tem algo em vista, não é?
– Acho que sim. E se já conta com mais de vinte homens para a
empreitada, não vai atacar uma fazenda ou um povoado; tem em mira uma
cidade: Cajazeiras ou Sousa. As coisas se encaixam. Não fiz uma viagem à
toa. Vou lhe pedir por tudo o que é sagrado: não fale nisso com ninguém.
Pode lhe custar a vida.
Raimundo Anastácio pediu desculpas pelas dificuldades criadas com
sua visita.
– Acho disse Manoel Serafim – que nada fiz. Se estivesse metido em
qualquer confusão e apelasse para o amigo, o amigo não me faltaria.
– Pois é, Serafim. Me perdoe se repito o pedido que lhe fiz: não fale do
que houve a ninguém. Nem mesmo ao seu parente, Pedro Batista.
Cada um tomou o seu caminho. Ainda era noite e o mundo inteiro era
um negror só. A burra sabia orientar-se e a escuridão para ela não tinha
mistério. Estava surpreendido com o comportamento do fazendeiro. Agira
com calma na hora da apertura. Pensou no morto, que encontrara, cedo, seu
fim. Não teve pena; não podia ter pena: era ele ou o outro. Prometera ao
frade barbado, nas “missões”, nunca mais matar. Vinha mantendo sua jura
até bem pouco tempo, pois em menos de um mês abatera três sujeitos. “Só
na guerra, meu filho, na guerra justa, é permitido matar”, dissera o
confessor. Aquilo era, ou não era, uma guerra?

Quando entrou em Cajazeiras, tomou as velhas ruas conhecidas, que


davam no balde do açude grande; eram três horas da manhã. A cidade
dormia, tranquila, sem imaginar o perigo que corria, ou pensando que ele
nunca a atingiria. A cidade, dormindo, era uma criança. A verdade era que
de tanto se falar em ataque dos cangaceiros, ninguém acreditava mais que
isso pudesse acontecer. O professor Hildebrando Leal, homem bom, de
muitos livros, amigo dos padres, fechava sempre seus argumentos com estas
palavras: “A sede de um bispado, Raimundo, tem que ser respeitada pelos
cangaceiros; eles são criminosos, mas não são loucos. O Brasil inteiro se
levantaria contra essa profanação!” Mas o caso era que Sabino era um
louco. Um homem cruel, vingativo, que sente gosto em maltratar as
pessoas, atormentando-as até o limite do sofrimento. Isso o professor não
sabia.
Raimundo gostava da cidade. Em certo tempo, fora desprezado,
isolado, como se sofresse de lepra. O negócio que herdara do sogro – feitura
de selas, arreios, roupas de couro de vaqueiro – não prosperara, pois
ninguém perdoava, completamente, quem já fora cangaceiro, mesmo tendo
cumprido pena na cadeia. Vendera o negócio por dois vinténs e, para não
passar fome, vendia capão gordo, peru, quarto de bode novo, nas casas.
Quando o freguês sabia do seu passado, inventava uma desculpa qualquer e
cortava a freguesia. Só algumas pessoas não se importavam com o que ele
fora: o Doutor Cristiano Cartaxo, o Professor Hildebrando Leal, Monsenhor
Constantino Vieira, seu João Bichara, dono da padaria, major Epifânio
Sobreira e outros mais. A Polícia, por sua vez, ajudava a formar essa
confusão. Fora preso, algumas vezes, quando se espalhava o boato de que
os cangaceiros rondavam nas imediações. Como, em certas épocas, essas
notícias falsas eram constantes, já vivia de trouxa arrumada para a cadeia.
Somente Deus sabe quanta humilhação, quanta vergonha, quanta tristeza
passou ao ser conduzido, semana sim, semana não, para a cadeia da cidade!
Mas o tempo, que tudo cura, findou ajeitando sua vida. Começou a abater
algum gado, fazer carne-seca e vendê-la no mercado, uma vez por semana.
Depois alugou um ponto e montou seu pequeno açougue, a princípio de
sociedade e, depois, ele próprio, só. Nessa altura, era marchante, tinha seu
meio de vida e alguma coisa junta. E tinha Dorinha, sua mulher, amiga,
paciente, forte. Fazia tudo para esquecer qualquer rancor, qualquer raiva,
qualquer ressentimento. Tanto que estava se arriscando, como naquela
viagem, no interesse da cidade. Quando pensava “na cidade”, estava se
lembrando, particularmente, dos seus amigos, dos que sempre o ajudaram,
dos que nunca desconfiaram dele, dos poucos que o estimavam como gente.
Tirou a sela e os arreios do animal e pôs milho e capim no cocho,
conversando e agradecendo sua ajuda. A mulher apareceu e foi logo
dizendo:
– Já estava morrendo de medo. Só pensava que você tivesse sido
agarrado pelos cangaceiros.
Tranquilizou Dorinha, brincando:
– Você se esquece de que já pertenci à tropa? Correu tudo bem. Estive
com Manoel Serafim, mas não comprei nenhuma rês. Só teve uma coisa
ruim: a burra assustou-se com uma cobra, e eu fui jogado no chão. E,
quando já estava voltando, peguei uma chuva forte de mais de três horas,
ainda na fazenda do meu amigo.
Dorinha perguntou:
– Machucou-se na queda? É por isso que não tira a mão do ombro?
– Foi, mulher.
– Pois vou esquentar sebo de carneiro e esfregar onde está doendo.
Não venha me dizer que não precisa, pois assim mesmo vou fazer.
Dorinha tinha as mãos macias, mas fortes. Sentiu, de imediato, o efeito
da massagem. Quando se deitou, o ombro doía ainda, era verdade, mas de
forma suportável. Pediu à mulher:
– Me acorde às 10 horas. Não me deixe dormir demais.
Apesar da dor e do cansaço, não dormiu logo. Estava impaciente para
contar ao Tenente Elino o que colhera na viagem. Recordou a luta com o
cangaceiro no chão de pedras, e a cara de espanto do cabra quando enfiou a
faca na sua garganta. Agradeceu, de novo, a Nossa Senhora da Piedade ter
escapado de mais uma. Lamentou, sem convicção, a sina de matar, que era a
sua. O frade barbado gritava, nas “Missões”, e o povo respondia num grito
que enchia a noite: “Não matarás!” A praça tinha tanta gente que não cabia
mais. E o Irmão gritando, e a multidão ululando e ele no meio: “Não
matarás!” Pra casar com Dorinha, que era muito rezadeira, confessou-se ao
frade: matei. O Irmão perguntou: “Quantas vezes, meu filho?” Não sabia
dizer. Respondeu: “Fui cangaceiro, seu frade.” Este lhe consolou: “Pois se
você está arrependido, seus pecados estão perdoados.” Disse mais: “Vai me
prometer, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que não matará nunca
mais.” Jurou, sinceramente. Mas, não fazia um mês, na viagem para Crato,
com João Boanova e sua mãe, matara dois bandidos. E ontem, outra vez,
para não morrer, matara. Tinha quebrado o juramento feito ao Irmão. Deus
não podia perdoá-lo. Sua alma era do Satanás, do Encourado, do Capeta.
Mas o sono findou chegando, apagando esses remorsos. E o “índio” pôde
dormir como se fosse um filho de Deus.
Amanheceu com o ombro ainda doendo. Mal tomou uma xícara de
café, e saiu caminhando, apressado, para dar notícias ao Delegado. Não
perdera a viagem. Sabino anunciara o dia.
Dois

A FEIRA era uma festa. A cidade se animava: as ruas quietas se povoavam


de transeuntes. O sábado era um dia diferente, vivo, cheio de promessas e
novidades. O sol, absoluto, criava a agitação geral, iluminando os telhados,
as fachadas dos prédios, as calçadas, as ruas, os toldos das barracas, as
fisionomias rudes e bronzeadas dos sertanejos.
Saindo de suas tocas, na zona rural, madrugada, bem cedinho, antes de
os galos cantarem, convergia para a cidade gente de todos os cantos do
município e das localidades vizinhas: moradores, vaqueiros, artesãos,
pequenos proprietários, dependentes, mulheres, crianças, velhos, todos
tocados pela magia de um novo dia.
Os homens, fardos ou sacos nos ombros, ou tangendo animais de
carga, vestiam calças de brim duro, alpercatas de rabicho, chapéu de palha
ou de couro; a camisa de algodãozinho, fora das calças, escondia a faca de
ponta ou a peixeira, que tinha muitas serventias; as mulheres, a pé, mesmo
quando o chefe de família vinha montado, arrastavam seus longos vestidos
de chita; usavam um pano branco ou colorido, que descia da cabeça e lhes
cobria o rosto grave; os chinelos de couro estalavam no chão duro; outras,
descalças, com os sapatos na mão os calçavam na entrada da rua. Uns
vinham passear, como os meninos e as moças; outros, vender e comprar.
Traziam dos sítios: esteiras de carnaúba, rapadura, garrafas de manteiga,
queijos, alfenim, farinha, goma...
Havia diversas feiras: a de cereais, que era a mais extensa; a de frutas e
legumes; a de barro: panelas, quartinhas, potes, jarras, tigelas, vasilhas de
todos os tipos e tamanhos; a feira dos “mangaeiros”, com predominância
das mulheres, que espalhavam pelo chão os produtos mais variados: colher
de pau, abano, cordas, pavio de candeeiro, bolo de milho, pé-de-moleque
feito com rapadura preta, doces de corte, tapioca, beiju, chouriço e ervas e
raízes em profusão, tais como: alecrim, gengibre, pimenta de cheiro e
malagueta, jarrinha, umburana de cheiro, jalapa, jurubeba, quebra-pedra,
pega-pinto, cabeça-de-negro, garrafadas para dores de mulher e desengano
de velho; havia, ainda, num canto da cidade, a feira de animais: reses,
cavalos, burros, jumentos, bodes, carneiros, onde apareciam, às vezes, e
desapareciam, os ciganos, sem que ninguém soubesse sua procedência e seu
destino...
Nos últimos tempos, com os constantes boatos de ameaça de invasão
por parte dos cangaceiros, que rondavam, livres, nos municípios vizinhos
do Ceará, a feira diminuíra de tamanho e movimento. Nunca deixava,
entretanto, de realizar-se, pois sem ela não se comercializavam os produtos
da terra e do rude artesanato rural; sem a feira, as casas comerciais paravam
de vender, ou vendiam tão pouco que mal dava para pagar os impostos.

Chovesse ou fizesse sol, havia, sempre, para alegria da gente do mato e


da cidade, a presença dos sanfoneiros, dos cantadores e violeiros. Por ali já
tinham passado nomes conhecidos e respeitados como o Cego Sinfrônio,
Preto Limão, Romano, Jacó Passarinho e outros, vindos do Teixeira, do
Piancó e do Juazeiro do Padre Cícero Romão Batista, ponto de
convergência de cangaceiros, de beatos e de cantadores, também, que iam
pedir a bênção do Padrinho, cantar nas grandes feiras, comprar e trocar
folhetos, e tentar imprimir, nas diversas oficinas ali existentes, os seus
próprios versos.
Em Cajazeiras, na porta do Mercado, apareciam, além dos cantadores
da terra, os de fora, precedidos pela fama do seu talento e pela força de suas
violas e sanfonas.
Foi naquele recanto, no Mercado, que João Boanova ouviu o Cego
Alexandre pela primeira vez. Sentado no banco tosco, os ombros e a cabeça
levantados pela posição da rabeca, apoiada do lado esquerdo do peito, a
voluta para baixo, o cantador era uma figura impressionante. Cabelos
grisalhos abundantes, a tez bronzeada, os óculos escuros, não mantinha uma
atitude humilde ou piegas. Os lábios grossos, a boca amarga e dura, o ar
resoluto e quase agressivo contrastavam com o apelo habitual dos violeiros
cegos, que repetia na sua voz nasalada e rouca:

Se eu tivesse a luz dos olhos,


Trabalhava, e não pedia,
Filho de Nossa Senhora.
Ficara horas, sem sentir, ouvindo as narrativas do Cego Alexandre: “A
Imperatriz Porcina”, “Roberto do Diabo”, “A Donzela Teodora”, “Alonso e
Marina”, “A História do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de
França”.
Conhecia alguns desses contos e novelas, divulgados pelos folhetos
vendidos nas feiras. Surpreendeu-se, entretanto, com o tratamento novo
dado às fábulas e às lendas, numa linguagem que era corrente, popular, mas
não era rasteira; que obedecia ao roteiro tradicional, mas refletia, também, a
inventiva ou imaginação do intérprete.
No Colégio Padre Rolim, para os seus companheiros do “curso de
preparatórios” transmitiu, emocionado, a impressão que lhe causara o
cantador. Ninguém lhe deu a mínima atenção.
Com os professores foi mais decepcionante, ainda. O professor de
português, Félix Pamplona, ex-seminarista, chegou a ser grosseiro na sua
reação. Primeiro, defendeu a primazia e a exclusividade dos clássicos:
Vieira, Bernardes, Herculano, Camões; e, por uma deferência de sua
generosidade, Machado de Assis; segundo, desancou o pau na literatura oral
ou na literatura de cordel pela sua ação deseducadora na formação literária
do Nordeste.
Felizmente, só alguns poucos pensavam desse modo. Ainda no ano
anterior, em palestra realizada no salão do fórum, o jornalista Leonardo
Mota demonstrara, cabalmente, a poderosa influência dos cantadores e dos
menestréis na literatura de países como a França, Portugal, Espanha.
Recitara alguns versos desses trovadores, mostrando, também, o sumo de
graça e de beleza dos versos de Inácio da Catingueira, do Cego Sinfrônio,
de Romano de Teixeira.
No começo do ano, no mesmo local, assistira à palestra do advogado e
poeta Quintinho Cunha, do Ceará, também, que arrebatara o auditório com
suas histórias e anedotas. Parte da conferência foi dedicada aos cantadores,
violeiros e poetas populares do Nordeste, de que a Paraíba era fonte e
matriz inesgotável. “É afetação, disse Quintino Cunha, considerar
desprezível a poesia dos nossos cantadores e repentistas por não
obedecerem às regras da gramática e à metrificação. Eles são poetas como o
galo-de-campina é poeta; o golado, o pintassilgo, o concriz, a graúna, o
canário da terra, todos fazem poesia. A poesia, alguém já afirmou, é como a
graça: sopra onde quer.”
No outro sábado, encaminhou-se para a entrada do Mercado. No final
das contas, talvez não tivesse fundamento seu entusiasmo pelo cego da
rebeca. Deixara-se, talvez, ser levado por um impulso ou arrebatamento.
Não valia a pena perder seu tempo com um cantador de feira.
O cego Alexandre já estava no seu canto, conversando numa roda de
meninos. Um deles, de olhos castanhos, cabelo revolto, pés no chão, com a
boca toda suja da manga que chupava, fez um pedido ao cantador. Este
levantou o rosto e olhou na direção do moleque:
– João Grilo de novo? Já não se cansaram das doidices desse cabra
safado? Vá lá!
Boanova começou a ouvir, interessadamente, as presepadas de João
Grilo. Todos os meninos pobres do sertão se vingavam da sorte com as
estripulias do moleque que parecia ter raça com o Capeta. As autoridades
prepotentes, um comerciante mais ladrão do que os outros, um padre doido
por dinheiro, um marido enganado, o sacristão safado, o soldado malandro,
todos eram chamados à cena na linguagem direta, maliciosa, chocante, rica,
da sabedoria popular. Na voz hirta, pouco maleável, o cego expressava a
dor e o sofrimento da terra abandonada: as secas arrasadoras, as retiradas
alongando os caminhos, a presença sinistra ora dos cangaceiros, ora das
volantes que os perseguiam, bem parecidos nos trajes, na arrogância, nas
crueldades inúteis.
Via João Boanova, no canto triste do Cego, o drama pungente,
repetido, costumeiro da terra do sol: homens com enxadas sem serventia
carregadas nos ombros; mulheres com filas de crianças, fora a que levava
nos braços e a que trazia no ventre incansável; velhos arrastando as últimas
horas de vida, caminhando sem destino e olhando, sempre, para o céu, à
procura da nuvem fugidia. Tudo isso era lembrado na voz rouca, mas
incisiva, de seu Alexandre e de sua viola de quatro cordas.
Os meninos João Grilo, Cancão de Fogo ou Pedro Malasartes
representavam, nos seus golpes, na sua astúcia, nas suas safadezas, o
adormecido instinto de rebeldia da raça sofredora e aparentemente
resignada.

Contavam-lhe que a língua solta e ferina do cantador era responsável


pelas agressões que sofria. Mas ele não mudava. Nem mesmo quando lhe
arranjavam um dia na cadeia, que ele chamava de hotel ruim do governo.
Era doido, seu Alexandre? Nesse dia, João se dirigiu ao cantador, vencendo
seu acanhamento:
– Seu Alexandre, bom dia!
– Bom dia, filho.
– Queria dizer ao senhor que gostei muito de sua cantoria.
– Como se chama?
– João Boanova.
– Que faz na vida para ter tempo de ouvir um cantador de feira?
– Sou estudante.
– Então está desaprendendo, pois sou um pobre violeiro.
– Não concordo, seu Alexandre. Acho que o senhor é um cantador fora
do comum. Embora narre velhas histórias conhecidas, o senhor as renova,
nelas introduz sua observação pessoal, seu modo de dizer. Entende o que
quero dizer?
O velho sorriu; sorrir, talvez, não expresse bem o sentido dos lábios
repuxados, num ríctus nervoso, que tanto podia ser de vaidade, de alegria,
como um trejeito de ironia.
– Engraçado. Quando falou, percebi que já estivera aqui, outras vezes;
que era uma pessoa conhecida; não era um estranho. Entende?
– Entendo.
– Deve ter seus 18 anos...
– Está certo seu palpite. Vou fazer, breve, dezenove.
– Seu pai é comerciante?
– Meu pai, Ageu Boanova, faleceu há uns quatro anos. Vivo com
minha mãe. Temos uma propriedade no município.
– Já ouvi falar de vocês. Raimundo Anastácio repete, sempre, que deve
muitos favores à senhora sua mãe.

Nasceu, assim, uma boa amizade entre o Cego Alexandre e João


Boanova, apesar da reserva do primeiro. O tempo ia quebrando algumas
resistências. Quando se aproximava da porta do Mercado, onde o cantador
fazia ponto, este parecia adivinhar sua chegada:
– João?
– Tudo bem, seu Alexandre?
– Vou escapando, menino.
A vida de seu Alexandre estava cercada de mistério. Boanova
formulava, para si mesmo, estas perguntas: de onde viera? Como chegara a
Cajazeiras, cego? Ninguém sabia, ou quem sabia guardava o segredo. Seu
interesse no caso não era pura curiosidade. Queria ajudar o cantador,
entrando em contato com seus parentes, sua família, a fim de que o tirassem
da vida amarga em que se tornara a sua vida. Tentou, certa feita, abordar
seu Alexandre, perguntando-lhe onde nascera. O homem se irritou:
– Me faça um favor, João. Mude de assunto. Não tenho passado,
origem, família, raízes. Sou como esses pés de xiquexique, que crescem nos
telhados, sem terra, no ar. Pode me fazer esse favor?
Respondeu que sim, desculpando-se.
– Nada de pedir desculpas; é natural, rapaz.
Nunca mais voltou a tentar tal tipo de pergunta, embora continuasse
indagando, entre as pessoas de sua confiança, qualquer informação sobre a
vida do seu amigo. Conversou com Manoel Santana, David Casimiro;
interrogou violeiros e cantadores que apareciam na feira dos sábados;
chegou até a falar com Luíza, a empregada do Cego, mas o resultado dessas
especulações era igual a zero. Luíza lhe deu um roteiro: duas pessoas
sabiam alguma coisa sobre a vida do cantador: Raimundo Anastácio e
Dimas Andriola, o escrivão. Despediu-se dele, na última vez que aparecera
na casa, sabendo que seu Alexandre não estava, dizendo o seguinte:
– Ele mal fala comigo. É difícil viver com uma pessoa assim. Mas ele
não é ruim; nunca chegou um pobre à sua porta para sair de mãos abanando.
Uma vez, falando só (o remédio que toma às vezes não abafa as dores), se
lamentou, em voz alta: “Por que não morri como tantos outros? Vi tanta
gente cair, perto de mim; por que uma daquelas balas não acertou no meu
peito ou na minha cabeça?”
Tentaria falar com as duas pessoas lembradas por Luíza.
João encontrara, mais de uma vez, a ouvir o Cego Alexandre, um rapaz
magro, alvo, corado, de estatura média, o rosto cheio de sardas, os olhos
amarelos de gato, cabelos ruivos, com um ar de permanente alegria. Era
Chiquinho Andriola, pintor, músico, conversador e rico contador de boas
anedotas. Resultante de comum admiração pelo cantador, surgiu, entre eles,
boa camaradagem. Seu Alexandre lhe dissera que devia a Chiquinho, à
insistência do rapaz, a inclusão das aventuras de João Grilo, Cancão de
Fogo e Pedro Malasartes no rol de suas cantorias. A linguagem solta, viva,
irreverente desses contos casava bem com o espírito mordaz de seu
Alexandre e o gosto em criticar a vaidade, a usura, a beatice, a hipocrisia de
alguns habitantes da cidade. Chiquinho não admirava, unicamente, a
inteligência e a memória do tocador de rabeca; tecia, também, louvor ao seu
caráter. E dava um exemplo: quando havia criança por perto, não abordava
os casos mais pesados. Gritava: “Tem algum menino por perto?” Só
prosseguia quando alguém de sua confiança assegurava a ausência de
menores.
Foi Chiquinho quem primeiro lhe falou nas agressões e nas ameaças de
toda sorte sofridas pelo cantador, sem que nada afetasse o tom cáustico de
suas críticas. Mas o objeto maior do espanto dos moços era a memória
prodigiosa do cantador, que guardava e repetia, sem vacilar, as longas
histórias de imperadores, princesas e heróis, os versos, os desafios, os
improvisos dos violeiros e poetas de sua predileção. Chiquinho lhe chamava
a atenção para este detalhe: quando recitava versos de qualquer autor,
pronunciava o nome deste, com realce. Exemplificava com a queda que seu
Alexandre tinha por estes versos do Cego Sinfrônio, que apareciam, ora no
começo, ora no fim das cantorias, mas sempre invocados sob o nome do seu
autor:

Esta minha rabequinha


É meus pés e minhas mão,
Minha foice e meu machado.
É meu mio e meu feijão.
É minha planta de fumo,
Minha safra de algodão.

Ainda se reportando a alguns maus tratos sofridos por seu Alexandre,


Chiquinho observou:
– É um mistério a fonte das informações colhidas pelo nosso amigo,
sempre inconvenientes, mas sempre verdadeiras. Ora é um comerciante que
forjou falência; ora um conquistador barato a se gabar de um caso de
adultério; ora um criminoso condenado que, em plena feira, desafia a
moleza da polícia.
João ponderou:
– Ninguém lhe dá um conselho?
– Quem, João? O cego é brabo, e não admite palpites no seu ofício.
Conselho lhe dou eu: não se meta nisso.

Uma noite acertaram uma visita a seu Alexandre. Lá, na casa do Alto
do Cabelão, já estavam Manoel Santana. David Casimiro e Dimas Andriola,
irmão do Chiquinho.
Conversaram sobre os assuntos mais diversos: Lampião, Padre Cícero,
o Delegado, o Prefeito, o Doutor Juiz de Direito. Este continuava, no meio
de qualquer conversa, a mandar todo mundo para o inferno (“Vão pros
infernos, viu?”). Já perto de sair, vencendo a timidez, João insinuou:
– Graças a Deus, seu Alexandre, o senhor não foi mais molestado por
esses bandidos...
– É a lei da compensação, meu amigo: nunca mais mexi com alguém.
– Não é melhor assim?
O cego demorou a responder. Trincou os dentes, mastigou em seco,
coçando os cabelos brancos. Quando falou, a voz estava contida:
– Compreendo sua preocupação, mas não houve progresso, nesse
sentido. O que tem me faltado é assunto. Na minha idade não se muda mais.
Torto até agora, torto até o fim.
Referindo-se à ameaça, à nova ameaça de Lampião em atacar a cidade,
David perguntou ao cantador:
– O cangaceirismo, um dia, terá fim? Era a pobreza da região
responsável pela existência do cangaço?
Luíza apareceu com uma bandeja e algumas xícaras de café. Dimas
Andriola acendeu um cigarro para seu Alexandre, que se voltou na direção
de David:
– De certo modo, sim. Mesmo no sul, na zona rural, ocorre o mesmo
fenômeno. No Nordeste, pelo que me foi dado observar, o cangaço passou a
ser, de uns tempos para cá, um meio de vida. Entra-se num bando como
quem senta praça na Polícia. As secas prolongadas ou repetidas, além de
destruírem os laços familiares, geram o desemprego em massa, as retiradas,
os famintos, os doentes da fome, os revoltados. Desse meio saem os
assaltantes das estradas e das fazendas e os bandos de cangaceiros.
João Boanova entrou no assunto:
– Onde houver ou quando houver fome, seca, miséria, há de aparecer o
bandido?
– Com esse rigor, não. Além dessas causas próximas, visíveis, há
outras, remotas, distantes, que ajudam a explicar a origem do cangaceiro.
Na Paraíba, por exemplo, pode-se apontar, nas milícias formadas pelos
donos das sesmarias ou seus herdeiros, o aparecimento de chefes e
bandoleiros, na medida em que tais milícias iam se extinguindo.
Deu uma boa tragada no cigarro de palha e continuou:
– Falei em causas remotas. Vocês sabem que a quase totalidade da
população sertaneja é de origem índia. Guarda-se de geração para geração a
marca do ressentimento, pois os antigos moradores destas terras foram delas
desalojados a ferro e fogo. Os criadores de gado, além de massacrá-los,
tomavam suas mulheres, seus filhos e a longa paz que conheciam.
David, com jeito, objetou:
– Mas os índios não se caracterizaram pelo nomadismo? Não paravam,
não criavam raízes...
– Nem tanto assim. Onde existiam condições favoráveis, como no
Cariri cearense, eles se fixavam de modo permanente. Voltando à praga do
cangaceirismo, um dia desaparecerá. A estrada, a água represada, o governo
sensível e responsável, tudo junto poderá realizar esse milagre. Quem sabe
se você, David, com sua engenharia, poderá ajudar nessa transformação...

***

João Boanova ensinava no Instituto São José matérias preparatórias


para o Exame de Admissão ao Curso Secundário: Português e Geografia. A
escola funcionava numa residência antiga, adaptada pelo Professor Tercílio
Pindorama, seu diretor e proprietário. Além do curso para o exame de
admissão, havia os cursos de primeiras letras e o elementar. Letícia Soares,
sobrinha do Diretor e Secretária do Instituto, por quem Boanova tinha uma
certa queda, avisou-o que o Diretor queria falar com ele no “Gabinete”. O
Diretor ocupava uma pequena sala, que diminuía com o volume do homem,
que mal cabia na cadeira de braços. O Professor Pindorama não era alto,
mas o rosto redondo, corado, as sobrancelhas grossas saindo acima da
armação dos óculos, a cabeça grande, o pescoço forte, enchiam a diminuta
sala. Ignorava João Boanova o motivo do chamado, o segundo ou terceiro
durante os seis meses que ali ensinava.
– Bom dia, Professor!
– Bom dia, João. Sente-se, por favor.
O Diretor levantou-se da cadeira com dificuldade, passou o trinco na
porta, explicando:
– Vamos tratar de assunto delicado, confidencial. Não quero que nos
interrompam.
Sentou-se, de novo, sob os gemidos da cadeira, cruzou as mãos em
cima da mesa, e desfechou a primeira pergunta:
– Desde quando o senhor conhece o Cego Alexandre, o cantador da
feira?
– Há cerca de três meses, se muito.
– Como se deu essa aproximação?
– Por acaso. Ia caminhando, pelo Mercado, em companhia de um
amigo, Manoel Santana, quando este me convidou para ouvir o cantador, de
quem muito gostava. Houve alguma coisa com ele?
– Não, senhor. Depois disso, passou a ser um dos seus ouvintes mais
assíduos...
– É verdade; quando posso, nos sábados que não vou à fazenda, vou
ouvir seu Alexandre. Há inconveniência nisso?
O Diretor soergueu os ombros e, com eles, a grande cabeça. Ajeitou os
óculos, sorriu, contrafeito, e aproveitou a deixa:
– Foi bom o senhor perguntar; há inconveniência, sim, professor. Estou
seguramente informado de que esse violeiro usa uma linguagem chula,
grosseira; que as histórias que canta são livres, indecorosas, chocantes. Que
é, em suma, um homem irreverente, agressivo, imoral.
João percebeu que a conversa estava descambando para um ponto
desagradável. Procurou defender o amigo:
– Imoral, não, professor. A informação que lhe deram não é correta;
agressivo, talvez, mas imoral, não. Pelo menos pelo que tenho ouvido ou
presenciado.
O Diretor pigarreou; ajeitou os óculos pesados com as duas mãos e
prosseguiu:
– O senhor é um moço de boa família, inteligente, de bom caráter; está
conosco há uns seis meses e deve saber que o nosso estabelecimento se rege
por sólidos princípios morais, fundamentados na doutrina cristã.
– Sei disso, professor, e tenho procurado respeitar esses princípios.
– O assunto é delicado e me parece que o senhor não percebeu sua
gravidade. Não interessa ao Instituto seu relacionamento com esse cantador.
– Como assim?
– O cego Alexandre não respeita autoridades, instituições, costume, a
própria santidade da Igreja, os sacerdotes.
– Não disse há pouco que o senhor tinha sido mal informado? As
histórias que conta, envolvendo padres pouco virtuosos, como a de João
Grilo, por exemplo, são do século passado; ele não as inventou...
– Não me refiro a essas histórias que, para mim, são escabrosas e não-
edificantes. Falo em casos concretos, ocorridos em nossa cidade, pois seu
cantador não respeita o decoro familiar, a intimidade sagrada do lar. Será
que o senhor nunca o escutou atacando a honra de uma mulher casada e o
respectivo marido?
Noutra situação, Boanova teria tido pena do professor Pindorama, de
sua visão estreita do assunto, de sua implacável intransigência. Nesse caso,
não; o Diretor estava sendo intolerante, injusto. E, pelo que lhe parecia,
estava a preparar o lançamento de um ultimato à sua amizade com o tocador
de rabeca. Acontecesse o que acontecesse, não podia ficar calado.
– Para falar a verdade, eu mesmo nunca ouvi seu Alexandre falar em
caso de adultério. Sei, entretanto, que já foi agredido, algumas vezes, pelo
sedutor barato que vivia a gabar-se de sua conquista. É o que me têm dito
alguns amigos meus.
– Parece, meu rapaz, que seu envolvimento com o cantador é mais
profundo do que pensava. Ignora, porventura, que ele sustenta a doutrina de
que os proprietários exploram o suor dos seus moradores, dando-lhes, pelo
sistema de meação, migalhas pelo seu trabalho?
Esse era, realmente, um dos assuntos prediletos do cantador,
particularmente o que ocorria com o plantador de algodão, que vendia seu
produto na folha.
– Sabe o senhor – continuou o Diretor – que essas ideias são perigosas,
subversivas, atentatórias ao direito de propriedade, que é base da ordem e
do progresso?
– Ora, professor Pindorama, que influência pode exercer um cantador
cego perdido nesse mundo do sertão?
– É o que você pensa. Fomos informados que numa das reuniões do
Grêmio Artístico Cajazeirense esse assunto já foi discutido.
– O senhor me desculpe, professor, mas não vejo gravidade em
discutir-se determinado problema, mesmo que ele atinja o interesse dos
donos de terra.
– Como o senhor.
– Sim, como eu ou minha mãe, que é a dona da terra.
O professor Pindorama afastou-se um pouco da mesa, engrossou a voz
e disse:
– Acho que já disse o que tinha a dizer. O senhor não aceitou minhas
ponderações e meu conselho. Falei como amigo e, agora, quero falar como
Diretor do Instituto: sua amizade com esse cantador afeta sua condição de
professor e de orientador da juventude. Nossa missão, tenho dito sempre,
não é só instruir: é principalmente educar. É inconciliável sua presença
neste curso com a manutenção desse relacionamento.
– Está bem; o senhor é o Diretor. Manda quem pode.
Nessa altura, o professor Pindorama não olhava mais para João
Boanova; olhava para as mãos, que entrelaçava, estalando os dedos.
Finalizou a conversa:
– O senhor fica ensinando até o fim do mês, dando-me tempo para
preparar sua substituição.
Boanova levantou-se. Percebeu um disfarçado sorriso nos lábios
grossos do Diretor. Convenceu-se, naquele momento, estar diante de um
estranho, de um desconhecido. E tornou esta decisão:
– Não, professor. Deixo hoje mesmo de ensinar.
– Mas, rapaz, pense no que está fazendo, na repercussão do seu ato, do
afastamento brusco do Instituto.
– Já pensei. Não estou tomando nenhuma decisão precipitada. Não era
isso que queria? O senhor falou clara e longamente, dando-me tempo para
refletir. Digo-lhe uma coisa: o senhor está cometendo uma injustiça contra
um pobre violeiro cego. Adeus.
Levantou-se, abriu a porta e saiu para a rua. Vinha entrando na escola
Letícia Soares. Fez que não viu a menina. Era difícil ser amável naquela
hora. Que tinha, no entanto, a sobrinha do Diretor do Instituto com a
ruindade do tio?

À NOITINHA, na hora da ceia, narrou, sem nada omitir, a conversa com o


Professor Pindorama e seu afastamento do Instituto. A reação foi
compreensiva, mas discreta, por parte de dona Adelina:
– Fez bem. Não lhe deixaram outra saída. Seria humilhante
permanecer na escola diante da condição imposta.
Derramou leite quente no cuscuz de milho, adoçou a mistura e
prosseguiu:
– Compreenda o sentido de minha pergunta: não está se envolvendo
demais com a vida e os problemas do seu amigo, o cantador? Por que essa
prevenção do Diretor da escola para com seu Alexandre?
– Gosto muito de seu Alexandre, é verdade; mas não aprecio somente
o violeiro e poeta: vejo nele a figura de um homem decente, íntegro. Fui
exato no relato que lhe fiz. Deve ter impressionado à senhora a pecha de
subversivo que lhe lançou o Diretor. É perigoso para o País reclamar contra
a compra, a preço vil, do algodão em rama? O professor Pindorama foi tão
virulento, tão implacável, que fico pensando na hipótese de ter sido seu
nome citado na cantoria de seu Alexandre.
– Como, meu filho? O professor é um homem sério, comunga todo
domingo, reza terço em cima de terço...
– Talvez esses excessos escondam alguma coisa. Lembra-se do
episódio do fariseu, exemplificado pelo Cristo? Seu Alexandre não perde a
oportunidade de criticar um tipo desses quando sabe que não é sincero,
“Sepulcros caiados por fora” – é a expressão que repete, sabendo que ela
vem do Evangelho.
Dona Adelina deu o assunto por encerrado:
– Aconteceu; você agiu certo; menos por orgulho ou vaidade do que
por uma questão de honra, de dignidade. Seu pai teria aprovado sua decisão.
Tenho certeza disso.
No dia seguinte, que era domingo, foi, cedo, à casa de Chiquinho
Andriola. Este havia saído (ou dormido fora?), mas Dimas o recebeu com a
alegria de sempre:
– Sente-se, João; vou mandar passar um cafezinho.
– Tomei café agora, Dimas. Obrigado.
– Diga-me uma coisa: você já provou o café de Donana?
– Não me lembro; acho que não.
– Então vai ver o que é café.
O café estava bom mesmo, e elogiou a habilidade de Donana, irmã dos
rapazes. Depois que ela se retirou, contou a Dimas o episódio de sua
exoneração. Dimas o escutou atenciosamente, sem interrompê-lo. Quando
Boanova terminou de falar, indagou:
– Pensa, então, que seu Alexandre “mexeu” com o professor
Pindorama? Pode ser. O cego, sabemos, é um homem decente, íntegro, mas,
como todo bom cantador, tem sua veia moleque. A irreverência é um dos
traços dos seus versos.
– É a única explicação que encontro para a prevenção doentia do
professor Pindorama contra o cantador. Não quero julgar ninguém, nem
tome como despeito o que vou dizer: o Diretor é o padrão perfeito para uma
caricatura. Ele ostenta e proclama as suas virtudes; olha todo mundo de
cima para baixo; anda na rua de cabeça erguida, superior, distante. É o
modelo ideal para a mordacidade do nosso amigo.
– Pode ser, João. Não falta gente para soprar nos ouvidos de seu
Alexandre a pose do professor, a exibição reiterada de suas virtudes morais,
cívicas, religiosas. Já ouvi alguém dizer que parece uma concessão a Deus,
de sua parte, seu comparecimento às missas, terços e novenas. Parece que é
o safado do meu irmão quem diz isso. Mas, vamos mudar de assunto. Você
gosta de passarinho?
– Gosto.
– Então venha ver minhas riquezas.
Começou por um concriz amarelo forte e preto, o olho vivo e
malicioso, que, mansamente, saía da gaiola e vinha cantar no dedo do seu
dono. Havia, ainda, no alpendre dos fundos da casa, um graúna, pretíssimo,
enchendo o dia com seu canto forte; um galo de campina, na muda, estava
capiongo, sem graça, mas, em compensação, os canários da terra tornavam
a manhã mais luminosa com seus trinados e sua movimentação.
Depois da visita aos pássaros, Dimas convidou João Boanova para ir
com ele pegar um canário valente e cantador, que, segundo informações,
fazia ponto na Usina Santa Cecília, do Coronel Matos. Dimas segurava uma
gaiola, dentro da qual estava uma canária, a “chama” para a aventura.
Anexo, um alçapão.
Foi uma grande manhã. Esqueceu o Instituto, o Diretor, os alunos, e só
teve tempo para participar da sensação nova e gostosa de ver as manhas de
um pássaro esquivo. A gaiola foi colocada na sombra de um pé de turco.
Dimas e ele procuraram uma sombra e se sentaram. Já havia, nas
imediações, outros pegadores de canário, com seus alçapões armados, na
espera, calados. Passado algum tempo, Dimas apontou, com um gesto, dois
pontos amarelos, móveis. Era o canário cor de ouro e sua companheira.
Nunca mais iria esquecer a emoção de ver um canário bonito, arisco, cheio
de fogo, baixar para a clareira onde estavam as gaiolas, com as “chamas”
em movimentos elegantes, olhar as gaiolas, conversar com as canárias,
pular de uma gaiola para outra, ver a comida dos alçapões e, depois, voltar
para o ponto de partida; lá, na cumeeira da Usina, soltava, feliz, seu canto
livre, claro, belo, solar. Demorava um pouco ao lado da companheira, que
nunca se afastava, e voava, como uma flecha, para cima das gaiolas,
fazendo que entrava, mas não entrava. Era uma beleza!
Boanova ficou torcendo, em silêncio, para que o canário tivesse juízo.
Naquela manhã, pelo menos, os pegadores perderam a parada. O canarinho
amarelo voou para a cumeeira e, de lá, para a liberdade.
Durante a longa espera para a captura do canário arisco, João Boanova
disse a Andriola:
– Tenho seguido o conselho de vocês, deixando de me preocupar com
o passado misterioso de seu Alexandre. Primeiro, por ser esse o seu desejo:
cortar todas as amarras de sua vida anterior à chegada a esta cidade.
Dimas concordou com a resolução do rapaz, afirmando:
– Você está certo. Compreendo seu desejo em ajudá-lo, impressionado
pela sua pobreza e solidão. Já passei por isso, também. Depois... Uma noite
de chuva pesada, com os relâmpagos iluminando o céu e os trovões
estalando, violentos, quebrando o mundo em pedaços, ele recitou, da porta
de sua casa, um soneto de Antero de Quental. Contou-me, na ocasião, o
desafio do poeta a Deus, em cima dos rochedos, numa noite de tempestade,
intimando o Senhor a matá-lo com um raio, caso existisse ou tivesse força
para tal. Senti, no momento, que ele era capaz de fazer o mesmo.

Já se preparavam para voltar, quando Dimas, de surpresa, disse a


Boanova o seguinte:
– Você provou que é amigo do Cego Alexandre, chegando a deixar,
por causa dele, de ensinar no Instituto São José. Vou contar para você,
pedindo toda reserva, a verdade: foi Raimundo Anastácio quem trouxe seu
Alexandre para Cajazeiras.
Boanova tranquilizou o amigo:
– Pode ficar certo de que o assunto morrerá aqui.
Dimas, repetindo as palavras de Raimundo Anastácio, narrou o
seguinte:
– No começo do ano, disse o “índio”, no mês de fevereiro, fui a
Piancó, de onde ia trazer vinte reses compradas pelo Coronel Galdino Pires.
Os tempos estavam carregados. Só se falava nos estragos da Coluna Prestes.
Dizia-se que os “revoltosos” matavam quem se atravessasse no seu
caminho. Isso só era verdade com relação ao gado que “requisitavam”,
deixando um papel sem futuro nas mãos dos fazendeiros.
“O Coronel Galdino, rodando o molho de chaves, contratou os meus
serviços. A fazenda para onde ia ficava entre a cidade de Piancó e a
povoação de Coremas. Separado o gado, já me preparava para voltar,
quando se soube que a Coluna Prestes havia tomado Piancó. No dia
seguinte, pessoas vindas daquela cidade davam notícia da invasão dos
‘revoltosos’ e da morte do Padre Aristides e de todos os amigos que
lutavam a seu lado. No dia seguinte viajei pela madrugada, seguindo
comigo um vaqueiro da fazenda, pois era impossível tanger, sozinho, vinte
reses. Não tinha três horas de viagem quando, numa curva da estrada,
apesar da zoada feita pelo gado, ouvi uns gemidos. Mandei que o vaqueiro
prosseguisse com os animais, devagar, e tentei localizar o que me pareceu
ser uma pessoa gemendo. E era. Todo ensanguentado, um homem que me
pareceu de certa idade tinha sido jogado à margem da estrada. Seu rosto era
uma pasta de sangue e areia. Procurei erguer sua cabeça e ele deixou de
gemer, articulando algumas palavras com um esforço extraordinário:
‘Tenho algum dinheiro na bolsa que está dentro das calças. Ajude-me que
eu lhe dou uma recompensa.’ Depois, desmaiou. Ouvi, nesse instante, o
som de uma carroça chiando na estrada. Retirei, depressa, a bolsa de couro
que estava presa ao cinturão grosso, por dentro. Quando a carroça chegou
mais perto, percebi que era um grupo de ciganos. Fiz um sinal e eles
pararam, desconfiados. Falei a eles do meu achado. ‘Não temos nada a ver
com isso!’ – gritou um deles. Os demais – eram cinco – concordaram com o
que falou. Nisso, de dentro da carroça saiu uma mulher, que se aproximou
de mim e perguntou: ‘Quem fez isso?’ Eu lhe respondi: ‘Não sei, minha
senhora. Vou levando um gado para Cajazeiras – vai ali adiante – quando
ouvi os gemidos desse infeliz e parei. Logo depois vosmincês apareceram.’
O cigano que falara antes entrou na conversa: ‘Vamos embora, Zaíra. Isso
só nos pode trazer encrenca. Estou vendo, pelo lenço que o ferido traz no
pescoço, que ele é um revoltoso.’ Confesso que fiquei embatucado, pois
ouvira, na fazenda, ainda há pouco falarem na ‘ruindade’ dos homens da
Coluna. Assim mesmo, arrisquei: ‘Posso recompensar vocês pelo trabalho.
Não podemos deixar esse homem para pasto dos urubus, que já estão
voando em círculo.’ Depois de longa pausa, a mulher decidiu: ‘Ele vai na
carroça, mas nós vamos parar em Sousa.’ Disse-lhe que de Sousa em diante
eu me arranjaria. Victor, que parecia ser o marido da cigana, ficou mais
brando depois que falei em recompensa. Comentou: ‘Devem ter sido os
soldados.’ Dona Zaíra completou: ‘Que ninguém me ouça, mas entre a
Polícia e os revoltosos, fico com estes.’ Ali mesmo, na estrada, fez os
primeiros curativos, lavando as feridas, retirando sangue e terra da cara do
homem, que perguntou, com a voz enfraquecida: ‘Onde estou?’ Quis levar a
mão direita aos olhos, mas a cigana não deixou, dizendo, com firmeza:
‘Estou lavando suas feridas; o senhor está entre amigos’.”
Dimas fez uma pausa, vendo a evolução do vôo do canário rebelde.
Prosseguiu com a narrativa: “Me aproximei dele, contou seu Raimundo,
dando meu nome e tranquilizando o ferido: ‘Eu encontrei o senhor na
estrada. Está tudo bem. Essas pessoas cuidarão bem do senhor. Vou levando
um gado para Cajazeiras e, depois, venho buscar o senhor. Entendeu?’ O
ferido balançou de leve a cabeça. Arrumou-se o homem na carroça e, antes
de partir, fiz que ia atender a uma necessidade, atrás dumas pedras. Abri a
bolsa e retirei cinco notas de vinte mil-réis, que entreguei à cigana. Ela fitou
bem o dinheiro e me disse: ‘Pode entregar a Victor, meu marido.’ Perto de
Sousa, encontrei o vaqueiro que estava com as reses debaixo de dois
juazeiros. Foi bom, pois confirmou o que havia dito. O Victor, menos hostil,
ainda com o dinheiro na mão, me perguntou: ‘Como podemos ter certeza de
que o senhor vai voltar para levar o homem?’ Os outros ciganos, sentindo o
cheiro de dinheiro, se acercaram de nós. Falei, então, com toda franqueza,
afirmando, em primeiro lugar, para espanto deles, que já tinha vivido no
cangaço, mas que hoje era um homem da minha casa e do meu trabalho.
Era comerciante estabelecido e respeitado, em Cajazeiras, onde todo mundo
me conhecia. Vi que minhas palavras não foram suficientes para
tranquilizar os ciganos. O Victor me perguntou: ‘Por que tanto interesse de
sua parte por esse homem, que viu, hoje, como nós, entregando a gente essa
importância para cuidarmos dele? O senhor é, por acaso, um revoltoso,
também?’ Sorri, desconfiado, procurando ganhar tempo. Soltei, então esta
mentira: ‘Ele me deu a entender que era padre. Como sou muito católico,
não podia deixá-lo na estrada. Tenho certeza de que o Bispo vai me
devolver o dinheiro que gastar nessa obra de misericórdia.’ O Victor, que
era um bocado ladino, e querendo, talvez, arrancar mais dinheiro de minha
parte, alegou que a situação piorara muito, pois os ciganos não queriam
encrenca com os padres. Felizmente, com muito senso, a mulher veio, de
novo, em meu auxílio. Falou com o marido: ‘Temos a carroça e o homem
não pode viajar a cavalo.’ Virou-se para mim e indagou: ‘Podemos confiar
no senhor, seu Raimundo?’ Respondi a dona Zaíra: ‘Tem que confiar, minha
senhora. Sou um homem pobre, mas de palavra. Estou levando um gado do
Coronel Galdino. Pires, que é dos Pires Ferreira, de Sousa. Se não fosse um
homem de confiança, iam me dar esse serviço?’”
Dimas completou a história:
– Seu Raimundo viajou a Sousa quinze dias depois, conforme
combinado. Encontrou seu Alexandre bem melhor, apesar de estar todo
coberto de curativos. Quando ficaram sós, esclareceu ao homem que estava
com o dinheiro contido na bolsa, perto de cinco contos de réis. Foi nessa
ocasião que seu Raimundo lhe perguntou: ‘Como é o nome do amigo?’ Ele
respondeu: ‘Alexandre.’ Agradeceu ao “índio” o que fizera por ele. Falou,
em voz baixa, na quantia que Raimundo dera a Victor e lhe disse: ‘Dê mais
duzentos mil réis. Eles me levaram ao médico, doutor Silva Mariz, parece,
que teve, também, grande trabalho, pois me enfaixou todo, devido a várias
costelas quebradas. Acerte com o médico, também, as despesas relativas ao
tratamento.’ Não estava, ainda, em condições de viajar. Pediu que alugasse
uma casa pequena, barata, mas limpa, afastada do centro. O resto, você
sabe.
Boanova fez, ainda, esta indagação:
– Como seu Alexandre – será mesmo Alexandre o nome dele? – se
transformou em cantador de feira? É um mistério menor, mas intrigante
tanto quanto sua origem. Na conversa, é fácil perceber que ele é um homem
do sul; na cantoria, entretanto, ninguém dirá que não seja um homem da
região.
Dimas explicou:
– Ele temia que, quando o dinheiro acabasse, fosse obrigado a pedir
esmola. Me disse que passou em revista o que poderia fazer, e nada
descobria. Um dia, na feira, ouviu um cantador. Achou, então, que estava
ali a explicação que procurava. Começou a comprar tudo o que era folheto
de feira. Eu mesmo mandei comprar alguns impressos em Campina Grande.
Ainda hoje – sou eu o escrevinhador – mantém correspondência com Pedro
Batista, de Guarabira, com Leonardo Mota, de Fortaleza. Este último lhe
enviou alguns livros como “O Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de
França”, as histórias de “Mil e Uma Noites” e alguns mais. Gostava,
particularmente, da vida de Don Quixote, sobre quem nunca versejou, mas
cujas aventuras ouvia com deleite, na leitura que eu ou Chiquinho, meu
irmão, fazíamos para ele. Um dia me confessou: “Não sei o que seria de
minha vida se não tivesse inventado esse duro ofício de cantador. Teria
enlouquecido, talvez.”

Ao despedir-se de Manoel Santana (ia viajar para o Crato, no Ceará,


com sua mãe), João Boanova pediu-lhe este favor:
– Sei que você gosta do Cego Alexandre. Torne mais constantes as
visitas que lhe faz. David faz isso, habitualmente.
– Tá certo, João; mas por que o pedido?
– Nosso amigo está passando horas mais amargas do que as que tem
vivido até hoje. Está desenganado. O doutor Otacílio Jurema lhe dá poucos
meses de vida. Trata-se daquela doença de que não se diz o nome. Sabendo
de minha amizade pelo velho, o médico me confiou o segredo.
Manoel Santana passou a visitar mais amiúde o Cego Alexandre. Até a
partida de David, iam os dois, noite sim, noite não, para a conversa que se
prolongava, às vezes, pela madrugada. Quando David Casimiro viajou,
Dimas Andriola passou a acompanhá-lo. Tinha receio de ficar só com o
cantador: o silêncio é tão indiscreto como as palavras inoportunas. Uma
noite, seu Alexandre quebrou o mistério em torno de sua doença:
– De há muito tenho percebido o esforço que realizam, tanto você,
Dimas, como Manoel, para esconder o segredo do meu mal. Boanova e
David assim procederam, também. A estes últimos devia ter confessado o
que faço, agora, a vocês: estou conformado. Não é simples resignação
diante da fatalidade; é a aceitação consciente do fim dos meus dias. A
agressão desumana que sofri, culminando com a cegueira, encheu meu
coração de fel. Mas a atitude, a bondade, a correção de uma pessoa
findaram me reconciliando com a humanidade e, de certo modo, com o
Senhor. Dimas sabe de quem se trata, e acho que você também, Manoel.
Sim, foi Raimundo Anastácio, ex-cangaceiro, esperto, astuto, manhoso
como uma raposa, quem me arrancou do desespero. O povo tem razão
quando proclama que a esperança é a última que morre... Vocês sabem do
procedimento dele. Encontrou um homem semimorto, na beira da estrada, e
lhe deu a mão com piedade e extrema correção. Entreguei-lhe, na ocasião,
minha bolsa contendo cinco contos de réis, dinheiro que trazia desde que
deixei a casa. Não houve testemunha do fato, a não ser o sol inclemente.
Além de me salvar o corpo, com a ajuda de um bando de ciganos, defendeu
meu pobre dinheiro, e, penso eu, pode ter salvo minha alma desesperada.
Dimas pigarreou, como se fosse interrompê-lo, mas levantou a mão
direita à altura dos olhos e terminou:
– Não há mais nada a dizer. Queria que vocês transmitissem a Boanova
e a David o que acabo de expressar. Só a eles, e a ninguém mais.

Quando João Boanova regressou a Cajazeiras, um mês depois do


ataque dos cangaceiros, visitou seu Alexandre algumas vezes. A conversa
passara a ser mais natural, sem o constrangimento do segredo. Disse no
primeiro dia: “Dimas falou comigo.” As palavras romperam a barreira que
os isolava da verdade.
Recordaram os amigos distantes e os que tinham morrido. Durante
esse tempo, o cantador lhe falou, com detalhes, sobre o ataque de Sabino a
Cajazeiras e a resistência desesperada dos seus habitantes. João lhe disse:
– Por que não dita o que me tem contado a Dimas? Passaria a ser um
momento destacado da história da cidade, pacata e rezadeira, que soube
reagir, expulsando, depois de quatro horas de tiroteio, os cangaceiros de
suas ruas.
Respondeu:
– Vamos deixar isso para os mais novos. Poderia criar nova onda de
desafetos com algumas revelações indiscretas.
Mudou o tom da conversa, contando a Boanova que Raimundo
Anastácio havia recebido carta de David Casimiro, pedindo ao “índio”,
“conforme vocês o apelidam”, para, se não puder, arranjar uma pessoa que
o acompanhe na perseguição a Sabino, autor da morte de seu pai e do seu
irmão. Sugeriu a João Boanova:
– Sei que está indo embora, mas quando David retornasse, e isso será
breve, você não poderia fazer alguma coisa para mudar a resolução daquele
amigo? O rapaz sofreu demais, mas a tarefa que tem em mira é irrealizável.
Boanova, depois de algum tempo, declarou:
– Fica muito difícil, para mim. Mas farei o que estiver ao meu alcance.
Sei que aquele nosso amigo tem a cabeça dura, mas Irene pode ajudar. Não
há nenhum compromisso formal entre os dois, mas a verdade é que se
amam.
Avisando que ia viajar no dia seguinte, despediu-se do Cego
Alexandre. Nem abraço, nem palavras formais. Um simples aperto de mão.
Como se pudesse enxergar, veio até à porta, apoiado no seu bastão de
baraúna. Os cabelos brancos, agitados pela brisa vespertina, emolduravam o
rosto forte queimado pelo sol do sertão. Uma ave solitária traçava, no céu
sem nuvens do entardecer, um desenho ondulante e caprichoso.
O homem emagrecera muito nos últimos meses, mas o ânimo se
espelhava no rosto tocado pela dor, que a ação do tempo vincara de rugas
profundas, como caminhos de lágrimas amargas.
Três

DIZIAM: a terra é um bolão de ouro, pela fertilidade do solo profundo e pelo


privilégio de ficar situada no sopé da serra da Preguiça, sempre verde. Da
serra descia um riacho que cortava quase toda a propriedade e só secava nas
estiagens prolongadas. Fazia gosto ver o canavial, uma espécie de oásis no
meio da desolação da paisagem cinzento-avermelhada. Mas isso não
aparecera por acaso: por detrás das plantações de cana, de algodão, de
milho e de feijão, e do capim para o gado, estava o trabalho pertinaz e
infatigável de Raimundo Casimiro. Recebera, de herança, com a morte dos
pais, a Fazenda do Canto, mas soubera aproveitar as possibilidades da terra,
trabalhando como um mouro. Mordidos por uma ponta de inveja, alguns
comentavam: “Aquilo não é uma fazenda; é um sítio.”
Dona Lúcia, sua mulher, tinha sido um esteio para o bom resultado
obtido: morava na fazenda, lá passando de janeiro a janeiro, só indo à
cidade em datas especiais como a Semana Santa, Natal e Ano-bom. Tinham
uma casa na cidade, mas só a utilizavam raramente. Nessas ocasiões,
Genuíno, o vaqueiro, e sua mulher, Antônia, iam na frente para limpeza e
arrumação. Quando David completou dez anos, dona Lúcia convenceu o
marido a internar o filho no colégio dos padres ou, então, abrir a casa da
cidade, onde passaria os dias úteis. Raimundo Casimiro relutou, falou em
despesas e na necessidade de David se integrar, como único herdeiro, na
vida da propriedade. Dona Lúcia fez finca-pé e ficou acertado que o menino
iria para o internato. Órfã, sobrinha do vigário, sabendo o valor da
instrução, tendo interrompido o curso de professora para casar, foi ela quem
ensinou a David as primeiras letras, noções de Geografia, História do Brasil
e Aritmética. Viu que o filho tinha facilidade para aprender e só precisava
de oportunidade para tornar-se um homem instruído. Vendo seu esforço,
David chegou, em certo momento, a pedir-lhe para não insistir, pois seu
Raimundo poderia aborrecer-se. Mansa, humilde, mas obstinada, ela disse:
– Pois eu vou para a cidade. Você terá a oportunidade que eu não tive.
Acho que isso corresponde, também, ao que você deseja.
Para ele foi uma surpresa aquela firmeza da mãe, sempre obediente e
submissa à vontade do marido. Assim é que, em começos de 1918, foi
matriculado no Curso Elementar do Colégio Padre Rolim, como interno.
Foi como se abrisse para os seus sentidos um mundo novo: a convivência
com dezenas de meninos da sua idade, o relacionamento com os
professores, o impacto das aulas, o aprendizado de novas matérias, que lhe
pareceram, a princípio, complicadas, diferentes, inacessíveis à sua
inteligência. Em face do desembaraço dos seus colegas, achava-se um bicho
do mato. Pensou em desistir. Para isso concorreram as brincadeiras armadas
pelos companheiros, que eram mais vivos, mais preparados do que ele. Mas
se lembrou da luta da mãe para colocá-lo no colégio e isso lhe deu ânimo
para suportar sua amargura e sua perplexidade. Foi um professor, Félix
Pamplona, ex-seminarista, meio distraído, motivo de mofa por parte dos
alunos, quem veio em seu auxílio, compreendendo sua indigestão
intelectual. Passaram a conversar nas horas vagas, criticando o professor
seu esforço exagerado, mas inútil em acompanhar a marcha dos seus
colegas. Deu-lhe o professor Pamplona a sugestão de um método de estudar
mais simples. Primeiro, mostrou-lhe que não era preciso decorar tudo,
espremendo as disciplinas como a moenda do engenho de rapadura da
fazenda. Havia alguma coisa que deveria ser fixada na memória, mas o
principal não era decorar, mas compreender, retendo o essencial e pondo de
lado o que era secundário. Dentro de um mês, deixou de ser a figura cômica
da classe, explorada pela malícia de alguns professores, que o expunham à
mangação dos outros alunos. E passou a responder, no começo, indeciso,
vacilante, nervoso, às perguntas que lhe dirigiam, para, lentamente, ir
mostrando que não era tão rude como parecia.
Quando teve permissão de passar o primeiro domingo junto à família,
conversou, na ausência do pai, essas coisas com dona Lúcia, que se
enterneceu com seu sofrimento e sua tenacidade. A mãe lhe fez, com jeito,
algumas perguntas, na frente do pai, e ele as respondeu muito bem. O pai
escutava, sem nada dizer, a conversa dos dois, vendo o mal disfarçado
orgulho da mulher.

Nas férias do fim de ano, a surpresa da gravidez de dona Lúcia, que


estava pesada, andando e respirando com dificuldade em virtude do volume
que carregava no ventre, sempre aumentando. Ouvira, certa vez, na casa de
dona Laura, mulher do primo Leopoldo Batista, quando se comentou sua
situação de filho único, o comentário seguinte: “Lúcia não pode, ter mais
menino; segundo o médico, novo parto lhe pode ser fatal.” A revelação era,
agora, motivo de sua preocupação e de sua angústia. Era obrigado a guardar
o segredo, pois não tinha coragem de falar com seu Casimiro sobre o
assunto. Passou, entretanto, com o decorrer dos dias, a experimentar ódio
surdo e crescente contra o pai, responsável pela novidade.
Este, por sua vez, não escondia sua preocupação, ou a disfarçava muito
mal. Cercava a mulher de atenções e cuidados que nunca tivera, confuso,
perplexo, desesperado. Mas, que podia fazer contra a natureza? Era um
homem forte, saudável, que gostava da mulher, a seu modo.
Quando dona Lúcia, transportada para a cidade, apesar da assistência
do médico, não resistiu às dores e às complicações do parto, morreu numa
longa e dolorosa madrugada, seu Casimiro entrou numa prostração
arrasadora. Sentia-se culpado pela morte da mulher. Calado por natureza,
fechou-se na sua dor, mal falando com as pessoas, nem mesmo com o filho.
David, que o odiara, a princípio, findou se compadecendo de sua dor, que
lhe tirara o gosto de viver.
Agravando a situação, seu irmão nascera como um menino defeituoso,
as pernas tortas, os olhos desgovernados, um ar abestalhado que o passar
dos dias acentuava. David percebeu que seu Casimiro nutria ódio
incontrolável ao filho que trouxera a morte da mulher. Resolveu, um dia,
por conta própria, sem reação do pai, levar o menino para a casa do
vaqueiro e entregá-lo aos cuidados de siá Antônia. A mulher do vaqueiro,
que não tinha filhos, não discutiu o assunto; nem mesmo perguntou se o
fato era do agrado ou do conhecimento de seu Casimiro. Adotou a criança
sem dizer uma palavra, pois tanto ela como o marido, Genuíno, sabiam do
horror que o fazendeiro nutria pelo filho.
E assim se passaram os anos, seis longos anos, até que um dia, criando
coragem, David falou com o pai, pedindo-lhe para Cazuza passar a morar
na casa, aos cuidados de Antônia. Raimundo Casimiro, com a cabeça
inteiramente branca e a barba fechada que deixara crescer, deu ao filho a
resposta surpreendente:
– Não fui eu quem o tirou de casa. Se Antônia vier tomar conta dele,
está tudo bem.
David aproveitou o ensejo para dizer:
– Eu sei, pai. O pobrezinho não teve culpa de ter nascido. Por ser como
é, precisa de mais afeto do que uma criança normal.
Raimundo Casimiro fitou o filho com naturalidade, como se estivesse
descobrindo, naquele instante, seu erro e sua intransigência. Sem que
tivesse trocado, depois, qualquer outra palavra sobre o assunto, mudou,
lenta e progressivamente, seu modo de tratar o menino doente,
restabelecendo, com isso, a ligação com David.
Reagiu, depois, de modo favorável, quando David lhe disse que era
hora de deixar o internato. Nada tinha contra o colégio e os padres, mas já
lhe era constrangedor o regime adotado de missa diária, de orações a horas
certas, de confissões semanais quase obrigatórias.
Seu Casimiro lhe garantiu que iria reformar a casa que tinham na
cidade. Falou até na pessoa que iria acompanhar David: Felismina, viúva do
negro Tomás, antigo empregado da fazenda, que fora, durante muitos anos,
encarregado do engenho de rapadura.
Dito e feito. O pai tomou a seu cuidado a reforma da casa da cidade.
Tendo passado os últimos anos fechada, casa sofrera o desgaste da chuva,
do vento, do sol, do abandono. Estava tudo em petição de miséria: o chão,
as portas e janelas, os quartos, o banheiro, a cozinha; o teto, com as linhas,
os caibros, as ripas, as telhas, tudo se esfarelava. O quintal estava entulhado
pelo lixo da vizinhança, restos de caliça, pedaços de tijolo, de telha,
garrafas, cacos de vidro, tudo misturado e envolvido pela vegetação teimosa
e renitente dos terrenos baldios: mamona, urtiga, pinhão brabo, capim
rasteiro, melão-de-são-caetano.
Depois de uns dois meses de luta, a casa se transformara. Seu Casimiro
pediu a ajuda de dona Laura, mulher do primo Leopoldo Batista, para a
aquisição dos móveis junto aos marceneiros da cidade. As primas Irene e
Ilina, filhas do casal, acompanharam, maravilhadas, os trabalhos de
restauração na fase final. Brincando com David, um brilho no canto dos
olhos, dona Laura achava que seu Casimiro estava preparando um ninho
para o filho. Durante o tempo de interno, quando David não viajava para a
fazenda, almoçava, nos domingos, na casa das primas. Quando veio morar
na cidade, essa amizade se estreitou. A pedido de dona Laura,
acompanhava, às vezes, as meninas às festas que seu Leopoldo não podia
ou não queria ir.
Um dia, Manoel Santana, que era seu amigo, surpreendeu David ao lhe
perguntar, na frente de João Boanova, seu colega no estudo de
preparatórios, qual das duas meninas era a sua namorada. David lhe
respondeu, sem vacilar, com toda sinceridade:
– Nenhuma delas. São minhas primas, como você sabe e Boanova
também.
Este entrou na brincadeira:
– Sabemos disso, David. Mas há muita gente esperando definição de
sua parte para tentar namorar a que sobrar. Duas é que não pode ser, meu
amigo.
A conversa terminou com uma boa gargalhada, mas ele chegou em
casa mergulhado em plena confusão. E o curso superior que pretendia
fazer?
Felismina o esperava, sentada num banquinho tosco, na calçada da
casa. A luz mortiça do poste mostrava a carapinha branca e a atitude de
quem cochilava, toda recurvada. Não adiantava pedir à preta velha que não
o esperasse. Quando o viu aproximar-se, esboçou o gesto inútil de espalhar
a fumaça, escondendo o cachimbo nas dobras da saia imensa. Perguntou:
– Um copo de leite quente antes de dormir?
Agradeceu, sorrindo:
– Não, Felismina; hoje, não.

Foi dormir pensando na insinuação de Manoel Santana, que tinha uma


ponta de verdade. Escondia um segredo que todo mundo sabia. Mudou a
roupa, vestiu a calça do pijama e ficou nu, da cintura pra cima a balançar-
se, lentamente, na rede, que amortecia ou espalhava suas inquietações.
Revia as imagens oscilantes das primas, mas se concentrava no vulto de
Irene, no rosto moreno, nos olhos castanhos, nos lábios cheios, sorridentes,
no busto que enfurnava a blusa branca do colégio. Ilina, amável, meiga, os
olhos azuis sonhadores, era uma doce lembrança, que não doía, como a da
irmã. Não gostava nem de pensar na reação de Irene quando lhe
comunicasse sua viagem. E não podia adiar indefinidamente essa obrigação.
No dia seguinte, sábado, iria à fazenda do Canto falar com seu Casimiro,
abrindo o coração indeciso. Tocaria no seu amor à Irene, que seria
sacrificado pela ausência de alguns anos. Passaria a ajudá-lo, efetivamente,
no trabalho do campo e na comercialização dos produtos. Essa resolução o
deixava insatisfeito e vazio, pois desejava, ardentemente, tentar uma vida
diferente, conhecer outras terras, alargar sua visão das coisas, do mundo, da
vida. Quem sabe se não poderia, depois de formado, levar o irmão doente
para um meio maior, onde existiam os recursos apontados pelo doutor
Jurema? Valeria sua vida inteira se conseguisse incorporar o irmão à
comunidade dos filhos de Deus. O Credo não falava na comunhão de todos,
que era a comunhão dos santos? Como um inocente podia ficar fora dessa
promessa de Deus?
Os armadores rangiam; a rede ia e vinha; antes de parar de todo,
David, com o pé no chão lhe dava novo impulso e a fazia balançar, outra
vez; no ar, como se voasse...
Via, agora, nitidamente, que a malícia dos amigos se estribava na
realidade. Veio-lhe à lembrança, com toda a força da verdade, fato ocorrido,
há cerca de dois meses, num baile realizado na casa do telegrafista e
músico, mestre Zé dos Anjos, quando estava acompanhando as primas, a
pedido de dona Laura. Rosalvo Freire, seu colega de estudos e admirador de
Irene, dançou com ela duas vezes seguidas, em animada conversa, cheia de
sorrisos e olhares terníssimos. O camarada ficara junto da menina,
esperando a nova contradança. No momento em que o conjunto ensaiou os
acordes de valsa conhecida, antes de Rosalvo tirar Irene para dançar, ele a
chamou:
– Irene!
Quando a prima, um pouco assustada, voltou-se para seu lado,
convidou-a para valsar. Ela lhe estendeu a mão esquerda, reclamando:
– Que susto você me deu com esse grito!
– Grito?
– Sim, um grito, uma ordem dada com irritação.
– Ora, Irene, me perdoe. Não tive o propósito de espantá-la.
– Não precisa desculpar-se; você não sabe mentir. Você não é amigo do
Rosalvo?
– Mais ou menos. É que ele estava monopolizando você. Já haviam
dançado duas vezes seguidas. Você sabe como o povo fala. A não ser que
estejam de namoro firme.
– Ah! Então é isso! Ora, David, não sou criança.
Preferiu não dar continuidade à conversa, pois Irene estava tensa. Ia
esperar que a valsa lânguida e suave acalmasse os ânimos. Era um tolo, um
desmancha-prazeres. Fora indelicado, também, com seu colega, que ficou
espantado, com ar de quem viu e não gostou. Mas, ao fim da contradança,
notou que Irene já estava sorridente. E, batendo palmas para os músicos,
confidenciou:
– Não tem sentido meu aborrecimento; compreendo sua intenção, mas,
doutra vez, fale um pouco mais baixo. Você fica parecendo um namorado
ciumento, quando não há nada entre nós...
Se Irene não tivesse juntado às suas palavras um sorriso irônico, teria
dito que sentira ciúmes. Talvez não fosse, aquele, o momento certo. Ou
agira conscientemente, tendo em vista a possibilidade de sua viagem para
estudar fora?
Dormiu mal a noite passada, debatendo-se com o dilema a enfrentar:
ou Irene, ou os estudos. Manhãzinha cedo, selou o cavalo e rumou para a
fazenda. Começava o mês de agosto e a manhã estava fresca e agradável.
As chuvas atrasadas de abril encheram o sertão de verde: o verde do solo,
do pasto, do capim-de-burro; o verde dos arbustos, da jurema, do mofumbo,
do velame, do xiquexique; o verde das árvores grandes, o juazeiro, a
cajarana, a cajazeira, o oitizeiro e a canafístula da beira do rio. A terra do
sol, fremente, era um mundo feliz, libertando-o de sua angústia. Lembrou o
salmo: tudo quanto vive e respira louve o Senhor.

Todas as vezes que ia chegando à fazenda, como naquele instante, era


invadido pela convicção de que sua mãe iria aparecer, de repente, no
alpendre da casa, sorridente, animada, enxugando as mãos no avental
sempre branco. Imaginava, nessa altura, também, como não sofrera o pai
durante os nove longos anos de solidão. Alimentava, assim, a ilusão de que
ele iria compreender a resolução que tomasse de ficar, de ajudá-lo na
fazenda, de casar com Irene, pois o “velho” sabia o que era amar, o que era
sofrer por amor. Ao abrir a porteira, que soltava o mesmo rangido dolente,
vieram, de novo, como uma lufada de vento fresco, as lembranças de dona
Laura ao começar o dia no campo: primeiro, o ritual do leite fresco no
curral; ela, o pai, ele e os moradores mais próximos, cada um com seu
caneco de alumínio para beber o leite ordenhado na hora. Depois de algum
tempo, o café! Que café! Comia-se coalhada, tapioca, cuscuz, queijo de
coalho, queijo de manteiga, linguiça. Nos tempos de “inverno”, época do
milho verde, havia canjica, pamonha, bolo de milho, batata-doce, uma festa.
Logo depois do café, começava para ele a aprendizagem das letras e dos
números. A ex-aluna do Colégio das Freiras tinha seu método e a energia
necessária para o duro exercício de ensinar o menino que ficava pensando
nos passarinhos e nas correrias pelo campo.
A verdade é que não se espantaria, assim, se ela aparecesse, na frente
da casa, alegre, animada, enxugando as mãos no avental inseparável. Para
ele, a mãe não havia morrido. Estava lá dentro, ocupada, sem saber que
havia chegado.
Mal desceu do cavalo, Cazuza, seu irmão, arrastando Antônia, sombra
benfazeja, já estava do seu lado, esperando a lembrança que sempre trazia
da rua: um boizinho de barro, um pacote de caramelos, qualquer coisa que
evitasse a decepção do mano. Viu o pai, com a fisionomia carregada e
perguntou:
– Tudo bem, pai? Alguma coisa errada? Foi o Cazuza?
Seu Casimiro desanuviou um pouco o semblante:
– Notou que você fez três perguntas duma vez? Não há nada de novo.
As ameaças de sempre, as estradas cheias de gente esquisita, e a boataria de
sempre: Lampião está por perto, rondando, esperando a vez de assaltar
Cajazeiras. E nós, no meio do caminho...
Constatava, pela primeira vez (devia ser a ideia de viajar?), que seu pai
tinha envelhecido subitamente. Devia andar pelos 48 anos, talvez, mas
parecia um homem de 60 anos. Os cabelos brancos, a barba, o bigode; só
resistiam, como um sinal de sua idade verdadeira, as sobrancelhas pretas,
contrastantes.
Era difícil imaginar que alguém sentisse mais a perda de um ente
querido como seu Casimiro. Havia, além do mais, um egoísmo feroz nesse
penar. A dor era sua e de mais ninguém. Não a compartilhava com os
parentes, os raros amigos e o próprio filho. Era sua segunda natureza. E iria
abreviar os dias tristes que ainda iria passar nesse mundo.
Disse:
– Por que não vai para a cidade, pai? Passar uns tempos. Genuíno não
toma conta de tudo, direitinho? Quem sabe se não será bom para Cazuza?
Há um médico novo, inteligente, que cuida de gente como Cazuza.
– Não posso abandonar a fazenda, agora, meu filho. Depois
conversamos. Tire a sela do animal e o coloque na cocheira. Pode ser cisma,
somente.
Nesse sábado, seu Raimundo não saiu para o campo: ficou em casa,
recebendo dinheiro dos moradores que lhe pagavam o foro ou pequeno
empréstimo.
Tomava nota num caderno escolar cheio de riscos e cifras que só ele
mesmo sabia decifrar.
David pensava: como poderia o pai ajudá-lo num curso de engenharia?
É verdade que, certa feita, lhe falara em ouro de aluvião, achando que o
sertão era muito rico em minérios. Ali na propriedade, mesmo, na aba da
serra, ele encontrara algumas pepitas; coisa sem importância.
Após o almoço, foram para o alpendre e David resolveu abrir o jogo.
Falou no desejo de estudar, mas sabia que o pai não poderia arcar com tanta
despesa. Falou em Irene, também, ao admitir que, se ficasse em Cajazeiras,
iria casar cedo.
O pai demorou certo tempo, num silêncio que já o incomodava, mas
findou respondendo de frente às suas indagações:
– Não tenho nada contra a ideia de casamento, mas acho que se você
quer, com firmeza, estudar, o caminho é outro. Gosto muito de Irene, você
sabe; o pai dela ainda é meu parente; nos tratamos por primos; não gostaria
que você começasse um namoro só pelo gosto de namorar, entende?
Parou; ficou procurando as palavras, mas por fim, arrematou:
– É hora de lhe confessar uma coisa. Temos vivido apertadamente,
soltando devagar os vinténs para suas despesas, mas acho que a melhor
escola é a vida dura, difícil. Posso até estar errado, pelo que vou lhe dizer
agora. Tenho algum dinheiro no Banco do Brasil em Fortaleza. Lhe falei, há
tempos, na ideia de você fazer o curso superior na Escola de Minas de Ouro
Preto, pois acredito que há muita riqueza nesse sertão. Antes de sua mãe
morrer, encontrei, por acaso, algumas pepitas de ouro na aba da serra; é
ouro de aluvião como se fala num livro que comprei em Fortaleza; pois
consegui juntar alguma coisa, que vendi na capital do Ceará para não
despertar cobiça de gente daqui; lá mesmo, em Fortaleza, nunca disse que a
mina ficava no “Canto”; falei em Crateús. Pois há algum dinheiro, pouco é
verdade, mas bastante para assegurar seu curso se você souber economizar
e gastá-lo de acordo com as necessidades.
– Mas, pai, não é justo. Com esse dinheiro o senhor pode fazer um
açude maior, melhorar seu gado, ter uma vida mais confortável.
– Nada tenho a reclamar da vida, meu filho. Quero que você tenha a
oportunidade que me faltou. Para que melhorar a propriedade se você não
tem gosto, nem jeito pela vida do campo? Não me anima, também, prender
você a um tipo de vida incerto e difícil como este. Não é por causa das
secas, somente, é a constante ameaça da passagem dos cangaceiros. Agora
mesmo estamos vivendo nesse aperreio de todas as horas, nesse terror de
cada dia.
David era presa de sentimento contraditório: a alegria de cursar uma
escola superior, sonho quase impossível; o remorso por deixar o pai e o
irmão, numa hora turva como aquela; a pena por deixar Irene, que não
podia esperá-lo seis longos anos. Ficou mudo; era preciso dizer alguma
coisa para aliviar o coração sufocado pela surpresa. Seu Raimundo
Casimiro provocou sua resposta:
– Perdeu a fala? Não era esse desejo? Genuíno sabia disso, pois você
falou a ele e à Antônia, mas a mim, não. Ou já desistiu de estudar?
– Mas, pai, o que é seu, é seu; essa reserva é fruto de trabalho pesado
de muitos anos. O dinheiro que o senhor tem no Banco do Brasil é seu; é a
garantia de seu futuro, quando a velhice chegar.
– Penso nisso há muito tempo. Acho que, por alto, já cheguei a lhe
falar no assunto. Eu e Cazuza teremos do que viver até você completar seus
estudos. A caderneta do Banco do Brasil está no meu nome e no seu e cada
um de nós poderá movimentar a conta. Você se lembra dos papéis que teve
de assinar três vezes? Era para o Banco. Quero uma coisa em troca disso: a
certeza de que você cuidará de Cazuza se me acontecer alguma coisa; e de
Genuíno e Antônia, que têm sido muito amigos do seu irmão.
David reagiu:
– Mas, meu pai, o senhor pensa em coisas como se estivesse doente,
ou velho demais. O senhor ainda vai viver muitos anos, com a graça de
Deus. O senhor está sentindo alguma coisa? É o coração?
– Nada disso, David. Tenho saúde e força para trabalhar muito tempo
ainda. Deus vai me dar a alegria de vê-lo formado, doutor, importante.
Peço-lhe uma coisa: não fale do ouro a ninguém.
– Claro que não. E Genuíno sabe de alguma coisa?
– Nem Genuíno, nem ninguém. O ouro transforma as pessoas, mesmo
que não seja muito, como é o nosso caso. Entendeu?
– Entendi.
Raimundo Casimiro, mudando de tom, convidou o filho para dar uma
volta pela propriedade. Gritou para o vaqueiro Genuíno que morava há uns
60 passos da casa grande.
– Genuíno?
– Senhor, seu Raimundo?
– Apronte os cavalos; vamos dar uma volta pela terra.
Quando voltaram, cansados e suados, tomaram banho e almoçaram
satisfeitos, como se ambos tivessem resolvido todas as questões.
David atualizou o calendário da Folhinha do Coração de Jesus, 29 de
agosto de 1926. Pensamento do dia: “Deus é meu Pastor; nada me faltará.”
Voltou para Cajazeiras na segunda-feira. No mesmo dia foi à casa de
Leopoldo Batista, para quem trouxera queijos e laranjas mandadas pelo pai.
Foi dona Laura quem o recebeu com a afabilidade de sempre, elogiando o
primo Raimundo que nunca se esquecia deles. Arriscou, mais uma vez, a
pergunta feita tantas vezes:
– Por que Casimiro não vem morar na cidade? Ajeitava a casa, ia à
fazenda toda semana e arranjava uma professora paciente para o menino.
Como é, mesmo, o nome dele?
– Cazuza, dona Laura. É difícil tirar o papai dali. Não diz, mas a casa,
as coisas, o ar, a vida da fazenda, tudo para ele está impregnado da presença
da mamãe. Saindo dali é como se se separasse duma vez das lembranças
que ela deixou.
Irene e Ilina, vindo do colégio, entraram em casa como um furacão,
tirando os sapatos, lançando os livros e cadernos em cima das cadeiras, da
mesa. Pararam, surpresas, com a presença de David na sala de jantar,
conversando com dona Laura. Disseram, em coro:
– Oi, David! Você nos assustou – brincou Irene.
Dona Laura completou:
– Pegou vocês, duas moças, fazendo desordem.
David saiu em defesa das estudantes:
– Todo mundo faz assim, dona Laura. É uma libertação das aulas, da
disciplina, das normas apertadas do colégio.
Irene agradeceu a David:
– Tá vendo, mamãe? Falou nosso defensor, nosso primo, nosso
protetor. De agora em diante a senhora não pode brigar com a gente por
conta disso...
– Não estou justificando vocês. Em verdade, já estão muito crescidas
para tal.
Irene interrompeu o sermão.
– David, estava admirada da sua defesa. Mas não era defesa nenhuma;
era um modo de concordar com mamãe. Você é um chaleira terrível.
Riram à vontade, dona Laura também. Ilina sentou-se perto de David,
olhou bem nos olhos do rapaz e arriscou:
– Que tem você, hoje, na cabeça? Conheço seus olhos, seu sorriso;
quando você está aborrecido ou preocupado. Alguma coisa na fazenda ou
com seu Casimiro?
– Nada demais, Ilina. Tentei mais uma vez convencer meu pai da
conveniência de ele vir morar na cidade. Era bom pra ele, para o Cazuza,
talvez; além do mais, vivemos sob a constante ameaça do ataque dos
cangaceiros. E a Fazenda Canto fica no meio do caminho da fronteira do
Ceará com o município.
Leopoldo Batista, com a fisionomia trancada, dirigiu-se ao rapaz:
– Como vai Casimiro, David?
– Estávamos falando dele agora mesmo. Acho que suas orelhas devem
estar vermelhas. Vim de lá, hoje. Está bem; quer dizer, está no mesmo,
trabalhando, trabalhando, cuidando do Cazuza e garrado à terra como
carrapato. Agora mesmo percebi sua grande preocupação com um possível
assalto dos cangaceiros, tendo em vista que o Canto fica no caminho para
Cajazeiras. Como sua propriedade, também, seu Leopoldo.
– Pois é, David. Que se pode fazer a não ser esperar, rezando para que
eles passem ao largo? Se nem a cidade tem condição de defender-se,
imagine uma fazenda só e abandonada! Casimiro quase não vem à cidade,
não é?
– É, seu Leopoldo. Raramente vem à cidade, mas já está muito
modificado. Quando lhe falei que aqui ele podia ajudar Cazuza, meu irmão,
a se tratar, ele se animou um pouco, afirmando que ia pensar no assunto.
Conversou comigo sobre problemas da fazenda, do gado, do engenho de
rapadura. E está tendo uma paciência sem limites com meu irmão,
chegando a tomar parte nas brincadeiras dele.
As moças tinham trocado o uniforme pelos vestidos de casa e
chegaram à sala trazendo um cheiro suave de lavanda. Irene perguntou por
Boanova e Manoel Santana.
– Você sabe que chamam vocês de “Os Três Mosqueteiros”?
David sorriu. Concordou:
– A comparação é boa, mas os três mosqueteiros vão ficar reduzidos a
Manoel Santana. Boanova está se preparando para voar para longe e eu
também.
– Você também vai embora? – indagou Irene.
David viu-a levar a mão à boca, num gesto tão dela, como se se
contivesse para não falar. Empalideceu, os olhos castanhos, suaves, ficaram
maiores, inquietos. David percebeu que fora inábil e indelicado na brusca
declaração. Tentou amenizá-la.
– Meu pai, para surpresa minha, quer que eu faça o curso de
engenheiro ou geólogo na Escola de Minas de Ouro Preto, no Estado de
Minas Gerais. Fui preparado para dizer-lhe que iria ajudá-lo na fazenda,
mas ele cortou-me a conversa, afirmando que havia se organizado para
enfrentar as despesas dos estudos.
Seu Leopoldo, a mulher e Ilina cumprimentaram David calorosamente.
Percebendo a reação silenciosa de Irene, afastaram-se, discreta ou
instintivamente, deixando os dois sós na sala de visitas.
Irene falou, a voz cortada:
– Realizou-se, assim, o que mais queria na vida, não é verdade? Que
pode dar, que tem a dar a nossa terra a um moço como Boanova e, agora,
você? Nada.
Soltou as últimas palavras chorando, mansamente, e, sem fitar David,
pediu desculpas pela fraqueza.
– Devia – acrescentou estar feliz por você ter realizado seu sonho. Me
perdoe, David.
Este não sabia o que fizesse, mas era preciso dizer alguma coisa:
– Irene, fiz você chorar, mas foi sem querer. Devia ter sido mais
delicado com você e todos da família. É que estou muito nervoso desde que
seu Casimiro me disse, à queima-roupa, que estava preparado para custear
as despesas com a Escola de Minas.
A moça procurou evitar outros arrodeios:
– Você não tem que se desculpar de uma coisa que era seu maior
desejo. É verdade que Ilina e eu vamos perder o companheiro. O pai, agora,
vai virar festeiro. E há outro lado bom: vamos ter um primo doutor,
importante.
Quase volta a chorar, mas o retorno de seu Leopoldo era o que
precisava para se recompor. O pai de Irene falou:
– Ainda há muita coisa para resolver, não é, David?
– Sim, seu Leopoldo. Mas o essencial está previsto e acertado. Levo
algumas preocupações que me atormentam: deixar o meu irmão doente, e
sair, também, numa hora inquieta como essa que estamos vivendo. Mas
espero que toda essa cisma passe e que no período das férias possa retornar.
Despediu-se, agradecendo o convite para jantar (“Felismina está me
esperando para a ceia”), e foi andando pela rua, confuso, perturbado. Não
queria ir para casa. Lembrou-se de Manoel Santana e se encaminhou para a
casa do amigo.
Dona Petronila foi vendo-o e gritando por Manoel, explicando:
– Está botando comida para os passarinhos.
– Deixe, dona Petronila, vou até o quintal.
Não sabia que Manoel gostava de pássaros. Encontrou o amigo
debaixo de grande mangueira, colocando xerém, arroz com casca, laranja
cortada, banana, numa prancha de madeira, apoiada em quatro pernas; era
coberta com duas folhas de zinco, mas os lados da “casinha” eram abertos,
para que as aves entrassem e saíssem quando bem quisessem.
– Oi, Manoel! Sua mãe disse que você estava cuidando dos pássaros.
Cadê as gaiolas?
– Não há gaiolas, David. Alimento e dou água a alguns malandros,
mas não os prendo.
– Estou vendo; e eles descem para comer nesses cochos?
– Espere um pouco, e verá. Alguns são mais ariscos e só aparecem nas
horas ermas, como o graúna, por exemplo. Vamos ficar ali no alpendre e
você vai ver a farra que fazem.
Daí a pouco, as rolinhas, os canários amarelos, os galos-de-campina e
outras aves menores foram chegando, se abancando, comendo, brigando,
arrulhando. Esqueceu David, por um momento, a aflição que o dominava.
Mas Manoel adivinhou que ele não estava bem.
– Que é que há, companheiro? – indagou Manoel. – Se é coisa que
pode ser conversada, desembuche.
David lhe contou as novidades, inclusive o sufoco da conversa com
Irene, que o aniquilara. Começou a cair chuva fina, fria, tirando-os do
alpendre. Manoel levou o amigo para o quarto, falando:
– Quando você me falava em curso superior, em viajar para fora, eu
pensava nesse desfecho. Você gosta da menina, não é?
– Gosto, sim. E hoje, e agora, é que percebi que vou sofrer com a
separação. Não há alegria completa, não é, Manoel?
– Não sou autoridade em alegria. Não me chega nem ao menos em
gotas. Essa fada não me conhece.
David contou-lhe, então, a longa conversa com seu Casimiro,
omitindo, como era natural, a referência à pequena quantidade de ouro
descoberta por seu pai. Falou no depósito no Banco do Brasil, em Fortaleza,
e no plano bem traçado por seu Casimiro para custear as despesas.
Completou:
– Depois de algum tempo, arranjarei um emprego e aliviarei o pai do
encargo.
Manoel não comentou esses detalhes, declarando:
– Apesar de estar ficando cada vez mais só (ontem foi Boanova e,
dentro em pouco, você), alegro-me com a grande notícia. É aproveitar a
oportunidade. Sei que você gosta de sua prima e lamento por você e por ela,
também. Não vá me dizer que ainda tem dúvidas...
– Não, Manoel, não tenho dúvidas. Vou, entretanto, carregado de
preocupações: deixar meu irmão e o pai numa hora cruciante como a que se
vive, sob a ameaça dos cangaceiros; saber, com certeza, que vou perder
Irene, pois não seria justo pedir que ela ficasse esperando por mim cinco,
seis anos. Confesso a você: gosto dela profundamente. Nunca lhe disse isso
com todas as palavras. Talvez isso amenize, para ela, minha partida. Vou
pagar um alto preço pela ambição ou pela vaidade de ser doutor.
– Não se trata de vaidade e você sabe disso muito bem. Se for
ambição, viva esse nome.
– Que devo fazer, Manoel? Pedir a Irene que me espere?
– Não sei o que dizer, David. O problema é seu, de sua intimidade. Só
você pode decidir. Me perdoe.
David mudou de conversa, perguntando pelos negócios do amigo.

***

Quando, na noite anterior, David se retirou da casa de seu Leopoldo


Batista, depois de dar a notícia de que iria estudar em Ouro Preto, criou-se
um silêncio pesado, constrangedor. Era costume, na hora da despedida, as
meninas acompanharem o primo até à porta para a conversa final. Dessa
vez ninguém arredou o pé da sala de jantar.
Dona Laura, com a inocência de sempre, rompeu o silêncio:
– Era um bom partido para Irene, não era, Leopoldo?
O dono da casa não respondeu, mas Irene não se conteve:
– Mamãe, essa ideia só existia na sua cabeça. David, em tempo algum,
chegou a pensar nisso.
E, provocando Ilina, que tudo ouvia, calada:
– Só se chegou a dizer alguma coisa à mana, pois gostavam de
cochichar, os dois.
Ilina não se irritou. Sabia que a irmã estava atravessando um momento
difícil. Não sabia se iria consolar, ou não, a Irene, quando lhe falou, com o
coração na mão:
– Você sabe que David, mesmo sem expressar seu sentimento, só tinha
olhos para você. Por timidez, ou, talvez, por conveniência, nunca lhe
confessou esse segredo. Devia estar envolvido pela dúvida que o aflige,
ainda agora: ia ou não estudar fora? Para mim, mesmo depois do que disse,
deixa a impressão de que ainda vacila...
Dona Laura quis falar, mas Irene a interrompeu:
– Você se engana, minha irmã. Está ferrado, com unhas e dentes, no
desejo de ser doutor. Não há nada de errado nisso, aliás; mas, se gostasse
um pouco de mim, de nós, daria a notícia de sua viagem da maneira como
procedeu? Eu é que fiz o papel de tola, chorando na sua frente. Meu gesto
não tem sentido, nem perdão.
À medida que falava, ia-se acalmando. Foi quase com ternura que se
dirigiu a dona Laura:
– Peço, mamãe, que esse assunto morra entre essas quatro paredes.
Outra coisa: a quem nos falar na viagem de David, devemos revelar nossa
satisfação pela oportunidade que lhe apareceu. Seria aumentar, de muito,
minha humilhação, se minha choradeira servisse de pasto para as fofocas da
terra.
Ilina concordou com a irmã, mas lembrou o seguinte:
– Uma coisa pude ver, também: David saiu arrasado ao despedir-se da
gente.

Depois que David se retirou, sem aceitar o convite para cear, Manoel
Santana ficou a remoer a conversa do amigo, que estava vivendo momentos
amargos, dilacerado pela decisão tomada.
Jantou e foi à casa de David. No meio da conversa, arriscou esta
sugestão:
– Que tal uma volta pelo “Gato Preto”? Toma-se uma bebida, puxa-se
conversa com as meninas e... se dança. Você precisa levar uma boa
recordação da terra.
Era sempre calma a noite da terça-feira no cabaré “O Gato Preto”.
Sentaram-se numa mesa e pediram genebra. Havia alguns conhecidos,
alguns meio encabulados, e o pequeno conjunto tocava um fox suave e
langoroso. Manoel parecia muito à vontade, conversando com uns e outros,
falando com Dona Neném, a dona da pensão. Quando duas meninas,
alegres, bem pintadas, passaram por eles, Manoel as chamou. Uma delas
falou: daqui a pouco. David, no mais íntimo de sua natureza, sentia estranha
piedade por essas moças sorridentes e tristes. Era um pensamento estúpido,
uma coisa de maluco, mas via, nelas refletida, a imagem da irmã que não
tivera.
As duas mulheres voltaram e se sentaram na mesa deles. A moreninha,
de olhos castanhos, vivos, os lábios e as maçãs do rosto bem vermelhos,
falou com David, em tom brejeiro:
– Mamãe deixou o menino solto, hoje?
David, desajeitado, deu, afinal, a resposta que foi tida como engraçada,
mas que era, somente, a verdade:
– Não tenho mãe.
Cremilda, era o nome da mulher, conteve sua expansão ao ver que fora
indelicada, sem querer. Mudou de assunto:
– É a primeira vez que apareço por essas bandas. Ouvi falar que a
cidade é bonita...
David lhe respondeu:
– E é mesmo; se você quisesse ver a cidade ia gostar dela, do Açude
Grande, da Igreja que tem duas torres, das casas bem cuidadas, das ruas
limpas. A terra é pobre, mas o povo é caprichoso.
Cremilda teve vontade de soltar outra brincadeira (“O menino fala!”),
mas se conteve. Percebeu que, além de desambientado, o moço trazia,
escrita na testa, uma tristeza parecida com noivado desfeito.
Aproveitando a saída de Manoel Santana, que estava dançando, David
foi para o quarto com a moça. Passaram, juntos, uma noite rica, feita com a
experiência da mulher e o fervor e a delicadeza do rapaz.
Acordou, tarde, no dia seguinte, por insistência de Felismina. Estava
menos tenso. Seu Raimundo Casimiro chegou à cidade antes do almoço.
Era o dia 19 de setembro de 1926. Foram ao Cartório, onde assinaram, com
testemunhas, os papéis preparados por Dimas Andriola.
Voltou, à tarde, à fazenda para despedir-se do irmão. Era, para ele, o
momento mais doloroso e pungente. Abraçou-se com Cazuza, que o
envolveu com seus braços finos e não pôde conter as lágrimas. Cazuza
sorria, entretanto, ao ser levado por Antônia para dormir. Seu pai entrou no
quarto, brusco, para fugir da despedida. David saiu da fazenda com o
coração aos pedaços, descobrindo, com o que lhe estava acontecendo, que
não devia haver alegria completa.
Voltou para a cidade, noite ainda, com um pressentimento que tentava
afugentar: o de que tinha visto seu Casimiro pela última vez.
Quatro

O TENENTE Elino Fernando estava com medo. Podia esconder isso dos
outros, mas dele mesmo era impossível. Não era um medo definido, como
pensar num tiro na cabeça, em ser sangrado no meio da rua. Não; era um
medo difuso, vago, mas envolvente, que tomava conta de suas pernas, de
seus braços, do seu corpo, deixando-o inseguro, vacilante, perplexo. Se o
povo da cidade pudesse ler o que se passava no seu íntimo! Logo ele, o
Delegado, o responsável pela proteção de todos! Sacudiu, com energia, a
cabeça, como se o gesto pudesse libertar os receios que lhe roíam o coração.
Manhã de 1º de setembro de 1926. Fazia seis meses que estava à frente
da Delegacia de Polícia do município de Cajazeiras. A cidade era tranquila.
Não lhe dava muito trabalho. O povo, ordeiro e quieto, vivia da agricultura
e da criação, lutando contra a inclemência da natureza. O comércio,
entretanto, tinha um ar de prosperidade, graças à ligação com Fortaleza pela
Rede Viação Cearense. Havia, no município, vários descaroçadores de
algodão e pequenos engenhos, localizados nas melhores terras, produzindo
rapadura e aguardente. A Usina Santa Cecília, do Coronel Joaquim Matos,
beneficiava e prensava algodão, dele extraindo o óleo que era vendido em
toda a região.
Mas, o maior orgulho da terra, sempre lembrado, era ter-se a cidade
formado em torno do colégio fundado pelo Padre Inácio de Sousa Rolim,
que era um santo e um sábio de reconhecido valor. Dispondo de dois
colégios, de dois jornais (O Rio do Peixe e O Rebate), Cajazeiras se
orgulhava, também, do número de doutores que nela habitavam.
Sede de um bispado, o domínio dos padres e freiras era absoluto em
quaisquer atividades educacionais e culturais. Coisa curiosa: Cajazeiras era
famosa pela sua vida noturna, seus “cabarés” na Rodagem, que atraíam
clientela de toda a região. A virtude e o pecado conviviam, assim, na cidade
sossegada. Raras as questões de terra que não terminavam por um acordo,
sem o argumento final dos bacamartes e dos rifles 44 de papo amarelo.
Ultimamente, essa paz estava sendo ameaçada pela presença de
Lampião e seu bando, em terras vizinhas da fronteira com o Ceará. O sertão
inteiro, aliás, vivia sob esse estado de espírito, enfrentando uma praga igual
à seca. Quando não eram os cangaceiros, violentos e cruéis, atacando
fazendas e povoados, eram as volantes policiais, ineficientes, despreparadas
para o sistema de guerrilhas adotado pelos bandoleiros. Nas raras
oportunidades que as volantes alcançavam os cangaceiros, estes, no fragor
da peleja, desapareciam no ar. Segundo se dizia, o milagre se devia às
orações fortes, aos bentinhos, aos escapulários, às medalhas de Nossa
Senhora, do Coração de Jesus e do Padre Cícero, que traziam no pescoço,
“fechando” seus corpos ou os tornando invisíveis. Pior é que, na
perseguição aos “coiteiros”, as volantes causavam tantos vexames quanto
os bandidos, prendendo, surrando, aterrorizando.
Limitando-se com o Ceará, onde Lampião e seu bando tinham passe
livre, Cajazeiras vivia sobressaltada com essa proximidade. Tornara-se
comum e rotineiro o espetáculo constrangedor da cidade convulsionada pela
boataria. Parecia coisa feita de propósito para abalar o moral da população.
Dum instante para outro, espalhava-se – ninguém sabia a origem – a notícia
de que os cangaceiros estavam nas Capoeiras: o comércio cerrava as portas,
os homens corriam para casa, fechavam-se portas e janelas, ouvindo-se,
num crescendo assustador, o estalejar da madeira contra madeira. Nos dias
de sábado, raro, de uns dois meses até o presente, quando não se
desmanchava a feira, num passe de mágica: recolhiam-se as barracas;
fechavam-se os sacos de cereais; metia-se a mercadoria nos baús e nas
malas, e todo o ajuntamento popular se dissolvia como por encanto. E,
sempre, como nos dias comuns, a corrida para dentro de casa, batendo
portas e janelas num ritmo contagiante, nervoso, alucinante.
Não esqueceria mais, nunca, enquanto vivesse, o ruído que se
propagava de casa em casa, de rua em rua, enchendo de pânico toda a
cidade. Nada podia fazer, a não ser andar pelas ruas, acompanhado do
sargento e alguns soldados para demonstrar que estava tudo em ordem.
Pensava: que poderia fazer com seus quatro gatos pingados e alguns
paisanos se um dia os cangaceiros resolvessem invadir Cajazeiras? Seria o
fim de sua carreira, de sua vida, de sua honra? Temia acontecesse com ele o
que se dera, há dois anos passados, em Sousa: o Delegado se recolheu à
cadeia, acompanhado de seus subordinados, por ordem de Lampião, para
evitar derramamento de sangue. Enquanto isso ocorria, o “rei do cangaço”
saqueava o comércio. Mas ali mesmo, em Sousa, alguns civis reagiram,
atirando, desordenadamente, contra os bandidos. Pois bastou essa reação
para que os visitantes abreviassem sua estada naquela cidade.
É o que pensava fazer. Não tinha homens e armas e munição
suficientes para rechaçar os cangaceiros, mas podia resistir, podia lutar,
podia obrigá-los a desistir do saque. Alguns amigos já tinham se
prontificado a ajudar. Era uma meia dúzia, mas de gente boa e firme. Com o
concurso desses amigos e cinco elementos do destacamento, ele daria
trabalho a Lampião, Sabino ou quem diabo fosse.
Estava tomando café, quando lhe apareceu o Sargento Rangel, com o
ar animado de quem guardava uma boa notícia. Recebeu a continência do
subordinado, mandou que ele se sentasse na mesa e esperou que o Sargento
falasse. Transmitiu-lhe este o efeito causado pelo sermão do Padre Gervásio
na missa do último domingo. O vigário recomendara aos homens que
azeitassem os seus rifles, pois Lampião não tinha dia para atacar a cidade.
Palavras do padre: “Se reagirmos, os bandidos voltarão em cima dos pés. A
não ser que vocês queiram morrer como passarinho ou ver suas mulheres e
filhas dançando para deleite dos cangaceiros. Se não querem, só há uma
solução: pegar em armas e repelir os agressores. De forma ordenada e sob o
comando do Delegado de Polícia do Município, o Tenente Elino Fernando,
homem capaz, digno e experimentado. Ou fazem isso, já, ou se preparem
para morrer como um cordeiro, ou uma galinha, nas mãos cruéis dos
bandoleiros.”
– Mas, Sargento, essa é uma boa noticia. Pode-se dizer: uma ajuda do
Alto.
– Pois é, Tenente, na cidade só se fala nisso.

Tinha de procurar o Padre Gervásio. Antes, precisava saber se


Raimundo Anastácio já tinha voltado da viagem a Alagoinha, ninho das
serpentes. Na noite anterior, custara conciliar o sono. Havia mandado
alguém realizar uma tarefa que era dele, como Delegado. Se bem lhe
amparasse a justificativa de não poder ausentar-se da cidade, não podia
esquecer o perigo a que expusera o “índio velho”. Sabino Gomes era
informado de tudo o que se passava em Cajazeiras. Já devia estar ciente de
que Raimundo Anastácio, ex-cangaceiro, homem duro e provado, estava do
lado da lei, do seu lado. O homem viajara contra sua opinião; não, não fora
bem assim; não chegara a opor-se, frontalmente, à ida de Anastácio.
Limitara-se a ensaiar tênue resistência, e o “índio” percebera seu jogo.
Ambos sabiam da importância de algumas informações sobre os
cangaceiros: quantos eram, quem os chefiava (Lampião? Sabino?), se
estavam bem municiados. Em verdade, não sabia de nada. Era como andar
no escuro em lugar desconhecido. Ora, fizera bem ao permitir, por sua
omissão, que o mestre Raimundo tivesse viajado.
Quem o libertou dessa angústia foi o Cabo José Gonçalves, que, mal
chegando à Delegacia, soltou alvoroçado a notícia:
– Tenente! Seu Raimundo Anastácio chegou. Dona Dorinha me disse,
ainda há pouco, que ele chegou às cinco horas da madrugada, cansado, mas
vivo.
Procurou neutralizar a excitação do Cabo:
– Zé Gonçalves, seu Raimundo faz, todo mês, uma ou duas viagens a
Alagoinha para comprar gado. Ele é marchante, vive disso, você sabe.
– Eu sei, Tenente. Besteira minha...
– Não me fale dessa viagem a ninguém, está ouvindo? Nem aos seus
companheiros. Minha conversa com o mestre Raimundo não tem nada a ver
com suas viagens comerciais. Entendeu?
– Entendi, sim senhor.
E se encaminhou, intrigado, para o interior da Delegacia.

O Tenente Elino já havia tirado, várias vezes, o relógio da algibeira.


Finalmente, às 10 horas, acompanhado de Romeu Menandro Cruz,
Raimundo Anastácio chegou à Delegacia. Com a mão direita tocando o
ombro esquerdo, repetidamente, fez um resumo da viagem e das
observações colhidas.
O Delegado demonstrou satisfação em afirmar:
– Valeu o sacrifício, mestre Raimundo. Confesso ao senhor que estava
com muito receio, mas graças a Deus está o amigo na minha frente com três
informações preciosas: o Chefe do bando é Sabino Gomes; é de 30 o
número provável dos cangaceiros; e o dia aproximado do ataque...
Raimundo Anastácio corrigiu:
– Dia aproximado, não, Tenente. Dia certo: 28 deste mês de setembro
de 1926.
– Pois é, Raimundo. De hoje a 13 dias. Isso fica rigorosamente entre
nós três. Por ora, nem às autoridades locais vou dar conhecimento dessas
informações. Acho que, trabalhando em silêncio, sem que os espiões de
Sabino percebam, nós ainda poderemos fazer muita coisa. Não é, Romeu?
– Acho que sim, Tenente. Agora quero um favor do senhor.
– É só dizer.
– Quero que o senhor leve preso até o consultório do Doutor Otacílio
Jurema esse burro teimoso que é Anastácio.
Este protestou, logo:
– Mas, Tenente, já disse a Romeu que essa dor não tem importância.
Ontem estava pior do que hoje. Dorinha, minha mulher, passou sebo de
carneiro quente e dormi até demais.
O Delegado ponderou:
– Raimundo, me faça um favor. Eu sou, de certo modo, o responsável
por essa dor.
– Pode dizer, Tenente.
– Vamos nós três, agora, ao consultório do Doutor Otacílio Jurema. Se
não for nada, fazemos uma visita de cortesia ao nosso amigo; se a dor
precisar de medicação, não perdemos nossos passos.
– A não ser – brincou Romeu Cruz – que você no dia do tiroteio queira
ter uma desculpa para não sair de casa.
Saíram os três da Delegacia em passos lentos. O Tenente, alto, louro,
de olhos claros, e, atrás dele, por respeito ou acanhamento, os dois amigos,
Anastácio e Romeu, morenos, queimados, de estatura meã, acompanhando,
com dificuldade, as largas passadas do Delegado, que já fora batizado, pelo
popular Cícero Lavor, de coqueiro andante.
Ninguém podia adivinhar que a cidade fria e distante, de agora em
diante, estava a depender desses três homens, tão diversos, tão diferentes
nas vestes, no andar, no modo de ser e de viver.

POR INFLUÊNCIA do pai, espírita convicto, guardava certa prevenção contra o


clero, que não dava trégua no combate aos demais credos religiosos. Lera
Alan Kardek e outros autores, guardando da doutrina certas noções
fundamentais, que sabia inspiradas no Evangelho.
Quando fora designado para servir em Cajazeiras, imaginou que iria
encontrar, como encontrou, certa frieza de parte dos padres, pois não queria
participar de vários atos religiosos por simples dever social ou injunção do
ofício. Não se enganara: era tratado com uma reserva fria, distante, mas
visível. Por esse motivo, também, achava de muita importância o sermão do
Vigário.

O Padre Gervásio, imediatamente, fez com que ficasse à vontade,


enveredando logo para o assunto que inquietava a cidade:
– O povo parece anestesiado. O senhor está aqui há poucos meses e
sabe que não se passa uma semana sem correr qualquer boato sobre a
presença dos cangaceiros nas proximidades. Nos dois últimos meses, então,
esses rumores se amiudaram. Sei que não é, mas às vezes me vem à cabeça
a ideia de que isso faz parte da tática dos bandidos: confundir, assombrar,
amedrontar. Outros já não acreditam na possibilidade de um ataque. Fiz a
advertência, no sermão de domingo, devido a uma carta que recebi de um
parente que mora em Lavras, no Ceará. Esse rapaz é genro de um
proprietário, amigo da família Augusto, que mantém as melhores relações
com Lampião. Pois bem: consta ali, como coisa assentada, a notícia de que
os cangaceiros estão se preparando para uma visita a esta cidade. O senhor
sabe de alguma coisa a esse respeito?
O Tenente não respondeu imediatamente; não queria parecer mal-
informado, mas não podia, por outro lado, enganar o Vigário, que era um
homem vivo, inteligente, franco.
Saiu pela tangente:
– As informações que tenho confirmam o que seu parente avisa: os
cangaceiros se preparam para atacar a cidade. Posso adiantar ao senhor que
é Sabino, e não Lampião, quem está chefiando o grupo. Sabino Gomes, que
já morou aqui, é uma espécie de segunda pessoa de Virgolino Ferreira. E
tão cruel e sanguinário como o chefe dele.
– De quantos homens o senhor dispõe, Delegado?
– O destacamento conta com 10 elementos, eu incluído. Posso dizer ao
senhor que cerca de 12 civis já estão comprometidos a nos ajudar.
– Esses homens têm alguma experiência?
– Mais da metade, sim; os demais estão sendo treinados.
– É muito pouco. Além do sermão, tenho falado com algumas
pessoas...
– Dois ou três homens já me procuraram, dizendo-se amigos do
senhor. Tenho esperança de conseguir um apoio mais consistente. Não
revelo, sob nenhuma hipótese, minhas deficiências: ninguém ajuda quem já
se sente perdido... Amanhã, à noite, vai haver uma reunião convocada pelo
Prefeito Sabino Rolim para tratar-se do assunto voluntariado.
– O Prefeito é um homem bom, mas não tem força para arregimentar
alguém para pegar numa arma. Não espere grande coisa.

Noite de 17 de setembro de 1926. Tinha uma porção de gente na


Prefeitura. O Prefeito, Coronel Sabino Rolim, presidiu a reunião. Deu a
palavra ao Tenente Elino, que não tinha o hábito de falar em público. Era
uma emergência; entrou direto no assunto:
– Estamos seguramente informados de que os cangaceiros se preparam
para atacar, brevemente, esta cidade. Partindo desse fato, há duas atitudes a
assumir: não lutar e deixar que os bandidos tomem conta da cidade, ou
lutar, resistir, expulsar os invasores.
Padre Gervásio Coelho deu sinal de sua presença, falando, de pé, numa
das últimas filas de cadeiras:
– Claro que só temos uma escolha: lutar. Não é só covardia cruzar os
braços; é loucura entregar-se, de mãos atadas, à sanha dos bandidos.
O comerciante Esaú Palha, sentado na primeira fila, levantou-se e
sugeriu:
– Acho que todo mundo está de acordo com Padre Gervásio. Mas há,
ainda, uma terceira solução: pagar aos cangaceiros uma quantia para eles
passarem ao largo, não entrando na cidade. Que acha, Delegado? Tem
acontecido isso em outras cidades.
– Para chegar à sugestão apontada por seu Esaú, era preciso, em
primeiro lugar, ter uma proposta dos cangaceiros para examinar; segundo,
saber se o comércio está disposto a pagar o preço exigido. Mas, mesmo
acertadas as coisas, quem pode garantir que os bandidos se dêem por
satisfeitos? Que não vão querer mais e mais? Cangaceiro tem palavra?
Cumpre acordo? Além disso, se a proposta de pagamento partir da cidade, é
uma declaração de fraqueza, um sinal de rendição antecipada.
O advogado Praxedes Pitanga pediu a palavra:
– Peço desculpas ao dar uma opinião que ninguém solicitou. Não sou
daqui, mas fui honrado com o convite do Senhor Prefeito, e é nessa
condição que falo. O Tenente Elino tem razão: a proposta do meu amigo
Esaú se choca com a realidade dos fatos. Lampião tem recebido resgates,
sob a promessa de não atacar algumas localidades, e as assalta, depois. O
que me preocupa, com perdão do Delegado, é o pequeno número de praças
do destacamento. Que resistência podem opor dez ou doze soldados contra
trinta ou quarenta cangaceiros? Esse é o ponto crucial do problema, já que o
caminho escolhido vai ser o da luta.
O Tenente retornou a palavra:
– O doutor Pitanga tem razão. A pergunta essencial é esta: quantos
homens, afora os soldados, estão dispostos a lutar pela cidade e pelas suas
vidas? Claro que o pessoal do destacamento é insuficiente. Precisamos do
apoio de quem sabe atirar, de quem tem uma arma.
O comerciante Clodoaldo Barreto interrompeu o Delegado:
– Mas a obrigação de defender a cidade é da polícia. Os senhores são
pagos para isso.
Num tom mais alto, com certa rispidez, o Tenente respondeu:
– O senhor não está dizendo nenhuma novidade. A obrigação é nossa e
estamos preparados para lutar. Somos, porém, dez contra 25 a 30
cangaceiros. Sabemos disso, mas assim mesmo vamos lutar. E depois?
Quando se livrarem de nós, os bandidos tomarão conta da cidade, saquearão
o comércio e as casas de família. Se tivermos ajuda, isso não acontecerá.
Diomídio Cartaxo, “Midú”, baixinho, magro, as sobrancelhas pretas se
destacando na testa bem alva, indagou:
– Por que não foi pedido reforço à Capital?
– Eu pedi; o Senhor Prefeito pediu; o Doutor Juiz de Direito, ao que
soube, se dirigiu, também, às autoridades no mesmo sentido. O Governo
alega que enfrenta dificuldades, no momento, pois a mesma solicitação é
feita por todos os municípios do Sertão. Se eu tiver, entretanto, a ajuda dos
senhores, teremos condições de repelir o inimigo. Em Sousa, há dois anos
passados, meia dúzia de homens conseguiu oferecer resistência aos
cangaceiros, que interromperam o saque já iniciado na rua do comércio.
– Mas lá – gritou Heliodoro, o barbeiro – a polícia se prendeu a si
mesma dentro da cadeia.
Houve um começo de riso. O Tenente aproveitou a deixa:
– É isso, então, o que os senhores querem que eu faça?
– Não. – Responderam em coro.
– Então me ajudem. Lampião ou Sabino não têm raiva da polícia para
atacarem uma cidade só por causa de meia dúzia de soldados e um tenente.
O que interessa a eles é o saque, o dinheiro, as jóias, o ouro, a prata, o que
houver de valor nas casas de família. Estarei amanhã na Delegacia. Quem
puder combater, dê seu nome; quem não souber atirar, apresente uma
pessoa que saiba pegar numa arma, ou empreste sua arma e a munição que
tiver. Tenho pressa, muita pressa.
Não gostou da reunião. O Prefeito, entretanto, estava satisfeito, não
sabia o Tenente por que motivo. Algumas pessoas nem ao menos se
despediram dele. Falaram com o Prefeito e desapareceram. Havia, em
verdade, alguma fria hostilidade contra ele, ou tudo aquilo era, no final, o
medo de morrer?
Um pouco mais tarde, no hotel de Dona Carmosa, recebeu a visita de
Marechal, Romeu Cruz, Raimundo Anastácio, Chicão e José Teberges.
Conversaram sobre a reunião, que Chicão achou vazia, oca, choca; já
Romeu sustentava entendimento contrário: muita gente ia custar a dormir,
naquela noite.
O Tenente voltou-se para Raimundo Anastácio:
– Que achou, mestre Raimundo?
– Alguma coisa vai mexer com a cabeça dessa gente; nenhum deles,
porém, pelo que vi, tem ânimo de pegar numa arma. Acho que se deve falar
com nossos amigos; há alguns tão pobres que, se souberem que podem
ganhar alguma coisa, lutarão com outra alma. Por isso é que não achei a
reunião inútil; pode render algum dinheiro.
Marechal ajuntou:
– Acho que se o senhor, Delegado, pedir ao Padre Gervásio para ser o
tesoureiro, algum dinheiro pode pingar. Mesmo porque, se topar o encargo,
vai arrancar dinheiro da goela desse pessoal.
Quando seus amigos se retiraram, o Tenente percebeu que alguma
coisa estava mudando. Não se sentia tão só, tão desesperado. Aquela noite,
apesar da reunião, iria dormir sem sonhar que Lampião, os dentes
arreganhados, o olho cego por detrás do vidro dos óculos, levantava sua
cabeça pelos cabelos e, com um facão enorme, de lâmina afiada e reluzente,
cortava seu pescoço. Estava com menos medo, ou, talvez, o tivesse dividido
com outras pessoas.
O dia seguinte lhe reservava uma surpresa. Procurou-o, na Delegacia,
dona Maria Apolinário, de Baixio, no Ceará. Toda de preto, desde os
sapatos, as meias, o vestido, até o véu com que cobria os sedosos cabelos
negros, dona Maria aparentava ter uns trinta anos. Embora os olhos
castanho-escuros refletissem uma aflição recente ou uma dor profunda, tudo
nela respirava vida: os braços morenos claros, que as largas mangas do
vestido deixavam aparecer nos movimentos calmos; o rosto de feições
regulares; os lábios cheios, fortes, entremostrando, em certos momentos, a
fileira de dentes alvos, regulares.
Começou a falar com o Tenente Elino:
– Meu finado marido, que Deus o tenha na sua glória, negociava com
algodão na praça de Cajazeiras. Vendia o algodão dele e dos plantadores
que confiavam no seu critério. Era um homem direito, cumpridor dos seus
deveres. Não sei se o senhor chegou a conhecê-lo, pois mora há pouco
tempo na cidade. Chamava-se Pedro Apolinário. Morreu de repente, com
todo o corpo, forte, disposto, trabalhador. Pensava em fixar residência aqui,
nesta cidade. Chegou a comprar uma casinha ali perto do Prédio dos
Vicentinos.
Virou os olhos para o teto, suspirando, e continuou:
– Deixou-me com duas filhas, pequenininhas, uma de três e outra de
quatro anos, e alguma coisa para viver. Estou só, no mundo, Tenente...
– Tenente Elino Fernando, minha senhora. Gostaria que me dissesse
em que lhe posso ser útil. Tenho um encontro marcado com o Prefeito, logo
mais.
Dona Maria Apolinário retirou o véu que lhe cobria os abundantes
cabelos negros e disse, num tom plangente:
– Só o senhor pode dar um jeito no que vou lhe falar.
– Pois não, dona Maria.
– Meus parentes me chamam de Mariazinha.
– Está bem, dona Mariazinha. Pode falar.
Com ar piedoso, fitando o Tenente bem nos olhos, declarou:
– Meu marido, o Pedrinho, que Deus o tenha em bom lugar, comprou a
casa de que lhe falei e, agora, com a sua morte, o vendedor vem adiando a
feitura, em cartório, da escritura. Só porque sou uma viúva, está fazendo
esse jogo com o fim de cansar a minha paciência. Mas ele não sabe com
quem está lidando.
– Houve inventário dos bens deixados por seu marido?
– Houve, sim senhor; mas, como a casa não foi registrada, ficou fora.
– A senhora tem algum documento?
– Tenho. Tenho o recibo da transação, realizada no dia 14 de maio
deste ano.
– A senhora já mostrou esse documento a um advogado?
– Me disseram que, no momento, não há advogado morando em
Cajazeiras.
– A senhora falou com o Doutor Juiz de Direito?
– Não senhor, pois seu Andriola me disse que a primeira coisa que o
Juiz vai propor é que eu procure um advogado.
– Tem o recibo aí?
Dona Mariazinha tirou da bolsa vários papéis e deles destacou o que
entregou ao Tenente.
Este percebeu, desde o começo, que estava diante de uma pessoa
decidida e forte. Sugeriu:
– A senhora pode deixar o recibo?
Olhou de frente para o Delegado. As pupilas dos olhos negros
pareciam ter crescido e diminuído, mas não vacilou:
– Confio no senhor, Tenente. Desde o momento que o vi, na rua,
alguma coisa me disse que o senhor é uma pessoa direita, assim como era o
meu finado marido.
O Tenente leu o recibo, tomou nota das datas, dos nomes, das
testemunhas e lhe devolveu o papel.
Ela reagiu:
– Tanto faz o recibo estar nas minhas mãos como nas mãos do senhor.
Se for falar com alguém, terá mais força mostrando o papel, não é?
O Delegado sorriu, concordando:
– Isso é verdade. Onde está hospedada?
– No hotel de Dona Carmosa.
– Estou morando lá, também.
– Eu sei. E foi dona Carmosa que me aconselhou a procurar o senhor,
não lá no hotel, mas aqui, na Delegacia.
Levantou-se, despedindo-se de dona Mariazinha:
– Vou precisar de dois ou três dias para ver o que posso fazer, pois o
caso foge de minhas atribuições.
– Pois não, Tenente. Vou esperar o tempo que for necessário.
– Não lhe garanto nada. Isso é assunto mais para um advogado...
– Confio no senhor.
Levantou-se, arrumou o vestido, pôs o véu na cabeça e estendeu a mão
para despedir-se. O Tenente, de pé, retribuiu o cumprimento. Era ilusão de
sua parte, ou sentira a mão da viúva apertar um pouco sua mão
desprevenida?

Não lhe foi difícil resolver o problema. Procurou o escrivão Dimas


Andriola, do Cartório do 1º Ofício, e este lhe adiantou que o recibo fora
escrito por ele; que não tinha força de operar a tradição do imóvel, mas que,
na mão de um advogado, sua validade seria reconhecida.
Quando falou com o comprador, estava com todos os argumentos
disponíveis. O homem era quase analfabeto, mas hábil e inteligente como o
Satanás. Findou cedendo, porém, quando o Delegado ameaçou mandar
buscar o doutor Praxedes Pitanga, em Misericórdia, para tratar do assunto.
Dois dias depois, em cartório, presentes o vendedor, a compradora, o
Tenente e as testemunhas, foi lavrada e sacramentada a transação.

Na hora do jantar, acompanhada da dona do hotel, dona Mariazinha,


depois de pedir licença, se sentou na mesa do Tenente. Desmanchou-se em
agradecimentos, no que era secundada por dona Carmosa. Guardando luto
fechado, usava, nessa noite, como um sinal de vida, brincos e pulseiras de
ouro, que ajudavam a compor o quadro de uma alegria que não sabia conter.
Ao afastar-se a dona do hotel, ficaram praticamente sós na sala pouco
iluminada. Ela inclinou a cabeça para o lado do Tenente Elino e cochichou:
– Tenho uma lembrançazinha para o senhor. São dois contos de réis.
Não é pagamento; é uma pequena prova de minha imensa gratidão.
O Delegado recuou, instintivamente, surpreendido com a proposta.
Mas não queria, ao recusar, ofender a viúva. Também em voz baixa,
declarou com toda delicadeza:
– A senhora vai me desculpar. Sei que assim procede por generosidade
e inexperiência. Não posso receber dinheiro em virtude de ação praticada
no exercício da minha função. Mas agradeço sua intenção.
Mariazinha ficou encabulada, sem saber como consertar a mancada
que dera. Como podia entrar na sua cabeça que alguém pudesse recusar dois
contos de réis, sem ninguém ver, sem ninguém saber? Atalhou:
– Perdoe, Tenente, minha falta de jeito. Ofender o amigo seria a última
coisa que desejaria fazer.
– Tudo bem, dona Mariazinha.
– Ora, Tenente, pelo menos na ausência de dona Carmosa, o amigo
podia me chamar de Mariazinha...
– Pois não, Mariazinha. Está tudo bem. O pagamento é a felicidade de
ter-lhe ajudado. Mudando de assunto: tenciona mesmo mudar-se para
Cajazeiras?
– Sim senhor, e brevemente. Amanhã mesmo estou viajando para
Baixio. Vou mandar limpar a casa que comprei...
– Vou lhe pedir uma coisa que pode parecer estranha e da qual lhe peço
toda reserva.
Mariazinha arregalou os olhos negros, cheios de brilho, e esperou que
o Tenente completasse o que vinha dizendo.
– Queria que a amiga adiasse sua viagem para o mês que vem. Tem-se,
como coisa acertada, que, antes do fim do mês, os cangaceiros atacarão esta
cidade. Compreendeu?
– É mesmo?
– Sem nenhuma dúvida.
– Tá certo; aceito o conselho. O senhor podia me esclarecer tudo isso,
bem direitinho, mais tarde.
– Quando, Mariazinha?
– Hoje à noite, no meu quarto; não, no seu quarto, que é mais
escondido.
– Mas...
– Não vai me dizer que agradece, também, minha visita. É ou seria
uma dupla humilhação: se oferecer e ser recusada.
– Não é isso, minha amiga.
– Então até à noite, no seu quarto, às dez horas.
Levantou-se e, com um sorriso brejeiro, afastou-se da mesa e foi
conversar com a dona do hotel.

Longos, intermináveis, sôfregos, os minutos da espera. Tinha se


arrependido, e ele a desculpava. A porta do quarto estava semi-aberta, por
ela entrando tênue réstia da luz mortiça do corredor. Quando Mariazinha
empurrou a porta, e antes de fechá-la, teve olhos para divisar, no claro-
escuro, que deixara cair o robe e um mundo moreno, ondulante e macio,
enchera o quarto solitário com seu perfume e suas formas amplas,
generosas, aconchegantes.
Como era de hábito, de manhã, cedo, dona Carmosa serviu,
pessoalmente, seu café. A impressão do Tenente era que estava estampada,
na sua cara, a alegria da noite anterior. Dona Carmosa lhe comunicou, com
naturalidade:
– Dona Mariazinha viajou, bem cedo, para Baixio, com um grupo de
tropeiros. Me pediu para agradecer, mais uma vez, tudo o que o senhor fez
por ela.
Olhou, desconfiado, para a dona do hotel, mas não notou, nem de
longe, sinal de malícia nos gestos e no olhar da mulher. Mariazinha
somava, às grandes virtudes, o senso perfeito da discrição. Que mulher!

SEIS HORAS da manhã do dia 18 de setembro de 1926. Do outro lado do


“Serrote”, alguns homens recebiam instrução militar ministrada pelo
Sargento Rangel, com a ajuda do Cabo José Gonçalves. Aprendiam a
carregar um rifle, um fuzil, um revólver, portar uma dessas armas, fazer
pontaria, calcular distância e atirar. Auxiliavam os dois militares os
empregados do Engenheiro das Secas, José Mendes e Vicente Marcelo.
O Tenente Elino Fernando apareceu no final do treinamento, cerca de
11 horas, quando o pessoal já tinha sido liberado.
O Sargento comunicou ao seu chefe:
– Dispensei quatro homens por absoluta falta de jeito. Os demais...
– Rangel, com alguns dias mais de exercício, acredito que as coisas
possam melhorar. Lembra-se do quartel? A impressão que se tem, no
começo, é a de perda de tempo; de que o pessoal vai precisar de cem anos
para usar uma arma. Depois, dum instante para outro, a coisa muda. O fato
de passarem quatro horas seguidas, nesse sol, tentando aprender, errando,
perguntando, é animador. Sabemos, você, eu, o Cabo Zé Gonçalves, que
não se transformarão, em tão pouco tempo, em bons atiradores. Mas farão
número na ocasião necessária. Vinte armas disparando, ao mesmo tempo,
no choque inicial com os cangaceiros, poderão impressionar, assim como
acontecerá conosco quando os bandidos atirarem.
Estavam debaixo de um bom pé de juazeiro, um ponto verde na
paisagem desolada das proximidades do “Serrote”. O Sargento, criando
coragem, indagou:
– Será, Delegado, que não estamos perdendo tempo? O senhor acha,
mesmo, que os cangaceiros atacarão a cidade?
– Acho que sim, Rangel.
Contou-lhe, então, sem nada omitir, a viagem de Raimundo Anastácio,
as informações colhidas do fazendeiro Manoel Serafim, o caso do bandido
Cobra Verde, a carta do parente do Padre Gervásio. Concluiu:
– Eles virão, Sargento. Não tenho a menor dúvida. Quero que guarde
reserva absoluta do que lhe disse, compreendeu?
– Compreendi, senhor. Pode confiar em mim. Me perdoe se pergunto,
de novo, o senhor acha que esse pessoal que está sendo treinado vai ser útil?
– Acho. Ainda ontem comentei o assunto com o mestre Raimundo, e
ele é de opinião que essa gente vai ajudar.
– Por que é que o senhor, às vezes, chama seu Anastácio de mestre?
– É que ele já foi um grande seleiro. Aprendeu com o sogro, de quem
recebeu o negócio e o continuou. Suas selas eram conhecidas pelo
acabamento caprichoso; não só a sela como os seus complementos: rabicho,
cilha, peitoral, estribos; fazia gibão, perneiras, chapéu com barbicacho e
luvas com perfeição, segundo me mostrou, um dia desses, Nelson Rolim.
– Por que seu Raimundo parou?
– Alega que um princípio de reumatismo o impediu de usar
plenamente a mão direita. É o que diz. Mas me contaram, também, que
algumas pessoas o hostilizavam devido à sua condição de ex-cangaceiro.
Mas ele era tão bom que o chamavam de mestre.
Daí a pouco apareceu Romeu Cruz. Cumprimentou o Delegado e
perguntou ao Sargento Rangel:
– Como vão, no treinamento, os irmãos Pedro e Paulo?
– Vão muito bem; são os melhores que tenho.
O Tenente desconfiou que Romeu escondesse alguma coisa. Falou com
ele em voz baixa:
– Que há? Os rapazes querem ir embora?
– É o seguinte, Delegado. Não posso ter segredos para o senhor;
entretanto, estava escondendo o que agora vou revelar. Esses dois rapazes,
Pedro e Paulo, há pouco elogiados pelo Sargento Rangel, são filhos de um
amigo meu, agricultor pobre do Quixadá. Estão morando certo tempo na
minha casa, fugindo dum processo: mataram, em plena feira, um
desgraçado que ofendeu a irmã, menor, deles, e se recusou a reparar o mal.
– Fez bem em me contar, Romeu, mas já sabia disso. Alguém
denunciou o fato ao Prefeito e a mim, em carta anônima, com todas as
particularidades. Veja você como Sabino Gomes tem amigos dedicados em
Cajazeiras. Seriam menos dois no nosso pequeno grupo de resistência.
– E agora, Tenente?
– Nada mudou, Romeu. Os rapazes estão do nosso lado. Estes é que
são os nossos amigos. E amigo da gente não tem defeito. O resto que vá
para os infernos, conforme costuma sentenciar o senhor Doutor Juiz de
Direito da Comarca.

Convidado pelo Padre Gervásio Coelho, apressou-se para não chegar


atrasado ao compromisso. Felizmente chegou em tempo, ou, melhor,
chegou mais cedo do que o vigário. Abriu-lhe a porta e mandou que se
sentasse na sala de visitas uma senhora que devia ser irmã do padre. Com
retratos de santos em profusão, pendurados nas paredes, a sala parecia uma
dependência da Igreja. Chamou sua atenção, em particular, uma Madona de
olhos pretos, amendoados, que o olhavam com suavidade. Respeitava a
religião, mas não compreendia o culto quase exclusivo que o povo devotava
aos santos, esquecendo, talvez, o próprio Deus. Tratando-se de Nossa
Senhora, abria uma exceção, pois sempre o comovera a história da
abnegação e da humildade da jovem judia, a quem o Senhor escolhera para
ser a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Lembrou-se da conversa mantida, há instantes, com Romeu Menandro
Cruz. Onde estavam seus princípios? Como aceitar, pacificamente, a
colaboração dos dois moços que estavam sendo processados por crime de
morte, no município de Quixadá? Quem, por outro lado, na situação em que
se encontrava, ia recusar a ajuda desses rapazes? A verdade, inarredável e
terrível, era a de enfrentar trinta cangaceiros com meia dúzia de praças e
alguns paisanos inexperientes. Não o incomodava, absolutamente, que a
denúncia sobre os dois rapazes chegasse à Capital. Até lá poderia estar
morto e isso não significaria mais nada. Sentiu um frio correr pela espinha;
balançou a cabeça, com energia, repelindo a passagem da Indesejada.
O Padre Gervásio chegou, logo depois, desculpando-se pela demora. O
almoço (galinha à cabidela) estava muito gostoso. Devido à presença da
irmã do padre na mesa, não mencionaram o assunto cangaceiro.
Após o café, foram para a sala da frente. O padre lhe ofereceu um
charuto “Florinha” e quebrou, com o dente, a ponta de outro para ele
próprio.
Fez, então, ao vigário, um relato circunstanciado sobre tudo que havia
ocorrido nos últimos dias, desde a viagem de Raimundo Anastácio até à
“detenção” do bandido Cobra Verde.
– O cangaceiro está preso, Tenente?
– Infelizmente, não.
– Fugiu, então?
– Para o outro mundo, seu vigário. Houve uma luta séria entre ele e
dois soldados, que foram obrigados a matá-lo.
Para sua surpresa, o Padre Gervásio asseverou:
– Melhor, assim, talvez. Não falei, mais, do púlpito, sobre os
cangaceiros, mas em conversa tenho procurado ajudá-lo.
– Eu sei, Padre. Gostaria que o senhor confiasse a pessoa de sua
confiança coleta de dinheiro para um grupo de gente pobre que nos está
prestando um grande serviço. Não são atiradores; são vigias. Ficam à noite,
nas pontas de rua, observando. Qualquer movimento suspeito, correm para
nos avisar. E se constatarem qualquer grupo suspeito, acendem os foguetões
e correm.
– São os “anjos-da-guarda” da cidade.
– Quase isso, Padre Gervásio. Com uma particularidade: eles e as
famílias passam privações, pois, na sua maioria, têm vergonha de pedir
esmola. O dinheiro tem essa destinação.
– Está bem, Delegado. Conhece Francisco Rodrigues, o contador da
Cooperativa? É gente da minha absoluta confiança. Hoje mesmo, com uma
carta minha, vai visitar alguns comerciantes com a finalidade de pedir ajuda
para os “anjos-da-guarda” famintos. Ai daquele que se recusar a contribuir
para esse fim.
Agradeceu ao Padre, comovido. E arrematou a conversa:
– Os cangaceiros vão entrar na cidade, é verdade, pois somos em
menor número e não posso esperá-los lá fora. Mas vão voltar por onde
entraram.
– Deus lhe ouça, Tenente. Já azeitei meu rifle 44, de papo amarelo.
Não vou assistir ao tiroteio; vou tomar parte nele, o senhor vai ver.

Saiu mais animado da casa do Padre Gervásio. Andando pela rua


Grande, espaçosa e tranquila, vendo os jumentos carregados de latas
d’água, sentiu uma raiva inesperada e violenta. Via a indiferença dos
habitantes em face do perigo eminente que atingia a todos. O Padre chegara
a repetir que o povo parecia anestesiado pela boataria constante e sempre
desmentida pelos fatos. Devia ter comido demais. Suava. Era o excesso de
galinha à cabidela, ou era a constatação da luta desigual e desesperada, que
sabia, de antemão, perdida?
Sem ter consciência dos passos dados, foi parar na casa de Raimundo
Anastácio. Precisava conversar com alguém que não estivesse apavorado,
como ele, naquele momento. O Cego Alexandre se encontrava lá. Mestre
Raimundo recebeu-o com a tranquilidade de sempre. Notou, num relance,
que dona Dorinha o olhou de soslaio, mal correspondendo ao seu “boa
tarde!”
– Tudo bem, Delegado?
– Mais ou menos, Raimundo.
Dirigiu-se ao cantador:
– Seu Alexandre, o senhor vai bem?
– Melhor do que mereço, meu rapaz.
Disse a Raimundo:
– Vim conversar e saber como vai do ombro.
O cantador interveio:
– Já ia saindo, Tenente. Com sua licença...
O Delegado ponderou:
– Por causa da nossa conversa, não; não temos segredos para o senhor.
O Cego agradeceu a confiança e chamou Zé Pretinho, o guia, que
estava no interior da casa. Despediu-se do Tenente e de Anastácio,
agradecendo a este o almoço. E saiu pela rua, segurando a ponta da bengala
e Zé Pretinho, a outra.
Contou a seu Raimundo a conversa com o Padre Gervásio, achando
que os “vigias” iam ganhar um dinheirinho a mais.
– Anastácio, você me falou, por alto, quando me narrou sua viagem,
que Sabino estava procurando gente nova para completar o grupo, não foi?
– Foi. Quem me disse foi Manoel Serafim, informando que Lampião,
quando saiu de Lavras de Mangabeira, levou o grosso dos bandidos. Daí
Sabino querer sangue novo. Mais: que a coisa não corria com facilidade. Se
fosse ano de seca...
– Como assim, Raimundo? Que tem a seca com o caso?
– Tem muito. O ano não foi ruim. Deu bom milho, feijão, e um pouco
de algodão. Quer dizer, o pessoal está ocupado e tem o que comer. O
cangaço é a saída desesperada depois de dois anos ou mais de seca repetida.
– Independente disso, você assegurou que Sabino não traria mais de 30
homens, se lembra? Por quê?
– Há, também, o tamanho do saque. Sabino já morou aqui e sabe que
não há dinheiro sobrando, nem muitas jóias, nem ouro. Tendo certeza que a
colheita não será grande, quanto menos gente, melhor, para a partilha.
Trinta homens, penso.
– Assim mesmo é bandido que nem terra, Raimundo.
– Nenhuma notícia de reforço, Tenente?
O Delegado demorou um pouco a responder. Um demônio malicioso
soprou no seu ouvido: “Já pensou que Anastácio pode estar a serviço dos
seus antigos companheiros de cangaço?” Sacudiu a cabeça, com energia,
para afugentar o mau pensamento. Raimundo lhe perguntou:
– Passagem da desgraçada, Tenente?
– Hein?
– O senhor balançou a cabeça com força como se estivesse afastando,
para longe, a Indesejada.
– Não sei; pode ter sido. Voltando à sua pergunta: nada. Nenhum sinal
da Paraíba. Eu pedi, o Prefeito pediu, o Juiz de Direito pediu. Dizem que
este passou um telegrama brabo, ríspido. A resposta é sempre a mesma:
“Temos recebido idêntico apelo de todos os municípios do sertão; logo que
for possível, providenciaremos.” Esse “logo” é o que se chama, aqui, de
“dia de São Nunca, de tarde”.
– Soube que o Doutor Juiz está dizendo que o senhor é dis... dis...
– Displicente.
– O que é isso, Tenente?
– Quer dizer que não solicitei reforço, que não tenho feito nada, que
durmo o dia todo...
– O senhor não podia ir dizer a ele o que está fazendo? O treinamento
dos paisanos, a vigilância à noite...
– Ele não diz por mal; é da natureza dele. Quem é que se ofende, aqui,
quando ele manda o sujeito pros infernos? Ninguém.
Anastácio pensou um pouco, e falou:
– Se estiver errado, o senhor me corrige. O senhor tem, fora o pessoal
que ficará de guarda na casa do Prefeito, do Juiz, dos colégios, cerca de
vinte e três homens. Ainda é pouco, Tenente. Sabino deve atacar com vinte
e cinco cabras, no barato. Ainda ontem, à noite, dei esse balanço com
Romeu Cruz, nome por nome. É isso?
– É isso. Pode aparecer alguém, pode alguém desistir, mas o quadro é
esse. Ainda ontem, no hotel, me apareceu um moço. Manoel Oleiro. Quer
aprender a atirar, a brigar. Apesar de novo, é um menino! Nunca vi tanta
firmeza.
Raimundo Anastácio adiantou:
– Conheço o rapaz. É disposto. O pai foi esfaqueado na feira, às 10
horas da manhã, friamente, sem motivo nenhum, por um cabra qualquer,
sem que ninguém tivesse feito nada. O rapaz, Manoel Santana, estava
presente. Nunca esqueceu. Está nisso, agora, para vingar o pai. Mas pode
ajudar, e o senhor não deve recusá-lo.
– Não recusei, não. Mas tive uma pena enorme do esforço que fez para
ser aceito. E dos seus verdes anos, do seu olhar, dos seus gestos, do seu
vigor. Essa vida é uma desgraça, mestre Raimundo.
Deu uma volta, depois, sozinho, pela rua do Comércio, pela Praça do
Coração de Jesus, que iam ser o cenário da luta desesperada e desigual.
Lembrou os que iriam ajudá-lo, seus soldados e os paisanos que se
decidiram a brigar, sem vantagem, sem nada esperar de volta. Simplesmente
porque era preciso lutar. Ao medo que ia e vinha, seu coração se alimentava
desse gesto simples, corajoso, firme.
Vinha dormindo mal nas últimas noites; melhor, não dormira, pois uma
hora de sono não basta para quem precisa de nervos firmes. No quarto dia,
já inquieto, foi ao consultório do doutor Otacílio Jurema. Apesar dos
contatos breves, todos decorrentes do seu ofício (crimes de morte,
ferimentos graves), nutria simpatia pelo médico, que lhe parecera ter um
temperamento assemelhado ao seu: calado, de pouca conversa, mas
atencioso, compreensivo. Abriu, logo, a conversa:
– O cliente, hoje, sou eu. Ando sem dormir há umas quatro noites
seguidas, e o fato está afetando minhas reações, meu comportamento. Será
medo, doutor?
O médico sorriu. Sabia que não era fácil para um militar abordar, com
franqueza, esses assuntos. Disse-lhe:
– Possivelmente. O medo, o trabalho, o senso de responsabilidade, as
dificuldades de sua tarefa, tudo junto forma e explica sua insônia. Acho
que, nessa altura, só os insensatos, as crianças e os burros conseguem
dormir a noite inteira. O cerco está se apertando, não é, Tenente?
– É verdade. Mas, se as coisas não falharem, vamos dar trabalho a
Sabino. Para isso, preciso que a saúde não me fuja. E tenha energia para
pegar numa arma, gritar e berrar como fazem os bandidos.
Depois de conversarem sobre outros acontecimentos, o médico tomou-
lhe a pressão arterial e realizou um exame meticuloso e demorado.
Concluiu:
– Tudo muito bem, como esperava. Vou passar um relaxante muscular,
que não cria hábito ou dependência, ou não ponha o amigo indiferente
diante de Sabino ou Lampião.
Saiu do consultório mais aliviado, ou menos tenso. Antes de solicitar,
o doutor Otacílio prontificou-se a ficar de plantão durante a luta. Perguntou,
ao despedir-se, o preço da consulta. O médico sorriu, batendo-lhe no ombro
e brincando:
– Não queira quebrar a tradição do consultório: não cobro as consultas.
A família, os amigos e os próprios clientes me acham meio maluco. Talvez
tenham razão.
Cinco

DEPOIS DAS VIAGENS a Alagoinha e Crato, Anastácio passou a ter sonhos


ruins, repetidos, que o agoniavam: via-se acompanhando o cangaceiro
Sabino Gomes e seus cabras na invasão da cidade, atirando, gritando nomes
feios e quebrando com eles portas e janelas de casas conhecidas. Quando
acordava, era um alívio sentir-se na realidade, que era a rede grande em que
estava deitado, o teto bem alto e a ponta de dor no ombro machucado. A
alegria durava pouco: mergulhava, de novo, no emaranhado do mesmo
sonho opressivo, intermitente, angustiante.
Levantava bem cedo, no claro-escuro da madrugada, como se tivesse
escapado dum estouro da boiada. Mas não eram os sonhos, só, que o
afligiam. Mesmo acordado, em pleno dia, no trabalho, no meio da rua, era
invadido pela visão do assalto, do tiroteio, das correrias, do terror das
pessoas, que gritavam mas não eram ouvidas. O pior é que essas imagens se
tornavam cada vez mais frequentes. Estaria a sofrer da cabeça, como seu
irmão que desaparecera no ar?
Findava o mês de agosto, mês do desgosto. Como contar essas
esquisitices a alguém, sem provocar mangação ou a suspeita de que já não
estava regulando bem? Ah! Como seria bom se a vida pudesse voltar a ser
como no tempo da calma, da paz, do trabalho. Haveria coisa mais gostosa
do que a fresca da manhã, a mulher aconchegada na rede, o canto dos
pássaros lá fora, o rebuliço do galo e das galinhas no quintal, o cheiro do
café forte enchendo a casa, a tapioca quentinha, o cuscuz molhado no leite
de coco? Como tudo é tão simples, tão bom, tão fácil de alcançar!
Por que sentir, antes do tempo, o cheiro áspero da pólvora, o zumbido
das balas, os berros dos feridos, os gritos aterradores dos assaltantes?
Outras pessoas, na cidade, sofriam, assim, antes do tempo? Ou eram os
sinais da velhice que não podia esconder: o fôlego mais curto, o gesto mais
demorado, o medo exagerado diante do perigo, da doença, da morte?
Empenhava-se em não pensar nessas coisas, que tinham mais força do que
sua vontade. Era a convicção de que iam enfrentar inimigo mais forte e
mais numeroso? Ou a certeza de que era a pessoa mais visada por Sabino?
Procurou o Cego Alexandre. O cantador lhe deu tranquilidade:
– Isso é natural, Raimundo. E só findará depois da briga. Tudo isso
pode ser resultado do que passou na sua última viagem. Converse com o
Delegado, pois, além de ser um homem simples, compreensivo, é um
espírita. Ele pode ajudar você em dissipar essas visões que lhe atormentam.
Não sabia, em certos momentos, quando o cantador falava sério ou
brincava com ele. Replicou:
– E se ele achar que é maluquice de minha parte?
– Você acha que é?
– Não; mas tenho minhas dúvidas.
– Acho bom você falar com o Tenente.
Foi. O Delegado não mangou de seus sonhos e de suas visões; e pediu
que lhe contasse, exatamente, o que acontecia; não escondesse nada.
Raimundo Anastácio repetiu o que já dissera ao Cego Alexandre:
– Eu não vejo. É como o senhor falou: eu sinto. Quando moço,
mergulhado na vida cangaceira, tinha esses pressentimentos. Adivinhava,
quase, quando o perigo vinha chegando. Quando voltei a viver no meio das
pessoas, casei, comecei a trabalhar, essas coisas desapareceram. Agora,
voltaram. Eu sinto, como se estivesse vendo com os olhos, os cangaceiros
entrando na cidade, orgulhosos, donos do mundo, atirando, gritando nomes
feios. No meio da confusão, vejo Sabino Gomes, seu olhar vesgo, a cara
gorda, o cabelo grosso saindo do chapéu, rindo, satisfeito, dono da situação.
No começo, disse comigo mesmo: é nervoso, são os boatos falsos mas
repetidos, que mexem até com os nervos de um mourão de curral. De uns
dias para cá meu peito se aperta, e eu volto a sofrer essa coisa que não está
acontecendo, ainda, mas vai acontecer com toda certeza.
O Delegado demorou um pouco a responder. Pensava: aquilo era
medo, problema de idade ou crise de ordem religiosa? Seu Raimundo não
perdia missa, nem procissão. Mas havia uma particularidade que não podia
escamotear: o “índio” era um homem sincero. “Medo?” Não; medo não era.
Podia ser uma premonição, um pressentimento, como era comum entre os
de sua raça. Urgia dizer alguma coisa que ajudasse o amigo, mas que fosse
verdadeira. Não devia, de forma alguma, deixar sem resposta o que lhe
perguntava, num gesto de confiança, o mestre Raimundo. Ponderou:
– Sonho é sonho, seu Raimundo. Mas só em parte, pois ele é
provocado pela realidade. Ou do que aconteceu, ou do que pensamos. A
Bíblia está cheia de sonhos. Você tem esse dom, que pode ter herdado de
sua raça, mas que é, afinal, uma dádiva de Deus. Pode ser um sonho ou o
que se chama de premonição, de pressentimento, de adivinhação.
– É um sinal de fraqueza, Tenente? Que estou com mais medo do que
se deve ter?
– Nada disso, Raimundo. Um fraco pode sonhar que é Sansão, um
grande guerreiro; do mesmo modo que um homem normal, corajoso, pode
sonhar que está correndo com medo de um gato, de um cachorro.
Entendeu?
– Não de todo, mas fico satisfeito com o que entendi.
Uma noite, três dias depois dessa conversa, o Tenente Elino foi à casa
de Raimundo Anastácio, que ficava nas proximidades do Motor da Luz. De
vez em quando o Delegado lhe fazia essa surpresa. Não era bronco de todo
para não ver que, com aquelas visitas, o Tenente estava dando uma
demonstração de confiança ao ex-cangaceiro. Sabia que muita gente
desconfiava dele, “que era feito da mesma massa dos bandidos que
ameaçavam a cidade”.
Era isso. Dias atrás, Dorinha, sua mulher, nascida, criada em
Cajazeiras e aqui vivendo até hoje, parente de muitas famílias dali, ouvira
dona Tazinha, mulher de um comerciante, dizer, em voz alta, para ser
escutada, estas palavras duras: “Quem pode garantir que esse cangaceiro
não vai ficar do lado de seus camaradas? Quem foi cangaceiro é cangaceiro
até no inferno. É como padre. Essa gente não muda. Nunca mudou. Por que
esse é diferente dos outros?” Dorinha, que fazia restrição ao Tenente,
achando que ele queria fazer de Raimundo “soldado sem farda e sem
soldo”, já aceitava com agrado o aparecimento da autoridade em sua casa
pobre e desguarnecida.
Quando o Tenente Elino chegou, já se encontravam na casa de seu
Raimundo as seguintes pessoas: Romeu Menandro Cruz, Marechal, Manoel
Nóbrega, Dimas Andriola, Anísio Bezerra, o Cego Alexandre e um cidadão
magro, de óculos, corado, que lhe foi apresentado, depois, por Dimas, como
o professor Antônio de Sousa. Depois de um boa-noite geral, dirigiu-se ao
Cego Alexandre:
– Parece que ninguém lhe incomodou mais, seu Alexandre...
O Cego voltou-se para a direção da voz:
– É verdade, seu Delegado. Já devia ter ido agradecer ao senhor...
– Nada disso, homem. Não estou cobrando agradecimentos.
O Cego sorriu:
– Eu sei. A culpa tem sido da minha língua ferina. Quando menos
espero, ela me trai, e lá vou eu a mexer com quem não devia, confiado,
talvez, na minha condição... Mas, de uns tempos para cá, ou a língua
melhorou, ou perdi os ouvintes mais maliciosos e fuxiqueiros.
Dimas, o escrivão, esboçou um gesto e entrou na conversa:
– Delegado, o professor Antônio de Sousa se encontra nesta reunião a
meu convite. O senhor manifestou, um dia destes, interesse em saber
alguma coisa sobre a passagem de grupos de cangaceiros pelo município. O
professor tem certos apanhados...
O Tenente voltou-se para um homem magro, elegante, de olhos azuis,
e lhe disse:
– Acho, professor, que o senhor não estranhará minha curiosidade. A
tática desses bandoleiros é quase invariável, mas o comportamento deles
com relação às pessoas é imprevisível. Agradeço, de antemão, suas
informações.
O professor pigarreou, arregalando os olhos, e começou a falar:
– Sem contar os grupos de vida breve, nos anos de estiagem mais
prolongada, assaltando sítios e fazendas, só em 1919, ao que sei, um bando
de cangaceiros, sob o comando de LUIZ PADRE, apareceu em nosso
município. E tudo por causa de uma mulher, Manoela, também chamada de
Manu. Consta que era uma morena de rara beleza. A união com Luiz Padre
durou até o tempo em que Manu conheceu outro Luiz, Luiz Neco, que a
roubou do primeiro. Este não se conformou e passou a perseguir a infiel e
seu comparsa. Mas Manu não era de esquentar lugar; pouco tempo depois,
abandonou o segundo Luiz e sumiu. Luiz Neco, desiludido e amedrontado,
refugiou-se, discretamente, na casa de um cunhado, Osório Bezerra de
Sousa, no sítio Cipó, deste município. Sabedor do paradeiro de Luiz Neco,
o cangaceiro, vindo ninguém sabe de onde, cercou, com seu bando, a casa
de seu Osório Bezerra. Aprisionou este e sua mulher, dona Belinha,
pressionando-os à procura de Luiz Neco. Orientado pelo “guia” Zé Rosa,
foi até à casa de Justino Pereira de Alencar, irmão do homem que lhe
roubara Manu, a infiel. Como Justino não disse onde estava o irmão,
castrou-o com toda crueldade. Não ficou nessa desumanidade a prova do
caráter de Luiz Padre e sua sede de vingança. Voltaram ao sítio de Osório,
que viu arrasarem tudo, tocando fogo na bolandeira, nos armazéns, no paiol
de rapaduras, quebrando portas, janelas, móveis. Juntaram 18 burros, dois
cavalos de sela, rifles, jóias e utensílios de serventia da família. Por pura
maldade, levaram dona Belinha como prisioneira ou refém. Ela só voltaria
se lhe dessem notícia de Manu.
Figura central dessa história, dona Belinha, que era uma mulher forte e
decidida, soube impor-se diante do bandido-chefe e dos seus asseclas,
chegando a Patos de Princesa cinco dias depois.
Dimas Andriola interrompeu o narrador:
– Quer dizer que Lampião, mesmo, nunca esteve aqui?
O professor ajeitou o óculo, e continuou:
– De Lampião falo depois. A nota mais curiosa desse episódio se liga à
intervenção de Dom Moisés Coelho, naquele tempo já Bispo desta Diocese.
Pois Dom Moisés pediu ao vigário de Princesa, Padre Florentino Diniz, sua
diligência no sentido de obter a libertação de dona Belinha. Isso foi feito. O
Padre Florentino conduziu a prisioneira, de volta, a Cajazeiras. No Palácio
do Bispo, promoveu-se o encontro dos esposos, sob as bênçãos de Dom
Moisés.
Sobre o assunto, a irreverência popular cantava, no ritmo do baião, os
seguintes versos:

O riacho do Cipó encheu e já secou


A mulher de seu Osório, Luiz Padre carregou
Morena bonita, cor de canela,
Seu Osório ficou sem ela.

Dona Dorinha, mulher de Raimundo Anastácio, apareceu com enorme


bandeja de café. O Professor Antônio de Sousa respirou um pouco, tomou
sua xícara, devagar. Quando todos já se tinham servido, voltou a falar:
– Agora, Dimas, é a vez de falar em Lampião. Que apareceu, também,
no já mencionado Sítio Cipó. Foi no dia 5 de novembro de 1925.
Comandando numeroso grupo, vindo do Ceará, Lampião parou no Sítio
Cipó. Invadiu a residência do fazendeiro Chico Salvino, exigindo a
importância de dez contos. Não tendo sido atendido, Lampião deu ordens
aos cabras para arrasarem a propriedade. Quebraram o pequeno engenho de
aguardente, a prensa, o alambique, o vasilhame e, por fim, os móveis e
pertences da casa da fazenda. Chico Salvino assistiu a tudo, amargurado,
como prisioneiro. Mesmo tendo revolvido a casa toda, armários, baús,
cômodas, sem encontrar o dinheiro, Lampião levou Chico Salvino com ele
até o povoado de Catingueira. No caminho para Catingueira, sem motivo
algum, mataram os pedreiros Antônio Francisco e seu filho Rochinha, que
levantavam um muro na casa de seu Vicente Gomes. Em Catingueira,
Lampião descansou um pouco, passando lá o dia todo. Pelo portador
Antônio Joaquim, mandou uma carta para o coronel Zuza Garcia (José
Bernardino de Sousa) do Sítio Baixa Grande, pedindo quinhentos mil réis.
O coronel Zuza não foi encontrado. Nesse mesmo dia, às 5 horas da tarde,
voltou pela estrada que passa nos sítios Carrasco, Redondo, Tambor e
Marimbas, seguindo no rumo de Bonito de Santa Fé. Iam com ele cerca de
15 cangaceiros. Não faz, assim, um ano que isso aconteceu.
O Tenente perguntou:
– Sabino Gomes ia com ele?
– Não sei lhe dizer, Tenente. Pelo menos quem me contou os episódios
há pouco referidos não falou no nome de Sabino.
O Tenente Elino agradeceu o relato feito pelo professor, perguntando
se ele sabia alguma coisa sobre a patente de Capitão que o Padre Cícero, do
Juazeiro, havia conferido a Lampião.
O Cego Alexandre pediu licença para informar alguma coisa que
parecia representar a verdade:
– Vou repetir aqui o depoimento do sanfoneiro Zuca Preto, de Missão
Velha. Amigo do Padre Cícero, frequentando sua casa, ele me contou, faz
pouco tempo, ter ouvido do Padre o seguinte: “Quando a Coluna Prestes
ameaçou, em começos deste ano, passar pelo território do Ceará, o Governo
Federal, por intermédio do Deputado Floro Bartolomeu, mandou pedir
minha intercessão junto a Virgolino Ferreira da Silva, Lampião, para que
este se juntasse às forças legalistas no combate aos revoltosos. Seria
concedida, de logo, a Lampião, a patente de Capitão. Mais: seria anistiado
ou perdoado de todos os crimes por ele cometidos ou a ele atribuídos, estes
em maior número do que aqueles. Não era essa a oportunidade para
Lampião voltar à vida normal, regenerar-se, terminar sua triste sina de
assaltar e matar? Cheguei a falar com Virgolino a esse respeito. A
concessão da patente foi feita pelo Deputado Floro Bartolomeu; ou melhor:
foi um funcionário federal, de sobrenome Uchôa, quem assinou o
documento. Vi imediatamente que aquele papel não tinha o menor valor e
não produzia nenhum efeito com relação ao passado de Lampião.
Compreendi que tinham usado meu nome para forjar uma farsa. Esta, a
história verdadeira da patente, que não foi por mim concedida, pois não
tinha autoridade ou competência legal para isso.”
O Tenente voltou-se para Romeu Cruz e indagou:
– É verdade que Sabino Gomes já morou em Cajazeiras? Como era
ele?
– Apareceu na cidade faz uns três anos, talvez. As notícias sobre sua
passagem são vagas, soltas. Sabe-se que foi empregado de Marcolino Diniz,
comerciante procedente de Princesa. Segundo conversa de um guarda-
costas de Marcolino. Sabino Gomes matara um homem, em Flores,
Pernambuco, na feira, sem nenhum motivo, ou por motivo fútil. Era, no
tempo em que esteve aqui, me lembro bem, um caboclo novo, de seus 22
anos, baixo, forte, cor de cobre, de pouca conversa, cabelo duro, enrolado,
olhar enviesado, desconfiado, arredio. Sempre se contou, na cidade, a
seguinte história: metido a mulherengo, enxerido e afoito, deu-se mal ao
querer namorar com a mulher de um soldado de nome Lourenço. Uma
noite, num baile, quase tira à força a mulher para dançar. O soldado
resolveu tomar satisfação. Amansou um pouco a raiva quando soube que
Sabino era protegido de Marcolino Diniz, homem duro, valente, que tinha
mania de viver cercado de cabra ruim. Os camaradas de Lourenço
resolveram tomar as dores do soldado. Apanharam Sabino, numa noite
escura, na Rodagem, vindo dum forró, e lhe deram uma surra danada. Ele
reagiu como uma fera, dando pesadas, murros, dentadas, deixando um
soldado inconsciente com uma cabeçada na boca do estômago, lá nele.
Eram cinco contra um e Sabino estava meio “alto”. Dizem que nunca
esqueceu a surra. Prometeu vingar-se dos “macacos” (com licença, Tenente,
da má palavra).
O Tenente provocou seu Alexandre:
– O senhor contava a história do sanfoneiro...
– Zuca Preto. Pois é; o Zuca é um homem direito, seguro. Faz poucos
dias que me falou nisso. Bem como no que lhe sucedeu no ano de 1924,
segundo ele ano de muita chuva, de inverno exagerado, de rios cheios, de
açudes arrombados, mas, no final, tempo de muita fartura, de abundância. O
sanfoneiro parara para dormir na fazenda de seu Olegário Torquato, pessoa
hospitaleira e amiga. Vinha cantar na feira de Cajazeiras, num dia de
sábado. Estavam na mesa, na hora da ceia, quando apareceram Lampião e
seu grupo. Vinham pernoitar, com a licença do dono da casa...
O Delegado interrompeu o cantador:
– Esse seu Olegário era amigo, coiteiro de Lampião?
– Ele recebia o bandoleiro, como muitos outros fazendeiros, mas não
se pode dizer que era coiteiro, ou seja: comprava mantimentos ou munição
para o grupo, essas coisas.
– Entendo, seu Alexandre; continue por favor.
– Contou-me Zuca Preto que Lampião tomou conta do alpendre, onde
se armaram duas redes; uma pra ele e outra (soube depois o nome do outro
bandido), para Sabino; os outros cabras se espalharam pelas imediações da
casa, onde comeram e, depois, dormiram, com um olho fechado e outro
aberto. Lampião estava de mau humor: perdera dois homens num cerco da
Polícia de Pernambuco, perto de São José do Belmonte, abandonando
animais, armas e munição. Se escondeu na Serra da Pintada durante alguns
dias; fez uma grande volta, passando por Conceição, na Paraíba; de lá
entrou no Ceará, vadeando o rio Salgado (que estava cheio); passou por
Lavras, ao longe (havia um destacamento de Polícia lá), e, por fim,
estropiado, cansado, chegou até à fazenda de seu Olegário, que tinha a
vantagem de ficar longe da estrada.
Seu Alexandre foi interrompido por dona Dorinha, mulher de
Raimundo Anastácio, que serviu café com um pedaço de pamonha,
desaparecendo, rápida, como tinha aparecido: uma sombra móvel, ligeira,
muda. O cego enrolou o cigarro de palha, deu umas fumaçadas (“com sua
licença, Tenente”) e prosseguiu no relato de Zuca Preto:
– Foi um azar dos infernos, disse o Zuca, me encontrar, ali, naquela
tarde. Constatara, logo, que não mais alcançaria a feira, nesta cidade, no dia
seguinte. Sempre ao lado de Lampião, estava Sabino Gomes, calado,
atencioso, procurando adivinhar o pensamento do Chefe. Os cabras
comeram tudo o que era bicho de pena e juntaram as miunças que
apareceram para o dia seguinte. Seu Olegário e a mulher multiplicavam-se
em atenções, mas não escondiam sua apreensão, olhando continuamente
para as filhas, Helena e Ilina, moças bonitas, educadas. As meninas estavam
se comportando com naturalidade, servindo, no alpendre, ao “Capitão” e a
Sabino, sentados nas redes, se balançando, pra lá e pra cá. Lampião
dissimulava seu interesse pelas moças, mas Sabino mal continha a
impaciência e o desejo, cobrindo-as com olhares compridos e derramados.
Zuca chegou a dizer que ainda hoje ouve o gemido dos armadores das
redes, seu rangido monótono, estridente, doloroso.
O Tenente viu que se apagara o cigarro de seu Alexandre. Para criar
uma pausa ou, talvez, para desabafar, interrompeu o narrador:
– Como se pode trabalhar e viver desse jeito? A agricultura e a criação
são atividades precárias, aleatórias. Pois, além das secas, das pragas da
lavoura, o castigo da presença obrigatória desses bandidos. Que terra
difícil! Não sei como se produz alguma coisa nessa região. Desculpe, seu
Alexandre, ter lhe interrompido. Como seu amigo conseguiu sair dessa
embrulhada?
– Não saiu; isto é, pediu para sair, mas não deixaram. O fazendeiro
chegou a falar com o Capitão, explicando que o sanfoneiro tinha de cantar
na feira de Cajazeiras, do dia seguinte. Lampião lhe respondeu:
– Você não está vendo, Olegário, que não vou deixar esse negro ir me
denunciar aos mata-cachorros? Se é cantador, vai cantar pra nós. Tamos
precisando disso. Traga o camarada pra perto; vamos ver se ele presta
mesmo.
Zuca ficou apavorado. Não tinha condições de cantar. A voz
atravessada na garganta; a língua travada, e as mãos tremendo como varas
verdes.
O cego Alexandre fez uma pausa e voltou-se para o lugar onde estava
o Tenente:
– O senhor me desculpe, Tenente. Tenho horror a esse homem tanto
quanto o senhor; mas a verdade é que ele não infunde terror, somente; ele
provoca respeito e admiração. Para muita gente, para os sertanejos pobres,
ele é um herói; um herói que saiu do meio deles, que está no cangaço para
vingar-se da morte do pai; não é um bandido, é uma vítima, o perseguido
pelas polícias de seis Estados, mas delas escapando, ileso, porque é um
protegido do Padre Cícero, de Nossa Senhora, dos Anjos e Santos que traz
dependurados no pescoço em forma de medalhas, bentinhos, escapulários e
orações.
– Parece até, seu Alexandre, que o senhor participa dessa crença –
comentou o Delegado.
– Participo não, Tenente; mas desconfio que ele é protegido do Diabo.
Mas, voltando ao sanfoneiro Zuca Preto: estava morrendo de medo, além do
mais porque ele não é um repentista e, sim, um cantador de modinhas, de
valsas, de baião. Seu Olegário o arrastou, quase, até à presença do Capitão
Virgolino. A felicidade para Zuca foi Lampião ter conversado, antes, com
ele, perguntando de onde era, como tinha escolhido aquela profissão, se
tinha família, se o que ganhava dava para seu sustento... Quando começou a
cantar, já estava mais calmo. E cantou de enjoar. Pediu, a certa altura, para
“ir no mato” alegando ao Capitão que voltaria logo. Seu Olegário o
acompanhou, por ordem, talvez, de Lampião para evitar sua fuga. No
caminho, o dono da fazenda contou seus aperreios: temia que as filhas
fossem ofendidas pelos cabras; que a cantoria tinha acalmado os ânimos.
Naquele momento, Zuca Preto compreendeu que sua vida também estava
por um fio. Se os bandidos molestassem as meninas, matariam seu Olegário
e a mulher; e ele, também, que era a testemunha incômoda. Quando voltou
para o alpendre, o Capitão cochilava; sentou-se na rede e pediu ao Zuca
para repetir algumas canções; “A Pequenina Cruz do Teu Rosário”, “Cai a
Tarde”, “Acorda, Minha Bela Namorada” e outras. Aproveitando a
“liberdade” que o Capitão lhe dera (Sabino, de cara fechada, não lhe
endereçou uma palavra), Zuca soltou uma declaração que valeu como uma
bomba: “Capitão Virgolino Ferreira da Silva, meu padrinho Padre Cícero
Romão esteve nesse alpendre que o senhor está, não na rede, mas numa
cadeira de balanço.” Lampião, que estava meio sonolento, despertou: “Que
é que meu Padim veio fazer aqui, seu... (“Zuca Preto, seu criado, Capitão”)
Zuca Preto?” Respondeu o sanfoneiro: “Isso foi na festa do batizado da
menina Helena, filha de seu Olegário, aquela mais morena, de cabelos
longos.” O testemunho é do Zuca: aquele foi o momento mais difícil de sua
vida. Inventara uma mentira do tamanho do mundo, achando que era uma
saída, quando todo mundo sabia que o Padre Cícero não saía do Juazeiro.
Foi nessa ocasião que ele ouviu, pela primeira vez, a voz de Sabino, que o
desafiava com o olhar duro e com uma pergunta desfechada com a rapidez e
a ferocidade de um tiro. Perguntou Sabino, em voz alta: “Quando foi que
isso aconteceu? Em que ano e mês o Padre Cícero Romão Batista, do
Juazeiro, esteve aqui?” Como uma mentira nunca vem só, Zuca Preto, com
aparente tranquilidade, desembuchou: “Foi quando ele passou para
Cajazeiras, para a posse de Dom Moisés Coelho, que havia sido seu colega
no Colégio do Padre Rotim.” Sucedeu, então, o que Zuca Preto mais temia;
Lampião chamou seu Olegário, que se tinha afastado um pouco, e lhe
interrogou: “Como é, Olegário, que você nunca me falou nisso?” Seu
Olegário pigarreou, engasgado, mas findou falando: “Eu pensei que o
Capitão soubesse! Daí a grande devoção de minha mulher e das meninas
pelo santo homem.”
Dimas entrou no assunto:
– E Sabino, seu Alexandre, não disse mais nada? Que contou o
cantador Zuquinha?
– Não, Sabino ficou calado. O Capitão, quando decide, está decidido.
Cabra nenhum se mete a querer contestar, discutir ou comentar uma decisão
dele. Mas Zuca Preto afirmou que, com todo o medo do mundo, ouviu,
depois, numa roda de cangaceiros, Sabino declarar, longe de Lampião:
“Esse negro safado está mentindo. Ele engabelou o Capitão, mas a mim,
não.” Nessa ocasião – e isso interessa saber –, prosseguiu seu Alexandre,
Zuca ouviu, também, um cabra indagar: “Nós vamos dessa vez a
Cajazeiras?” Sabino: “Ainda não; o Capitão está respeitando uma cisma
antiga. Eu, pelo meu gosto, amanhã mesmo. Tenho uma conta antiga para
cobrar. Isso vai acontecer quando eu tiver o meu pessoá, meu grupo. Aí eu
posso escrever pros coroné e assinar em baixo: SABINO GOMES CHEFE
DO GRUPO.”
O Tenente voltou a indagar:
– Quando se deu isso, seu Alexandre?
– Disse-me o Zuca Preto que foi no ano de 1924, ano das grandes
enchentes.
– Pois o sonho de Sabino se tornou realidade: dispõe de um grupo de
mais de 20 cabras e está a um pulo daqui, dez léguas aproximadamente. A
observação não é minha; é do coronel Elísio Sobreira, Comandante da
Polícia. A tática de Lampião é hábil e de grande alcance: ele está evitando a
formação de grupos com número elevado de cangaceiros, 50, 60 e até de
mais de 70 homens. Que faz? Divide os cabras em grupos de 20 a 30, no
máximo, o que lhe dá as seguintes vantagens: confunde a Polícia de vários
Estados, pois aparece, para todos os efeitos, em três ou quatro pontos
diferentes; torna menos difícil o abastecimento de comida e de munição;
por fim, obtém mais facilidade no deslocamento de um grupo pequeno do
que num com 70 ou 80 cangaceiros. Sabino é, hoje, um chefe de bando.
Deve estar mandando nuns 25 a 30 cabras.
Voltou-se, depois, o Tenente para Raimundo Anastácio:
– Você acha que Sabino tem peito para vir até aqui?
– Acho que tem; é um louco, além do mais. Conhece a terra, sabe
quantos soldados tem o destacamento e o que se pode esperar da maioria
deles; sabe que a munição é reduzida.
Fez uma pausa, olhou de frente para o Delegado e concluiu:
– Sabem, me perdoe seu Tenente, que o senhor é um homem direito,
um homem de bem, que não é frouxo, mas não tem nenhuma experiência na
luta contra os cangaceiros.
O Tenente Elino ficou um pouco vermelho, mas sorria quando voltou a
conversar:
– Não é tanto assim; isto é, não sou inexperiente no assunto. Gostei da
sua franqueza, mestre Raimundo. Vou precisar da compreensão e do
trabalho de vocês para o seguinte: vou convidar algumas pessoas da cidade
para me ajudarem no dia do ataque. Pensam alguns que não tenho preparo
para enfrentar a luta. Quero pedir uma coisa a vocês, que parece um
despropósito.
Joaquim Cartaxo (Marechal) atalhou o Delegado:
– Para nenhum de nós o senhor precisa dar explicação. Somos seus
amigos e confiamos no senhor.
– Eu sei; graças a Deus conto com amigos como os que estão aqui. Por
mais esquisito que pareça, acreditem que há um objetivo a conseguir: a
confiança de alguns no meu comando. Por isso, quero que vocês, nas
conversas, vão exagerar minha experiência na luta contra os bandidos,
minha coragem, minha valentia, e que já botei Sabino para correr, uma vez,
em Pombal. Vocês compreendem o meu pedido?
Dimas falou por todos:
– Claro que compreendemos, Tenente. E sabemos que só confiando na
gente o senhor teria coragem (perdoe) de fazer tal pedido. Estamos
honrados com sua confiança. Não é, minha gente?
O Cego Alexandre pediu a seu Raimundo para jogar fora a ponta do
cigarro, e asseverou:
– O Tenente mostrou, com sua sinceridade, que é o homem sensato que
todos admiramos. Estamos na guerra, onde todas as armas e táticas são
permitidas. Sou cego, inútil, sem serventia direta numa hora como essa, mas
acho que podemos atender ao estranho, mas útil e necessário apelo do
Tenente Elino. Amanhã mesmo, na feira, vou transformar o Delegado num
ferrabrás, um homem provado na luta contra o cangaço, graças a que foi
promovido de cabo a sargento e deste posto ao atual, de tenente, tudo isso
devido à sua coragem e sua experiência.
O Delegado sorriu, meio encabulado.
– Muito obrigado, seu Alexandre; é isso mesmo. Peço que não
exagerem tanto minha valentia e heroísmo. Pois poderão pensar: um cabra
tão corajoso e bravo não precisa da ajuda de ninguém...
Romeu Cruz, que tinha falado muito pouco, resolveu dizer alguma
coisa:
– Não preciso dizer ao senhor, Tenente, que estamos com o senhor.
Nós e nossos amigos. Vou contar para vocês o que o Delegado, no silêncio,
fez por mim e pela minha família. Dimas Andriola sabe da história, que foi
a seguinte: Meu irmão Enéas foi expulso das terras deixadas por nosso pai.
É uma nesga de terra, uns 80 alqueires, beirando o pé da serra, o que a torna
fértil e desejada. Um major, Maurício Alencar, comprou, há uns três anos,
propriedade vizinha à nossa. A primeira coisa que fez foi mandar chamar
meu irmão para uma conversa, dando-lhe um prazo para deixar a terra.
“Como sou um homem justo e de boa paz, vou pedir para calcular as
benfeitorias existentes e as pagarei.” Alegava o Major Alencar, com razão
nessa parte, que não tínhamos escritura, registro, recibo, nada que provasse
que a terra tinha sido do nosso pai e, hoje, era nossa. Meu irmão Enéas
disse que ia falar com o Juiz e o Delegado. Duma hora para outra começou
a desaparecer, ora uma rês, um carneiro, uma cabra. E, à noite, Enéas e a
mulher não podiam dormir mais, com cabras correndo em disparada e
atirando perto da casa. Não faziam isso noite após noite, não. Passavam
duas ou três noites na maior calma e, depois, voltavam as correrias e os
tiros. Levei meu irmão ao Delegado, por desencargo de consciência. Depois
que Enéas contou toda a história, o Tenente deu uma resposta que nos
deixou frios e desanimados: “Procurem um advogado.” Como percebeu que
nós tínhamos ficado desconfiados, esclareceu: “Há uma coisa chamada
usucapião, que vale tanto quanto uma escritura: é o direito que se adquire
pela ocupação da terra durante vinte anos, sem contestação.” Ainda
perguntei ao Tenente: “O senhor acha que devemos falar com o Juiz?”
Respondeu que mal não havia, mas que o Juiz iria dar o mesmo conselho
que já dera: procure um advogado. E a coisa funcionou mesmo. No decorrer
da questão, o Delegado foi à fazenda do Major Alencar, teve uma conversa
com este e nada mais aconteceu. Uma noite, porém, saí tarde da Farmácia
do Doutor Higino Rolim. Quando ia chegando perto de casa, que fica um
pouco afastada do centro, com o coração meio trancado, percebi o brilho de
alguma coisa por detrás do juazeiro, que ficava na frente do alpendre. Parei.
Fiz um grande arrodeio e fui me aproximando, com toda cautela. Pisei
numa lata velha dentro do mato rasteiro, e os homens, eram dois, atiraram
na minha direção. Respondi, acertando no que estava mais próximo. O
outro homem deslocou-se e eu, por minha vez, saí do ponto onde estava.
Nisso minha mulher abriu a janela, com o candeeiro na mão, gritando:
“Romeu! É você?” O bandido atirou na direção da mulher e o tiro
despedaçou o candeeiro. Foi bom, porque se tornou visível e atirei, com
toda raiva do mundo, no cabra, pensando que Estela tivesse sido atingida. O
cabra foi mais feliz e me acertou em cima do peito. Podia ter acabado
comigo, mas não percebeu ter-me atingido. Os vizinhos chegaram, me
puseram dentro de casa e depois, a pedido da mulher, me levaram para o
consultório do Dr. Otacílio Jurema. Foi sorte minha: o tiro tinha sido entre o
peito e a omoplata. Deu-me o Delegado, no incidente, todo apoio. Como é
que posso falhar a ele, nessa hora?
O Delegado exclamou:
– Mas, Romeu, não fiz mais do que meu dever.
– Conversa, seu Tenente – disse Romeu.
Dimas, o escrivão, que nunca dera tiro, falou meio encabulado:
– Nunca peguei numa arma, Tenente; vou começar a treinar.
Ninguém chegou a sorrir, mesmo compreendendo a intenção do
escrivão em desanuviar o ambiente. A hora era dura.
Antes de despedir-se, provocado por Marechal, o Tenente esclareceu a
situação existente. Foi claro e direto:
– Estamos, de fato, diante de uma realidade da qual não podemos fugir.
Os cangaceiros estão se preparando para assaltar a cidade, sob o comando
de Sabino Gomes. Que pretendem? Invadir as ruas e casas, liquidar o
destacamento policial e saquear o comércio. Que podemos fazer? Se só
contasse com meus comandados, muito pouca coisa. Eles nos esmagariam
na primeira arremetida, mesmo que brigássemos como loucos. Depois
disso, tomariam conta da cidade e fariam o que quisessem. Estou certo,
mestre Raimundo, Romeu, Marechal?
Todos responderam: está certo, Delegado.
Num tom mais grave, o Tenente articulou:
– Se eu tiver, como espero, o apoio de uns dez a doze homens que
saibam atirar, então é possível pensar que os cangaceiros não cheguem a
dominar a cidade. Podem voltar por onde vieram como aconteceu em
Sousa, o que é do conhecimento de todos.
O cego Alexandre tomou a palavra, “com a licença do senhor
Delegado”:
– Todos temos confiança no senhor, na sua experiência. Acho que vai
ser uma luta dura, pesada, mas os bandidos não levarão a melhor. Tenho
conversado com as pessoas que vão ajudá-lo e há sinceridade da parte dessa
gente. Sabe o que vai enfrentar, já mediu as consequências da sua ajuda,
tem medo de morrer e igual medo de acovardar-se. Vamos, conforme seu
pedido, convencer a cidade dessa verdade, isto é, de que ela pode reagir e
expulsar Sabino e os cabras.
– Obrigado, meus amigos. Essa é a minha convicção mais profunda.
Podem crer.
Lentamente, conversa aqui, conversa ali, o Tenente Elino ia
conhecendo a cidade, sua história, seu povo, seus defeitos, suas virtudes.
Achava importante ouvir, conversar, perguntar. Orgulhosa de seus títulos,
ora amável, compreensiva, ora fechada e indiferente, Cajazeiras tinha, como
as outras cidades, uma alma. Para defendê-la, precisava conhecê-la, ouvi-la,
entendê-la. E só se ama aquilo que se conhece.
Seis

MANOEL AJUDAVA o pai, Antônio do Barro, a vender, na feira dos sábados, a


produção da semana: potes, panelas, quartinhas, tigelas, jarras, vasilhas,
figuras toscas de animais: bois, cavalos, cachorros, tudo espalhado pelo
chão sobre esteiras de carnaúba ou folhas secas de bananeira. A argila
cinzenta, que Antônio ia buscar dos lados do Boqueirão de Piranhas,
adquiria, no fogo, uma coloração entre vermelho e rosa.
Levantava, cedo, da rede, para ver o movimento da olaria,
acompanhando, enlevado, o trabalho das mãos do mestre, a paciência, a
ternura, o amor com que amassava a terra e com ela formava seus produtos.
Nos sábados, auxiliava seu Antônio na feira, vendendo os barros. Depois
que começou a estudar no Instituto São Luís de Gonzaga, e fazer amizade
com os colegas de sua idade (ia fazer 16 anos em dezembro),
experimentava, às vezes, vago sentimento de vergonha por estar ali, exposto
ao sol, com um grande chapéu de palha, no meio de potes e panelas, como
os outros matutos da feira de barro. Alguns colegas passavam por ele,
olhavam, paravam um pouco adiante, sorriam e desapareciam sem dizer
uma palavra. Sentado no banquinho de madeira, o chapéu atolado na
cabeça, fazia que não via, mas via. Nunca falara disso ao pai, que pitava seu
cigarro de fumo preto, enrolado em palha de milho, olhando as pessoas e o
mundo em volta como se não estivesse vendo coisa alguma... Dizer o quê?
Que estava com vergonha de ajudá-lo? Como fora acertado nunca ter
tocado em assunto tão besta!
Eram 11 horas da manhã. O movimento da feira diminuíra
sensivelmente. O pai e ele começaram a recolher os objetos, quando três
homens, visivelmente embriagados, passaram pelo meio dos barros,
chutando potes, panelas e as pequenas figuras de animais. Seu Antônio
agarrou um deles e pediu: “Moço, não faça isso!” Um dos homens, vendo o
companheiro seguro pelas mãos fortes do oleiro, retirou a faca da cintura e,
num instante, esfaqueou Seu Antônio pelas costas, na altura dos rins. Foi
tudo tão rápido, tão fulminante, que nem teve tempo de gritar, prevenindo o
pai.
Correu para junto de seu Antônio, agarrando-se com ele, já desfalecido
e se esvaindo em sangue. Gritou: “Pai, não morra.” “Me escute, pai!” “Fale
comigo, pai!” “Sou eu, Manoel!”
Nunca se apurou quem foi o autor do crime. Sabia-se, vagamente, que
os três homens eram originários do Ceará. Só isso. Manoel, no entanto,
guardava a fala nervosa de um deles, gritando para o que estava limpando a
faca numa folha de bananeira: “Vamos embora, Sabino, antes que a polícia
apareça!” O homem que matara seu pai, friamente, pelas costas, se chamava
Sabino. Sabino de quê?
Dizia-se que o filho do mestre Antônio ficara meio leso com a morte
do pai. Toda a cidade se encheu de revolta contra a violência sofrida por um
homem ordeiro, de boa paz. Manoel ouviu, mais de uma vez, esta frase no
dia do enterro: “Era um pobre de respeito.”
A morte ocorreu no dia 19 de março de 1924, quarta-feira, dia de São
José. Choveu muito na hora do sepultamento e durante toda a noite. Tinha
16 anos.
Tentou, com empenho e obstinação, continuar o ofício do pai. Deixou
os estudos, pois passara a ser o chefe da família, com mãe e irmã para
sustentar. Seu grande esforço, o dia todo, incansavelmente, não dava o
resultado desejado. As peças não correspondiam no formato e consistência
e cor, àquelas obtidas pela habilidade e paciência de mestre Antônio. O pai,
aliás, nunca se preocupou em transmitir ao filho os segredos do ofício:
como preparar o barro, fazê-lo descansar, a hora de ir para o forno, o
impulso medido dos pés, a velocidade certa, o toque das mãos, dos dedos na
massa em movimento, o preciso momento de molhá-la e de levá-la ao
forno; não sabia a duração da cozedura, nem mais, nem menos, para evitar
rachaduras nas peças ou sua inutilização. Faltava-lhe, enfim, alguma coisa
que não descobrira, ainda, para que as peças saíssem todas em ordem e não
algumas somente.
Dona Petronila surpreendeu, uma tarde, Manoel chorando de
desespero. Confessou à mãe sua deficiência ou incapacidade. Ela ouviu,
então, as queixas acumuladas de muitos dias. Deu-lhe, então, o seguinte
conselho:
– Vá procurar mestre Joaquim Torquato, oleiro como seu pai. Diga-lhe
a verdade: quer aprender a trabalhar o barro para continuar o ofício de seu
pai.
– E se ele não me aceitar, mãe?
– Você não perde nada; fica onde está.
Manoel quis ir imediatamente procurar o mestre Joaquim. Dona
Petronila ponderou:
– Deixe para amanhã. Quem trabalha, à noite está cansado, aborrecido.
Pela manhã, está mais tranquilo, descansado. O homem é afobado.
– A senhora o conhece, mãe?
– Sei que ele teve uma briga, de boca, com seu pai; qualquer coisa
relacionada com o ofício; mas nada de importância, que o impeça de falar
com ele o que você quer falar.
Manhã bem cedo, depois do café, encaminhou-se para a casa do mestre
Joaquim, um pouco afastada da cidade. De longe, vendo a fumaça sair do
forno, foi-lhe fácil acertar. Bateu palmas na porta da frente. Apareceu-lhe
uma menina morena, cabelo preto amarrado num coque, os olhos negros,
vivos, e um sorriso cativante no rosto de maçãs salientes. Não a achou
bonita, mas se sentiu atraído pelo seu encanto, pela sua personalidade.
– Bom dia! – articulou Manoel.
– Bom dia! Quer falar com o pai?
– Sim. Quero falar com o mestre Joaquim. Ele está?
– Está. Espere um pouco.
Não mandou que entrasse e desapareceu. Ainda sob o efeito da
aparição da moça, viu o mestre chegar.
– Sim, senhor. O que deseja, rapaz?
Vendo que o sol já incomodava:
– Entre; o sol está queimando.
Ficaram em pé, perto da porta. Manoel foi direto:
– Sou o filho do finado mestre Antônio.
– Pois não. Conheci seu pai e lamento o que aconteceu.
– Obrigado, senhor. Venho lhe falar o seguinte: meu pai deixou a
oficina e eu quero continuar o trabalho dele. Não me ensinou a arte. Eu o
ajudava na feira. Ele nunca pensou que morresse tão cedo e, por isso, nada
sei do ofício. Vim oferecer meu trabalho ao senhor, por algum tempo, até
que possa tomar conta da oficina de meu pai.
Mestre Joaquim, com a morte de seu maior concorrente, estava
vendendo mais, muito mais. O que o rapaz lhe propunha não era, evidente,
de seu interesse. Ficou, entretanto, sensibilizado com a franqueza da
proposta. E disse:
– Quem lhe disse que eu precisava de aprendiz? Precisar, preciso, mas
pago pouco; talvez não lhe sirva.
– Eu aceito, senhor. Minha intenção é aprender o ofício e, embora
precise de dinheiro, não faço questão de ordenado.
– Não quer nem saber quanto é?
– Quero, sim; mas desejo é saber quando posso começar a trabalhar.
– Agora mesmo. Está vendo aquele monte de barro do lado esquerdo
do muro. A oficina fica no fundo da casa. Vamos transportar o barro para
dentro do galpão.
Manoel contornou a casa, apanhou uma pá e uma carroça e começou a
trabalhar. Nas idas e vindas via, de relance, a menina arrumando uns papéis
numa mesa pequena. Depois de umas duas horas de serviço estava com uma
sede enorme. Dirigiu-se ao mestre Joaquim:
– Senhor, onde se toma água?
O mestre se dirigiu à filha:
– Mariá!
– Senhor, pai.
– Arranje um caneco para o novo ajudante. Como é mesmo seu nome?
– Manoel; Manoel Santana.
Trabalhou até meio-dia e foi almoçar em casa. Dona Petronila estava
radiante com sua vitória, que era o fato de ter começado o emprego na
primeira hora. Não lhe tirou o gosto e voltou imediatamente para a olaria.
Continuou a remoção do barro para dentro do galpão. As costas doíam, as
mãos estavam cheias de bolhas, mas não diminuiu o ritmo do serviço:
deslocava camadas de terra com a picareta ou a pá, enchia o carro de mão e
o esvaziava no outro lado da oficina. Recolheu o material, pôs o paletó e o
chapéu e despediu-se de mestre Joaquim:
– Boa noite, mestre.
Notou uma ponta de zombaria no olhar do patrão, ou era impressão
errônea de sua parte?
– Até amanhã, às 7 horas, não é?
– Sim, senhor.

Levou três dias para recolher o barro. Quando concluiu o serviço,


comunicou ao mestre Joaquim, que nem olhou para o monte de terra, nem
lhe disse uma só palavra. Ou, melhor: perguntou-lhe se sabia rachar lenha.
Respondeu que sim. Ordenou o patrão:
– Pode começar agora?
Eram 4 horas da tarde e estava visivelmente cansado; mas não
titubeou:
– Pois não, seu Joaquim; onde está a madeira?
O mestre pegou um machado e mostrou a Manoel o monte de madeira,
dizendo:
– Faça o que puder; amanhã é sábado e quero madeira suficiente na
segunda-feira.
Tomou o machado, cujo fio lhe pareceu rombudo, e perguntou:
– Onde posso afiar o machado?
– Não precisa; até ontem cortaram lenha com ele.
Era uma coisa que sabia fazer, pois o pai lhe dava esse serviço, na falta
de algum empregado. Tirou o paletó e a camisa e ficou nu da cintura para
cima, exibindo, sem querer, a boa musculatura que possuía. Ajeitou as
escoras, e foi cortando a madeira e a empilhando junto à que estava cortada.
Quando parava um pouco, para descansar, olhava o trabalho dos outros.
Admirou-se de terem colocado no forno peças feitas pela manhã, o que
estava totalmente errado. Teve vontade de procurar o mestre, para dizer-lhe
que a pressa poderia prejudicar as peças, quebrando-as, mas era o mesmo
que ensinar Padre-Nosso a vigário. Ia levar outro fora. Preferiu continuar
cortando a madeira, o que fez até o fim da tarde. Ao lavar o rosto e o peito,
viu Mariá aproximar-se. Vestiu, rápido, a camisa, desculpando-se. Era ela
quem fechava a oficina quando o pai não estava. Colocou o chapéu na mão
e despediu-se da moça:
– Boa tarde, dona Mariá.
– Boa tarde, não; boa noite; mas não me chame de dona, por favor.
Ao tirar, Manoel, o chapéu para cumprimentá-la, Mariá pôde ver sua
mão em carne viva.
– Mas você está com as mãos esfoladas. Papai viu isso?
Nessa ocasião, ouviram a voz de seu Joaquim que chegava da rua:
– Que é que eu vi, ou não vi?
A filha tomou a palavra:
– Vim fechar a oficina e encontrei Manoel saindo. Perguntei a ele se o
senhor tinha visto o estado das mãos dele. Só isso.
– E o que é que ele tem nas mãos?
Manoel entrou na conversa, já que estavam em causa suas mãos:
– Não é nada, mestre Joaquim. As bolhas estouraram e dão a
impressão de que a mão ficou em carne viva. Segunda-feira estarei em
ordem para completar o corte da madeira.
– Está bem, rapaz, mas não custava nada você me falar. Minha filha
não tem nada com o serviço, entendeu?
– Mas, mestre, eu não falei ou reclamei nada.
– Tá bem, entendi. Estou preocupado com outra coisa. Parece que você
tem pé frio, menino. As peças de ontem racharam quase todas; nunca me
aconteceu isso. E Malaquias, o louceiro, é gente tarimbada.
Manoel se abespinhou com a história do pé frio, mas não revelou
irritação ao dizer:
– Tenho a impressão, mestre Joaquim, de que as peças racharam
porque foram postas no forno antes do tempo. Precisam descansar de 10 a
12 horas, segundo dizia meu finado pai. Pois as peças feitas pela manhã
foram colocadas no forno com menos de cinco horas de feitas. O pé frio é
de quem fez isso, mestre Joaquim.
Tocou a ponta do chapéu, despedindo-se:
– Boa noite!
Só a moça correspondeu ao cumprimento. O mestre estava ruminando
a raiva que não chegara à altura da boca.
Era engano dele, Manoel, ou Mariá tinha feito esforço para esconder o
sorriso?

Não escondeu da mãe e da irmã a conversa com seu patrão e Mariá.


Dona Petronila reagiu, prontamente:
– Você não volta mais pra aquela oficina. Por ora, vamos tratar de suas
mãos.
Depois de tomar banho, submeteu-se ao tratamento de dona Petronila,
que envolveu suas mãos com óleo bem morno e folhas de bananeira. Não
pôde usar as mãos nem mesmo na hora da ceia. Parecia que estavam, as
duas, cuidando de menino novo.
O fato é que, no domingo, as mãos tinham readquirido sua cor normal.
Foi à missa das 10 horas e viu, no patamar da Igreja, Mariá, dona
Emerenciana e um senhor que devia ser o noivo da moça. Manoel não
tirava os olhos de Mariá, que estava bem bonita no seu vestido cor-de-rosa,
longo, que lhe aumentava o porte mignon, delicado, gracioso. Teve a
impressão de que, ao voltar-se, ela o vira, e o vira contemplando-a,
enfeitiçado ou abobalhado, talvez. Por que sofrera com a visão da moça
estar acompanhada do fazendeiro? Não sabia que ela era noiva ou
comprometida? Estava fazendo um papel de tolo, de irresponsável. Mas
aquela fração de segundo em que ela o vira (ou não vira?) tornou a noite do
domingo mais triste e solitária do que as demais.
Na segunda-feira, foi surpreendido, ao agarrar o machado, com a
presença de seu Joaquim, que se dirigiu a ele em tom quase cordial:
– Deixe o machado e vamos ver o forno por dentro. Você sabe alguma
coisa a respeito da pintura do barro?
– Sei alguma coisa, sim. Pelo menos o que se refere à preparação.
– Isso é ótimo, mas quero que você pratique um pouco no forno. Pedro
Inácio vai ficar do seu lado. Ouviu, Pedro?
– Sim, senhor. Pode deixar.
Mariá já o encontrou no novo trabalho. Deu bom dia a Pedro Inácio,
que ainda era parente dela, e perguntou a Manoel:
– E as mãos?
– Tudo bem, Mariá.
– Quer me mostrar, por favor?
Meio constrangido, Manoel lhe estendeu a mão esquerda, que estava
melhor que a outra. Ela insistiu:
– E a outra mão?
– Está do mesmo jeito, pode crer.
Pedro Inácio entrou na conversa:
– Tá não, Mariá. Ele não devia trabalhar, hoje.
– Vou falar com meu pai.
Manoel reagiu:
– Se quer me fazer um favor, não fale nisso a seu Joaquim. Não quero
perder o emprego. Se falar, me bota pra fora. Preciso do emprego.
– Bota não.
– Quem garante isso? Você?
– Sim, eu. Meu pai não é ranzinza como parece. Agora, mostre a mão
direita.
A mão direita ainda estava esfolada e vermelha. Mariá exclamou:
– Tá vendo. Você não pode trabalhar nesse estado. Além de ser uma
crueldade permitir isso, você não produzirá coisa nenhuma.
– Preciso trabalhar. Agradeço sua intenção, mas sei que o mestre
Joaquim não vai permitir que eu fique sem trabalhar.
– Aguarde um pouco – disse Mariá, dirigindo-se, em voz alta, ao pai
que estava no fundo da olaria. – Papai, o Manoel não pode trabalhar.
Continua com as mãos esfoladas; estava escondendo esse fato, mas eu pude
ver.
Para Manoel era uma novidade aquela forma da moça conversar com o
pai. Mas mestre Joaquim não se irritou, não censurou a intervenção da filha
e foi conciliatório ao resolver:
– Ele não vai fazer força; não vai pegar em nada; vai se limitar a ver o
trabalho de Pedro Inácio. Para isso só precisa usar a atenção. Ouviu,
mocinha?
Quando o mestre Joaquim se retirou, logo depois da filha, Pedro
adiantou:
– O homem, hoje, não negaria nada a Mariá. Parece que ela
concordou, afinal, em ser noiva de Aloísio Alencar, o filho do Coronel
Matias de Alencar. Você o conhece?
– Não, Pedro, não conheço.
Mas não estava pensando no trabalho. Só tinha cabeça para perceber
que Mariá iria noivar. O rapaz era rico, o pai poderoso, dono de muitas
terras, e ele, Manoel Santana, era um joão-ninguém. Mal ouvia as
explicações de Pedro Inácio, na sua voz arrastada e monótona:
– Tudo isso depende, afinal, do barro ser bom. Um barro bom é meio
caminho andado. Tem que ser peneirado, dele retirados os caroços, as
pedrinhas miúdas, qualquer impureza, enfim. Depois de peneirado, o barro
é bem amassado e posto para descansar ou curtir. Essas providências são
tomadas antes de o barro chegar perto do forno, que é a fase final da
moldagem. Em seguida, antes da queima, as peças têm que ficar na sombra,
em cima de gradeados de madeira, durante pelo menos umas doze horas. Se
as peças forem colocadas antes desse prazo, se esfarinham, quebram com
facilidade.
Essas conversas se desenrolavam durante o trabalho e Manoel as
associava ao que estava fazendo. Estava animado, mas tinha muita coisa
que aprender, ainda. Iria devagar. Não tinha pressa. Em casa, comentava
com a mãe e a irmã seu progresso, sua aprendizagem. E lhes dizia: “Cada
dia admiro mais o mestre Antônio, meu pai, que quase sozinho fazia coisas
que vejo três homens fazerem: arranjar o barro, tratá-lo, peneirá-lo, amassá-
lo, queimá-lo.” Dona Petronila chorava suavemente, abraçada aos dois
filhos. Eles não se lembravam, mas fazia naquele dia um ano e seis meses
que mestre Antônio morrera no meio dos seus barros, na feira, na presença
do filho, que, agora, continuava o seu ofício.
Manoel sabia que a mãe estava lembrando o dia mais triste de suas
vidas. No dia anterior, fora à Delegacia e pedira ao Sargento Rangel para
localizar o inquérito relativo à morte de mestre Antônio. “Morto por pessoa
desconhecida”, a conclusão do inquérito. Mas não para ele; se viesse a
encontrar-se, alguma vez, com o assassino, reconheceria o seu rosto no
meio de mil.
Mas o tempo passava e nada podia fazer. A cena estava nos seus olhos,
todo dia, nos mínimos detalhes. Enquanto vivesse, recordaria, como
naquele momento, as palavras do companheiro do bandido: “Vamos
embora, Sabino, antes que a polícia apareça!” Via o assassino abaixar-se,
limpar a faca na palha da bananeira, calmo, lento, como se não tivesse feito
nada de mais.
Não lhe foi difícil entrosar-se na rotina da olaria do mestre Joaquim.
Com a saída do louceiro Malaquias, ele passou a trabalhar com um dos
fornos, e Pedro Inácio ficou como encarregado do forno. Do outro se
ocupava o dono da oficina e, nas suas breves ausências, a menina Mariá.
Mariá era reservada, mas franca, conversando sobre o serviço com
naturalidade e desembaraço. O tímido era ele, que mal se dirigia à moça,
mas se sentia feliz só em trabalhar perto dela, embora isso só se verificasse
raramente e nos impedimentos do mestre Joaquim. Tudo nela lhe
despertava certo encanto, até os trajes pesados que usava no trabalho: calças
frouxas (que deviam ser do pai), uma camisa de algodão maior do que ela, o
cabelo preto farto amarrado num coque atrás do pescoço, que desmanchava
a impressão de que se tratava de um rapazinho. Trabalhava com eficiência,
tratando da massa que girava na roda com habilidade e destreza, usando as
mãos, os dedos, em movimentos precisos e rápidos. Ela o surpreendia, às
vezes, olhando para o seu lado, mas disso não tomava conhecimento. Ele,
por sua vez, queria e não queria que sua contemplação fosse pressentida,
adivinhada, vista. Os dias de trabalho decorriam, assim, numa rotina que
não o fatigava, pois estava aprendendo o trabalho que iria realizar na sua
própria oficina. Esse pensamento e o grato e infrequente instante de ver
Mariá trabalhando tornavam o tempo mais curto e o trabalho, suave.
Quando se deu conta, já fazia quase seis meses de seu aprendizado na olaria
do mestre Joaquim Torquato.
Uma noite, na praça da Matriz, encontrou-se com João Boanova e
David Casimiro, ex-companheiros do Colégio Padre Rolim. Sentaram-se
num banco da praça e conversaram, longamente, sobre os mais diversos
assuntos. Perguntaram a Manoel por que deixara os estudos, o que estava
fazendo e o que pretendia fazer de sua vida. Esta última pergunta foi de
João Boanova. Respondeu:
– Depois da morte do pai, tentei colocar a olaria em funcionamento.
Não deu certo. Faltava-me prática. Resolvi pedir trabalho na olaria do
mestre Joaquim Torquato. Por sugestão de minha mãe, disse ao mestre que
queria aprender o ofício para reabrir, quando tivesse experiência, nossa
olaria. Seu Joaquim, que é meio duro, gostou da minha franqueza e me
empregou. Trabalho com ele há uns cinco meses e já estou quase pronto.
David Casimiro quis saber:
– Como vai a filha dele, Mariá? Ela é amiga de minha prima, Irene,
que a levou para passar uns dias na fazenda, o ano passado. Foi lá que a
conheceu o Aloísio, filho do coronel Matias de Alencar, nosso vizinho. O
Aloísio ficou apaixonado pela moça e andou falando em pedir a sua mão.
Parece que não chegaram a noivar tendo o namoro se acabado no início. Ela
trabalha com o pai?
A pergunta apanhou Manoel no ar. Refez-se, e adiantou:
– Ela não trabalha propriamente na olaria, só aparece lá nas ausências
do mestre Joaquim. Este, por sua vez, não comenta com os empregados os
assuntos de família. A filha ainda é mais calada do que o pai.
Casimiro notou que sua indagação havia agastado o amigo, mas, como
já tinha começado, continuou:
– Não chegaram a noivar, creio. Rico, o Alencar deve ter
impressionado mais o pai da moça do que a esta. Pois, nesse meio tempo, o
Aloísio provocou um escândalo que correu a cidade, onde não é muito
estimado, ao que parece. Ouviu falar?
– Não – respondeu Manoel.
– Ouvi – disse Boanova. – Ele se apaixonou por uma mulher do Crato,
Neném, e não queria deixar mais a casa de Justina. Foi preciso o pai
intervir, arrancando-o dos braços da amada. Mas, vamos mudar de assunto.
Você pode contar com David e com a minha ajuda para pôr sua olaria a
funcionar. Não é, David?
– Claro que sim; podemos e vamos lhe dar a ajuda que estiver nas
nossas forças.
Manoel não sabia o que dizer:
– Não quero envolver vocês nos meus problemas; agradeço...
João Boanova retrucou:
– Ora, homem, sabemos o que estamos fazendo. E não vamos lhe dar
nada, vamos emprestar. Você irá pagando com o resultado dos negócios.
Acertaram um encontro, na olaria, às 8 horas da manhã.
No dia seguinte, juntos, David e João bateram à porta da casa de
Manoel. E foram dar uma vista na olaria. Apesar de Manoel já ter
consertado alguma coisa, o quadro não era animador. O teto estava
escorado, querendo cair; o piso, de tijolo, tinha vários planos; e o forno
dava a impressão de que ia afundar. João Boanova não se conteve:
– Mas, Manoel, você não podia começar a trabalhar com as coisas
nesse estado. A primeira coisa é cuidar do teto. Tenho boa madeira na
fazenda. Vou pedir ao mestre José Reis para me dar uma ideia do que é
necessário e para ele mesmo tomar conta da reforma.
Manoel ponderou, encabulado:
– Não está certo; vocês falaram em empréstimo e João já está falando
em trazer madeira da fazenda dele.
– Que tem isso? – replicou Boanova. – O valor da madeira será
incluído no empréstimo, não é David?
– De acordo – respondeu este. – E você, Manoel, precisa ter mais
confiança no que vai fazer. Nada de desânimo, rapaz.
Manoel estava confuso e emocionado. Não encontrou palavras para
libertá-lo dos sofrimentos que lhe oprimiam o coração. Encheu os olhos
d’água e apertou as mãos dos dois amigos.
Dona Petronila entrou na olaria e brincou com os rapazes:
– Vocês também entendem de olaria? Venham tomar um refresco de
tamarindo.
Romilda os estava esperando com os copos de refresco. Conversou
com eles, animadamente, falando nos estudos, na vida da cidade, nos
namoros.
Quando se despediram, Manoel, visivelmente emocionado, falou no
objetivo da visita dos amigos. Animou-as com as possibilidades da olaria,
que iria sofrer uma grande modificação. Tranquilizou-as, com relação ao
empréstimo, alegando que poderia ter condições de pagá-lo, pois tinha
meios de desenvolver a pequena indústria e ampliar seus negócios, com a
representação de firmas de Crato do ramo de construção, segundo sugestão
de Boanova.
Já estava na hora de avisar ao mestre Joaquim que ia deixar seu
serviço, pois a olaria já estava quase em condições de funcionar. Zé Reis,
que entendia de construção, não só reforçaria o teto da oficina, como a
ampliaria, fazendo um forno amplo, novo, alto, capaz de pegar maior
número de peças e peças maiores, também.
Mas, nesse dia, seu Joaquim não veio trabalhar. Estava com febre e dor
de cabeça, segundo a comunicação de Mariá aos empregados. Notou que,
além da fisionomia trancada, ela aparentava tristeza e preocupação.
Lembrou-se da conversa dos amigos, na praça: era o rompimento do
noivado?
O fato é que a febre do mestre estava demorando há mais de cinco
dias: começara na segunda-feira e, na sexta, ele ainda guardava o leito.
Resolveu falar a Mariá:
– Vocês já chamaram um médico? Uma febre que dura quase uma
semana deve ser coisa séria.
Mariá olhou para ele, desarmada pelo seu interesse:
– Já falei nisso com minha mãe, pois a febre não cedeu a nenhum
remédio do doutor Aprígio. Depois, consultado, meu pai se recusou,
alegando que não pode se dar esse luxo...
– Quer que eu fale com sua mãe? O doutor Otacílio Jurema não
explora ninguém.
– Pois chame. Ainda ontem à noite papai delirou, falou alto, deu gritos.
Manoel saiu à procura do médico, voltando pouco depois
acompanhado por ele. Mariá já os esperava na porta e mandou o doutor
entrar. O rapaz voltou para a olaria para ajudar Pedro Inácio a colocar as
peças no forno.
Manoel já estava fechando o portão da olaria, quando a moça
apareceu. Agradeceu a lembrança dele e adiantou:
– O doutor afirmou que se o pai passasse uns dias mais sem tomar a
medicação certa, poderia morrer. Recomendou que fervêssemos as roupas
usadas por ele e só bebesse água fervida. E pediu para transmitir esse
conselho para vocês. Há vários casos de paratifo na cidade.
Ela estava realmente agradecida e seus gestos amáveis e suaves eram a
recompensa maior pela iniciativa que tomara.
No dia seguinte, sábado, depois de falarem com dona Emerenciana,
Pedro Inácio e Manoel levaram a mercadoria para vender na feira.
As coisas correram bem, tendo vendido quase tudo. Às 4 horas da
tarde recolheram o que sobrara, prestando contas a dona Emerenciana. Esta
agradeceu o trabalho extra e deu aos dois uma pequena gratificação. A
Manoel expressou agradecimento por ter-se lembrado do doutor Otacílio.
Mariá ouviu o final da conversa e arrematou:
– Tomara que papai fique bom, logo. A senhora sabe que Manoel vai
nos deixar?
Ficou meio confuso, pois queria que o mestre Joaquim fosse o
primeiro a saber de sua decisão, o que não mais ocorreria. Foi o que tentou
explicar, sem jeito, à mulher do patrão.
Ficou tilintando, na sua memória, o tom de queixa que a moça revelou
na sua declaração. “Manoel vai nos deixar!” Não era deixar a olaria, nem
mesmo o mestre Joaquim; na forma de sua enunciação, na tarde quente que
morria devagar, ouvindo o chiar uníssono das cigarras, experimentava uma
sensação nova, feita de alegria e de dor: Mariá confessara, sem querer, que
sua saída a incomodava. Ou estava lamentando, unicamente, a perda do
operário hábil e devotado? Nessa luta entre o sentimento e seu vigilante
pessimismo, chegou em casa, cansado, feliz.
Na segunda-feira, pela manhã, viu quando o médico deixava a casa do
mestre Joaquim e foi ao seu encontro.
– Então, doutor, como vai o doente?
– Acho que vai bem, e, ao que parece, fora de perigo. Deve isso ao seu
organismo e aos chás de dona Emerenciana. Está com paratifo que é uma
parenta da febre tifóide. Foi bom ter-me chamado.
– Quanto tempo vai passar sem trabalhar?
– Umas quatro semanas, no mínimo. Mande ferver a água na sua casa,
há outros casos de paratifo na cidade.
Quando voltava para o galpão da olaria, viu dona Emerenciana na
janela e para lá se dirigiu.
– Graças a Deus as notícias do doutor são boas. Quero dizer que só
deixarei o serviço quando o mestre Joaquim estiver completamente curado
e em condições de trabalhar.
Mariá chegou à janela, os cabelos pretos longos, soltos, emoldurando o
rosto delicado, mas forte.
– Por que vai deixar o serviço?
– Tenho que tomar conta da olaria deixada pelo meu pai. Mestre
Joaquim, ao empregar-me, sabia disso.
E, olhando para a moça que enchia a manhã com sua beleza:
– Estava dizendo à sua mãe que só irei embora...
– Eu ouvi, Manoel – interrompeu Mariá. – O pai falou na sua saída
recentemente.
– Pois quero pedir um favor: quero ser eu mesmo quem vai comunicar
o fato a ele. Pode ser?
Dona Emerenciana, a testa franzida, num tom de quem corta conversa,
deu bom dia e puxou a filha para dentro de casa.
Mas Mariá reagiu e voltou para a meia-porta.
– Que é isso, mãe? Manuel não morde e tem sido um bom amigo. Se
não fosse ele...
Dona Emerenciana retirou-se e Manoel pôde conversar um pouco com
a menina. Na falta de outro assunto, falou na reforma da olaria, no apoio
dos amigos e na certeza de que tudo estava correndo bem.
– Que bom, Manoel, saber que as coisas estão se arrumando para seu
lado.
– É verdade, de um tempo para cá estão soprando bons ventos na
minha direção.
– Daqui a pouco, arranja uma noiva, casa e completa sua vida, não é?
Manoel percebeu, pela primeira vez, uma aliança na mão direita de
Mariá. Isso queria dizer que ela estava noiva, mesmo.
Percebendo que o rapaz mudara de expressão, subitamente, Mariá lhe
disse:
– Engraçado. Você mudou de ar repentinamente. Lembrou-se de
alguma coisa triste ou ruim?
Não se conteve; declarou:
– Vi essa aliança de noivado na sua mão.
Ela ficou perturbada; escondeu a mão instintivamente, e se tornou
agressiva:
– Sou noiva, vou casar, mas não estou escondendo isso, nem tinha
obrigação de conversar essas coisas com você.
– Está bem, dona Mariá. Desculpe o mau jeito. Desejo sua felicidade.
Acho que isso não pode ofender ninguém, principalmente quando se
encontra um noivo rico e importante como o seu.
Ela ficou mais alva ainda. O nariz arrebitado ergueu-se, talvez, um
pouco mais e reagiu à provocação do rapaz:
– Manoel Santana! Vá para o diabo que o carregue!
O rapaz não sabia explicar o motivo de tanta zanga. Quem se sentisse
feliz não reagiria daquele modo. Teve vontade de mostrar que quem queria
ir para o inferno, com os próprios pés, era ela, casando com um sujeito
arruaceiro e violento como Aloísio Alencar. Mas maior do que sua raiva era
o sentimento infinito de perdê-la.
Não se despediu. E carregou pelas ruas, àquela hora já desertas, o peso
de seu amor perdido.
À noite, na hora da ceia. Manoel foi surpreendido com a pergunta de
Romilda:
– Mariá é mais bonita do que eu?
– Não, cabeça de vento, ela não é mais bonita do que você.
– Acha que é feia, então?
– Não disse isso. Ela é uma pessoa fechada em copas, meio triste, mas
tem seu encanto.
– Tá vendo, mamãe? Manu me acha mais bonita do que Mariá, apesar
de sua queda por ela.
Dona Petronila sorriu e cortou a vez da palavra do filho:
– Pois se dê muito satisfeita em ser considerada mais bonita do que
Mariá. Por ora, minha beleza, leve a louça para a cozinha que depois eu
lavo.
Depois que a menina se retirou, disse dona Petronila, baixando a voz:
– É verdade, então, que você gosta de Mariá? Você disfarça muito mal.
Ficou, agora mesmo, pálido, nervoso, com a pergunta de sua irmã. Tem
andando distraído, com o pensamento longe...
– Não sei mentir para a senhora, mas não se aperreie, nem ponha esse
ar de censura antes de ouvir-me. Sei que a moça tem um compromisso, e
que não posso contrariar mestre Joaquim, que tem sido meu amigo. Fique
descansada; nunca dei a Mariá o menor motivo para que desconfiasse do
meu sentimento.
– Aí você se engana, meu filho. Nenhuma mulher deixa de perceber
quando desperta o interesse de um homem.
– A senhora tem razão. Mas, se não fosse a doença de seu Joaquim, já
tinha deixado o serviço. Logo que o mestre estiver em condições de
trabalhar, no outro dia começo a movimentar nossa oficina.
– Deus que o abençoe, meu rapaz. Não estou lhe censurando. Era
natural que isso acontecesse, vocês trabalhando juntos. Quanto mais cedo,
melhor. Sofrerá menos. Você tem um coração sensível, mas sua cabeça está
no lugar certo. E é um homem de respeito: não vai criar problemas para
quem o ajudou.
Foi dormir pensando nas palavras da mãe, que repercutiam no mais
íntimo de sua natureza. Depois de deitar-se, antes de conciliar o sono,
lembrou que várias pessoas, no enterro do pai, tinham repetido, sem
variação, estas palavras: “Mestre Antônio era pobre, mas um pobre de
respeito.” As palavras da mãe lhe tocaram o coração solitário, como eco dos
repetidos cumprimentos na tarde triste do velório: “um pobre de respeito!”,
como se só os ricos pudessem merecer o qualificativo. Nunca, ou só muito
raramente, podia ocorrer que um pobre fosse “de respeito”; a não ser,
talvez, depois de morto.
No dia seguinte, no trabalho, uma novidade: a volta do louceiro
Malaquias para, certamente, ocupar seu lugar. Apesar de Pedro Inácio,
parente de dona Emerenciana, ter dito que Malaquias, ao deixar o serviço,
tentara intrigar Aloísio Alencar com Manoel, dizendo que este tentava
namorar Mariá, este recebeu o louceiro sem constrangimento. Por ali (a
volta de Malaquias) andava o dedo de dona Emerenciana, defendendo o
futuro da filha. Pedro Inácio já lhe tinha noticiado a visita do coronel
Matias de Alencar, à procura de restabelecer o compromisso entre seu filho
e Mariá, abalado com a decisão desta. Pedro Inácio era de casa e sabia das
coisas. Manoel quis saber detalhes:
– Quer dizer que reataram?
Pedro Inácio reproduziu parte da conversa da mãe para a filha:
– “Você faz que não entende a nossa situação, mas seu pai é, hoje, um
homem perdido. Tudo o que é nosso está hipotecado e nas mãos do coronel
Matias de Alencar: esta casa, a olaria, os palmos de terra que temos em
Cachoeira dos Índios. Não temos nada mais; meta isso na sua cabeça.”
Manoel ficou medindo a seriedade da situação. Pedro Inácio
acrescentou:
– Há mais. E isso se refere a você. A tia proibiu Mariá de pisar na
oficina até sua saída. Você vai embora, mesmo?
– Vou, Pedro. Tenho que tomar conta do meu negócio. Espero que
você apareça lá e continue meu amigo.
À tarde, dona Emerenciana apareceu na oficina e se dirigiu para o lado
de Manoel:
– Boa tarde, Manoel.
– Boa tarde, dona Ciana. Como vai o chefe?
– Graças a Deus vai bem. Tenho boa notícia para lhe dar: com a
chegada de Malaquias, Joaquim pediu para lhe dizer que você já pode tomar
conta de sua olaria. Não era isso o que você queria?
– Era, sim senhora. Posso ir ver o mestre Joaquim?
– Outro dia, rapaz. Hoje não está passando bem; vou até falar com o
doutor Otacílio.
Esperou a saída de dona Emerenciana para despedir-se dos
companheiros, inclusive do Malaquias. Mudou de roupa e, ao deixar a
olaria, viu dona Emerenciana passar, ligeira, gordinha e afogueada, com o
xale na cabeça em direção à cidade. Achou que devia despedir-se de Mariá.
Bateu palmas e, daí a pouco, apareceu Mariá:
– Houve alguma coisa na olaria?
– Não; vim despedir-me de você.
– Então chegou o dia que você tanto esperava, não é? Não tinha dito
que só deixaria o serviço quando meu pai estivesse trabalhando?
– É verdade; mas o louceiro Malaquias voltou e dona Ciana,
transmitindo ordem de seu pai, disse que eu podia ir tomar conta da minha
oficina.
– É um dia importante para você; é o que vale.
– Não deixa de ser, mas é um dia triste, também. Não vou vê-la mais,
ouvir uma ou outra palavra perdida de sua boca. E isso para mim é uma
grande tristeza.
Ela se perturbou um pouco com as palavras de Manoel. Sentia-se, no
íntimo, envaidecida com a admiração muda do moço, agora expressada em
palavras contidas, mas ardentes. Gostava de Manoel, de sua discrição, da
sua pessoa, dos seus cabelos desarrumados, do seu sorriso triste. Por que só
ultimamente ele lhe falava com aquela veemência? Ele a amava, coitado. E
ela, noutra situação, teria retribuído, talvez, seu sentimento. Era preciso
dizer alguma coisa, que fosse atenciosa, mas fosse clara, também. Não sabia
por onde começar. Disfarçar, com a mentira, de que ignorava que Manoel
gostava dela? Não; ele não merecia essa dissimulação. E falou assim:
– Estou comprometida com Aloísio Alencar, como você já sabe. É um
casamento de gosto das duas famílias.
– É do seu gosto, também?
– Também. É a única coisa que posso fazer por eles. Meu pai é, hoje,
um homem doente. Seus negócios não vão bem. Está desanimado, vencido,
infeliz.
– E você? E sua vida, Mariá? Já pensou que esse casamento, cuja
conveniência você, honestamente, não disfarça, pode ser um erro para toda
a vida?
– Pensei em tudo isso. Ou casar, ou ver meu pai na miséria,
humilhado, passando privações de toda sorte.
– Pensou, alguma vez, que pudéssemos ser felizes?
– Confesso que não. Iríamos juntar pobreza com pobreza, o que
significa mais pobreza, ainda. Não há pobres felizes; há os conformados, os
pacientes, os resignados, mas são todos infelizes. Veja minhas mãos. Trato
com o barro, elas ficam grossas, ásperas, como você sabe. Os serviços da
cozinha, a limpeza da casa, a roupa que se lava e engoma, tudo deixa nas
mãos da gente a marca da pobreza. Não, Manoel; não desejando isso para
ninguém, por que vou querer para mim? Você é um sonhador. A realidade
são as minhas mãos.
– Você, um dia, há de revoltar-se contra essas palavras. Não tenha pena
de mim; quem vai perder é você com esse casamento de conveniência.
Manoel não quis falar na sua capacidade de trabalho, no futuro que
sentia ser breve na realidade. As palavras de Mariá não permitiam
dissertações otimistas. Declarou:
– Se é assim que você pensa, adeus, Mariá.
– Adeus, Manoel. Não me queira mal.

Um belo dia, Aloísio Alencar, para agradar o futuro sogro, que ainda
estava convalescendo das febres, levou-o para a Fazenda da Serra,
acompanhado de dona Emerenciana e Mariá. Tinha sabido do doutor
Otacílio que mestre Joaquim precisava de cuidados especiais, sob pena de ir
desta para melhor.
– Precisa – argumentava o noivo – de tomar água de coco, suco de
lima-da-pérsia, chá de sabugueiro, de erva-doce, de canela e, acima de tudo,
de descanso, de despreocupação com os negócios que não andam bem.
Mariá reagia:
– O doutor disse que o perigo de morte já passou.
– Mas não o de uma recaída. E essa é sempre fatal, segundo o próprio
doutor Otacílio.
Dona Emerenciana liquidou qualquer dúvida:
– Vamos, Aloísio. A data quem marca é você.
– Amanhã, mesmo. Quanto mais cedo, melhor.
Tudo aquilo eram manobras para envolver os pais e ela também.
Para Mariá, havia alguma coisa por detrás daquele interesse todo por
seu pai. Fosse o que fosse, aquela preocupação com a saúde do mestre
Joaquim tocava seu coração.
Dias antes, quando Manoel viera buscar suas coisas, ela estava na
oficina. Pensou em retirar-se para evitar nova discussão. Mas reagiu e
decidiu falar com o rapaz para que se separassem em boa paz. Não era fácil,
pois sempre terminavam brigando, mas ia fazer tudo para não ser
desagradável, pois não podia esquecer o quanto Manoel ajudara na cura do
pai. Forçara, quase, a mãe a chamar um médico, foi buscá-lo e acompanhou
o estado de saúde do mestre com todo interesse. E não podia esconder que
Manoel gostava dela e que não era indiferente à paixão recolhida do rapaz.
Isso a divertia e enchia de vaidade. Foi falar com ele, longe de Malaquias e
de Pedro Inácio:
– Bom dia, Manoel. Queria pedir desculpas pelas palavras que ontem
lhe disse.
Ele olhou para ela sem mágoa e sem inibição:
– Você não tem nada do que pedir desculpas; fui grosseiro e infantil. E
pretensioso, pois não tinha, nem tenho direito de dar palpites sobre sua vida.
Quem deve desculpar-se sou eu.
Ela teve vontade de chorar, pois aquela era a despedida. Talvez a
última vez que se falassem. Com a voz embargada, completou:
– Tive que tomar uma decisão. Dependia de mim salvar meu pai ou
deixar que se perdesse.
Manoel foi conciliatório:
– Eu sei, Mariá. Se pudesse ao menos oferecer-lhe ajuda e aos seus
pais... Sou um pobretão cheio de dívidas e compromissos. Compreendo que
você procure amparo e segurança para sua vida. A mulher é, sempre, no
final das contas, pela sua fraqueza, a vítima de tudo.
– Fraqueza? – indagou Mariá. – Nada de fraqueza. Precisei de ânimo,
de coragem, de força para decidir como decidi. É fácil julgar os outros de
longe.
– Perdão, Mariá. Não quis reviver discussão que a nada leva. Procuro
compreender você e o assunto para mim está encerrado. Faço de conta que
você morreu e... pronto! Tudo se resolverá.
– Vá rogar praga à sua mãe ou à sua irmã; a mim, não. Você não
compreende que é preciso ter força para decidir, para escolher o caminho
que escolhi.
– Força e estômago – concluiu Manoel Santana.
– Que tem o estômago com o meu caso?
– Nada, Mariá.
– Não arrodeie. Já que começou, diga o que tem a dizer. Tenha
coragem...
– É que dizem, Mariá (eu nada tenho com isso), que o estômago da
mulher é mais forte do que o do homem. A mulher é capaz de engolir e
digerir coisas inacreditáveis.
– Lá vem você querendo ofender-me. Vim me despedir como amiga.
– Podia ter ficado no seu canto, fazendo de conta que eu não existia.
Foi assim que me tratou, varreu-me de sua vida com a simplicidade com
que tira o cisco de sua blusa.
Pegou o saco em que juntava suas coisas, jogou-o para o ombro e saiu,
em passo lento, da vida de Mariá Torquato. Antes de deixar a oficina,
voltou-se para falar com Pedro Inácio e viu que Mariá chorava. Não teve
pena das lágrimas que desciam, abundantes, pelo rosto lindo. Chorava por
ela mesma.

Depois de dois meses de esforço continuado e firme, a olaria começou


a produzir. Além de Moisés, que aprendera logo o ofício, Pedro Inácio,
depois do fechamento da oficina de seu Joaquim, viera trabalhar com ele,
trazendo valiosa experiência no trato com o barro: preparação da matéria,
torneamento e queima das peças.
Ao começar a arrumar, com o auxílio dos dois rapazes, os objetos, na
feira, no lugar que era o do seu pai, veio-lhe à lembrança, com a força de
intenso relâmpago, a imagem do seu pai sendo esfaqueado, caindo, sem
forças, se esvaindo em sangue e ele a gritar pedindo para que seu Antônio
não morresse. Ficou de cócoras, atordoado, a vista turva, como se fosse
desmaiar. Mas reagiu, tinha que reagir. Já nas feiras seguintes, o sofrimento
estava mais diluído.
Com o resultado da venda do barro e do incipiente negócio de
representação de madeira para construção, que lhe caiu nas mãos quase por
acaso, conseguiu pagar boa parte do empréstimo feito por João Boanova e
David Casimiro. Pedro Inácio e Moisés foram encarregados da venda, na
feira, pois ainda sofria todas as vezes que olhava para o canto onde
mataram seu pai. Dois meses depois, alugou um ponto na rua do Comércio,
e ali instalou uma pequena loja de ferragens, ajudado por Conrado, um
menino vivo, esperto, que engraxava sapato no mercado.
Corria tudo bem. Nunca mais ouvira falar em Mariá, que pouco a
pouco se afastava do seu pensamento. Outras preocupações o absorveram,
como o rápido noivado e logo após o casamento de Romilda, única irmã,
com Gilberto Rodrigues, de família da terra, mas estabelecido em Campina
Grande no ramo de algodão. Dona Petronila, por sua vez, atendendo o
chamado da filha, embaraçada com os enjôos e as dores do primeiro parto,
estava em Campina, sem data de regresso. Não estava só, porque dona
Anunciadora, velha empregada de sua mãe, continuava tomando conta da
casa. Por um lado, gostava do fato de as duas estarem fora de Cajazeiras,
sempre infestada de boatos sobre a invasão de Lampião.
Numa sexta-feira, à noite, Pedro Inácio bateu à porta da casa de
Manoel. Queria comunicar que não poderia ir à feira do sábado. Desfechou-
lhe, então, à queima-roupa, a notícia do casamento da prima, no dia
seguinte; que a tia Emerenciana havia exigido a presença dele, pois os
parentes eram poucos. E arrematou:
– Só não gostei do fim do recado: “Bote uma roupa decente, pois o
casamento é importante.”
Era mês de dezembro de 1925. Pensava Manoel que não fosse
experimentar nenhuma reação quando soubesse do fato. Engano. Foi como
se tivesse levado uma facada no peito, rachando em duas bandas. Em casa,
só, sem ter com quem repartir seu inesperado sofrimento, não conseguira,
antes de dormir, ordenar a confusão dos sentimentos, pois misturava a dor
de ter perdido Mariá com a convicção de que ela fora vendida à família de
Alencar.
Foi à feira com Moisés. Depois de tudo arrumado, abriu a pequena loja
de ferragens. Passou o dia ocupado, nervoso, sofrendo em silêncio uma
desilusão para a qual tivera, sem nenhuma dúvida, a culpa silenciosa da
omissão. Terminado o dia, ajudou Moisés a recolher o que não fora
vendido. Queria fazer força, trabalhar, suar, para esquecer. Procurou David
e João Boanova para jantarem com ele e, depois, fazerem um programa,
mas ambos estavam ausentes.
Jantou só, beliscando a comida, para raiva de Anunciadora, que tinha
conseguido uma excelente carne-seca com seu Raimundo Anastácio.
Perguntou por fim:
– Está doente, Manoel? Quer que lhe faça um chá de erva-doce?
– Não, Dora. Não estou doente; estou sem fome. A comida está, como
sempre, boa. Faça-me um favor: vá mais cedo para casa e leve a comida
para seu pessoal.
Armou a rede no alpendre lateral e tentou enganar o calor, que o banho
frio não aliviara. Sabia que naquela noite o sono não chegaria. Mariá enchia
seu coração, sua cabeça, seu quarto, as árvores, a rua, o céu, os sentidos
despertos, inebriado por uma paixão de que só ele sabia a existência. Era
uma tolice, percebia; mas nem isso lhe aliviava o sofrimento.
Decidiu ir até à “rodagem”. A “casa” de Justina era sempre distraída.
Vestiu-se como se fosse para uma festa e dirigiu-se para a “zona”. Chegou à
casa de Justina às 8 horas da noite e já não havia uma mesa que não
estivesse ocupada. Sábado era o dia de maior movimento, pela afluência de
caixeiros-viajantes e de ferreiros mais abonados que dormiam na cidade.
Viu, num canto do salão, o doutor Otacílio Jurema acenar na sua direção,
chamando-o. O doutor estava conversando com duas mulheres. Perguntou:
– Será que não vou atrapalhar?
As mulheres acharam graça como se ele tivesse dito alguma coisa sem
senso. O médico as apresentou:
– Lucinda e Zizi, chegadas, hoje, pelo trem. São de Quixadá.
Manoel apertou as mãos das pequenas. Depois de sentar-se, começou a
conversar com Zizi, que lhe recordava não sabia quem. De súbito, com a
força do inesperado, a lembrança de Mariá lhe tocou o coração. Movido por
sua natureza, predisposta à desconfiança, percebeu que poderia estar
atrapalhando o doutor Otacílio, mas este já se ocupara da outra moça,
Lucinda, loira, alva, de olhos miúdos e vivos, com um riso natural, solto,
comunicativo. Zizi era mais calada, morena, com os longos cabelos pretos
se derramando sobre os ombros frágeis. Era uma mulher, mas parecia mais
uma menina. Chamou Manoel para dançar. Mesmo alegando falta de jeito,
levantou-se e deu os primeiros passos: era fácil dançar com Zizi. Ao
voltarem para a mesa, o doutor e Lucinda já se tinham levantado. Manoel
perguntou, depois de algum tempo e de terem tomado duas doses de
genebra:
– Quer tomar alguma coisa mais?
Com sua negativa, ele disse que queria dormir com ela.
– O amigo é apressado, não é?
– Me desculpe.
– Nada. Estou brincando. O quarto é o do fim do corredor, à esquerda.
Me dê um tempo, pague a conta, e vá, depois.
Acordou tarde da noite, depois de se amarem, repetidamente, até à
exaustão do sono. Foi uma noite completa, cheia de amor, de entendimento
pleno dos sentidos e dos sentimentos. Mas era preciso sair. Zizi dormia
profundamente. Seu corpo jovem parecia dourado pelos reflexos do
candeeiro que não se apagara de todo. Deixou, na mesinha, o que imaginou
fosse cinco vezes o estipulado.
A porta do salão, deserto àquela hora, estava meio aberta.
Desceu a rua do Cemitério com a plena sensação de que pertencia à
terra, às pedras, às árvores. Teve vontade até de cantar, de rir, de gritar, de
acordar a cidade indiferente, mas querida, de quem gostava à sua maneira.
Entrou em casa com o mundo querendo clarear. E dormiu como um
justo, sem memória, sem sofrimento, sonhando com Zizi, sua boca rubra, os
seios pequenos e duros, os olhos castanhos macios, suas pernas morenas,
suas coxas, sua força, o calor dos beijos, sua vida, a vida. Era Zizi, ou era
Mariá?
Na segunda-feira, pela manhã, encontrava-se com Moisés na olaria,
quando chegou Pedro Inácio. Estava, ainda, empolgado com a festa do
casamento da prima, onde havia tanta gente que parecia festa da igreja.
Falou na comida abundante, nas bebidas, na banda de música, nos
foguetões.
– Vi muita gente boa daqui trocando as pernas. Timóteo Pereira
parecia um pimentão vermelho. Foi um festão, Manoel.
– Acalme sua alegria e não vá queimar as peças demais – pilheriou
Moisés.
– Que nada, rapaz. Isso foi sábado, e ressaca de pobre dura pouco.
Olhando para Manoel:
– Ela veio falar comigo, vestida de noiva, depois do casamento, bonita,
muito bonita. Perguntou como ia de trabalho, como era a olaria, se grande,
se pequena. Só faltou perguntar por você.
– Vamos trabalhar – disse Manoel, sem aceitar a provocação.
Foi à Prefeitura tratar de assuntos da olaria. Na volta, passou pelo
cartório de Dimas Andriola, que conversava; lá nos fundos, com o Cego
Alexandre. Dimas chamou-o com um gesto e colocou uma cadeira para ele
perto do cantador. Apreciava, também, o Cego Alexandre, a quem já tinha
ouvido, algumas vezes, por instâncias de João Boanova. Gostava,
sobretudo, da crítica que o cantador fazia sobre a conduta violenta e cruel
dos cangaceiros. Não pintava os cangaceiros como monstros ou anormais;
considerava-os, também, frutos da vida e das condições da região seca, na
sua vida nômade, levados para lá e trazidos para cá no martírio das
retiradas. Discordava, calado, do ponto de vista do Cego Alexandre, que via
o problema como um observador instruído e imparcial. Para ele Manoel,
todo cangaceiro era igual ao homem que matara seu pai; era um bicho
doente, sem alma, sem coração, sem sentimento. Pedindo desculpas ao
cantador, manifestou com sinceridade sua opinião, invocando a experiência
que tivera. Seu Alexandre, respeitando sua dor, disse-lhe o seguinte:
– Pode ser que a vida do cangaço os transforme, a todos, como é
natural, nesse monstro que você pinta. Mas alguns entraram no cangaço por
motivos ou impulsos até certo ponto justificáveis. Lampião, por exemplo,
que é uma peste, uma desgraça, antes de meter-se na vida cangaceira, era
um rapaz como outro qualquer que trabalhava na roça do pai, ao lado dos
irmãos.
Manoel Santana não quis insistir no seu ponto de vista, invocando a
morte do mestre Antônio. Despediu-se do cantador e do escrivão e foi para
sua pequena loja que ficava perto do cartório do 1º ofício.
Teve uma surpresa quando estava arrumando a mercadoria procedente
de Fortaleza: Anunciadora veio avisar que dona Petronila havia chegado, há
pouco, de Campina Grande.
Deixou o que estava fazendo, fechou a pequena loja e correu para casa.
A mãe estava esvaziando as malas, e a sala de jantar era uma confusão só.
Abraçaram-se longamente. Dona Petronila com os olhos rasos d’água
desvencilhou-se dele para reclamar sua magreza:
– Jejuou esse tempo todo? Anunciadora, que fez você do rapaz forte
que lhe entreguei?
Anunciadora, que não escondia o contentamento, limitou-se a levantar
os braços. Manoel brincou com as lágrimas de dona Petronila:
– Essas lágrimas são de arrependimento porque voltou, deixando a
filha querida em Campina Grande?
Ela sorriu, enxugando o rosto, e Manoel lembrou um dia de chuva com
sol da manhã sertaneja.
– Está vendo, Dora? Eu faço uma viagem desse tamanho para ouvir
desaforo desse ingrato!
– E o neto, mamãe? É verdade que a mana está bem gordinha?
Sem suspender a desarrumação das malas, falou com alegria da vida
de Romilda com o marido e as obrigações da casa.
– Virou uma verdadeira dona-de-casa. Apesar de bem pesada, cuida do
marido, orienta a empregada, faz as compras, sem perder a alegria e o
sorriso de sempre.
Depois do almoço, Manoel Santana falou sobre a situação que a cidade
estava vivendo:
– Não preciso dizer à senhora como estou satisfeito com a sua
chegada. Fiz uma carta à Romilda pedindo para prender a senhora por
algum tempo mais. Ela lhe falou nisso?
– Falou. É por isso que estou aqui. Que história é essa de Lampião? E
de que você está aprendendo a atirar? Vai sentar praça na polícia?
Procurou ordenar as ideias, evitando afligir dona Petronila, mas não
escondeu a realidade:
– Parece, mamãe, que a velha ameaça, velha e repetida, vai se tornar
realidade. O grupo de Lampião está se aprontando para invadir Cajazeiras.
A situação é difícil, pois o destacamento policial é reduzido e não veio
nenhum reforço da capital. Não podemos cruzar os braços, compreende?
– Não, meu filho, não compreendo. Isso não é assunto da polícia? Os
soldados existem para isso. Por que se envolver numa luta como essa?
Explicou tudo direitinho, citou o exemplo de Sousa, o trabalho do
Tenente Elino, a disposição de várias pessoas em ajudar a defesa da cidade,
mas sentiu que não havia convencido dona Petronila. Passou, então, para
outro assunto, falando na olaria e no seu novo negócio, na pequena loja de
ferragens e madeira, que já estava dando lucro.
Depois que Manoel saiu, dona Petronila percebeu que nada podia fazer
para demover seu filho do propósito em que estava e dos compromissos
assumidos com outras pessoas, inclusive o Tenente Delegado. Não se
enganava. Conhecia bem seu menino. E este se transformava noutra pessoa,
com outras reações, outros sentimentos, outro modo de ver a vida. O olhar,
os gestos, a forma de falar, o ar protetor com que a tratava, a firmeza de
suas resoluções, tudo indicava que o seu menino se transformara numa
pessoa diferente, segura, independente. Num homem, afinal, com uma arma
de matar nas mãos alongadas. Lembrou-se do finado Antônio, seu marido,
de seu horror à violência. O filho até bem pouco tempo parecia ter
aprendido com o pai a lição de paz, de amor ao próximo, resignação em
face da dureza da vida. Seu filho havia se transformado na sua ausência e
ela nada podia fazer. Tinha medo de perdê-lo, se reagisse contra sua decisão
de pegar em arma, de lutar contra os cangaceiros. Sua conversa de há
poucos instantes revelara, para ela, uma verdade indisfarçável: Manoel não
esquecera a morte do pai. Sabia que o atual comportamento de Manoel
decorria de profundos e arraigados sentimentos que agora vinham à tona,
irreprimíveis. Temia que seu filho morresse. Temia que se perdesse sob o
domínio do ódio e do desejo latente de vingança. A ameaça do ataque dos
cangaceiros já tinha provocado esse mal. Sim, sabia que Manoel não seria,
nunca mais, a mesma pessoa. E mãe não se engana nessas coisas. Além do
mais, o filho sofria a perda de Mariá, o único amor de sua vida. Que podia
fazer? Nada. Rezar? Quem ia ouvir seu pedido? Depois da morte do
marido, deixara de rezar, de ir à missa, de fazer até o sinal-da-cruz. Não era,
assim, responsável, também, pela mudança do filho? Achava que sim, e
tinha remorsos. Chegara a pensar em dizer, na conversa de há pouco: por
que essa preocupação em defender a cidade ao lado da policia que não
movera uma palha para prender o homem que matara seu pai? Fora melhor
não dizer nada. Agora, com uma arma na mão, seu filho se preparava para o
duro ofício de matar. Temia, ainda, que ele na hora fraquejasse, corresse, o
que era um modo de morrer, também.
Foi para o quarto de dormir e abriu o santuário. Acendeu uma vela
diante de Nossa Senhora da Piedade, que era Mãe, e começou a rezar. E
rezava e chorava ao mesmo tempo.
Sete

MOISÉS CONHECEU Raimundo Anastácio numa briga, isto é, ao tentar apartar


uma briga, no meio da feira. Um dos contendores, caboclo alto, forte, mal-
encarado, insatisfeito com a intervenção dele, puxou a faca e virou-se para
o seu lado:
– Isso é coisa de branco, negro safado. Ninguém lhe pediu para você se
meter onde não é chamado. Pois, agora, tome!
Disse as últimas palavras partindo, rápido, para cima de Moisés. Este
desviou-se, ligeiro, calçou o agressor, que se desequilibrou e esparramou-se
no chão. Antes de levantar-se, Moisés já estava em cima dele,
pressionando-lhe os braços e tomando-lhe a arma. Em seguida, jogou a faca
em cima do telhado. Ficou esperando o caboclo, que sacudia a poeira da
roupa e matutava no que devia fazer. Eis que aparece o Cabo e dá ordem de
prisão a Moisés. Seu Raimundo, que tudo presenciara desde o começo,
falou, em voz baixa, com o policial, explicando o que de fato acontecera. A
reação do Cabo foi surpreendente:
– Pois mesmo assim vou levar esse preto para a cadeia!
Raimundo Anastácio pegou no braço do policial e falou, desta vez, em
voz alta:
– Todo mundo viu que o que ele fez foi apartar uma briga feia, tomar a
faca do arruaceiro e arremessá-la longe. Qualquer dos presentes pode
confirmar isso.
O Major Francisco Sobreira viu o Delegado aproximar-se, e lhe falou:
– Vi a briga, Tenente. Moisés tentou evitar o pior, pois os homens
estavam armados.
Desse dia em diante, Moisés tornou-se grato ao ex-cangaceiro,
passando a ser um amigo devotado. Por isso, na noite em que seu Raimundo
lhe perguntou se queria tomar parte nos treinamentos orientados pelo
Delegado para defender a cidade, não teve força para recusar.
– Tá certo, seu Raimundo. Vou lhe pedir uma coisa: não diga nada à
Zulmira, minha mulher. Ela é um pouco nervosa, o senhor sabe. Preciso
falar, também, com seu Manoel Santana, na olaria, pois vou ter de chegar
mais tarde ao trabalho, não é?
– Claro, Moisés. Outra coisa: isso não é uma obrigação; é um pedido.
Você fica à vontade para resolver.
Raimundo se sentia um pouco culpado, como se estivesse explorando a
amizade do rapaz. Mas, que diabo, pensava, a vida era assim mesmo, e
Moisés podia ajudar.

Com o casamento, a vida de Moisés mudou muito. Zulmira realizava


milagres com o que ele ganhava, fazendo e vendendo arreios, rédeas,
alpercatas de rabicho. A mulher, por sua vez, seguindo a bênção da mãe,
dona Josefa, rendeira famosa, ajudava com o produto de sua almofada de
bilros. As coisas ficaram mais arrumadas, mais tranquilas, agora, com o
trabalho na olaria de Manoel Santana, que não era um patrão, era um amigo
bom que Deus lhe dera. Até agora, dois anos de casados, não aparecera
menino, o que enchia de tristeza o coração da mulher. Ele mesmo não
pensava nisso. Dizia brincando, com uma ponta de verdade: “Um negrinho
a menos para sofrer nesse mundo dos brancos...”
Na noite em que seu Raimundo Anastácio lhe falou no treinamento, a
mulher já estava deitada; não falou com ela. Foi para fora de casa e sentou-
se num tamborete, ouvindo o coaxar dos sapos no canal do sangradouro.
Era uma conversa sem fim, mas ele se acalmava, ouvindo-a. Nessa noite,
porém, o sono não chegava. Tinha dificuldade em respirar. Usar uma arma,
matar uma pessoa, mesmo que fosse um cangaceiro, nem queria pensar.
Não podia esconder dele mesmo que estava com medo de morrer, também.
Medo de morrer, medo de fazer feio na hora do tiroteio, correr, fugir,
envergonhar seus amigos. Poderia faltar a um pedido do seu padrinho de
casamento? Tinha de convencer a mulher, mostrar o que fariam os
cangaceiros se entrassem na cidade. Ela o desarmava com o argumento de
que nada tinham, os pobres, a perder com a invasão da cidade. Os ricos,
sim, mas eles? Tinha pena da cidade que dependia de gente como ele para
defender-se. Mas a verdade é que dera um tiro, certa vez, naquele
cangaceiro que pulara o muro de seu Raimundo Anastácio. Zulmira não
sabia disso. Ninguém sabia. Dona Dorinha, talvez. Agora, em vez de
pularem no quintal do seu padrinho, os bandidos queriam dominar a cidade.
Antes de dormir, resolveu procurar Manoel Santana, seu patrão, para
lhe falar sobre o assunto. Este lhe disse:
– Seu Raimundo me falou; estou de pleno acordo. Eu mesmo vou
tomar parte no treino. Precisamos estar preparados para expulsar os
cangaceiros. Isso, agora, tem mais importância do que fazer potes e panelas.
Pedro Inácio começa o serviço, e nós chegamos depois.
A conversa com seu Manoel lhe trouxe um pouco de tranquilidade. E
lhe dera uma razão a mais para justificar-se perante a companheira.
Na hora do café, contou:
– Antes de ir para o trabalho, vou com seu Raimundo Anastácio ver o
treinamento do pessoal.
– Que treinamento. Vai sentar praça na Polícia?
– Não é isso, minha filha. Os cangaceiros estão ameaçando atacar a
cidade. Pode ser até que não venham, mas, se vierem, nós precisamos estar
preparados para afastá-los daqui. Seu Manoel Santana vai com a gente,
também. É preciso, assim, aprender a usar uma arma.
– Que arma, Moisés? Você não tem nem um canivete.
– O Delegado, o Tenente Elino, vai distribuir armas com algumas
pessoas de confiança.
– Não estou gostando dessa história. Quando você começa a falar
enrolando a língua, é sinal de que está querendo me enganar.
– Enganar nada, mulher. Estou contando a coisa, direitinho, a você.
Quer que chame meu padrinho ou seu Manoel Santana, meu patrão, para
conversarem com você?
Zulmira fitou-o longamente, com seus olhos negros e tristes, e ele
sentiu que ia tudo de águas abaixo. Ela reagiu, entretanto, de outro modo:
– Também não sou tapada, assim, como você pensa. Estudei alguma
coisa com dona Elisa. Sei ler, escrever e contar. Tenho, Moisés, é medo de
arma. Arma pra mim quer dizer morte. Pra que foi se meter nessas coisas
sem falar comigo?
– Tenha paciência, minha nega, mas isso é assunto de homem. Os
homens confiaram em mim. Queria que eu dissesse ao Delegado: “Espere aí
um pouco que eu vou falar com Zulmira”? Ficava muito bonito para mim,
não ficava?
– Está bem, mas não precisava tanta pressa. Agora, vou lhe pedir um
favor: não me traga essa arma para casa.
– Fique descansada, Zulmira; não vou trazer nenhuma arma para casa,
se você quer assim.

Saiu de casa mais aliviado. A mulher aceitara a situação. E não


precisara mentir. Arrodeou um pouco, mas o que disse era verdadeiro. Não
queria, de nenhuma forma, contrariá-la. Gostava dela, do seu jeito doce, do
seu olhar manso, de sua conformação com a vida pobre que levavam.
Às vezes chegava a pensar (que Deus Nosso Senhor o perdoasse!) que
Zulmira se parecia com Nossa Senhora. É que ela era tão paciente, tão boa,
tão resignada! Mas, como podia uma pretinha se parecer com a Mãe de
Deus? Com a Rainha do Céu, sentada perto do trono de Deus, lá, em cima
das nuvens, mais longe do que a lua?
Pobres como eram, nenhum pedinte saía de sua casa sem um pires de
farinha, uma xícara de feijão, um pouco de comida do almoço. Tratava os
velhos com uma paciência e uma ternura raras. Seu pai, o velho Benício,
que morava com ele antes de se casarem, tinha pela nora quase adoração.
Dizia, escondido dela: meu filho, nunca dê motivo de contrariedade para
sua mulher. Se existe uma santa pisando esse duro chão da terra, ela se
chama Zulmira.
Foi assim, com outra alma, que se apresentou ao Sargento Rangel, já
de partida com uma dúzia de voluntários para o lado do Serrote.
A cidade dormia, tranquila, envolvida pelo frescor da madrugada;
tempo de se enrolar na rede, de procurar o calor do corpo de uma mulher, de
fazer amor, de ser feliz num segundo, de se esquecer da vida implacável,
das provações, da tristeza; minuto de refrigério na terra do sol; instante de
sossego, de paz, de alegria; semente do dia novo, da vida que continua;
momento de sonhar acordado, de ter um pouco de esperança, de renovar o
desejo de viver.
Caminhava para o Serrote no meio de outros homens, alguns
conhecidos, outros estranhos; uns de sua idade, outros, mais velhos; de sua
cor, ele, só ele de pele escura, de cabelo encaracolado, um pinto preto no
meio de uma ninhada de pintos mesclados de amarelo, de cobre, de
vermelho.
O sargento Rangel passou por ele, cordial:
– Então, Moisés, animado?
– Pois é, Sargento. Vou aprender a pegar no cabo de um fuzil que é
mais leve do que o cabo da enxada.
O Sargento sorriu; melhor: sungou o lábio superior, aparecendo os
dentes grandes sob os largos bigodes, numa cena rápida, de que se
recompôs, logo, como se tivesse cometido um erro.
O Tenente já os esperava, calmo, desengonçado e louro. O Sargento
arrumou o pessoal numa fila, que virou meio círculo, pronunciando o
Delegado estas palavras:
– Antes do mais, agradeço a presença de vocês. Estamos, hoje, não
mais diante de um boato, mas de uma realidade: um grupo de cangaceiros,
sob a chefia de Sabino Gomes, vem atacar Cajazeiras. Sabino já morou aqui
e é tão ruim como o seu Chefe, o bandido Lampião. Este, macaco velho,
escolado, não topou a parada. Sabino, mais novo, mais arrojado e menos
esperto, acha que pode dominar a cidade, arregimentando até meninos de
menos de 18 anos para sua empreitada. Baseia-se no número de policiais
existentes, que é pequeno, mas não sabe que há homens fora da polícia que
estão dispostos a lutar em defesa da cidade. Fora vocês há outras pessoas,
que não precisam do treinamento que vocês vão fazer. São homens com
experiência da vida no sertão e no combate ao banditismo. Intimamente,
alguns devem estar se fazendo a seguinte pergunta: “Que adianta a minha
presença nessa luta?” E eu respondo: ela será decisiva para a expulsão dos
assaltantes. Se os cangaceiros não aparecerem, melhor, e vocês terão
aprendido a conhecer uma arma e como dela tirar o maior partido. Dou,
sempre, um exemplo, para mostrar a importância do que estamos fazendo.
Há dois anos passados, Lampião e 30 homens, aproximadamente, entraram
na cidade de Sousa, a dez léguas daqui. A polícia desapareceu com medo
dos bandidos. Pois alguns homens, mesmo improvisadamente, resolveram
pegar em armas e repelir os cangaceiros. Estes já estavam saqueando o
comércio. Responderam aos tiros dos habitantes de Sousa, mas passaram
sebo nas canelas e desapareceram até hoje. Cangaceiro não muda de tática,
no modo de combater. Faz, sempre, exatamente, a mesma coisa: quando não
encontra resistência, toma conta da localidade, arranca dinheiro dos
comerciantes, conversa com o vigário, saqueia as casas comerciais e as
casas de família, fazendo as misérias que todos conhecem. Mas – e isso é
que é importante – quando sentem qualquer reação da polícia, dos paisanos,
ou dos dois juntos, eles não esquentam o lugar. Correm de bala como o
diabo da Cruz. Não somos nós, somente, que temos medo de bala; eles
também. Tenho certeza de que, se Sabino encontrar, na entrada do
comércio, uma boa recepção, ele voltará em cima dos pés. Agora, o
Sargento Rangel e o Cabo Gonçalves vão começar a dar as instruções.
Nessa ocasião, chegaram Raimundo Anastácio, Romeu Cruz, Chicão,
Manoel Nóbrega, José Mendes, Marcelo e Manoel, o oleiro.
O Tenente Elino manifestou sua alegria pela presença deles e pela
certeza de sua ajuda no dia da luta. Romeu falou em voz baixa para o
Delegado:
– Estamos aqui para animar os recrutas. É bom sentirem que há gente
experiente, fora a polícia, disposta a lutar.
– Eu sei, Romeu. Já tinha falado em vocês, sem citar nomes, mas
elogiando a boa pontaria de cada um.
Enquanto isso, pacientemente, o Sargento Rangel e o Cabo José
Gonçalves explicavam aos voluntários o manejo das armas de fogo: o
mosquetão e o rifle 44, papo amarelo.

O Cabo José Gonçalves fez continência e pediu licença para falar. Não
eram 7 horas e o Tenente já estava na Delegacia.
– Pode falar, Cabo.
O militar ficou parado, olhando para Raimundo Anastácio. O
Delegado compreendeu:
– Pode falar na frente do mestre Raimundo; não há segredos que ele
não possa saber.
– É o seguinte, Tenente. Ontem no primeiro dia de treinamento, havia
um camarada que se dizia morador de Marcolino Diniz. Ninguém o
conheceu, nem nunca o tinha visto, antes.
– Pois veja se ele ainda está na cidade.
– Está. Valões, o soldado Valões, quando vinha de casa, viu um
homem saltar do cavalo em frente à residência de seu Marcolino Diniz.
– Arranje um cavalo, que não seja lerdo demais, e procure seguir o
camarada. Antes, diga ao Valões que preciso falar com ele imediatamente.
Depois que o cabo se retirou, Raimundo Anastácio resmungou:
– É danado...
– Danado o quê, mestre Raimundo?
– É o seguinte: o senhor diz, com razão, que Sabino pode ter uma
surpresa se houver uma reação de nossa parte.
– Continuo pensando assim. Qual é a dúvida?
– Essa conversa do Cabo Gonçalves me deixou de orelha em pé. Acho
que Marcolino pode tentar informar Sabino de que o senhor está
conseguindo recrutar alguns homens para a luta. Desmancha-se, assim, a
vantagem da surpresa.
O Tenente já tinha pensado nisso, também. Tanto que se informara, no
dia anterior, com o agente dos Correios, sobre os telegramas recebidos de
Lavras ou dirigidos a essa cidade, que era, no Ceará, a Agência dos
Correios mais próxima. O resultado fora negativo. Havia, entretanto, esse
outro meio de comunicação, que era o mensageiro.
O soldado Valões apareceu na Delegacia, apresentando-se. Faltava um
botão na túnica, as perneiras estavam sujas, mas não era hora de fazer
exigências. O Tenente narrou a suspeita do Cabo Gonçalves e as ordens que
lhe havia dado. E completou:
– Quero que você dê cobertura ao Cabo Gonçalves, que vai sair no
encalço de um morador suspeito de Marcolino Diniz. Vocês vão me trazer
esse homem, escondido, sem ninguém ver.
– Como é ele, Tenente?
– Pelo que me disseram, é um homem de seus 35 anos, baixo, moreno
carregado, forte, cabelo ruim; anda gingando como vaqueiro, fala pouco e
tem cara fechada.
– Levamos o sujeito para a cadeia?
– Não; vai ficar uns dias na fazenda de seu Chicão, depois do Serrote.
– E se o homem reagir?
– Só não quero baixa do nosso lado. Mas, façam força para trazer o
bicho vivo; é importante. Entendido?
– Entendido, senhor.
Depois da saída do soldado Valões, o Tenente pediu a Raimundo
Anastácio para avisar Chicão que precisava falar com ele.
Antes das 8 horas, o Cabo Gonçalves apareceu com a notícia de que o
vaqueiro ainda estava na cidade. Tinha dormido na casa do patrão.
– Pois fique grudado a ele. Já preparou sua montaria?
– Já, sim senhor.
– Boa sorte, Cabo.
O subordinado levou a mão ao quepe e fez uma continência frouxa e
desajeitada.

Deixou o cavalo castanho um pouco distante da casa que estava


vigiando. Alguns minutos depois, o vaqueiro trouxe um cavalo baio,
pequeno, nervoso, e o amarrou no pé de ficus diante da casa. Estava
passando a cilha por baixo do animal, quando o Cabo lhe falou:
– Seu Marcolino está?
– Está não; já foi pra loja.
– Bonito cavalo! É seu?
– É do meu patrão.
– Parece um animal forte.
– É.
– O amigo vai para a fazenda?
– Vou.
– Será que seu patrão vende o cavalo?
– Sei não, moço. Só perguntando a ele.
Montou o cavalo, rápido, e deixou o Cabo vendo a poeira fina
levantar-se. Não tinha pressa. Na saída da cidade, conforme o rumo tomado
pelo “vaqueiro”, ficaria sabendo se ele ia para a fazenda ou não. Na
encruzilhada, o cavaleiro tomou o rumo do poente, a estrada que ia dar no
Ceará. Deixou que o vaqueiro tomasse distância razoável e seguiu na
mesma direção. Havia uns restos de verde pelo caminho, resultado de chuva
recente, mas a galharia seca já indicava a presença do verão. O sol
queimava-lhe as costas, e subia da terra um calor de rachar. Um gavião
passou, em vôo baixo, carregando uma cobra no bico.
Distante da cidade uma meia légua, perdeu o camarada de vista.
Apressou o passo do castanho que já estava impaciente com as rédeas
curtas, e voltou a enxergar, adiante, o homem e seu cavalo baio. Conteve o
animal com dificuldade e chegou a aproximar-se mais do que devia. O
camarada, que o tinha notado, certamente, não alterou a andadura, nem
mesmo quando ficaram emparelhados. O Cabo puxou conversa:
– Como esse mundo é pequeno! Então vamos na mesma direção!
Engraçado: se não me engano o amigo disse que ia para a fazenda de seu
Marcolino.
O vaqueiro mudo estava, mudo ficou. Zé Gonçalves viu o perigo
acender-se nas suas pupilas. Antes do camarada puxar a arma, jogou seu
cavalo na direção do vaqueiro e partiu pra cima dele, derrubando-o. Ao
levantar-se, viu que o vaqueiro tinha sido mais ligeiro do que ele e lhe
apontava o revólver, mirando-lhe o peito. Não fez nem menção de puxar
sua arma, o que seria absolutamente inútil. Ouviu, nesse instante, rumores
de patas de cavalo e viu quando o vaqueiro, atingido no peito, caía para trás,
soltando a arma. Na sua frente, com o dente de ouro brilhando no sorriso
aberto, estava o soldado Valões:
– Vi a queda que você deu no cabra, mas ele foi ligeiro que só um gato
do mato.
– Devo minha vida a você, Valões – disse Zé Gonçalves, que tremia
dos pés à cabeça. – Mas como diabo é que você apareceu, aqui, nesta hora?
– O Tenente me pediu para seguir você. Ele chegou à conclusão de que
o camarada não era vaqueiro coisa nenhuma; era cabra de Sabino.
– Deus seja louvado! Vi a morte na boca do cano do revólver do
desgraçado. Que vamos fazer com ele?
– Vamos tirá-lo da estrada e ver se ele tem alguma carta. Enquanto
isso, junte os cavalos.
Afora umas notas de cinco mil réis, o cabra tinha no embornal
medalhas, santinhos, bentos, um retrato do Padre Cícero e a carta que
Valões leu, no meio da estrada, sob um sol de torrar:

SABINO. É bom se prevenir. O Delegado conseguiu juntar alguns


matutos para treinar. Não valem nada, mas vão fazer número e
dar a impressão de que são muitos. Não chegou nenhum reforço
nem vai chegar. O Tenente apesar de leso é meio teimoso e pode
dar algum trabalho se não correr logo. Mas não vai ser um
passeio como você pensa.

O bilhete não tinha assinatura. Nem precisava.

Moisés não sabia o que fazer para desmanchar a tristeza da mulher.


Vivia chorando pelos cantos, calada, emagrecendo a olhos vistos, fugindo
de uma conversa, de um agrado. Tudo depois que começou a frequentar os
treinamentos; depois que lhe disse que estava aprendendo a usar uma arma.
Tentava mostrar que não estava aprendendo a matar, como ela disse uma
vez; ia ficar na defesa e não procurar alguém para matar. Podia até
acontecer que os cangaceiros não aparecessem. Podia ser mais um boato,
só. A reação da mulher era sempre igual, repetida:
– Você vai matar. A arma é para matar. Vai carregar nas costas para
sempre essa morte. Está escrito: Não matarás.
Tinha toda paciência. Ela era a coisa mais preciosa que tinha nesse
mundo. Concordava, às vezes, com ela, para poder entrar no mundo dela
que se fechava para seu entendimento. E arrodeava, inventava coisas, dizia
verdades com toda delicadeza.
– Zulmira, já disse ao Tenente Elino que não vou mais combater.
Tenho medo que os cangaceiros entrem na cidade, porque quem vai sofrer
mais somos nós, os pretos. Não sei explicar o motivo, meu bem, mas eles
fazem questão de humilhar o pessoal da nossa cor. Tem sido assim em todo
lugar em que chegam. Foi por isso que andei querendo aprender a agir
como os soldados, mas agora estou do seu lado e não vou deixar você para
ir atirando por aí.
A mulher olhava para ele, sem o ver, longe. Não escutava o que ele
dizia. E continuava a repetir a mesma história, incansavelmente:
– Você vai matar. Quem mata não tem mais paz. Está escrito: “Não
matarás.”

Moisés pediu à sogra, dona Zefa, para vir morar uns dias com eles. Ela
já sabia que a filha estava um pouco prejudicada... Com a presença da mãe,
talvez se abrisse, mudasse de pensar, falasse noutras coisas. Sentia que
estava morrendo, devagar, com a doença da mulher. Levavam uma vida
calma e sossegada; vida de pobre, com dificuldades, sem ter, certos dias, o
que botar no fogo, mas uma vida serena, feliz, baseada no amor que os unia.
Era tudo tão simples, tão arrumado, tão bom, que não pedia a Deus outra
coisa, quando se lembrava de rezar. Veio o emprego na olaria; ganhava
pouco, mas certo, e o trabalho completou o quadro de sua felicidade.
Zulmira continuava ajudando seus pobres, seus velhos, mas até nisso se
modificou seu modo de agir: dava a comida, o vintém, a pequena ajuda,
mecanicamente, o rosto suave impassível, distante. Eram uns demônios
esses cangaceiros. Ainda não haviam entrado na cidade e já causavam
sofrimento e dor, na casa do rico, do remediado, do pobre. Ouvira falar que
a filha de seu Modesto, comerciante, dera para gritar, querendo sair de casa
do jeito que estava, os olhos arregalados de pavor.

Dona Josefa, sua sogra, não sabia o que fizesse. Vivia dando à filha
chá de flor de laranjeira, de camomila, para acalmar os nervos. Conseguira
um remédio com Doutor Higino Rolim e Zulmira pelo menos dormia
direito. Mas, chegado o novo dia, continuava chorando pelos cantos da
casa, com um terço na mão, rezando, e, de vez em quando, murmurava:
“Não matarás.”
A mãe pensou em levá-la para casa. No meio das irmãs, fazendo renda,
ia mudar de conversa, ia se distrair. Ela reagiu, zangada:
– Não vou deixar Moisés; Moisés tem uma arma escondida. Vou
encontrar essa arma; vou jogar ela no fogo. Moisés vai matar. Tá escrito:
“Não matarás.”
Era de machucar o coração, ver como ela sofria com as coisas que
inventava. E como mudava de feição: seus olhos cresciam, apagava-se a
doçura de seus olhos, de sua boca, de seus gestos.
Lembraram que Siá Joaquina, rezadeira, vinda do Juazeiro, fazia
milagres. “Se for um encosto, como parece, Siá Joaquina resolve.” A
dificuldade era tirar Zulmira de casa, mas não houve pedido, nem rogo que
modificassem sua resolução de não deixar a casa. Moisés conseguiu trazer
Siá Joaquina, prometendo-lhe pagar bem. A consulta durou mais de uma
hora. A rezadeira saiu do quarto com ar desanimado. Falou a Moisés:
– Só poderes mais fortes do que os meus podem libertar sua mulher
desse encosto. Usei as rezas mais poderosas; invoquei a Santíssima
Trindade, os Santos mais conhecidos, repeti palavras do Livro de São
Cipriano, benzi ela com ramo de arruda, dei-lhe para beijar a imagem do
Padre Cícero, meu padrinho, mas nada adiantou.
Agradeceu o trabalho da Siá Joaquina e foi de volta, com ela, até à sua
casa. E pagou dois mil réis pela reza.
Mas Zulmira não mudava; estava ficando áspera, agressiva, recusando
um afago, um agrado. Repelia Moisés:
– Não toque em mim; você tem uma arma, uma arma de fogo. Você vai
matar. E morrer por dentro, devagar, até o fim. Está escrito: “Não matarás.”
Moisés refletia, amargo: sem um tiro, com a fama de seus crimes,
Sabino estava matando, lentamente, sua mulher.
Aquele domingo que findava, 26 de setembro de 1926, foi o mais triste
de sua vida.
Dois dias depois, ao cair da tarde, Sabino entrava em Cajazeiras.

***

Zulmira nunca soubera disso, mas há alguns meses tivera uma primeira
experiência com os cangaceiros. Essa lembrança diminuía um pouco o
medo da briga. Seu amigo Raimundo Anastácio – ainda era solteiro e só
depois do casamento passou a chamar o “velho” de padrinho – convidou-o
para fazer serviço de alvenaria no quarto dos fundos de sua casa no fim da
rua Sete de Setembro. Ficou meio intrigado, pois tratava-se de reforçar o
portão do quintal e a janela de um depósito que ficava fora do corpo da
casa. No portão foram colocadas duas tramelas largas e resistentes, uma
delas com alça para cadeado. Além disso seu Raimundo lhe pedira para
recolher garrafas nalgumas casas. Depois de trazer três ou quatro sacos de
garrafas vazias, seu Raimundo e ele as reduziram a pedaços. Os cacos
foram colocados em cima do muro, com massa forte, para dificultar o
ingresso de quem? De algum inimigo?
Quando viu seu Raimundo, depois que ele substituiu a madeira da
janela por barras de ferro enviesadas, experimentar o movimento do cano
do rifle nas frestas, compreendeu que seu amigo estava temendo ser
atacado. Falou com jeito:
– Seu Raimundo, o senhor está temendo algum inimigo?
– Não, Moisés. É que esse quarto, que é depósito da casa, não pode
ficar fechado, nem é bom que fique aberto...
– Por que esse sorriso safado no canto dos beiços?
– Que tem o abafado do quarto com um cano de rifle saindo das
frestas?
– Tá vendo? Vou lhe contar para evitar que você, de tanto imaginar, vá
conversar com alguém.
– Não estou pedindo seus segredos, homem.
– Mas eu quero falar no assunto para me livrar dele, pois não há coisa
pior do que guardar um segredo sozinho.
– Não estou pedindo...
– Eu sei, Moisés. Mas o que vou lhe dizer você não passe nem à
Dorinha, minha mulher. Ouviu?
– Ouvi, sim senhor.
Raimundo Anastácio falou-lhe, então, na “visita” dos cangaceiros
Laurindo e Bem-te-vi e do compromisso por ele não cumprido.
– Tenho por mim que eles não vão deixar passar o desaforo.
– Que desaforo, seu Raimundo?
– O fato de ter dito que ia me encontrar com Sabino no sítio
“Remédios” e lá não ter aparecido.
– Eles vêm, então, se vingar do senhor?
– É mais ou menos isso. Sabino não vai me perdoar. Vou ser castigado
para servir de exemplo.
– Não é melhor o senhor prevenir o Delegado?
– Quem vai entender, fora você e poucos amigos, essa história? Vão
dizer que estou em combinação com meus antigos companheiros.
O negro Moisés ficou parado, pensando, imaginando o aperreio do seu
amigo. Disse:
– Venho ficar com o senhor.
– Nada disso, Moisés. Você nunca pegou numa arma.
– Tem sempre uma primeira vez...
– De jeito nenhum, Moisés. Obrigado mas de jeito nenhum.
– Não sou obrigado; venho porque quero. Penso o seguinte: o senhor
pode ficar uma noite ou duas acordado, mas passou daí não há quem
aguente, nem o senhor.
Depois de muito relutar, seu Raimundo findou aceitando, que Moisés
fosse dormir no depósito, alternando as noites de vigilância. “Como
explicar isso a Dorinha?”, pensou.
Ensinou ao rapaz como usar o rifle, carregá-lo, descarregá-lo, carregá-
lo de novo; como fazer pontaria, amortecer o coice do rifle e tudo mais.
Pois não é que na quarta noite, de lua cheia, a segunda que Moisés
dormia ali, os cangaceiros apareceram! Seguindo as instruções de seu
Raimundo, ele não se mexeu. Ouvia o rangido do portão e as tramelas
aguentando o repuxo. Aquilo já tinha demorado um tempão. Por fim, viu
um vulto passando a coronha da arma nos cacos de vidro de cima do muro,
e, depois de algum tempo, pular para dentro do quintal. Já estava de
pontaria firmada, quando o cabra pisou no chão. Não teve dúvida: atirou no
vulto desenhado pela lua, com calma e firmeza. Ouviu o camarada gritar:
“Fui ferido!” Uma outra voz gritou:
– Abre o portão!
Mas o ferido parado estava, parado ficou. Foi quando seu Raimundo
apareceu e deu dois ou três tiros. Perguntou:
– Tudo bem, Moisés?
– Parece que não, seu Raimundo. Acertei num homem.
Ouviram tropel de cavalos na terra dura, e, depois, o silêncio total
restaurou a quietude da madrugada. Aguardou certo tempo para aproximar-
se do ferido, pedindo a Moisés que ficasse observando se alguém tentava
alguma coisa. Voltou logo depois, e disse para Moisés:
– O cabra está ferido.
Moisés ficou apavorado e lamentou:
– Fui eu que fiz isso!
Seu Raimundo não lhe respondeu, mas disse com firmeza:
– Era ele ou você. Está lamentando não ter recebido um tiro na testa?
Fique aí. Não deixe entrar ninguém.
Nessa ocasião, dona Dorinha, com um candeeiro na mão, chamava o
marido:
– Raimundo! Raimundo! O que foi que aconteceu?
O velho gritou:
– Apague esse candeeiro, mulher!
Mas foi preciso ele mesmo chegar perto de dona Dorinha e soprar na
chama acesa.
Depois de mandar a mulher para dentro de casa, fechou a porta da
cozinha por fora e disse para Moisés:
– Vou levar esse camarada daqui. Não fale. Não diga nada, nem
mesmo a Dorinha. Você dormiu aqui e não viu nada, entendeu?
Moisés balançou a cabeça, concordando. Raimundo Anastácio,
passada uma meia hora, disse para Moisés:
– Ajude-me a colocar o sujeito no meu ombro.
Abriu o portão, deu ordens para Moisés fechá-lo e só abrir se ouvisse
sua voz, e saiu carregando o fardo pesado nos ombros largos.
Uma hora depois, seu Raimundo chamou, do lado de fora:
– Moisés!
Abriu o portão e fechou-o cuidadosamente.
– Fique aí e vá dormir que, hoje, não vai acontecer mais nada.
Deitou-se na rede e não dormiu mais. Levantava-se, olhava pelas
grades de ferro, e voltava de novo para a rede. Tinha perdido o sono e sabia
que não ia dormir mais. Não era medo da nova aparição; era o horror de ter
atirado num homem e de o haver matado, talvez.
Aquela história de que o homem estava ferido era conversa de seu
Raimundo. O homem estava morto. Morto da Silva. E fora ele, Moisés,
quem lhe tirara a vida.
Tomou café, sem gosto, com seu Raimundo e dona Dorinha, que não
escondia seu nervosismo. O casal já devia ter conversado bastante, pelo
silêncio que guardavam. Não disse uma palavra. Manhãzinha cedo foi para
sua casa, para a casa do pai, Benício, e nada contou do ocorrido. Nem lhe
foi perguntado.
Mas na cidade, soube logo depois, corria a notícia de que um
cangaceiro fora morto por um soldado na frente da Delegacia. Corria que o
bandido, acompanhado, tentara libertar os presos, mas o soldado Madruga,
heroicamente, havia abatido o assaltante com tiro certeiro no coração. Mais:
pusera para correr outros dois bandidos que descarregaram suas armas em
cima do bravo militar, que era de pequena estatura, mas se revelara um
herói.
Só ele e seu Raimundo (autor da façanha) sabiam da verdade. Uma
verdade que enchia de sombras e apreensões sua alma simples.
Por isso, também, atendera sem demora ao pedido do padrinho
Raimundo para ajudar a polícia na defesa da cidade.
Quando Zulmira lhe dizia, em prantos, que ele iria usar uma arma para
matar, ele recordava aquela madrugada fria e distante em que ele abatera
um homem. Era um cangaceiro, dizia o mestre Raimundo. Para sua aflição
era um homem, um filho de Deus como ele. Mas a vida era assim e lá ia ele,
outra vez, atirar para matar.
Zulmira vivia pelos cantos, triste, definhando a olhos vistos, correndo
as contas de um rosário e murmurando, sem cessar: “não matarás”, “não
matarás”.
Sentia-se muito só com a “esquisitice” da mulher. Poucos tomavam
conhecimento de sua existência. Era a cor, sua cor, que criava uma barreira
entre ele e as pessoas com quem se encontrara na vida. Desde a Escola de
dona Elisa, na rua da Matança, que começara a perceber a realidade:
tratavam-no como se fosse um ser inferior. Antes da escola, sentira essa
diferença, a dificuldade em misturar-se com os meninos da sua idade. Na
escola, a distância aumentou: ninguém queria sentar-se perto dele. A
professora, paciente e bondosa, imaginou uma solução para evitar a
irritação e os maus tratos dos colegas: colocou-o perto dela, de frente para
os outros meninos. Era centro de todas as caretas e línguas estiradas, ao
voltar-se a professora para o quadro-negro. Havia as sabatinas, modo de
recordar as lições da semana. Grupos do mesmo nível eram formados, em
semicírculo, em torno da mesa de dona Elisa. Esta fazia as perguntas, com
uma palmatória na mão:
– 7 vezes 9?
– 53.
– Adiante!
– 56.
– Dê um bolo na mão de Joca – dizia a professora.
Às vezes, a pergunta atravessava todo o semicírculo, findando em
Deusdedit, o filho da mestra, magro, esperto, um raio na tabuada. A
palmatória estalava nas mãos menos sábias, para deleite do filho de dona
Elisa, que não perdoava (nem podia perdoar) e dava bolos que estalavam na
manhã tranquila.
Moisés não era bom na matéria. E pagava por isso. Tinha a impressão
de que os outros meninos, que não acertavam, recebiam um bolo choco, de
que mal se ouvia o estalo. Quando chegava sua vez, o menino que vinha
manejando a palmatória de modo convencional, frouxo, levantava o
instrumento e o pedaço de madeira estalava, seco, na sua mão preta.
Na hora do recreio, ficava num canto, calado, só. Ninguém o
molestava, mas não o chamavam para jogar com a bola de pano. Na
ausência de quem quisesse ser goleiro, chamavam-no, raramente. E ele ia,
feliz, de alma leve, esquecendo tudo, como um cachorro vadio diante de
osso inesperado jogado no seu lombo.
Conversou, muitas vezes, com o pai, narrando essas desventuras. O
negro Benício, pitando o cachimbo de barro, procurava atenuar sua raiva:
– Vai ser assim a vida toda. O único meio de lhe darem um pouco de
atenção é saberem que você sabe ler, escrever e contar. Faça isso com
vontade, com força, seja correto, e o resto Deus lhe dará com acréscimo.
Ele é o Pai de todos, de brancos e de pretos.
Talvez por serem poucos, no sertão, os negros, Deus se esquecia deles
a maior parte do tempo.
Seu casamento com Zulmira, a coisa mais importante de sua vida, fora
realizado sem muita gente, a conselho do sacristão:
– Pouca gente, Moisés. Os noivos, os padrinhos, os irmãos. Para não
dar na vista, compreende?
Não compreendia, mas não interessava conversar com o velho. Ele
estava cumprindo instruções, certamente.
Mas ele contava com alguns amigos, poucos e bons. Seu Raimundo
Anastácio, Gineto, filho do coronel Galdino Pires, Manoel Santana, dono da
olaria onde trabalhava. Este não era um patrão bom, só; era um amigo, que
o chamava para almoçar na sua casa, que se interessava por sua vida, que
lhe ensinava, sem reservas, a arte do barro, pelo que participava do trabalho
com alegria, a alegria de ser tratado como gente.
Zulmira estava carregada de razão ao lhe dizer, antes de sua
perturbação:
– Fora dois ou três amigos, quem se lembra de você?
Mas não podia esquecer que ali nascera; que seus filhos, que um dia
iam aparecer, com a graça de Deus, poderiam ter, talvez, destino mais claro
do que ele. Só desejava, hoje, uma coisa, e a pedia a Deus: que tirasse
Zulmira dos caminhos tortuosos, da escuridão da loucura. O resto não tinha
importância.
Pensava: foi bom, apesar de tudo, o padrinho ter-se lembrado de
chamá-lo para lutar contra esse bicho desalmado, que ataca e mata pelo
prazer da destruição; que traz o terror, a desgraça e a infelicidade até para as
criaturas mais inocentes, como Zulmira. Cruel, sanguinário como um
carcará, surge, de repente, no fim da tarde, agressivo e feroz, atacando as
cidades, os sítios, as pessoas, roubando-lhes a tranquilidade, a paz, a vida,
para saciar sua sede e sua fome de sangue. Esse sentimento abafava, por
momentos, o medo de morrer...
Oito

A VIDA perdera a graça sem Aninha. Fazia oito meses que a mulher morrera,
de parto, cheia de saúde e contentamento, aos 21 anos de idade. Sim,
Aninha não era só alegre, era cheia de vida, transmitindo às pessoas sua
felicidade, dela impregnando tudo que tocava. Como a vida dele mudara
desde que se conheceram e casaram! A casa pobre da fazenda se
transformara pelo mistério e pelo trabalho de suas mãos. Comprara, em
Fortaleza, mesas, cadeiras para a sala grande; uma cama nova, grande, com
um colchão de crina; reformara o velho fogão de lenha, nele colocando
bocas e trempes de ferro; envernizara o guarda-louças e o enchera de pratos,
de copos, de xícaras, de talheres; mandara consertar o piso da casa toda,
inclusive da cozinha, onde colocara uma janela nova, dizendo a Chicão: é
aqui que vou viver enquanto você estiver no mato. A casa parecia outra; e
tudo era ela, o seu toque, o ar de alegria e de felicidade que ela transmitia.
Os parentes, os amigos, brincavam com ele: “Casa de lorde, Chicão!”
Tudo corria tão bem! O ano, de inverno prometedor, poderia dar boa
colheita de algodão. Nem a gravidez alterou o bom humor de Aninha; era
um motivo de nova alegria, com a feitura do enxoval para o “Chicão novo”.
Nos dois últimos meses, começara a sentir algumas dores persistentes,
que a preocuparam um pouco. Foi ela quem sugeriu:
– Acho bom ir para a casa de sua mãe, na cidade. Não é nada de mais,
homem. Mude essa cara de quem viu fantasma. Essas coisas são assim
mesmo; quero estar perto da parteira quando o moleque decidir vir ao
mundo.
– Não é melhor um médico, Ana? Você está escondendo alguma coisa
de mim...
– Nada disso, Chicão. Um parto é a coisa mais natural do mundo. Se
houver necessidade...
Era o que devia ter feito, logo, não se fiando na conversa de Ana, da
parteira e de dona Letícia, também. Quando chegou o dia e as dores se
anunciaram, pela manhã mesmo, quis chamar o médico, Doutor Celso
Matos, que era seu parente, ainda. Só o fez às 10 horas da noite depois de
brigar com a parteira, que falava em paciência, paciência e paciência.
Depois de demorado exame, o doutor falou com ele, fora do quarto:
– A situação é muito delicada; deviam ter-me chamado mais cedo. Ela
chegou ao ponto da completa exaustão e não há, ainda, o menor sinal de
dilatação. Vou ter de operar. Acho que é difícil os dois sobreviverem.
Não pensou duas vezes:
– Salve minha mulher, doutor.
Foi uma noite longa e desesperada. Gritos, gemidos que lhe
dilaceravam a alma, correrias, soluços, choro. E, afinal, o desfecho que não
queria admitir, gritando como um louco, desesperado e infeliz: a morte de
Aninha e da criança, também. Um menino. Que não chegou a viver.
Fazia oito meses e parecia ter sido ontem, agora, nesse instante.
Perdera o gosto de viver. Trabalhava, por hábito, e por uma questão de
dignidade. Passara um tempo bebendo como um perdido, mas reagira, pois
a bebida só aumentava sua infelicidade. Na fazenda se dedicava ao trabalho
mais pesado, destocando, limpando a terra, preparando-a para receber a
sementeira: o algodão, o milho, o feijão, espaçadamente. Eram bons os
sinais do céu: uma barra escura, de nuvens pesadas, aparecia no nascente; e,
à noite, a lua estava cercada pela bolandeira, um círculo de cor rosa, azul,
roxa, que a envolvia. Examinara o leito do rio ainda seco, e não vira as
formigas de roça se concentrando por ali, o que segundo seu pai era um
bom sinal de inverno.
Pensava, às vezes, ao voltar do campo: para que trabalhar? Ana, sua
amiga, não o estava esperando mais, ao cair da tarde, com seu banho
preparado, sua roupa de mudar e uma fumegante caneca de café. Sua vida
era a sucessão de dias e noites iguais, amargas, infindáveis. Nunca mais se
deitara na cama de casal. Passara para a rede, que armava na sala da frente,
mas ela mesma estava impregnada do cheiro do seu corpo, das recordações
mais dolorosas. Quantas vezes não se tinham amado na rede grande,
transportando o céu para dentro das quatro paredes da pequena casa!
Quando adormecia, a mulher procurava a cama, pois aprendera a dormir
daquele jeito, em Fortaleza, enquanto ele, pelo hábito da vida sertaneja,
gostava mesmo era da rede, dos embalos, do rangido dos armadores. Tudo
mudara: ela se fora para sempre. Tinha horror desse sentimento: fora
melhor, mesmo, a criança não ter sobrevivido, pois não poderia amar,
nunca, quem trouxera a morte de Ana.
Conheceu Ana no casamento de seu irmão, Eduardo, que saíra de casa
aos sete anos e fora morar com o tio Felipe, sucedendo-o na propriedade
duma farmácia no centro de Fortaleza. Dona Letícia, sua mãe, ainda
pensara em acompanhá-lo, num gesto de atenção ao filho que a
“abandonara”, mas findou desistindo, à última hora, por motivos de saúde.
Mandou um presente, cuja escolha ia ficar a cargo de Chicão: a mobília da
sala de jantar ou do quarto de dormir.
Mas o noivo já comprara tudo. Ana, amiga e parenta da noiva, Djanira,
se ofereceu para ajudar Chicão a comprar, dentro da quantia estipulada, os
presentes para o novo casal. Chicão gostou do jeito da moça, do seu
desembaraço, dos olhos castanhos, do corpo bem feito, do modo de falar e
de andar, do sorriso doce e meigo. Foi ela quem sugeriu, também, o
presente de Chicão. Nesse dia, que era uma sexta-feira, bem como no dia
do casamento, conversaram bastante, parecendo velhos conhecidos.
Estava conversando, animado, com Ana, num canto da sala, quando
Eduardo o arrastou, no almoço do casamento, para uma roda onde
pontificava o jornalista Leonardo Mota. De lá fez um sinal para Ana, dando
a entender que não iria demorar-se. O jornalista, que era um conversador
admirável, contava histórias sobre cangaceiros, assombrações, furtos de
moça, desafio de violeiros. Virou-se para Chicão:
– Eduardo me falou que você tem algumas histórias boas...
– São histórias de matuto.
– Essas é que são boas, meu rapaz. Vamos, conte uma, pelo menos,
pois já estou de goela seca.
Chicão não se fez de rogado:
– Vou repetir a história que estava contando ainda há pouco. Tomás é
um morador da nossa fazenda. Homem bom, calado, trabalhador, de poucos
amigos e de conversa rara. Sua mulher, Deodora, o ajuda na lida do campo
e é uma boa dona-de-casa. Todo ano, invariavelmente, Dora aparece de
barriga grande. O filho nasce sem problema, normalmente, mas tem vida
curta. Vai definhando, parece que não tem tutano para viver, e morre no
mesmo ano do nascimento. Um dia, resolvi conversar com Dora, com a
intenção de levá-la a um médico, pois não era normal o que estava
acontecendo com as crias dela. É muito difícil falar com uma sertaneja
sobre esses assuntos. Fui, com muito jeito, conversando sobre o tempo, a
plantação e, por fim, toquei no caso dos meninos que não conseguiam viver.
Em determinado momento, perguntei-lhe se ela amamentava as crianças, ou
se não aparecia leite. Disse, nessa altura, que tivesse confiança em mim,
que era amigo de Tomás e dela, também. Com os olhos baixos, torcendo a
barra da saia, confessou: “– Leite eu tenho, seu Chicão, e muito. O negócio
é Tomás.” Não tendo alcançado o que quisera dizer, indaguei: “– Que tem
Tomás com isso. Ele não deixa você amamentar as crianças, é isso?” “–
Não senhor, não é isso; ele é doido pelo meu leite e mama antes dos
meninos, sobrando pouco pros bichinhos...”
Deixou o pessoal sorrindo e foi procurar Ana. Ela já tinha deixado a
festa. Viajou no dia seguinte, com a imagem da moça morena
acompanhando-o durante a longa viagem de volta. Escrevera, depois, ao
irmão, falando no casamento e contando as novidades a respeito da
propriedade como, habitualmente, fazia. Na carta pedia à cunhada, Djanira,
notícias a respeito de Aninha. Não foi pequena a surpresa ao receber um
bilhete da própria Ana, brincando com ele e agradecendo, de coração, as
lembranças enviadas.
Na primeira carta que fez à moça, embora arrodeando um pouco,
confessou seus sentimentos:

ANA.
Acredite ou não, desde o dia do casamento de Eduardo e
Djanira que não consigo tirar você de minha cabeça. Por que
dizer isso, se não posso esconder que sou um “beradeiro” sem
futuro, sócio de uma pequena fazenda nos confins da Paraíba?
Ouvi as palavras com que você se referia à sua profissão de
professora, ao gosto que tinha em ensinar, em ver o progresso dos
alunos, em ajudá-los na descoberta de suas inteligências e dos
conhecimentos pouco a pouco antevistos e conquistados. Tudo
isso ficou girando na minha cabeça, mas só por alguns instantes,
pois o que ficou, mesmo, impressa no meu coração, foi você, seu
olhar, seu modo de sorrir, sua graça, seu encanto, sua beleza.
Antes de escrever estas linhas, pensava: confessando isso à
Aninha eu alivio o coração e me curo, talvez, dessa saudade a
que você não deu motivo. Pura ilusão: criei uma nova aflição,
que é o receio de molestá-la. Nem mesmo sua carta, tão gentil,
tão alegre, tão parecida com você, tentando jogar gelo em brasa,
me impediu de sonhar que um dia você pudesse ser minha
namorada, minha mulher.
Não sei como terminar a carta. Talvez lhe dizendo, me
perdoe.
Francisco de A. Ferreira (Chicão).

Já não esperava mais resposta da moça. Ao chegar em casa, vindo da


fazenda, sua mãe lhe falou:
– Há um envelope, com letra de mulher, em cima da mesa. Namorada,
Chico?
Reconheceu a letra forte, sem arabescos, de Ana. Respondeu à mãe:
– Uma amiga de Djanira. Namorada? Não, mamãe; mas, na verdade,
quisera que fosse.
– Ora, meu filho! Quem deixaria de lado um rapaz bonito, bom e
trabalhador como você?
Sorrindo do entusiasmo da mãe, sentou-se na sala de visitas e abriu a
carta de Ana:

CHICO.
Respondo sua carta de 20 do mês próximo passado. Antes do
mais, nada tenho a lhe perdoar. Muita gente gostaria de ter um
admirador como você. Agradeço de coração suas palavras. Não
quero, de nenhum modo, ser causa de aborrecimentos para você.
Pretendo conservar o privilégio de ser sua amiga; por isso, tenho
de ser sincera. Você tocou num ponto essencial: minha profissão.
Não é vaidade, pois não teria de que envaidecer-me. Moça pobre,
criada, por favor, em casa de parentes, a carreira me deu certa
confiança, uma não-dependência dos outros para viver, mesmo
modestamente. Não penso, assim, em deixar de ensinar. Vi você,
sem você notar, e gostei muito do seu jeito natural, simpático.
Continue sendo meu amigo; é uma alegria contar com sua
amizade.
Sua amiga,
ANA.
Decidiu ir a Fortaleza. Foi, viu Ana e casou. Ninguém podia ser mais
feliz do que ele. Depois...
Passava o tempo todo na fazenda, só vindo à cidade aos sábados. A
mãe reclamava, dizia que ele precisava divertir-se, conversar com gente da
mesma idade; que estava se matando de tanto trabalhar, fazendo serviço que
podia passar para outro. Perguntou:
– Que serviço, mãe? Alguém anda me espionando?
– Fazer cerca, por exemplo. Arranje gente para executar esse trabalho.
Sei que você quer encher o tempo, que isso é uma forma de esquecer...
– Mamãe, me faça um favor: deixe que leve a minha vida como achar
melhor.
– Não, meu filho, não posso deixar que você estrague sua vida...
– Mas trabalho é bom, é salutar. Não faz mal a ninguém.
– Você sabe que não é o trabalho que me preocupa. Eu só tenho você
no mundo, meu filho. Nós, mães, somos egoístas, mas não me incluo entre
as piores. Sempre respeitei sua vontade. Seu casamento, mesmo repentino
como foi, não me contrariou, pois você estava procurando sua felicidade,
seu destino. Sempre quis ser amiga de Ana, mas ela achava melhor vocês
viverem na sua própria casa. Não me opus a isso, nunca, você sabe. Você
não pode ter queixas de mim a esse respeito...
Nunca vira sua mãe falar tanto. E ela tinha razão: estava levando a
vida dura que levava para esquecer Ana.
Dona Letícia fora muito compreensiva, tratando sua mulher com
amizade, mas respeitando seus desejos e sua vontade. Mudou o tom de voz:
– A senhora tem razão, mãe. Mas, se não tivesse a vida tão ocupada,
rebentaria.
– Eu compreendo, meu filho; já passei pelo seu sofrimento. Perdi seu
pai aos 23 anos de idade. Ele foi para a Amazônia e de lá não mais voltou.
Eduardo tinha um ano e estava grávida de você. Respeito sua dor, seu
desespero, e acho que se justifica, até certo ponto, seu isolamento. Mas já
está passando da conta, meu filho. Ou não existo para você? Já pensou nisso
alguma vez?
Em verdade não pensara em sua mãe. Culpa dela, talvez, do seu ânimo
forte, de sua frieza (não teria sido isso que levara seu pai a tentar a aventura
da borracha?), da sua conformação com as coisas da vida. Era outra pessoa
a que falava com ele, naquele instante, sem choro, sem lágrimas, mas com
sentimento e mágoa. Ficou surpreendido e chocado, sem saber o que
responder. Estava ceando. Ficou com um pedaço de queijo de qualho no
garfo, entre o prato e a boca, durante algum tempo. Não comeu mais.
Levantou-se e foi para a rua. Não havia, no seu gesto, irritação ou rebeldia.
Parecia um autômato a pessoa que percorria a cidade, àquela hora quase
sem vivalma. Alguém lhe deu boa noite e ele não respondeu, pois estava
longe, muito longe dali. Descobrira uma verdade resultante da queixa de
dona Letícia. A mãe não chegara a dizer isso, mas surgiu, na sua mente
cansada e maltratada, um clarão na noite vazia: Ana não haveria de querer
que ele transformasse sua vida naquele pesadelo, no sofrimento
irremediável, num desengano feroz e absorvente. Quase se choca com
Manoel Santana, que vinha caminhando em sentido contrário, na calçada
estreita:
– Hein! Chicão! Tudo bem, homem?
Acordou de sua abstração e viu, com alegria, que era Manoel Santana
que estava falando com ele.
– Oh! Manoel, como vai você?
– Vou bem, Chicão. E você? Dizem que está transformando a fazenda,
é verdade?
Espantava-se de estar conversando, ali, naquela hora, de forma
desprevenida, natural:
– Conversa, Manoel. Tenho trabalhado muito, trabalhado demais,
mesmo, mas o rendimento é o de sempre, nesse sertão brabo. E o negócio,
como vai?
– Vou levando. Estou vendendo ferragens e materiais para construção,
numa pequena loja que abri há pouco tempo.
– Muito bem, Manoel. E a olaria? Fechou?
– Não, Chicão. Continuo fazendo potes, panelas, jarras. E estou
pensando em fabricar telha, pois toda a telha aqui empregada vem de fora,
sabia? Está magro e queimado como um matuto do eito.
– Mas é isso que sou, Manoel. E ou a gente fica na frente do negócio,
ou ele vai de águas abaixo.
– Pois, Chicão, fiquei satisfeito em revê-lo. Pode crer.
– Eu também, amigo.
Surpreendeu-se a conversar, assim, revelando interesse pelos outros.
Gostava de Manoel Santana, admirando seu esforço em continuar
trabalhando na pequena olaria de seu Antônio. Devia ter o quê? Uns vinte
anos, talvez, mas era um lutador.
Passou pelo Cinema Moderno, na rua Sete de Setembro, que levava
um filme de Tarzan, com Elmo Lincoln. Já tinha começado, mas entrou,
assim mesmo, no cinema. Queria limpar a cabeça.
Quando voltou para casa, sua mãe já estava dormindo. Amanhã falaria
com ela. Melhor, ficaria em casa todo o domingo, que era o melhor modo
de dizer que tinha ouvido suas palavras.
Quem apareceu, pela manhã, foi Raimundo Anastácio para acertar as
contas. Apreciava esse homem calado, de fisionomia fechada, que parecia
ter vencido a resistência da cidade em aceitá-lo como um dos seus
habitantes. A condição de ex-cangaceiro lhe trouxera aborrecimentos
terríveis. Consciente ou instintivamente, a terra recusara sua participação na
vida da comunidade. Primeiro, fora obrigado a fechar a oficina de selas,
arreios, roupas de vaqueiro e outros objetos de couro; segundo, quase o
boicotaram, totalmente, no seu novo negócio: a venda de quartos de
cabritos ou carneiros pelas portas das casas. Dona Letícia se apiedara do ex-
cangaceiro e lhe emprestava dinheiro ou vendia gado miúdo para suas
transações. Por isso, o homem era profundamente agradecido à mãe e ao
filho. Quando Ana morreu e ele se enfurnou na fazenda, Raimundo
Anastácio passou lá bem uns quinze dias com prejuízo dos seus negócios,
conversando, obrigando-o a comer, andando com ele pelo campo.
Agradecia ao ex-cangaceiro não ter ido dessa para melhor. Ninguém pedira
ao “índio” para fazer aquilo. Ou sua mãe insinuara alguma coisa?
Gostava muito do velho índio, que, mesmo depois da crise, apareceu
na fazenda, fazendo-lhe companhia, contando histórias de sua vida, em que
sempre saía perdendo. Ele ouvia, ouvia, e mal falava. Percebera, depois,
como essa companhia fora importante para sua recuperação. Nunca tivera
uma palavra de agradecimento para o amigo, mas este não andava atrás de
agradecimentos. Revoltava-se, assim, quando alguém da cidade,
maldosamente, afirmava que seu Raimundo tinha ligações com seus antigos
companheiros do cangaço. E defendia seu amigo com vigor e raiva. Sabia
que o “velho” desaparecia dois ou três dias, às vezes, procurando gado mais
barato para fazer carne-seca. Andava uma légua quando sabia da existência
de uma vaca de peito perdido. Sabia que o índio era esperto, vivo, vivido,
mas nunca um traidor, um homem de duas caras. Confiava nele cegamente.
Naquela manhã notou que seu Raimundo estava muito preocupado.
Pagou o que devia, despediu-se, quando Chicão o abordou:
– Você já tem cara fechada. Não precisa exagerar, seu Raimundo.
Alguma coisa errada?
Fora pegado de surpresa: Chicão estava falando. Mais: estava dizendo
uma brincadeira com sua cara. Olhou espantado para o rapaz, desanuviando
um pouco a fisionomia com a expansão do amigo.
– Dá pra ver, assim, que estou preocupado?
– A mim você não engana. Alguma doença? Dona Dorinha está bem?
– Tá tudo bem, Chicão; quero dizer, está tudo muito ruim.
– Uma coisa ou outra, seu Raimundo.
– Quanto a mim e à patroa, tudo bem. O ruim é saber que os
cangaceiros estão se preparando para atacar a cidade e o povo vive na maior
indiferença do mundo. O pobre do Tenente Delegado está no mato sem
cachorro, com sete soldados para defender a população. Uma noite dessas
foi feita uma reunião na Prefeitura. O Prefeito Sabino Rolim fez um apelo
para ajudar o Delegado e sabe qual foi o resultado?
– Sei – respondeu Chicão. – Ninguém se manifestou. Não é frouxidão;
é que ninguém acredita que os bandidos venham até aqui. Os boatos
anestesiaram o instinto de sobrevivência do povo.
– Você me perdoe, Chicão. Não tem nada de instinto; o que há é medo.
Pode ser que a boataria seja responsável por alguma coisa...
– Como é que se formou esta certeza, seu Raimundo?
Omitindo a morte do cangaceiro, Raimundo Anastácio contou a
viagem a Alagoinha, o incidente com o cabo José Gonçalves e o bilhete
encontrado no bolso do morto. E para que o rapaz não pensasse que estava
delirando, falou no compadre Serafim e deu a data do ataque: 28 de
setembro de 1926.
– Que dia é hoje?
– Hoje é 17.
– Faltam onze dias, então?
– Onze dias.
– Quantas pessoas há no destacamento?
– Dez: o Tenente, o Sargento, o Cabo e sete soldados.
– Está tudo perdido. Os bandidos vão fazer aqui o mesmo que fizeram
em Sousa, o ano passado.
– O ano retrasado: 1924. Mas o Delegado tem feito alguma coisa. Está
treinando alguns voluntários. Conta com algumas pessoas que têm alguma
experiência no ramo: eu, Romeu Cruz, Marechal, Manoel Nóbrega, José
Teberges, dois dos empregados do Engenheiro das Secas.
Chicão ficou algum tempo parado, olhando para nada, a muitas léguas
dali. Depois, voltando ao presente, exclamou:
– Mas vocês vão ser massacrados! Sete gatos pingados contra 30 ou 40
cangaceiros. É uma loucura. Não pode ser. Vou procurar esse Tenente.
Como é o nome dele?
– Tenente Elino. Mas, se é uma loucura, por que você quer se meter no
fogo?
– Querer me meter no fogo uma ova! Eu estou no fogo; eu sou daqui,
nasci aqui. Vou me colocar à disposição do Delegado. Quer ir comigo, seu
Raimundo?
– Vou, Chicão, com muito gosto. Mas pensou bem no que vai fazer? E
dona Letícia, sua mãe, que vai dizer disso?
– Vai concordar comigo, homem.
Como se estivesse esperando ser chamada, dona Letícia apareceu. E
falou para seu Raimundo:
– Meu filho está certo.
– Mas dona Letícia...
Chicão interveio:
– Não tem mais nem menos. Deixe seu espanto. Não estou tomando
essa atitude por bravata; estou com medo; sei que estou arriscando minha
vida. Não acontecerá a mesma coisa se eu ficar parado, esperando a visita
de Lampião?
– De Sabino, Chicão.
– De Sabino ou de quem diabo for. Mãe, me desculpe. Vamos, seu
Raimundo?
A Delegacia estava cheia. Será que o “índio” estava enganado? Era
gente querendo saber notícia ou confirmação sobre o ataque dos
cangaceiros, se podiam viajar para as cidades mais próximas. Ninguém,
entretanto, se oferecia para ajudar. O Tenente falou sem irritação:
– Não sou adivinho, nem profeta. Estou me preparando, com o que
tenho, para defender a cidade. Quem de vocês quer ajudar?
Um matuto mais teimoso insistiu:
– Posso viajar para São José de Piranhas?
– Pode, se é isso que quer ouvir.
– Mas não há perigo, Delegado?
– Não sei lhe dizer. Sou de opinião que cada um deve ficar onde está.
– Mas eu estou pagando pensão, Delegado, e não tenho recursos.
Chicão e Raimundo Anastácio chegaram perto do Tenente. O índio
falou:
– O Chicão quer falar com o senhor.
Este foi logo dizendo:
– Vim me oferecer para ajudar o senhor na luta contra os cangaceiros.
Sou proprietário, sei atirar...
– Conheço o senhor, seu Chicão. Passei o dia a ouvir queixas e
desculpas; até que enfim apareceu alguém, uma pessoa que acha necessário
lutar para defender a terra. Alguém mais quer assumir o mesmo
compromisso? Se não, vão para suas casas ou para onde bem quiserem.
Entenderam?
O pessoal foi saindo, devagar, alguns com a cabeça baixa,
encabulados, olhando de viés para o rapagão que estava querendo bancar o
valente.
Quando saíram todos, Chicão explicou ao Delegado:
– Quero que o senhor saiba que não estou assumindo uma atitude
precipitada ou irrefletida. Acho que ficar em casa é tão perigoso como
enfrentar os bandidos. Faço isso com medo, compreende o senhor?
– Compreendo, seu Chicão.
– Chicão, só, Tenente.
– Pois é, Chicão. Com medo estamos todos, talvez eu mais do que os
demais, pois minha responsabilidade é maior. Acho, porém, que, se nos
unirmos, poderemos fazer com que os cangaceiros desistam do propósito de
saquear a cidade. Tem sido assim em toda parte onde há reação, mesmo
fraca.
Raimundo entrou na conversa:
– Ele veio porque quis. Não influí na sua decisão.
– Pelo contrário, fez algumas ponderações desanimadoras.
O Tenente amenizou a conversa, perguntando a Raimundo se ele
estava bancando o bandido.
– Conversa de Chicão, Delegado. Disse que queria vir falar com o
senhor e estou aqui com ele.
O Cabo Zé Gonçalves entrou, alvoroçado, na Delegacia.
– Uma briga feia lá na Rodagem. Com morte. Posso levar alguém
comigo?
– Pode.
Virando-se para Chicão:
– É isso toda semana. A cachaça mata mais gente do que Lampião.
– Só quando não se sabe tomar, Tenente. Agora mesmo, depois dessa
conversa, vou tomar uma pinga. Raimundo, você tem cachaça em casa?
– Não bebo, você sabe.
– E para os amigos? – perguntou Chicão.
– Os amigos vão beber noutro lugar.
Chicão despediu-se do Delegado e do “índio” e foi para casa. Uma
lassidão avassaladora tomou conta de seu coração, de sua cabeça, de suas
pernas, até. Havia sido precipitado? Não devia ter examinado com mais
frieza a situação? Quem sabe se já não estava mudando?... Teria sido a
conversa com a mãe? Procurava, inconscientemente, na luta desigual, uma
solução para seu desespero? Jamais teria coragem de se matar. Nem nos
momentos mais angustiantes, os primeiros dias após a morte de Ana,
chegara a pensar no assunto. Era contra sua natureza, contra a força que
emanava dos seus músculos, do seu sangue, dos seus nervos, dos seus
órgãos. Tinha medo. Dissera a Raimundo Anastácio e ao Delegado. Medo
de morrer? Ou medo de não morrer?
Dona Letícia era muito religiosa. Quando ceava, na noite de 23 de
setembro, disse ao filho, com muito jeito:
– Chico, como você sabe, amanhã faz um ano que Ana morreu. Pedi
ao Padre Adonias para que a missa de amanhã fosse celebrada em intenção
dela. Você não foi à missa de sétimo dia, nem à dos 30 dias. Quero lhe
pedir, em nome de sua mulher, que vá, amanhã, à igreja comigo. Tenho
certeza de que ela vai gostar de ver você na igreja, rezando por ela.
– Mamãe, a senhora sabe...
– Sei que você considera a missa um ato social; que ninguém
comparece à igreja por sentimento verdadeiro de amizade; mas não é pelos
outros, é por ela que você deve ir. É um pedido que lhe faço.
Demorou a responder. Ultimamente andava se lembrando muito de
Deus. Devia ser o receio de morrer. Tentara umas orações, mas, no final,
ficava na intenção. Sua mãe esperava, com um ar aflito, sua resposta.
– Vou, mãe. Vou pela senhora, pelo seu pedido.
– E por Ana, meu filho; pela alma de sua mulher. Ela ainda existe, meu
filho.
– Já lhe disse que ia, mãe.
Havia pouca gente na igreja: as pessoas de amizade de dona Letícia e
dois ou três parentes. Assistiu à missa, calado, imóvel. Mas por dentro,
inquieto, constatara que sua dor já não era a mesma; doía, ainda, a
lembrança de Ana, mas era uma dor alongada, espalhada, que não lhe
tomava a respiração como antigamente. O padre Adonias não falou.
Durante a celebração, mencionou o nome de ANA algumas vezes: ANA,
ANA, ANA. Sentiu uma vontade enorme de chorar, mas se conteve. No fim
da missa, algumas pessoas vieram falar com ele e com sua mãe. Viu bem
dona Laura e suas filhas: Irene e Ilina. O sol da manhã brincava nos cabelos
da menina mais clara e criava um halo de ouro em torno dela.
Sentiu um choque quando Ilina falou com ele. Reagiu, pensando: “Mas
é uma menina!” Ela apertou sua mão e, se falou, não percebeu. Parecia, no
entanto, que ela estava mais perto dele, do seu sentimento, do que qualquer
pessoa. Reteve, sem querer, a mão de Ilina, distraído. Ela olhou para ele,
espantada. Os olhos azuis, abertos, surpresos, é que o recolocaram na
realidade. Encabulou-se com a distração, pensando que os presentes podiam
ter percebido o choque que levara. A imagem de Ilina, dourada, banhada de
luz, tocara as fibras adormecidas do seu coração. Mas seu agradecimento
foi convencional:
– Obrigado, Ilina.
Continuaram os cumprimentos, pois tinha aparecido mais gente na
igreja, mas todo mundo se parecia com Ilina, os seus olhos azuis, a face
dourada, a boca pequena e carnuda articulando seu pesar.
Mesmo em casa, ainda perdurava tanto a impressão violenta que
sofrera como o constrangimento em pensar que alguém tivesse percebido
alguma coisa. Que importava? Dona Letícia avisou que o café estava na
mesa. Os gestos habituais da mãe, colocando o leite e café na sua xícara,
tranquilizaram seu espírito.
Foi para o quarto e, só, recordou o instante iluminado que vivera. Pôde
admitir que tudo aquilo era insensato, pueril; um sonho retardado da
adolescência que já se fora; mas a verdade é que se comovera, no momento,
e, agora mesmo, recordando, sofria a dor e a ilusão de um sentimento
perdido. Estava ficando maluco duma vez. Ora, além de Ilina ser uma
criança, ele era um... viúvo. Lembrou os olhos azuis, vivos, profundos,
surpreendidos com o gesto dele, segurando, sem querer, a mão da moça.
Teria ela percebido alguma coisa? Ou atribuía a distração ao seu pesar?
Pela primeira vez, nos últimos dias, começou a achar precipitado o
gesto de oferecer-se como voluntário para lutar contra os cangaceiros. Era
medo de morrer o que perturbava, agora, o coração insensato? Mas, nesta
altura, não podia recuar. Precisava, entretanto, ter uma conversa com
Raimundo Anastácio. Queria lutar, mas não queria morrer. Precisava
aprender a defender-se. Ninguém melhor do que seu velho amigo poderia
dar-lhe os conselhos de que precisava.
Antes do almoço, procurou Raimundo Anastácio. Recordou a
resistência oferecida pelo amigo quando se decidiu a falar com o Tenente
Elino.
O “índio”, que tinha o hábito de almoçar cedo (“Às cinco horas já
estou no mundo”, dizia), às 11 horas palitava os dentes fortes e separados.
Quando Chicão apareceu, foi logo perguntando:
– Alguma novidade, Chico? (Só sua mãe e Raimundo o chamavam
assim).
– Novidade? Não; não se trata de novidade. Queria conversar com o
senhor, com a franqueza de sempre. Estou achando, pelo que ouvi, um
pouco solto, ou frouxo, o plano de defesa do Delegado.
– Que é que você quer dizer com isso?
– É que ninguém sabe o que vai fazer exatamente, onde vai ficar, ao
lado de quem vai lutar...
Anastácio entendeu, logo, que as dúvidas eram do próprio Chicão.
Reagiu quando o moço, impulsivamente, decidira oferecer seus serviços ao
Delegado. Passando, ainda, por momentos difíceis, pois era, ainda, um
inconformado com a morte da mulher, Chicão tomara, a seu ver, uma
atitude precipitada. Conhecia bem o filho de dona Letícia. Agitado, falando
alto, gostando de nomes feios, ele sabia que Chicão era um coração bom.
Só tinha alvoroço, zoada, exaltação, mas no íntimo era uma natureza boa.
Acontecia, agora, o que previu: na hora de pensar em matar, revelaram-se as
suas entranhas, tudo o que havia de bom e delicado no rapagão barulhento.
Tinha que dizer alguma coisa. Falou:
– Não é possível estabelecer nenhum plano para enfrentar os
cangaceiros. Eles também não agem a não ser em função do momento.
Pensam, antes, ligeiramente, como devem atacar, mas deixam para a hora o
que têm de fazer. Tudo neles é de surpresa. O Tenente não vai indicar para a
gente um modo único de lutar. Tem coisas assentadas na cabeça, mas o que
terá de fazer será na hora da briga. Conversei com ele sobre tudo isso mais
de uma vez.
E, como se quisesse atenuar as dúvidas de Chicão:
– Vamos ficar juntos na hora da briga. Tenho prática e posso lhe
ajudar, já que é sua primeira luta.
Chicão reagiu, percebendo onde seu Raimundo queria chegar:
– Não é isso, seu Raimundo. Isto é, acho que o Delegado é quem vai
dizer onde cada um fica. Claro que se ficar com o senhor ou com Romeu é
melhor pra mim...
– Não há lugar melhor, nem pior. É tudo ruim, meu filho. É um
inferno. Mas o difícil é começar. Dados os primeiros tiros, o resto é fácil,
você vai ver. Não é consolo, mas a gente morre sem sentir.
Disse a seu Raimundo que precisava ir à fazenda no dia seguinte,
sexta-feira, 24 de setembro. Precisava dar algumas ordens ao vaqueiro. O
“índio” velho concordou:
– É bom, Chico. Mas volte logo. Sábado tem uma reunião importante
em que algumas dúvidas, como as suas, serão discutidas. Você, se achar
conveniente, pode dar seus palpites.
Bem cedo viajou para a fazenda.
Não queria assombrar o vaqueiro Malaquias, nem dona Zezé com seus
nove filhos, mas tinha o dever de prevenir. Foi até a casa do vaqueiro e
ficou impressionado com a confusão e a sujeira reinantes. Ana tinha lhe
pedido autorização para fazer mais um quarto e ajeitar a casa, achando que
a vergonha não era para os moradores e, sim, para os donos. Voltara tudo ao
que era antes... Depois falaria nisso com Malaquias. A conversa agora era
outra.
– Malaquias, vou passar uns cinco dias sem vir à fazenda. Estão
dizendo que os cangaceiros vão atacar a cidade. Vou ajudar o Delegado. Eu,
seu Raimundo Anastácio e outros.
Zezé, com um menino escanchado nos quartos e outro por nascer, fez
uma pergunta que facilitou o que Chicão queria dizer:
– Pode ser que os cangaceiros passem por aqui?
– Não sei lhe dizer, Zezé. Pode ser que sim e pode ser que não.
– E a gente, seu Chicão, que vai fazer? – perguntou Malaquias.
– Nada. Fiquem aqui calmos, no seu canto, que eles não mexerão com
vocês. Deixe eles entrarem de casa a dentro, se servirem do que tiver,
quebrarem os móveis, essas coisas. Se pedirem para Zezé cozinhar alguma
coisa, Zezé cozinha. Entendeu, Zezé?
– Mas, seu Chicão, e esse meu bucho? E se com o medo eu tiver
menino antes do tempo?
– Isso não acontecerá, Zezé, tenho certeza. Mesmo porque é muito
provável que eles escolham outro caminho. Façam o que eu disse e nada de
mal acontecerá.
Malaquias tirou o chapéu de couro, coçou a cabeça, virou-se para
Chicão e arrematou:
– Seja o que Deus quiser. Se eu tivesse uns quatro homens como eu, a
coisa podia ser diferente.
Zezé atalhou a valentia do marido:
– Deixe de besteira, Malaquias. É como seu Chicão disse e acabou-se
a história.
Chicão ficou pensando: “E se eles pedirem para ir para Cajazeiras, o
que posso fazer?” Mas o vaqueiro era responsável, sabia que não podia
deixar a fazenda por causa do gado, principalmente os bezerros novos que
iam aparecer.
Malaquias deu a palavra final:
– Fique sem cuidado, seu Chicão. Vou fazer como o senhor mandou,
tim-tim por tim-tim. Mas vou pedir a Deus que leve essas desgraças para
bem longe daqui. E o senhor, patrão, tenha cuidado com sua vida. O senhor
é obrigado a isso?
– Não, Malaquias; obrigado mesmo não sou. Mas se a gente toda se
encolher, os bandidos vão fazer miséria, você compreende?
Malaquias balançou a cabeça pra baixo e pra cima, concordando.
No cavalo baixeiro, que parecia satisfeito no seu ofício, em passo
ligeiro, macio, confortável, sentiu, de novo, que redescobrira o gosto pela
vida. E foram uns olhos azuis, inocentes, os responsáveis por esse
sentimento diferente, simples e profundo. Engraçado é que a dona deles,
mais menina do que mulher, não sabia ter realizado o milagre de sua
reconciliação com a vida, com a natureza. Um pedaço de estrada, um
juazeiro verde, solitário, os pássaros cantando, o céu azul ofuscante, o
cheiro forte do suor do cavalo, as nuvens brancas, afinal, tudo era novo,
belo como a graça de viver.
Constatava agora, na marcha macia do cavalo, que sentia menos
angústia, menos sofrimento, na saudade de Ana. Quando chegava à
fazenda, mesmo muitos meses depois da sua morte, a presença de Ana, na
casa que arrumara e criara com suas mãos, era um sentimento palpável,
forte, doloroso. Dessa vez, lembrava-se dela em tudo que via e tocava (não
entrara no quarto de dormir), mas de modo diferente, sem angústia, sem
dor, sem agonia. Era efeito da luta próxima com os cangaceiros, ou era a
ilusão de que Ilina aparecera na sua vida para integrá-lo na realidade?
Ria do fato de estar enamorado por alguém que não sabia de sua
existência.
Distraía-se olhando, nos dois lados da estrada, a terra ora castanha, ora
vermelha, ora cinzenta, as feridas abertas no chão dilacerado, parecendo
doente, condenada a morrer como um ser abandonado pelo destino. As
árvores mirradas, secas, mostrando os galhos nus, como braços decepados,
nem sombra podiam oferecer. Misturavam-se com as pedras inumeráveis as
cercas irregulares, tortas, marcando a posse de pedaços do deserto. As aves
retardatárias, em vôos isolados, pareciam sustar, por um instante, o ato final
da morte do dia.
Lá estava, adiante, sua terra, sua cidade, que só agora, na hora do
perigo, percebia que amava. Via as casas humildes, aconchegadas pela
pobreza, o colégio no alto, a lâmina azul-escura da água do Açude Grande
e, mais próximas, como braços levantados para o céu distante, as duas
torres da Igreja Matriz.
Nove

O TENENTE Elino Fernando anunciou que iria fazer uma visita às


autoridades. Raimundo Anastácio sugeriu:
– É bom ir ver Dom Moisés Coelho. Não tem arma, nem munição, mas
tem reza forte. E é um homem bom.
Era o dia 27 de setembro de 1926, segunda-feira, 9 horas da manhã.
Antes, decidiu falar com Marcolino Diniz. Embora não dispusesse de
provas para incriminar o comerciante, pelo seu envolvimento com Sabino,
poderia, com o encontro, evitar qualquer outra tentativa de comunicação
entre os dois. À medida que se aproximava do estabelecimento do amigo do
cangaceiro, achava que seria inútil a conversa. Que elementos novos tinha
Marcolino para avisar seu amigo? Que alguns homens, fora da Polícia,
tinham sido treinados para defenderem a cidade? Isso o celerado já sabia.
Não; era uma questão de capricho. Queria mostrar ao comerciante que
não era o imbecil que ele imaginava.
Marcolino estava na loja, detrás do balcão, conversando com duas
pessoas. Se o diabo tivesse surgido, na ocasião, não teria espantado tanto o
comerciante. Mudou de cor, ficou vermelho, cinzento, branco. O Tenente
falou:
– Marcolino, tenho assunto particular a tratar com o senhor.
Os dois fregueses se retiraram imediatamente.
Já refeito, aparentando serenidade, perguntou se o Delegado não queria
sentar-se.
– Não – foi a resposta seca do Tenente. – Nossa conversa vai ser breve.
Trata-se do seu protegido, o cangaceiro Sabino Gomes.
O homem era osso duro de roer. Não demonstrou o menor sinal de
irritação ou surpresa. O Delegado continuou:
– Sei que o senhor tem ligação com Sabino, que está ameaçando
assaltar a cidade.
– Alto lá, seu Tenente! O senhor está fazendo acusações sérias contra a
minha pessoa. Sou um comerciante estabelecido, pago em dia meus
impostos e não admito esse tipo de insinuação. Sabino foi meu empregado
há muito tempo. Todo mundo aqui sabe do fato. Há crime nisso?
O vento abriu o paletó de Marcolino e um “38” apareceu na sua
cintura. O Tenente, desarmado, não se impressionou com a desvantagem.
Estava contando com a luz do dia e com os curiosos que se postaram na
calçada da loja do Coronel Juvêncio Carneiro, que ficava defronte. Notou,
no fundo da loja, dois sujeitos de má catadura.
– Não estou fazendo insinuações vagas. Não faz três dias, um homem
deixou sua casa e tomou a estrada para Alagoinha. Foi detido por uma
patrulha nossa. Conduzia, ele, um bilhete para Sabino...
– Não fiz nenhum bilhete para Sabino, a quem não vejo há mais de três
anos. O senhor está me ofendendo!
Apesar do ódio que sentia, o Tenente admirava o cinismo e a
desenvoltura de Marcolino. Houvesse o que houvesse, tinha conquistado
um inimigo mortal para toda a vida. Eram os ossos do ofício. Arrematou o
diálogo:
– Ofendendo ou não, estou lhe prevenindo.
Saiu da loja devagar, mas um frio incômodo descia pela sua coluna
vertebral.
Saiu dali para o Palácio do Bispo. Dom Moisés Coelho o recebeu com
toda amabilidade. Não havia o menor sinal de luxo ou de ostentação na
Casa do Bispo. Piscando os olhos pequenos, ajeitando o anel grande que
rolava continuamente nos seus dedos, Dom Moisés era, em verdade, um
homem simples, simpático, modestíssimo. O Bispo devia saber que ele não
era católico; que não tinha obrigação de beijar-lhe o anel. Não fez Dom
Moisés nenhum movimento nesse sentido. Apertou-lhe a mão e mandou
que se sentasse.
– O Padre Gervásio me disse que o senhor queria falar comigo.
– É verdade, Dom Moisés. Já devia ter procurado o senhor. Estou
preocupado com a situação dos dois colégios da Diocese, para meninos e
meninas, ambos com internamento. Tenho seguras informações de que um
grupo de cangaceiros, chefiados por Sabino Gomes, pretende atacar esta
cidade, brevemente. Conto, somente, com sete soldados, um Sargento e um
Cabo. Não tenho condições, por isso, de oferecer proteção aos dois
colégios, entende o senhor?
– Entendo, rapaz, entendo. Mas me explique sua preocupação com os
meninos. Eles não têm dinheiro, não fazem medo a ninguém...
– O receio, Dom Moisés, é o de eles prenderem dois ou três meninos,
ou meninas, como reféns, em troca de resgate. Isso já aconteceu antes. Os
cangaceiros sabem que todos dão dinheiro para resgatar as crianças.
– Tenente: o senhor já se encontrou com algum cangaceiro? É ele um
monstro, um anormal, um desequilibrado mental?
– O senhor está fazendo essa pergunta, e eu estou me lembrando do
que diz, sempre, o Cego Alexandre, um cantador da feira do sábado.
– Já ouvi falar nesse homem. Ele tem opinião sobre o assunto?
– Ele diz, Dom Moisés, que o cangaceiro é filho da seca, da miséria,
da injustiça, da fome. Há alguns que são ruins, mesmo, mas se contam com
os dedos. A grande maioria é de homens iguais a nós, perdão, Senhor
Bispo, igual a mim.
– Igual a nós, rapaz. Sou um pobre pecador como qualquer pessoa da
minha diocese. A diferença contra mim é que a minha responsabilidade é
maior, pois tenho de rezar por mim e por eles.
– O senhor reza, também, pelos cangaceiros? Desculpe, Dom Moisés,
não devia ter feito tal pergunta.
– Não tem de que se desculpar, Tenente. A resposta é sim; eles têm
uma alma que é preciso salvar. Há, sempre, mesmo para a alma mais
fechada, para o coração mais empedernido, a possibilidade do
arrependimento. Ouvimos dos mestres e repetimos, também: a graça de
Deus sopra onde quer. Deus é o Pai; nosso e dos cangaceiros, também.
O Tenente quase esboçou um sorriso. Dom Moisés percebeu.
Perguntou:
– O senhor acha difícil admitir esse entendimento?
– Confesso que sim, mas compreendo o senhor. Estava me lembrando
duma afirmação de Raimundo Anastácio, que é rezador, não perde missa,
novena ou procissão. Ele não diz: matei um bandido. Afirma: mandei mais
um para o inferno.
– Conheço Raimundo, que é uma boa pessoa, mas nisso ele está
errado. Coitado, com a vida que teve...
Mudou de tom:
– Voltando ao problema dos colégios, está acertado que os meninos
vão para algumas casas, que os acolherão; quanto às meninas, as Irmãs
Dorotéias preferem ficar com elas, desde que protegidas.
– Já prometi ao Padre Gervásio Coelho destacar três homens pára o
Colégio das Freiras.
– Dom Moisés com a voz calma, sem nenhum toque de dramaticidade,
declarou:
– Eu mesmo vou para o Colégio das Dorotéias. Os cangaceiros me
encontrarão lá.
O Tenente Elino refletiu um pouco, antes de responder, preocupado em
não molestar o Bispo:
– Acho que a presença do senhor será de grande efeito moral. Mas,
como medida de prudência, vou destacar os três homens para ali.
– Concordo, Tenente. Para quando o senhor pensa que será o ataque
dos cangaceiros?
– Tudo indica que será amanhã.
Dom Moisés olhou para o Delegado e seus olhos pequenos piscaram
ainda mais. Levantou-se, devagar, e assim se despediu do oficial:
– Deus o acompanhe, meu filho. Você e seus homens têm a minha
bênção. Sei das dificuldades que vai enfrentar, mas o Senhor estará do seu
lado na hora da luta.
Amanhã era o dia. Por que não hoje? Quem sabe se Raimundo
Anastácio não havia misturado as datas? Não, ele falara com tanta firmeza,
repetindo, sempre: 28 de setembro de 1926. Não queria humilhar o “índio”
com sua dúvida como se não confiasse mais na cabeça dele. Anastácio era
uma pessoa simples, mas cada um tem sua vaidade: a do seu amigo era o
bom funcionamento das faculdades mentais, a preocupação de não parecer
estar ficando velho ou gagá. Mas setembro e 27 se aproximavam... pelo
sete. Não, a confusão só existia na sua memória.
Eram 10 e meia da manhã. O café “Ponto-Chic” estava cheio de gente.
Viu os cabelos cor de fogo de Chiquinho Andriola e a gesticulação peculiar
de quando contava uma de suas anedotas. Viu o pessoal rir,
estrepitosamente, enquanto Chiquinho permanecia sério. Só os olhos
amarelos, maliciosos e vivos, acompanhavam o efeito da piada. Como era
engraçado aquele povo! Todo mundo já devia saber que os cangaceiros
estavam por chegar, hora mais, hora menos, mas parecia que o fato não lhes
dizia respeito. Ainda há pouco, o Sargento Rangel lhe contara que ontem, à
noite, tinha havido um baile na casa do maestro Zé dos Anjos.
Antes de chegar à casa de Raimundo Anastácio, procurou o
Engenheiro Doutor Draenner, da Inspetoria de Secas, para acertar a forma
de sua participação na briga do dia seguinte. Havia armas e bastante
munição na casa do Engenheiro, além de dois ou três dos seus empregados
saberem manejar bem uma arma. A casa ficava perto da Usina de luz, um
dos pontos que seriam visados pelos bandidos. Ficou tudo combinado, até o
deslocamento do pessoal do engenheiro para a rua do Comércio, caso os
cangaceiros ali permanecessem por muito tempo.
Raimundo Anastácio já o estava esperando. Falou na conversa mantida
com o Doutor Draenner e na ajuda que ficara acertada. Raimundo
perguntou:
– No resto, tudo bem?
– Tudo bem. Engraçado: não sei se é o aperreio do momento, mas
ontem à noite meti na cabeça que você havia falado que era 27 de setembro,
hoje, a data mencionada pelo seu compadre Manoel Serafim...
– Não, Tenente, não tenho nenhuma dúvida de que a data assinalada
foi a de 28 deste mês. Amanhã, portanto, é que serão colocados, ao dispor
de Sabino, cinco cavalos na estrada para Sousa, perto de São Gonçalo. 28,
terça-feira, falou Serafim. O amigo acha que a cabeça do velho já está
misturando as coisas? Às vezes, chego a pensar que sim. Mas, neste caso, o
dia falado foi 28, amanhã. Amanhã é o dia, Tenente.
Deram, então, os dois, um balanço na situação. A convicção era de
que, se alguém não falhasse, tinham condições de barrar os cangaceiros. O
Tenente Elino declarou:
– Quero que você, conversando com o nosso pessoal, os convença
duma coisa: o que nós queremos e podemos fazer é rechaçar o ataque de
Sabino. Só. O que é muito. Não temos condições de perseguir os bandidos,
de arrasá-los, de prendê-los. Nosso trabalho vai ter uma finalidade: obrigá-
los a voltar; não deixá-los saquear as casas de família ou o comércio.
O índio balançou com a cabeça e anuiu:
– O senhor está pensando certo. Pelos homens que temos, pela
munição, pela falta de prática do pessoal nessas lutas, o ponto a atingir tem
que ser este. E o senhor vai conseguir, Tenente.
– Eu, não, Raimundo; nós. Nós vamos conseguir.

Chicão buscava, em vão, um pretexto para ir à casa de Leopoldo


Batista. Queria conversar com Ilina, dizer-lhe duas ou três palavras. Era o
tipo da coisa sem pé e sem cabeça, pois a moça não sabia ao menos de sua
existência, e, muito menos, de que estivesse interessado nela. O fato é que
desde o dia da missa por alma de Ana, sua mulher, não conseguira esquecer
os olhos azuis da menina de cabelos de ouro. Sonhava, acordado, com um
tiroteio terrível, à frente da casa do pai de Ilina, prestes a ser invadida pelos
cangaceiros, mas ele, Chicão, com um fuzil na mão e um revólver na outra,
atirava bravamente e expulsava os assaltantes. Via Ilina, então, os cabelos
louros soltos, os olhos azuis, grandes, iluminados, dirigir-se a ele e
agradecer o que ele, Chicão, fizera por ela e pela sua família. Mas voltava à
realidade, descobrindo faltar-lhe motivos para entrar na casa de seu
Leopoldo. O motivo poderia ser este: perguntar que providências haviam
tomado os fazendeiros, como seu Leopoldo, cujas terras ficavam na
“passagem” dos cangaceiros. Não devia estar regulando bem da cabeça para
deixar-se invadir por essas fantasias.
Seu relógio marcava 11 horas. Segundo o que diziam o Delegado e seu
Raimundo, o dia do ataque seria amanhã, terça-feira, 28. Será que a morte
de Aninha, sua mulher, tinha alterado sua cabeça, seus sentimentos, seu
modo de viver? Parecia um rapaz de 18 anos, apaixonado e sonhador, diante
da casa da amada que não sabia nem mesmo que ele existia.
Notou, nessa ocasião, o Tenente Elino falando com algumas pessoas
nas proximidades da casa do Prefeito Sabino Rolim. Dirigiu-se para lá. O
Tenente, deixando o grupo que se formara, fez um aceno chamando Chicão.
Perguntou se havia alguma novidade.
– Não, Tenente; novidade, mesmo, não há. Soube que Leopoldo
Batista, que tem sua fazenda na rota de Sabino, está um pouco nervoso.
Mora ali perto. Quer ir comigo até lá, Tenente?
O Delegado quis recusar o convite, pois nada podia fazer pelo
proprietário, nem mesmo lhe dar um conselho. Lembrou-se que Chicão era
fazendeiro e talvez estivesse à procura de orientação. Seu Leopoldo, sem
demonstrar nervosismo, mandou os visitantes se sentarem, oferecendo café.
Antes de entrar diretamente no assunto que os havia trazido até ali, o
Delegado indagou:
– O senhor notou algum movimento desusado, nos últimos tempos, na
estrada que vem do Ceará?
– Não senhor, não notei nada de anormal. Tem-se como certo,
entretanto, como o senhor sabe, que Sabino e seu bando vêm por aí. Não é
verdade?
– É, seu Leopoldo.
O proprietário prosseguiu:
– Nossas terras ficam na rota dos cangaceiros, caso eles venham pela
estrada de Alagoinha-Cajazeiras. É o caso do meu vizinho e ainda parente,
Raimundo Casimiro. Este não quis, de modo algum, vir para a cidade. Só
faltou eu me ajoelhar pedindo.
O Tenente Elino ponderou:
– Pode ser que os bandidos tomem algum atalho e, nesse caso, tanto o
senhor como seu parente se livram dessa desgraça.
– É, pode ser. Para isso estou rezando, pois Casimiro é nervoso,
impaciente.
Chicão estava com os ouvidos noutra parte, escutando as xícaras
tilintando, as colheres sendo arrumadas nos pires, torcendo para que Ilina
aparecesse. Para não parecer desinteressado da conversa (o Tenente estava
ali por sua causa) dirigiu-se ao dono da casa:
– E se fosse alguém buscar seu Casimiro? David, o filho dele, ficou
também na fazenda?
– David viajou, faz um mês, para o sul; vai estudar na Escola de Minas
de Ouro Preto. Acho, sinceramente, que não vai adiantar, Chicão, sua ida ou
de qualquer pessoa com o fim de convencer Raimundo Casimiro. O homem
é teimoso como um jumento, que Deus me perdoe! Dei-lhe uns conselhos, a
última vez que conversei com ele. Disse-lhe, sinceramente, que não se
opusesse aos bandidos, conversasse com eles, fornecesse comida, água, o
que fosse necessário.
– E ele? – perguntou Chicão.
– Prometeu assim fazer.
Daí a pouco apareceram Irene e Ilina, precedidas pelo cheiro do café
novo. Irene trazia a bandeja com as xícaras, o açúcar, e Ilina, o bule de café.
Com sua voz forte, querendo ser notado, Chicão voltou a falar com seu
Leopoldo sobre Raimundo Casimiro:
– Será que ia adiantar eu ir até lá, falar com seu Casimiro, alegando
minha amizade com David?
Depois de entregar-lhe a xícara, Irene aguardou que a mana servisse o
café. Falou, então com o rapaz:
– David era a única pessoa a quem seu Casimiro podia ouvir. O senhor
acha, seu Chicão, que os cangaceiros possam fazer mal ao pobre velho?
Chicão respondeu em tom prudente, olhando para Ilina que o fitava,
interessada no diálogo:
– Se ele fizer como seu pai aconselhou, nada lhe acontecerá. Os
cangaceiros só o tratarão mal se ele reagir. Mora alguém com ele?
Ilina não tirava os olhos da boca de Chicão, pois, estranhamente,
parecia que a ela se dirigiam as palavras do rapaz. Foi ela quem respondeu:
– Mora com outro filho, um menino de doze anos que não regula da
cabeça, coitadinho. Ao lado da casa da fazenda está a do vaqueiro Genuíno,
que é muito dedicado a seu Raimundo. Mas este é um homem solitário e
fechado em copas. Não é grosseiro, é atencioso com as pessoas, mas vive
num mundo que é só dele e onde nem o David penetra.
Convencida de que havia falado demais, Ilina pôs, nervosa, a mão na
boca e ficou segurando o bule de café em frente de Chicão. Este procurou
deixá-la à vontade:
– David já me tinha falado nesse irmão, pois minha mulher, que era
professora, lhe disse, certa vez, lá na fazenda, que não havia coisa pior para
uma criança assim que o isolamento.
Cometera uma gafe em falar na mulher a Ilina? Ilina olhava para ele,
intrigada com a intensidade com que a fitava. Foi Irene quem desanuviou a
conversa:
– Talvez seja o Cazuza – é o nome do menino – a maior dificuldade
para seu Raimundo morar na cidade. Pode ser que os cangaceiros tenham
pena e respeitem o menino. Que acha seu Chicão?
Olhou para a moça morena, desembaraçada, que o interrogava com
visível interesse numa resposta. E foi sincero:
– Não saberia lhe dar uma resposta certa, honesta. Os cangaceiros são
imprevisíveis, não é, Tenente?
Este, que acompanhava a conversa, concordou com seu amigo:
– O nome é este: imprevisível. A conduta deles nunca é regular, igual,
uniforme. Às vezes tratam bem as pessoas; e noutras, se excedem na
maldade, na humilhação, na crueldade.
Chicão voltou a perguntar a seu Leopoldo:
– Então o senhor acha inútil tentar trazer seu Casimiro para a cidade?
– Acho que sim. Mas não há nenhum mal...
O Tenente resolveu dar sua opinião, encerrando o assunto:
– Se seu Leopoldo nada pôde fazer, acho que é perda de tempo. E
temos mil coisas para providenciar até amanhã.
– Por que até amanhã? – perguntou o dono da casa. – O senhor está
pensando que os cangaceiros vão atacar amanhã?
O Delegado viu que a pergunta de Leopoldo agitara as meninas. Não
era hora de enganar ninguém mais.
Fora brusco demais, sem querer:
– Pode ser que resolvam atacar de amanhã até sábado. É bom ficar em
casa.
Ilina estava aterrorizada: os olhos azuis tinham crescido tanto que
pareciam querer saltar das órbitas. O bule de café começou a tremer nas
suas mãos. Chicão, jeitosamente, tomou o objeto da menina e ficou
procurando um lugar para pousá-lo. Colocou em cima da mesa. Ilina,
visivelmente nervosa, articulou:
– Que vai acontecer, seu Chicão? Papai vive dizendo que não há
soldados em número bastante para enfrentar os bandidos. Isso é verdade? É
verdade, seu Delegado?
Chicão procurou tranquilizá-la:
– Além dos soldados, há alguns homens que sabem usar uma arma.
Temos confiança na reação da polícia e desses paisanos. Não há motivo
para desespero.
– E o senhor vai lutar? – indagou Irene.
– Preferia que não me chamasse de senhor, pois fico mais velho do que
sou.
– Mas meu pai não vai pegar em arma não, vai?
– Ele vai ficar em casa e deve ter uma arma para defender-se.
– E o senhor? Perdoe: e você?
– Eu vou lutar ao lado do Tenente e de outras pessoas.
Ilina tomou a palavra:
– Mas não é perigoso? Não é melhor ficar em casa e defender-se dos
cangaceiros?
Irene ouviu a pergunta e resolveu interferir:
– Ilina! Você quer entender de cangaceiros?
– Não é isso, Irene.
– Acho que é. Se todo mundo ficar em casa, os bandidos vão tomar
conta da cidade. Chicão tá certo: quem puder lutar, tem que lutar.
Chicão gostou de ser tratado por Chicão e não “seu” Chicão, o que
aumentava a distância entre ele e as pessoas com quem falava. Disse a
Irene:
– Era o que estava explicando. Não podemos cruzar os braços. Temos
que repelir os bandidos e só há um meio de fazer isso: com a arma na mão.
Ilina levantou-se, transtornada. Tapou os ouvidos e correu para dentro
de casa. Chicão ficou sem jeito, convencido de que não soubera contornar o
nervosismo da menina, que se foi alimentando, aos poucos, da conversa,
para repontar na sua saída brusca. Irene, mais forte, tentou consertar a
situação:
– Acho que os senhores quiseram ser sinceros e francos, pois a hora
não é mais de enganar ninguém. Mas minha irmã tem um temperamento
diferente do meu. Para ela o mundo é cheio de pessoas boas, honestas,
amáveis. Cangaceiro não está nas suas cogitações.
O Tenente Elino procurou desculpar-se, pois a conversa que pretendia
ter era com seu Leopoldo. Este, depois, comunicaria o fato à família. Seu
Leopoldo respondeu:
– Sei disso, Tenente. A coisa surgiu tão de repente, que qualquer outra
resposta seria pior do que a verdade.
Chicão falou com o dono da casa e pediu a Irene para desculpá-lo
perante a irmã.
Na rua, despediu-se do Delegado, convencido de que talvez tivesse
sido melhor não ter ido à casa de Ilina. “Espantara a caça”. Lembrou-se da
firmeza da outra moça, que tinha, ao que diziam, compromisso com David
Casimiro.
O Tenente, por sua vez, se convenceu de que era hora de começar a
avisar o pessoal mais responsável do iminente assalto de Sabino e seu
grupo. Percebeu, também, a manobra de Chicão, querendo impressionar as
filhas de seu Leopoldo. Qual delas: a morena ou a loira? Ora, como se
podia, em hora tão aflitiva, pensar nessas coisas? Era nervoso de sua parte,
ou estava mesmo sendo seguido, à distância, por dois homens?
Dirigiu-se para os Correios e Telégrafos, de onde endereçou ao
Comandante da Polícia o seguinte telegrama:

Para definir responsabilidades et confirmando despachos


anteriores vg cumpro dever qualidade Delegado et Comandante
Destacamento local vg informar Vossa Senhoria que Sabino
Gomes et cerca de trinta cangaceiros vg acampados fronteira
Ceará cerca de um mês deverão atacar esta cidade amanhã vinte
e oito corrente pt conto além Sargento Rangel et Cabo José
Gonçalves com sete soldados pt Alguns civis prometeram ajudar
defesa cidade pt Atenciosas saudações
ELINO FERNANDO
DELEGADO
O Agente dos Correios recebeu o telegrama e começou a contar as
palavras. A certa altura, levantou os olhos para o Tenente e perguntou:
– Mas isso é verdade?

Mal o Delegado se retirou, acompanhado de Chicão, Irene correu para


ver a irmã. Sentada na cama, parada, os olhos fixos num ponto
determinado, não tomou conhecimento da presença de Irene. Com jeito, em
silêncio, sentou-se ao lado de Ilina e a abraçou ternamente. Só depois de
algum tempo, a tensão que tornara a irmã dura, de olhar fixo, foi cedendo,
devagar, chegando ao pranto convulsivo, a princípio, cheio de soluços e,
depois, a calmaria do abraço correspondido e das lágrimas enxugadas.
– Estou com medo, Irene.
– E eu também.
– Que homem rude esse Chicão! E esse Tenente também! Como é que
se dá uma notícia horrível como essa com tanta naturalidade!
– É o modo dele falar. Não teve outra intenção a não ser a de nos
colocar dentro da realidade, evitando pânico, que é fruto da surpresa.
– O que ele fez foi jogar uma bomba nos nossos pés...
– Podia ter sido mais hábil, falado com papai para nos avisar com
calma. Agora, intenção de nos afligir ele não teve. Tanto que, ao despedir-
se, me pediu para transmitir desculpas a você, confessando sua inabilidade.
– É um bruto, esse homem.
– Talvez, Ilina. Não se espante com o que vou lhe dizer. Tive a
impressão de que veio aqui por sua causa, pelos seus olhos azuis.
– Você está louca, minha irmã? Fiquei com horror a ele, a quem não
desejo ver mais na minha frente.
– Coitado do Chicão, perdeu o tempo dele e o latim. Queria, em
verdade, impressionar você. E conseguiu, mas no pior sentido.
– Por que você diz isso, Irene?
– Isso o quê?
– Que ele veio aqui por minha causa.
– Primeiro, não tirava os olhos de você e, quando falava, parecia lhe
dirigir a palavra e não a nosso pai.
– Então, além do mais, é um imbecil. Só me causou aflição e pavor.
– Pode ser. Eu também fiquei assombrada, mas aguentei firme. Mas,
pela atitude de Chicão, os gestos, os olhares, ele quis dizer que ia lutar pela
cidade, porque você aqui vive. Quis fazer-se de seu herói, mas entornou o
caldo.
– Você está imaginando coisas, Irene. Pareceu-me que estava querendo
agradar a você, quando falou em ir buscar seu Casimiro, pai de David.
Falou nisso mais de uma vez. Ou não entendeu o recado?
– Entendi. Vi que queria me agradar e, com isso, me colocar do lado
dele na sua pretensão de namorar você.
– Minha irmã, você está mais confusa do que eu. Lembre-se de que
com a saída de David você está livrezinha da silva. O rapaz está interessado
é em você. Não me meta nessa invenção.
Dona Laura, que havia saído para visitar uma parenta enferma,
encontrou os ânimos agitados. Antes de ir ao quarto falar com as filhas, seu
Leopoldo lhe narrou a visita do Delegado e Chicão, e o nervosismo das
meninas com a informação de que os cangaceiros deviam atacar, breve, a
cidade.
– Mas, homem. Todo santo dia corre esse boato pela cidade. Ninguém
acredita nisso, Leopoldo.
Agora, quem estava nervosa era dona Laura, que deixou o marido,
gritando na direção do quarto das meninas:
– Minhas filhas! Minhas filhas!

Manoel Santana passou algumas vezes em frente da casa do sogro de


Mariá, Coronel Matias de Alencar. Sabendo, como sabia, que os
cangaceiros iriam atacar no dia seguinte, sentia-se na obrigação de prevenir
Mariá. Pensava: Para quê? Se Maria não sabia de sua existência? Com que
cara ia ficar se se deparasse com o marido de Mariá ou, mesmo, com o
Coronel Matias? Poderia dizer que fora ali a mando do Tenente Elino, o que
não era mentira de todo, era uma meia mentira. Depois, se o Coronel, ou o
filho, fossem falar com o Delegado, ele confirmaria a notícia, pura e
simplesmente. Na quarta tentativa, resolveu bater palmas na frente do gradil
que rodeava a casa. E quem apareceu na porta da frente foi a própria Mariá.
Viu que ela estava mais magra, os cabelos meio desarranjados e os olhos,
tão vivos, pareciam ter crescido com a surpresa da presença de Manoel
Santana. Gritou da porta:
– Você está doido? Que quer aqui?
– Quero falar com o Coronel ou com seu marido.
– Eles estão na fazenda.
– Falo com você, então.
Mariá ficou articulando uma resposta, não querendo ceder à ideia de
conversar com Manoel. Era uma doidice dele, e nada poderia surpreendê-la
mais do que o atrevimento de procurá-la na casa do sogro. Por fim,
conciliou a contradição dos seus sentimentos, admitindo:
– Pois diga daí o que tem a dizer.
– Não posso, nem ficava bem.
– Então venha à noite e falará com o Coronel e meu marido.
Manoel demorou a dar a resposta final. Enquanto isso, via Mariá, os
olhos pretos, o cabelo abundante que o vento agitava, o rosto amado que
não escondia a tristeza de não ser feliz. Disse, por fim:
– Vim lhe pedir para não viajar para lugar nenhum. Amanhã ou hoje à
noite. Os cangaceiros vão atacar a cidade amanhã. Diga isso ao seu sogro
ou a seu marido, tendo cuidado de não falar no nome do portador. Diga, o
que é verdade, que foi o Delegado, o Tenente Elino, quem mandou o aviso.
Ouviu?
– Ouvi, Manoel. Como ouvi falar que você se alistou para lutar ao lado
dos soldados. Pedro Inácio me falou nessa história há uns três dias. Você
está louco?
Manoel Santana ouvira o que não esperava: ela se preocupava com sua
sorte. Disfarçou:
– Não é nada disso. Tenho ajudado nalguma coisa, como nesses avisos.
– Você não me engana, Manoel Santana. Você é tolo demais para não
deixar de se enrolar na corda do Delegado. Já pensou em sua mãe?
– Pensei. E em você, também.
A reação da moça foi fechar a porta num estrondo. Que dissera de
mais? Não era por causa dela, da mãe, dos amigos, que tinha se metido
naquela embrulhada? A cidade era uma coisa vaga; as pessoas, não.
Mariá, dentro de casa, por detrás das persianas, viu quando Manoel
Santana foi embora e deu graças a Deus por não haver ninguém em casa.
Vivia como uma prisioneira, sem poder nem mesmo ir à missa; seu marido
não fazia isso por ciúme, mas para mostrar que quem mandava era ele.
Constatava, entre surpresa e emocionada, que o doido do Manoel ainda
gostava dela, pois sabia como era seu marido e a fama violenta do sogro.
Mas assim mesmo tinha vindo para o meio da rua gritar que ia lutar por ela.
Pobre Manoel...
Seu casamento fora um fracasso; depois do prazer da conquista, da
posse tranquila e fácil, ao alcance de um estalar de dedos, Aloísio Alencar
se transformara noutra pessoa. Bastava ver a satisfação com que a
procurava humilhar, insinuando que a tirara da miséria, a ela e ao pai, à
véspera da falência. Mantinham, para sogro (o marido fazia questão disso),
as aparências de um casamento normal, mas, em verdade, se tornaram dois
estranhos no limite da hostilidade. O gesto de Manoel, inconsequente e
leviano, a enchera de alegria, uma alegria que não sabia decifrar. Que Deus
a perdoasse. E que amparasse seu amigo na sua louca aventura.
O Tenente Elino se encaminhava para a Delegacia. Viu Manoel
falando para alguém do gradil da casa do Coronel Matias de Alencar. Sabia,
por porta de travessas, do desengano amoroso do rapaz. Nunca tocaram no
assunto, o que só seria possível se partisse de Manoel.
De longe, chamou-o:
– Manoel!
O rapaz olhou, espantado, como se tivesse sido pegado em falta. Veio
andando em direção ao Tenente visivelmente encabulado. Mas este não
falou no fato que há pouco presenciara. Disse:
– Quer ir comigo à Delegacia?
– Pois não, Tenente.
– Quero lhe mostrar o telegrama passado ao Comandante da Polícia.
Escrevi o texto, no calor do momento, mas, depois, com a cabeça fria,
descobri inconveniência nas palavras enviadas.
Manoel respirou, aliviado. Felizmente seu amigo não censurara sua
presença em frente da casa de Mariá.
O Tenente sentou-se na mesa e leu para o rapaz o despacho telegráfico
que enviara. Dobrou o papel e perguntou:
– Percebe-se alguma censura à autoridade na comunicação? Podia ter
evitado esta expressão: “Para definir responsabilidades...” Que acha?
– Não tenho prática no assunto, Tenente. O telegrama é a verdade nua
e crua. E verdade não pode ferir ninguém. Não entendo dessas coisas, mas o
senhor agiu certo, agiu bem. Se alguém se ofender com isso é porque tem
culpa. Nós não vamos, amanhã, enfrentar os cangaceiros, com a metade dos
homens que Sabino tem?
– Isso é verdade. Telegrafei antes, não sei quantas vezes, pedindo
reforço do destacamento local e só recebi vagas promessas. Não faz mal
que se sintam culpados pelo que acontecer, aqui, amanhã.
– Tenente: estava ainda há pouco avisando a Mariá, nora do Coronel
Alencar, sobre o assalto, amanhã.
– Vi, Manoel, e ouvi, também. Já que você tocou no assunto, quero lhe
dizer que o Coronel é um dos homens mais violentos e cruéis que conheço.
Compreendo seus sentimentos...
– Mas eu fui só avisar.
– Sua intenção foi boa, mas você sabe do que lhe estou falando. Você
ainda gosta daquela moça que é, hoje, uma mulher casada.
– Trabalhei com o pai dela...
– Sei, meu amigo. Todo mundo sabe que você foi preterido. O marido
sabe, o sogro sabe e esses dois são duas cascavéis.
– Que mal faz um aviso, Tenente?
– Dito por você, faz. Reabre feridas, suspeitas. Não se engane, meu
filho. Você gritou, pra todo mundo ouvir, que ia lutar por ela, Mariá.
Lembra-se?
– Me lembro, Tenente. Sou um maluco. O que disse é verdadeiro, mas
fui imprudente e insensato. A verdade é que sou um infeliz. É uma
estupidez gostar de quem não gosta da gente.
O Delegado deu a conversa por terminada ao chamar Manoel Santana
para, juntos, darem um balanço exato na munição existente.
Manoel não deu mais uma palavra. Pensava: o que parecia um segredo
seu, o seu mal secreto, toda a cidade conhecia. A constatação do fato
aumentava sua dor sem remédio. Fazia a ele mesmo a seguinte indagação: o
que sentia por Mariá era amor ou ódio? O amor pode misturar-se com os
sentimentos que lhe são opostos? Amor pode ser a negação do amor?
Mariá, também, reagia da mesma forma. Tratava-o a distância, irritava-se
com a presença dele, mas parecia, às vezes, gostar dele. Se não, por que
revelara receio por sua vida na luta contra os cangaceiros? Pensava que o
casamento da moça iria pôr fim aos seus sofrimentos. Sabendo que ela era
infeliz, ampliara-se no seu peito esse amor impossível. Mundo doido, esse...
No entanto, bem que esse amor podia ter acontecido...

Depois de longa caminhada pela cidade, o Tenente Elino se convenceu


de que estava sendo seguido. Escurecera, de repente. Arrependeu-se de não
ter permitido que o Sargento Rangel o acompanhasse. Dirigiu-se para o
hotel. As ruas do centro, muito estreitas, prestavam-se bem para uma
emboscada. A luz bruxuleante dos postes só servia para confundir as formas
dos caminhantes. No próximo cruzamento das ruas, já perto do hotel, a
treva era mais densa. Percebeu um vulto colado ao muro, na esquina. Parou.
O homem dobrou a esquina e ficou esperando. O Tenente agachou-se,
apanhou uma pedra arredondada e jogou-a, rolando, no chão duro. O
suspeito apareceu, de novo, atirando na sua direção. Deitou-se no solo, e
atirou. Da outra esquina, alguém disparou, também. Rolava pelo chão e
atirava, sabendo que, quando fosse recarregar a arma, era bom alvo para
seus perseguidores. Do lado do hotel ouviu passadas fortes e a voz do
Sargento Rangel:
– Tenente! Estou aqui!
Ouviu o rumor de correria. Com o grito do Sargento, os atiradores
desapareceram no escuro.
Gritou para o Sargento:
– Tudo bem, Rangel. Parece que os cabras fugiram.
Em frente do hotel, algumas pessoas, espantadas, aguardavam
esclarecimentos sobre os tiros. O Tenente Elino, acompanhado do seu
ajudante, entrou no hotel, calado, indiferente às solicitações dos curiosos. O
Sargento Rangel lhe disse:
– O senhor tenha paciência, Delegado, mas não vou largá-lo mais.
Teve a naturalidade de mostrar ao Sargento suas mãos trêmulas,
dizendo:
– Alguém quis começar a brincadeira mais cedo. Não sou peru para
morrer na véspera.
Dez

PARA SABINO, aquele era o dia mais importante de sua vida. A longa espera
teria, afinal, a recompensa desejada. Afora meia dúzia de camaradas, que
entraram no bando há pouco tempo, podia confiar nos demais, na
experiência, na destreza, na raça com que brigavam. O bote, armado com
vagar e obstinação, tinha tudo para dar certo.
Tomava corpo a oportunidade de afirmar-se como chefe, temido e
respeitado como Virgolino Ferreira, o Lampião. Se não tinha a lábia do
Capitão, pois mal desenhava o nome, iria, agora, mostrar seu poder de fogo,
seu poder de matar, de comandar cabras valentes.
Libertava-se, com aquele assalto, do domínio de Lampião, que não
deixava ninguém perto dele crescer ou ficar rico. O homem ficava com
tudo. Não era menino: percebera, de há muito, que o Capitão tinha receio
de atacar Cajazeiras, alegando, quando se falava no assunto, que era de boa
regra não atacar cidade onde a igreja tivesse duas torres.
Não dormira direito na noite passada, lembrando-se que ia ficar
famoso em todo o sertão da Paraíba, do Ceará, de Pernambuco e do Rio
Grande do Norte. Seriam obrigados a reconhecer, mesmo que não
gostassem, que Sabino Gomes era tão importante como Virgolino Ferreira
da Silva; que deixava um rasto de sangue por onde passava; que tinha feito
uma coisa que Lampião não tentara: dominar Cajazeiras. Uma cidade
importante, com um bispo, com dois colégios, um comércio movimentado e
uma usina de algodão.
Quem o despertou da modorra foi o negro Bastião, encarregado da
cozinha e rezador. Tinham acertado as rezas para aquela madrugada. Só um
homem de corpo fechado podia escapar das armadilhas e dos cercos,
desaparecendo no meio da fumaça e do pipocar dos tiros. Era assim que
fazia o Capitão.
Andaram uns cinquenta passos e pararam numa pequena clareira,
cercada de juremas pretas. Bastião trazia um barrete vermelho enterrado na
cabeça, um bastão de penitente na mão direita e, na esquerda, uma bacia
com água que ninguém havia tocado. O sol ainda não nascera, mas os
passarinhos mais inquietos, despertados pelo cerimonial de Bastião, já se
agitavam nos galhos mais altos das árvores. Bastião, magro, grande,
imponente, fez um sinal para Sabino ajoelhar-se, mas este não lhe
obedeceu:
– Vamo fazê tudo de pé, mesmo.
Bastião começou pelo Credo. Pediu a Sabino para repetir as palavras
que ia articulando. Quando chegou na passagem que fala em “morto e
sepultado”, mudou para o seguinte: “GUARDADO E FECHADO SEJA O
MEU CORPO PARA TODOS OS MEUS INIMIGOS, ENCARNADOS
OU DESENCARNADOS”.
Bastião levantou a vara e a cabeça para o alto, gritando na fria manhã
que começava: “FECHA-TE ÓRGÃO PELO VAJUCÁ, PRA TODOS OS
MALES QUE NO MUNDO HÁ. FECHA-TE CORPO, GUARDA-TE
IRMÃO NA SANTA COVA DE SALOMÃO”.
Depois, o negro tirou água da bacia e aspergiu a cabeça descoberta de
Sabino, rezando, contrito, com unção, a oração de São Cipriano.
Sabino saiu do cerimonial mais animado e mais tranquilo. Era assim
que fazia o Capitão. Estava de corpo fechado e ia mostrar sua força.
Não tinha motivos para desânimo. É verdade que seu grupo poderia
estar mais forte se Jararaca, seu rival na amizade com o chefe, não tivesse
soltado sua peçonha. Pois o safado tinha dito ao Capitão que ele, Sabino,
estava querendo abafar o nome do Chefe. Isso começaria a acontecer se o
ataque a Cajazeiras fosse bem sucedido. Ora, o Capitão, curando-se de
ferimento numa perna, ia passar algum tempo parado. Por isso, a pedido
dele, Sabino, ia emprestar mais homens para reforçar seu bando. Pois não é
que, dois dias antes de deixar o município de Lavras, Lampião desistira da
ideia! Tinha certeza de que por ali andara o dedo podre de Jararaca. O
Capitão tinha umas fraquezas. Uma delas era acreditar no cumpadre
Jararaca, cabra vagabundo e ladrão.
Conseguira, à última hora, arranjar uns cinco rapazes com experiência
de fogo, que Manoel Laurindo estava a treinar.
Precisava, mesmo, fechar o corpo. Havia alguma coisa em Cajazeiras
que contrariava seus planos. Há meses passados, o safado do índio
Raimundo Anastácio tinha se negado a falar com ele. Pior: quando três
cabras bons foram escolhidos para dar uma lição no índio, ele acabou com
um deles, Lua Nova, cabra leal, valente. Não fazia quinze dias sucedeu o
mistério do desaparecimento de Valdevino, na fazenda de Manoel Serafim,
este homem incapaz de matar uma mosca. Na semana passada, mandaram
Cobra Verde falar com o compadre Marcolino e o homem não voltara até
hoje, ninguém sabendo do seu destino. Era um azar dos infernos. Por isso
ficou mais aliviado com as rezas do negro Bastião. Por essas e outras,
adiara o ataque a Cajazeiras para hoje, 28 de setembro. O dia é o homem
quem faz, dizia o Capitão Virgolino. Diabo! Por que vivia a lembrar,
sempre, o nome do homem? Precisava acabar com essa mania. Daquele dia
em diante o sertão ia conhecer um novo dono: Sabino Gomes. E a cidade
dos padres e beatas ia ajoelhar-se aos seus pés.
O pessoal estava em frente duma casa arruinada do Major Torquato,
que conhecera próspero em outros tempos. Pensando bem, percebeu que
não havia motivo para desanimar; havia gente boa e experimentada como
Laurindo, Bem-te-vi, Marcelino, Rio Preto, Dois de Ouro, Baraúna,
Picapau, Namorado, Formiga, Maçarico, Jurema e outros em quem podia
confiar. Havia, também, um pessoal novo (uns seis ou sete) que não sabia o
que era tiroteio. Com esses era preciso conversar. Trepou-se no último
degrau da escadinha que dava para o alpendre e ficou, algum tempo,
esperando que todos sentissem sua presença. Sua figura era impressionante,
apesar da baixa estatura. Chapéu de couro igual ao de Lampião, mal
escondendo a cabeça grande, os cabelos acobreados, abundantes e duros,
vestia roupa de brim cáqui, parecida com a farda da Policia; o peito largo
era atravessado por duas cartucheiras de ombro, com pentes de cinco balas;
dois embornais, carregados, aumentavam sua largura; pendurados no
pescoço, nas cartucheiras, no cinto-cartucheira, medalhas de Nossa
Senhora, do Coração de Jesus, do Padre Cícero, santinhos, escapulários
contendo rezas fortes e medalhas de ouro ou douradas que cintilavam ao
sol; tinha na mão direita um mosquetão de cano cortado e, enfiadas na
cartucheira, uma faca enorme, de uns 60 centímetros, e outra, menor; o
olhar duro, enviesado, marcava, com um traço malévolo, a cara sinistra do
homem acostumado à vida dura do cangaço. Sua voz era rouca, mas forte.
O silêncio do sol a pino, com a natureza amortalhada de luz, aumentava o
som grave das palavras diretas, firmes, densas. Às vezes, numa pausa,
parecia sorrir, mordendo os lábios carnudos; engano: era o esgar do gato do
mato ao arriscar um salto no meio do perigo. Não impunha, ainda, o
respeito e a confiança do outro, do Chefe; mas despertava o terror em
muitos que podiam dar testemunho de sua fria crueldade. Assim era Sabino
Gomes. Disse aos cabras que olhavam para o seu lado:
– Esta tarde vamos entrar em Cajazeiras. Tou avisado que o
destacamento conta com sete soldados, um Cabo, um Sargento e um
Tenente novo, um rapazola, que é o Delegado. Dois dos nossos estiveram lá
e confirmaram isso. São dez macacos contra nós, 23 homens, sem contar o
pessoal que vai ficar tomando conta dos animais. Dizem que três ou quatro
paisanos vão ajudar a Polícia. Morei, ali, uns dois anos, e sei que o povo de
Cajazeiras não sabe usar uma arma, a não ser uma espingarda de espoleta
para caçar arribaçã. O único tiroteio que assisti, na cidade, foi um dia de
sábado de aleluia. Colocavam o “Judas”, na véspera, num pau bem alto,
todo vestido, com sapato e chapéu. Quando o sino da igreja, rompendo a
madrugada, começou a badalar, o tiro comeu. Era pedaço de pano pra todo
lado, sujo de encarnado, pois o “Judas”, o boneco, tinha como bucho um
fato de carneiro cheio de anilina vermelha.
Enquanto dizia essas coisas, se lembrava do conselho do Capitão
Virgolino: “Atacar fazendas e povoados é uma coisa; atacar uma cidade
pode trazer muitas surpresas.” Reagiu à recordação incômoda e prosseguiu:
– Dois de Ouro conversou, faz alguns dias, na feira da cidade, com
gente de todo tipo. Chegou a falar com o Cabo e este não escondeu o medo
dos macacos diante de um ataque dos cangaceiros. O Delegado não tem
experiência, nunca tomou parte numa briga. Secou a goela pedindo reforço,
mas o governo não mandou um cartucho ou um só mata-cachorro para
reforçar o destacamento. Mesmo assim, não vamos dar um passeio. Vamos
lutar, vamos brigar de verdade, sabendo que a vantagem está toda com a
gente. Quando limpar a rua, a gente toma conta do comércio, escolhe boas
mercadorias e arranca o dinheiro dos ricos e as jóias das mulheres. Quando
a gente chegar mais perto, vou dar as instruções derradeiras.
Dizia aquilo antegozando o prazer de uma vingança alimentada há
muito tempo na solidão da vida errante de cangaceiro. Ainda não tinha
entrado no cangaço, quando cinco macacos de Cajazeiras lhe pegaram,
numa noite escura, vindo da “zona”, e lhe deram uma surra dessas que,
quando não matam, deixam o cristão aleijado. Se não fosse o compadre
Marcolino ter arranjado um doutor para tratar dos seus ferimentos e das
costelas quebradas, ele hoje devia estar inutilizado. Tudo por causa de um
namoro besta com a mulher de um mata-cachorro chamado Lourenço. Ia
pegar os macacos, amarrá-los, surrá-los e depois sangrá-los um a um,
devagar, o sangue rebentando das goelas abertas. Ia fazer o tenente louro
caminhar nu, pelas ruas da cidade, com os bagos balançando e, depois,
cortava-os e dava aos cachorros. Raimundo Anastácio, o traidor, ia pagar o
velho e o novo que lhe devia. Devia estar por detrás dessas desgraças que
estavam acontecendo. Uma coisa o incomodava: por que o compadre
Marcolino não lhe dera o acertado aviso final? Onde andava Cobra Verde
que não voltara da viagem a Cajazeiras, e de quem ninguém sabia o
paradeiro? Daí a pouco ia apurar tudo isso.
Chamou o negro Bastião e perguntou as horas.
O negro tirou um relógio enorme do bolso e proclamou, com uma voz
um pouco fina para o seu tamanho:
– 11 hora, meu chefe!
Gritou para o bando:
– Vamos fazer ponto para o almoço na fazenda de Leopoldo Batista.
Nada de alteração. Come-se, e ganha os paus.
Com a boa notícia da hora da comida, Namorado, voz entoada, clara,
cantou, acompanhado pelos companheiros:

Olê, muié rendeira,


Olê, muié rendá,
Tu me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a namorá.

Para agradar Sabino, mudou os versos que falavam em Lampião. E


continuou:

Sabino desceu a serra,


E chegou em Cajazeira,
Botou as moças donzela
Pra dançá muié rendeira.

Olê, muié rendeira,


Olê, muié rendá,
Se chorou por mim não fica,
Soluçou, vai no emborná.

As moças de Cajazeira
Não querem mais trabalhar,
Passam o dia na janela
Pra ver Sabino passar.
Olê, muié rendeira,
Olê, muié rendá,
Tu me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a namorar.

Sabino ouvia, inchado de orgulho, seu nome ser cantado na estrada


poeirenta. Era um cangaceiro de fama, um homem importante, respeitado e
temido por todo mundo. Um homem do tamanho do Capitão Virgolino
Ferreira da Silva, Lampião. E aquele era o dia mais importante de sua vida.
Igreja com duas torres? Ia acabar com essa cisma do Capitão.
Ondas de poeira cobriam os cavaleiros, apesar da marcha lenta, em
passo calculado para chegar à cidade ao pôr do sol. Era difícil distinguir, de
longe, se era um bando de cangaceiros ou uma volante da Polícia, pois a
indumentária e o modo de montar eram muito parecidos. Quase deitados
sobre a sela, bastava um sinal do chefe para transformá-los em cavaleiros
ariscos e aprumados, transmitindo essa impressão para as montarias que
pareciam lerdas ou cansadas. Na briga, então (deixavam, sempre, os cavalos
num ponto abrigado), viravam feras, gritando nomes feios, pulando como
gatos assanhados, rolando no chão, atirando com rapidez e precisão.
Sabino Gomes não relaxava a atitude reta, dura, em cima do cavalo
que era o maior e melhor do grupo. Era assim que se portava Lampião. Era
assim que ele tinha de fazer, para se impor como o chefe, de quem ninguém
tinha coragem de pensar em desobedecer. Olhava, de soslaio, os seus
cabras. Na maioria, moços, de 20 anos, mas a vida difícil do cangaço os
tinha feito velhos, amargos, insensíveis às dores alheias. Assim era esse
duro ofício de matar, de viver fugindo, de ter como rede o chão e como teto
o céu estrelado e distante. Tendo completado 26 anos, era um dos mais
velhos do grupo. No seu íntimo se alternavam as emoções mais
desencontradas: o açodamento, a animação pela conquista da cidade, o
saque, a festa, a volta do vencedor; e, logo depois, com o mesmo ímpeto, o
receio do desconhecido, o pulo no escuro, o medo do fracasso. Não pensava
em morrer, ser baleado, nada disso; seu receio era ser desmoralizado no
primeiro assalto que comandava. Contava com 27 homens, ele no meio.
Mas quatro tinham de tomar conta dos animais, e esse serviço era
importante, tanto que destacara, além de dois novatos, dois homens
experimentados e sagazes. O Capitão dividira seu bando, com mais de 70
homens, em três grupos. Levino Ferreira, irmão do Chefe, ficaria com um, e
ele, Sabino, com os homens que agora cavalgavam a seu lado. Explicara
Lampião que se tornava cada dia mais difícil mover-se com mais de 70
homens pelas “catingas” brabas. Arranjar mantimentos de boca e munição
para tanta gente era um esforço desesperado. No momento da fuga, então,
era mais ligeiro movimentar um grupo pequeno do que um batalhão. Para o
Capitão, o erro das volantes que viviam a persegui-lo era esse: gente
demais. Nos primeiros dias, tudo bem. Mas uma semana de vida no meio de
jurema, mofumbo, xiquexique, mandacaru, levando furada de espinho e de
pedra pontuda, o sol de rachar lascando a cabeça dos macacos, a água
difícil e ruim, tudo isso junto era de arrasar os almofadinhas da capital,
acostumados ao toque de corneta e às continências. Só eles mesmos, os do
cangaço, comendo semente de imburana, preá e cobra sem veneno, é que
eram capazes de sobreviver naquele deserto.
Olhava para seus homens, sem eles notarem, e via cabras bons como
Laurindo, Mariano, Bom-de-veras, Bem-te-vi, Dois de Ouro, Rio Preto,
Picapau, Sabino Doido, Euclides, Formiga, Baraúna, Namorado, Gusmão,
Maçarico, e outros, também, todos bons no gatilho e no uso da arma
branca, valentes, destemidos, doidos...
Cavalgavam muito juntos, juntos demais, como se estivessem com
medo, pois para todos eles era difícil esquecer a ausência do Capitão, forte,
corajoso, protegido pelo Padre Cícero e abençoado por tudo que é santo...
Superando esses instantes de perturbação, vinha a lembrança do saque,
do dinheiro, das jóias, as mulheres, a festa após a dominação da cidade
inerme e desprotegida.
Rio Preto e Laurindo, um pouco recuados, conversavam, em voz
baixa, a respeito desses assuntos. Rio Preto malsinava o momento em que
concordara em deixar o Capitão para acompanhar Sabino:
– E se o número de paisanos que vai ajudar a Polícia for maior do que
se pensa? Que houve com Valdevino, que anoiteceu e não amanheceu? E
Cobra Verde, cabra escolado e valente, esperto como o diabo! Foi a
Cajazeiras e de lá não voltou. Há alguém por detrás disso tudo.
Laurindo se deixava invadir pela desconfiança no resultado da invasão.
Concordou:
– É danado, compadre. Estamos lascados se a cidade estiver preparada
para defender-se. Sabino demorou demais. Isso foi ruim. Nossa vantagem é
sempre a surpresa, não é?
– Não é o quê? – perguntou Sabino, aproximando-se desconfiado. –
Que é que vocês tanto conversam?
Laurindo não se atrapalhou:
– Dizia a Rio Preto que, com sorte, às 9 horas da noite estamos
voltando, não é Tenente?
Sabino não respondeu. Olhou de viés, desconfiado. Não confiava em
Rio Preto, que era muito ligado a Jararaca. E Laurindo, apesar de ser seu
amigo, era muito ligado a Rio Preto. Forçou o passo do animal e voltou
para a frente do bando.
Laurindo, falando mais baixo ainda, perguntou:
– Ele terá desconfiado de alguma coisa?
– Desconfiar de quê, homem? Não estamos na mesma canoa? O
Compadre Jararaca me disse que Sabino tem uma diferença a tirar de
Cajazeiras. O homem está nervoso, os olhos acesos, raiados de sangue.
Uma coisa é certa: ele é bom numa briga. É meio doido, mas ninguém
sangra um “macaco” com maior rapidez e gosto do que ele. O Capitão
Virgolino me pediu: “Rio Preto você pode ajudar Sabino que é muito
afobado.” Mas ajudar como, Laurindo? Como se pode ajudar um maluco?
Não se deve brigar cego de raiva “A raiva estraga a pontaria e escurece o
caminho da retirada.” Palavras do Capitão.
Chegaram à fazenda de Leopoldo Batista às 12 horas. O sol retinia nas
pedras miúdas, arrancando chispas de luz. E o calor, entrando de corpo
adentro, tornava difícil a respiração. Mas, no alpendre da casa ou debaixo
das árvores, tudo melhorava. Até o vento ficava mais brando.
Comeram carne assada com farinha e tomaram água até doer no
estômago. Encheram os cantis de água fresca e os embornais de carne
assada e de farinha.
O vaqueiro, desconfiado e nervoso, seguindo as ordens do patrão, se
desdobrava em atenções a Sabino e seus cabras. E repetia, sempre: tenho
ordens do patrão para que não falte nada para o senhor. Sabino já estava se
cansando da conversa do vaqueiro. Repetiu a pergunta que lhe fez na
chegada:
– Por que Leopoldo não me esperou, conforme tinha acertado com o
vaqueiro do seu parente, Pedro Batista?
– Seu Capitão, não sei lhe dizer; mas, ontem, passou por aqui um
grupo de tropeiros e eles disseram que a mulher do patrão havia adoecido.
Apesar de ficar envaidecido com o tratamento de Capitão, corrigiu o
vaqueiro:
– Não sou Capitão; tenho patente de Tenente; sou Tenente Sabino
Gomes. Já ouviu falar em mim?
– Já, sim senhor.
– De bem ou de mal?
O vaqueiro ficou engasgado, mas respondeu:
– O senhor tem fama de homem valente e corajoso.
Olhando para uma casa amarelada, num alto, distante uma meia légua,
o chefe dos cangaceiros perguntou:
– De quem é aquela casa?
O vaqueiro, cheio de dedos, respondeu:
– É dum parente do patrão, seu Raimundo Casimiro.
– É homem rico?
O vaqueiro sorriu, encabulado. Era preciso dizer alguma coisa. Disse:
– É um homem de poucas posses, seu Tenente. Mora sozinho (é viúvo)
com um menino, filho dele, que é doente do quengo.
Completou sua declaração com um gesto, rodando o dedo em torno da
cabeça.
– Quer dizer que o homem é doido, é isso?
– Quase isso, seu Sabino.
– Seu Sabino, não: Tenente Sabino. Pois se ele me tratar bem, eu pago
na mesma moeda. – Pronunciou as últimas palavras rindo, aos soluços,
como se parar fosse esforço superior à sua vontade. Pegou o vaqueiro pelo
braço e o conduziu para dentro de casa, dizendo o seguinte:
– Seu Leopoldo não lhe disse como estava a situação em Cajazeiras?
Não lhe falou em reforço de soldados? Não deixou dito quantos paisanos
malucos vão ajudar o Delegado?
– Tenente, eu não sei de nada, nem meu patrão me fala nessas coisas.
– Ora, cabra safado, preste atenção ao que vou lhe dizer: se você
estiver me enganando, saiba que eu volto por aqui e vou lhe fazer um
serviço em regra para você não mentir nunca mais em sua vida de capado.
O vaqueiro tremia dos pés à cabeça, os olhos arregalados de medo:
– Mas, Tenente, o que o senhor quer que eu diga? Não sei de nada. Não
vou mentir a um homem importante como o senhor.
Sabino, até então agarrado no seu braço, soltou-o e repetiu:
– Vou voltar por aqui. Se você estiver me enganando, vou acabar com
sua raça. Ouviu?
– Ouvi, Tenente, mas quero que o senhor acredite na minha palavra:
nada ouvi, nada sei. Se soubesse, contava ao senhor. Por que não? Meu
patrão disse que tratasse o senhor como se fosse uma pessoa dele.

Antes de transpor a porteira da Fazenda Canto, de Raimundo


Casimiro, viu dois vaqueiros tangendo meia dúzia de reses. Sabino os
atalhou, querendo saber o que estavam fazendo ali. Os dois matutos ficaram
muito espantados, mas um deles esclareceu que tinham vindo comprar um
gadinho a seu Raimundo Casimiro; que eram de Bonito de Santa Fé. Sabino
indagou, então:
– Quer dizer que seu Casimiro não tem nada de doido, não é? Doido
não faz negócio, nem guarda dinheiro. Quer dizer que ele está com dinheiro
fresco de vocês, não é?
– Sim, senhor – respondeu o matuto, de olhos verdes e nariz adunco. –
Compramos e pagamos. – Quis rir, sorrir, mas o medo cortou-lhe a
intenção.
Sabino falou com o matuto:
– Vocês conhecem o Padre Nicolau, vigário de Bonito?
– Conheço, sim senhor – responderam os dois em coro.
– Pois vão levar uma carta minha para o vigário. Gritou.
– Namorado?
Da massa dos cangaceiros saiu um rapaz comprido, com um riso
malévolo e se dirigiu ao chefe:
– Pois não, Tenente.
– Pegue papel, pena e tinta para um bilhete dirigido ao Padre Nicolau.
– Ditou, então, estas palavras: “PADRE NICOLAU. Bom dia. Passei uma
légua dai. Vou dar um passeio em Cajazeiras. Na volta conforme as coisas
vou jantar aí. Prepare um boi e a banda de música senão acabo tudo no
peia. Avise as véia daí.”
Antes dos boiadeiros partirem, mandou revistá-los, mas eles não
tinham um vintém. Quando Namorado lhe apresentou a carta, indicando,
com um sinal, onde devia escrever, Sabino pegou a caneta, mergulhou a
pena no tinteiro e, em letras grandes e desiguais, desenhou, lento, seu nome
e posto: TENENTE SABINO GOMES CHEFE DO GRUPO.
Quando os vaqueiros se retiraram, Sabino, acompanhado de quatro
cabras, dirigiu-se para a casa de Raimundo Casimiro.
Distante, uns trezentos passos da casa, gritou:
– Casimiro! Quero conversar com você. Conversa de paz, de amigo.
O fazendeiro abriu uma fresta da janela, e falou alto:
– Não tenho negócio com você, Lampião.
– Não é Lampião; quem está lhe falando é Sabino, Tenente Sabino
Gomes.
Casimiro, forte, respondeu:
– É ainda farinha do mesmo saco. Por favor, me deixe em paz.
Sabino foi avançando, devagar, acompanhado dos quatro cangaceiros,
bem espalhados; dois ou três tiros levantaram poeira nos seus pés. Jogou-se
ao chão e fez sinal chamando mais quatro do seu bando. Os tiros
estrondaram e as balas batiam na parede com um som cavo.
Dentro de poucos minutos, a casa estava cercada e era tiro por todos os
lados.
Estavam com Raimundo Casimiro o vaqueiro, Genuíno, e o filho
Cazuza, que vivia sorrindo. Casimiro sabia que havia chegado seu fim.
Olhou para o menino, que não sorria. Pensou: será que está entendendo
alguma coisa? Abriu os braços e chamou Cazuza. Sentiu o pequeno
coração, como o de um passarinho, pulsar junto do seu. Abraçou-o com
força, de joelhos, pois sabia que aquela era a primeira e última vez que o
fazia.
Com a ligeira trégua que se fez (os bandidos deviam estar se
preparando para quebrar a porta), Casimiro foi até os fundos da casa, onde
estava Genuíno, de arma na mão. Chamou o vaqueiro e lhe mostrou, no
quarto pegado à cozinha, o lugar onde ele, Genuíno devia esconder-se com
a criança. Levantou três tábuas e explicou:
– Esse bueiro vai até o curral das cabras. Você vai ficar aí com Cazuza
até o perigo passar.
– E o senhor? – perguntou Genuíno. – Por que não vai com a gente?
– Vou tentar conversar com os bandidos, dar o dinheiro que querem.
Não desejo que o menino sofra nas mãos desses desgraçados.
– Eles vão matar o senhor.
– Pode ser que não. E é o único jeito de garantir a fuga de vocês. É
uma ordem, viu, Genuíno! Desça e eu lhe dou o menino. – Em seguida
como se estivesse falando sozinho: “Dou graças a Deus por David estar
longe”.
Abriram três tábuas e Genuíno desceu, sentindo o chão nos pés.
Casimiro entregou-lhe o menino que parecia desmaiado. Genuíno segurou-o
com as duas mãos e ouviu o tiroteio recomeçar, depois de o patrão ter
recolocado as tábuas e, sobre elas, uma mesa pesada, cheia de peles de
carneiro.
Encostado num dos pilares do alpendre, Casimiro procurava ganhar
tempo para a fuga de Genuíno com seu filho. De lá, gritou:
– Sabino! Tenho algum dinheiro comigo, mas só entrego se pararem de
atirar.
Abriu, rápido, a porta da casa e a resposta foi uma saraivada de balas
em cima de Casimiro, que atirava sobre os cabras que estavam mais
próximos. Seu desejo era saber quem era Sabino e acertar-lhe um tiro na
testa malvada. Divisou um cangaceiro que parecia o chefe, dando ordens,
gritando. Mirou com cuidado a figura que não parava, mas errou. Os cabras
que vieram do fundo do casa, quebrando a porta da cozinha, surpreenderam
Casimiro, matando-o com uma rajada de tiros.
Sabino deu ordem com voz forte e rouca:
– Procurem o outro homem; alguém, além do velho maluco, estava
atirando.
Passos entraram no quarto onde estavam Genuíno e a criança, ainda
com vida, pois o coração batia, embora lentamente.
Um bandido gritou:
– Fugiram pela janela aberta. Mas não devem estar longe. E um deles
está ferido. Há sangue no corredor.
Foi só nessa ocasião que Genuíno, o vaqueiro, entendeu por que seu
Casimiro havia aberto a janela, antes do menino descer. Era um homem
sabido, seu patrão.
Voltaram os bandidos com raiva da busca inútil nas proximidades.
Dois de Ouro disse:
– Entraram no canavial que fica detrás da casa. Gusmão foi por um
lado e eu por outro, mas nem sinal do fugitivo.
O bandido de voz rouca e forte berrava:
– Gastamos um horror de munição. Por quê? Pra nada. Tudo devido à
teimosia desse safado, toma desgraçado! – E bateu com a coronha do
mosquetão na cabeça de Raimundo Casimiro.
Os bandidos correram a casa toda, abriram baús e malas, quebraram os
barris da cozinha, a louça, os copos; passaram várias vezes pelo quarto
embaixo do qual estavam Genuíno e a criança. Quebraram os móveis,
dizendo tudo o que era nome feio, revoltados com a fuga do “outro sujeito
que estava atirando”. Sabino gritava, com aspereza:
– Vocês são uns merdas! Como é que deixaram fugir o outro sacana
que estava dentro de casa também?
Como ninguém lhe respondera, voltou a gritar:
– Vamos embora! Perdemos tempo e munição para dominar esse velho
safado. Não é que o peste quase me acerta! Uma bala passou raspando pelo
meu cantil, fazendo uma amassadura. Se não fosse minha reza, meu corpo
fechado, meus santos protetores, meu Padim Pade Ciço, estava fudido.
Exaltado, os olhos injetados de sangue, ao sair do alpendre esbarrou
com um cabra que vinha entrando, quase se desequilibrando. Ajeitou o
corpo e deu um empurrão no cangaceiro, apelidado de “Sabino Doido”, que
se esparramou no chão e se voltou, irado, para o chefe, esboçando o gesto
de quem ia tocar no revólver atravessado na cartucheira. Sabino gritou:
– Puxe a arma, cachorro, que você vai terminar de latir no inferno!
Bastião, o rezador, se meteu entre os dois e tentou arrastar “Sabino
Doido” para longe da ira do Tenente. Este gritou para Bastião:
– Não se meta onde não foi chamado! Solte o moleque! Vamos ver se
ele é homem mesmo.
Foi dizendo estas palavras e, de revólver, começou a atirar nos pés do
cabra, inteiramente possesso:
– Reaja, seu safado! Ou quer morrer se mijando?
O cangaceiro ajoelhou-se, lentamente, sem querer, com os braços
arriados, inteiramente apavorado. Sabino berrou bem alto:
– Isso sirva de lição para quem quiser se fazer de besta. Sou o chefe!
Quem não quiser me obedecer, pode ir embora, já!
Ninguém disse uma palavra. Todos, inclusive o cangaceiro humilhado,
se encaminharam para as montarias.
Onze

AQUELA TERÇA-FEIRA, 28 de setembro, era igual a muitas outras que já se


foram. Afugentando o resto da frescura da madrugada, o sol invadia os
montes, as terras secas, as estradas castanho-vermelhas, as ruas ainda
desertas, as casas, penetrando pelas frestas dos telhados, das portas, das
janelas, acordando bichos e homens. Os galos, trepados nos poleiros, nos
muros, nas árvores baixas, anunciavam o novo dia. Uns, arrogantes, fortes;
outros, modestos, desafinados, mas todos cumprindo sua obrigação. Os
jumentos, em pontos diversos, exibindo sua permanente disposição sexual,
ornejavam animados. Suaves, afinados, com cintilações da manhã radiosa,
os galos de campina, os graúnas, as patativas trinavam para o dia nascente.
Descendo do Serrote, com seu topo já iluminado, a luz despertava os
bairros do Cachimbo Eterno, das Capoeiras, da Matança, do Jatobá, da
Curicaca, do Alto do Cabelão, as duas torres da Igreja Matriz e o Colégio
Padre Rolim.
A terra seca esquentava depressa, e o vento, nervoso, que viera do
fundo da noite, levantava as folhas caídas, o lixo, o cisco, agarrando tudo
num redemoinho inesperado, e erguendo, no cruzamento das ruas, a coluna
de alguns metros de poeira que sujava o azul claríssimo.
A Matriz abria as portas para acolher os primeiros féis: as mulheres
com seus xales pretos, as moças conduzindo seus véus brancos, seus livros
de oração e seus rosários. Major Chiquinho, com seu grande chapéu branco,
antes de abrir a casa comercial, entrava na Igreja para as orações habituais:
um Padre Nosso, uma Ave Maria, uma Salve Rainha. Naquela manhã
demorou um pouco mais. Falou, em particular, com Nossa Senhora:
“Parece, confidenciava à Santa, que dessa vez os bandidos vão atacar a
cidade. Venho pedir coragem e fortaleza de ânimo para os que vão nos
defender. Mas o melhor, mesmo, Virgem Santíssima, seria os cabras
mudarem de rumo, esquecendo, duma vez, esta cidade. Pode ser, Nossa
Senhora, que eles entrem na Igreja, violem o sacrário, furtem – são uns
hereges! – as hóstias consagradas, que escondem nos escapulários para se
livrarem de bala. Diga isso a Nosso Senhor Jesus Cristo, seu filho,
lembrando que os bandidos fizeram essas coisas em outras terras.”
Levantou-se, perturbado com o atrevimento de sua reza, e
encaminhou-se para a rua do Comércio. Encontrou-se com alguns
comerciantes, dominados, como ele, pelo velho hábito, que iam abrir as
portas de seus estabelecimentos: doutor Aprígio Sá, Midú, Piano, Henrique
Leitão e Álvaro Marques. “Bom dia” pra cá, “Bom dia” pra lá, e cada um
foi cumprir a rotina invariável.
Parecia, mesmo, um dia comum, sem relevo, igual a muitas terças-
feiras que já passaram. Mas a fisionomia das pessoas refletia uma apreensão
difícil de esconder. Heliodoro, o barbeiro, falador, arregalando os olhos,
interceptou a marcha do Major Chico Sobreira:
– Parece que é hoje. Só a Providência nos livrará dessa desgraça. Olhe,
Major, conversei ontem à noite com o Delegado e o homem só faltou dizer
a hora. Perguntou se eu tinha uma arma; disse que não; só tinha mesmo
minha navalha. Sabe o que ele me disse?
– Não, negro, pois não ouvi a conversa de vocês.
Heliodoro riu, sabendo que o jeito do major era aquele.
– Disse o Tenente que uma navalha no escuro faz mais efeito do que
um rifle descalibrado. A gente ouve cada uma! Vai abrir a loja, seu
Chiquinho?
– Vou. Não posso ficar em casa esperando que os cangaceiros
resolvam aparecer.
– E o senhor tem arma?
– Tenho.
– E vai usá-la?
– Não sei. Mas se algum deles quiser entrar lá em casa...
– A propósito: o senhor confia nesse Tenente?
– É o que temos, homem. Adianta ou ajuda não confiar?
– Isso é verdade, major.
– Pois é.

Na Delegacia, onde haviam passado a noite no maior desconforto,


encontravam-se, além do Tenente Elino e dos policiais, as seguintes
pessoas: Romeu Cruz, Raimundo Anastácio, Chicão, José Teberges,
Manoel Santana, Manoel da Nóbrega, José Inácio, José Mendes e Vicente
Marcello. Antes do raiar do dia, apareceram Joaquim Sobreira Cartaxo
(Marechal), o Engenheiro Dr. Draenner, das Secas, Moisés e os amigos de
Romeu Cruz, Pedro e Paulo da Cunha, os cearenses.
O Tenente, com seu ar encabulado, estava mais calado do que nunca.
No instante em que se fez um silêncio pesado e incômodo, ele falou:
– Fora os homens que vão ficar no Colégio das Freiras, na casa do
Prefeito Sabino Rolim e do Dr. Juiz de Direito, seremos nós os defensores
da cidade. Conforme já conversei com os senhores, tudo indica que Sabino
e seu grupo vão atacar hoje. Não o tendo feito pela madrugada, vão
aproveitar a boca da noite para esse fim.
O Engenheiro das Secas, Doutor Draenner, claro, alourado, meio
deslocado do grupo pela falta de convivência, pois só fazia alguns meses
que morava em Cajazeiras, fez esta pergunta:
– O senhor tem dito, com convicção, aos outros e a mim, e agora acaba
de repetir, que o ataque será hoje. Não estou pondo em dúvida sua
declaração, que coincide com a conversa do seu Raimundo Anastácio. Acho
que seria bom para todos se essa parte ficasse bem esclarecida.
O Tenente Elino afirmou que achava justa a indagação do Engenheiro.
Ia pedir a Anastácio para contar a história que ouvira, há dias passados, do
dono da fazenda Velame, seu amigo, cuja família morava na cidade de
Lavras, por medida de precaução.
Raimundo Anastácio ficou um pouco nervoso, mas findou narrando,
com minúcias, a conversa de Manoel Serafim, o fazendeiro mencionado
pelo Tenente, Disse:
– Esse fazendeiro, meu amigo, tem um primo que é grande proprietário
em Alagoinha, no Ceará. É o Coronel Pedro Batista, dono de muita terra,
plantador de algodão e criador de gado. Alegou Serafim que Sabino e seu
grupo estavam arranchados há quase um mês na fazenda daquele seu
parente. Disse que o homem já estava subindo pelas paredes, pois o grupo
estava abusando de sua hospitalidade, pois, além de comerem tudo que
havia por perto, já estavam fazendo estragos e “besteiras” de todo jeito.
Pois o Coronel Batista revelou, com visível alegria, que Sabino marcara a
data de sua partida, quando pediu que lhe arranjasse, para as 10 horas da
noite de 28 de setembro, terça-feira, hoje, cinco cavalos descansados. Esses
cavalos deviam estar esperando. Sabino na estrada de Sousa, na vereda que
vai para São Gonçalo. De lá, como se sabe, pegaria ele o Vale do Piancó e
entraria pelo Estado de Pernambuco, via Princesa. O Tenente Elino
completou as palavras do “índio”:
– Esta informação se casa com outras que dão como acertado, para
hoje, o ataque a Cajazeiras. Pegamos um mensageiro, saído daqui, que
levava uma carta para Sabino, sem assinatura, dando a entender que não
poderia demorar mais. Compreende, Doutor Draenner, porque chegamos a
essa conclusão?
– Compreendo, Tenente, e concordo com o senhor. Agora lhe
pergunto: as autoridades da Capital sabem disso?
O Tenente não respondeu logo. O que dissesse poderia ser interpretado
como uma censura ao Presidente do Estado ou ao Comandante da Polícia.
Mas, para ele, aqueles homens que se reuniam, naquele momento, para lutar
ao lado da Polícia contra os cangaceiros, mereciam toda atenção. Adiantou:
– Da ameaça de invasão, sabem, mas não acreditam que ela seja
efetivada. Ontem, passei novo telegrama, bem claro, comunicando ter
certeza do ataque de hoje e lamentando não dispor de recursos para
defender a cidade.
Chicão não se conteve:
– Isso quer dizer, Tenente, que o nosso esforço já está de antemão
provado que vai ser um fracasso?
O Tenente agitou-se um pouco, percebendo que não fora hábil nas
últimas ponderações. Virou-se para Chicão e falou, em tom firme:
– Não fui muito feliz no que quis dizer. Você tem razão. Parece até que
vamos nos meter numa luta perdida antes de ter acontecido. O que tive
intenção de esclarecer não tem nada a ver com nossa situação. Vamos
reagir. Temos armas, munição e homens treinados regularmente. Quando
falei em recursos bastantes, tinha em mente o seguinte: se o destacamento
tivesse mais gente, não ia esperar que os bandidos entrassem na cidade; ia
esperá-los e tocaiá-los antes disso. Entendeu, Chicão?
– Agora, entendi, Tenente.
O Delegado prosseguiu:
– Os bandidos vão ter uma surpresa: esperam ter contra eles os dez
integrantes do Destacamento, quando somos, ao todo, com o pessoal
destacado para a casa do Prefeito, para o Colégio das Freiras, mais do dobro
desse número.
O Doutor Draenner quis uma informação mais exata:
– Quantos homens são ao todo, Tenente?
– Somos vinte e três.
Manoel da Nóbrega, baixo, moreno, com um chapéu de feltro atolado
na cabeça, que gostava muito de conversar, até àquele momento não tinha
proferido uma palavra. Resolveu, então, interpelar o Delegado:
– Por onde os cangaceiros vão entrar na cidade? Pelo Serrote? Pela
Rodagem?
O Tenente Elino teve a tentação de dizer que não era adivinho, mas a
hora não era para melindrar ninguém. E respondeu:
– Tenho conversado bastante sobre esse ponto com algumas pessoas:
Romeu Cruz, Anastácio, Cornélio Andrade e outros. Partimos do raciocínio
seguinte: como agiríamos, para entrar na cidade, vindo de Alagoinha, do
Ceará? Chegamos a admitir dois caminhos: pelo Serrote, os bandidos teriam
em mira o saque da Usina Santa Cecília e, a seguir, o ataque à casa do
Prefeito Sabino Rolim; na segunda hipótese, no segundo caso, que é o mais
provável, porque é o mais curto, chegando à Rodagem, que fica no seu
caminho, desceriam pela rua do Cemitério ou pela rua da Matança,
atacando, em primeiro lugar, a rua do Comércio. Parto do ponto de vista de
que eles acham a cidade desprotegida, o caminho escolhido vai ser o que dá
na rua do Comércio. Entenderam?
Joaquim Sobreira Cartaxo, Marechal, concordou plenamente com o
Tenente, achando que aquela era a opinião geral.
O Tenente prosseguiu:
– Quero chamar a atenção de todos para o seguinte: por onde entrarem,
nós estaremos preparados para enfrentá-los. Por isso, vamos dividir o
pessoal em três grupos: um fica na rua do Comércio; outro, na porta do
Mercado Público, e um terceiro grupo, menor, perto da Usina da Luz, na
casa do Doutor Draenner. De qualquer modo, se necessário, esses três
grupos formarão, em minutos, um grupo só. Os soldados Ricarte e Valões, e
Manoel Santana, além de participarem da defesa, vão ficar encarregados da
distribuição da munição.
Romeu e José Teberges falaram quase ao mesmo tempo:
– E agora, Tenente, o que vamos fazer?
– Ah! Sim, queiram me desculpar. Todos devemos ficar de prontidão,
aguardando o sinal convencionado: três foguetões seguidos. E, às 3 horas da
tarde, cada um vai para o ponto que foi designado. Mas, antes de nos
separarmos, gostaria de relembrar estas recomendações: Não devemos atirar
à toa, no monte de cangaceiros e, sim, num alvo só, preciso, determinado;
devemos ter confiança uns nos outros; recomendo particularmente o
seguinte: não se impressionem, os que vão lutar pela primeira vez, com os
gritos, os pulos, os nomes feios, os berros, os desaforos dos bandidos: isso
faz parte da tática deles; se algum de nós for ferido, deve ser socorrido
imediatamente. Deixem que eu repita esta recomendação: atirem para
matar, com cabeça fria e mãos quentes.
Marechal fez a pergunta que estava na cabeça de todos:
– O senhor tem ideia do número de cangaceiros?
– Com franqueza, não. Número certo ninguém sabe. Mas pode-se
calcular de 22 a 26, sendo que dois ou três vão ficar tomando conta das
montarias. Entre eles, sabemos, há cabras experimentados; mas há, também,
moços recrutados à última hora, conforme informação colhida em
Alagoinha.
– E munição? – perguntou José Teberges.
– Temos munição suficiente para cinco horas de luta, no mínimo.
Pode-se achar pouco, mas o mesmo ocorre com os bandidos, pois só podem
carregar determinada quantidade de munição.
O Tenente fez uma pausa, esperando novas perguntas. Como ninguém
mais falou, como se tivesse medindo as palavras, disse o seguinte:
– Devo esta revelação, que é de inteira justiça: antes de sabermos da
ajuda certa dos senhores, o pessoal do destacamento policial, mesmo
sabendo da inferioridade em face dos assaltantes, se dispôs a lutar ao meu
lado. Digo isso, agora, pois não sei se terei outra oportunidade de fazê-lo de
público. Guardei, também, até este momento, por estar no terreno da
probabilidade, a convicção de que virá auxílio dos destacamentos dos
municípios vizinhos. Por isso é que acho ser bastante a munição que temos.
Voltando-se para Chicão, cobrou:
– E o homem do foguetão?
Chicão respondeu, rápido:
– Está em cima do Serrote, com binóculo e os foguetões. Do ponto
escolhido, verá qualquer movimento estranho na rodagem. Só tenho medo
que fique bêbado antes do tempo; já lhe prometi, porém, que, se falhar, farei
um serviço nele, depois do que passará a falar fino e engordar.
Apesar da hora pesada, muita gente conseguiu esboçar um arremedo
de sorriso.
Ainda estavam reunidos na Delegacia, e lá apareceu o doutor Cristiano
Cartaxo. Trazia um telegrama misterioso, sem signatário, dirigido a seu pai,
o farmacêutico Hygino Rolim. O Tenente leu o telegrama:

Doutor Hygino Rolim


Cajazeiras – Paraíba
Bandidos Lampeão seguem ahi

Para o doutor Cristiano, havia duas maneiras de entender a mensagem:


– A primeira revela a intenção de alguém de avisar sem se
comprometer; a segunda, era o próprio Sabino a explorar o nome de
Lampião, terror de todo o sertão.
– Mistério ou não – disse o Tenente –, o telegrama é uma confirmação
do que esperamos para hoje. Vou agora mesmo dar ciência do aviso ao
Prefeito e ao Doutor Juiz de Direito.
O Prefeito Sabino Rolim já tinha sabido do telegrama. Passou a mão
pela cabeça lisa, sem um fio de cabelo, e levou o Delegado para um quarto,
no interior da casa. Em voz baixa, sussurrou:
– Recebi uma carta prevenindo contra Raimundo Anastácio, dizendo
que ele mantém ligações com o cangaceiro Sabino Gomes. Estranha a carta
que, apesar disso, o senhor deposita toda confiança no marchante. Diz que é
do meu dever, como Prefeito, pedir ao senhor que prenda seu Anastácio até
que passe o perigo.
– De quem é a carta, Coronel Sabino?
– A carta não tem assinatura; ou melhor; a pessoa que assina a carta
usa os termos “amigo de Cajazeiras”.
O Oficial fez um esforço enorme para não dar uma resposta áspera.
Num momento de aflição como aquele, a insinuação do Prefeito era o
cúmulo. Mas não se afobou:
– Coronel Sabino Rolim! Se eu quisesse escolher a pessoa que mais
tem me ajudado nessa hora, eu não teria nenhuma dúvida em dizer:
Raimundo Anastácio. Não é militar, não tem nenhuma obrigação de se
expor, mas foi a Alagoinha, no foco dos cangaceiros, colher as informações
que nos dão a certeza de que os bandidos vão atacar hoje.
O Prefeito arregalou os olhos espantados. O Tenente continuou:
– O senhor acha, então, que devo prender seu Raimundo?
– Não, seu Tenente, não é isso. Estou lhe dando conhecimento de uma
carta anônima que, por si mesma, não vale nada. Mudando de assunto, mas
voltando ao mesmo lugar, como está a situação? Acho que esses homens
que o senhor colocou em torno da minha casa poderiam servir melhor no
choque com os bandidos.
Mais calmo, o Delegado fez um resumo de sua posição e do que
imaginava ser o grau de perigo dos assaltantes. O Prefeito coçava a cabeça,
atrás de algum fio de cabelo perdido há muitos anos; estava preocupado,
tenso, mas não demonstrava medo.
Despediu-se do Prefeito e ficou pensando: mesmo no dia em que
Sabino ia atacar Cajazeiras, o inimigo oculto agia com habilidade e perfídia.
Decerto encontraria a mesma carta com o Doutor Victor Jurema, muito
digno Juiz de Direito da Comarca.
Felizmente o Doutor Victor Jurema, Juiz de Direito, não havia
recebido nenhuma carta anônima. Pelo menos, não tocou no assunto. Mas
foi minucioso e insistente no questionário a que submeteu o Tenente, que
lhe deu, com sinceridade e calma, todas as respostas possíveis.
O Juiz era um homem digno, respeitável, mas ganhava qualquer
campeonato de afobação. Tinha um sestro: invariavelmente, com raiva ou
sem ela, mandava o interlocutor para o inferno. Mas, quem o conhecia não
estranhava o repente. Depois do interrogatório, censurou o Presidente do
Estado e o Chefe de Polícia e o Delegado, também, por não terem reforçado
o destacamento local. Resmungando, andando pela calçada da casa, com o
Tenente Elino à porta, vociferava:
– É uma vergonha o descaso das autoridades para com esta pobre e
indefesa cidade. Que vamos fazer, seu Delegado?
Com toda atenção, mas falando com firmeza, o Tenente repetiu a
exposição feita, há pouco, ao Prefeito Sabino Rolim.
O Juiz reagiu:
– Tudo isso é muito pouco, Tenente. Eu mesmo telegrafei ao
Presidente do Estado e ao Desembargador Presidente do Tribunal de
Apelação, denunciando essa situação. O senhor me respondeu? Não. Pois
foi o que fizeram.
Fez uma pausa, na sua caminhada pela calçada, e disse, para o
Delegado:
– Homem, quer saber duma coisa? Vão vocês todos pro inferno, viu?
Sem nenhum tom de zanga na voz, o Tenente Elino despediu-se do
Doutor Jurema:
– Daqui a pouco vamos estar, mesmo, mergulhados no inferno dos
tiros, dos combates corpo a corpo. Não precisa o senhor mandar: estou indo
para o coração do inferno.
Foi para o hotel, mas não conseguiu comer uma garfada de “baião de
dois”: feijão e arroz cozidos juntos com alguns caroços de pequi. Foi para a
Delegacia. Lá o esperava Manoel Santana, sentado num canto da sala. A
primeira ideia que lhe veio à cabeça foi a de que o rapaz desistira. Era
muito moço, cheio de vida, para morrer tão cedo. Compreendia e
justificava, antecipadamente. Saudou o rapaz:
– Ainda por aqui, Manoel?
– É verdade, Tenente. Queria lhe pedir uma coisa.
– Pode dizer, Manoel, sem nenhum receio.
– É o seguinte: não quero contrariar uma ordem do senhor, mas
preferia ser destacado para enfrentar os cangaceiros, e não cuidar da
distribuição da munição. O senhor sabe, Tenente...
Interrompeu Manoel:
– Olhe, rapaz. Uma das missões mais difíceis numa luta como a que
vamos ter é o reabastecimento da munição. Escolhi você e os soldados
Ricarte e Valões por serem ligeiros, hábeis, responsáveis. O inimigo está
sempre de tocaia para interceptar os que estão encarregados dessa tarefa.
Mas isso não impede vocês de participarem da briga.
Manoel fitou o Delegado nos olhos e viu que não estava sendo
enganado:
– Está bem, Tenente. Não está mais aqui quem falou.
– Fico satisfeito por você concordar. Permita que eu lhe dê, como mais
velho, um conselho: numa hora como a que vamos viver, não há
necessidade de procurar perigo ou a morte; eles estão em torno de nós.
Tenha calma, Manoel.
Às 3 horas da tarde, o Tenente Elino percorreu os pontos onde estavam
concentrados os três grupos de defensores. Alimentava, interiormente, a
ilusão de que Sabino poderia desistir do seu intento. Viu os seus homens e
se convenceu de que podia confiar neles. A calma de Romeu, a serenidade
do “índio” Raimundo Anastácio, a confiança na ação do Sargento Rangel,
do Cabo Gonçalves, dos soldados, principalmente Isaías, Ricarte, Valões,
tudo o levava a reforçar sua esperança numa reação firme às investidas dos
cangaceiros. Mesmo homens sem experiência como Chicão, José Teberges,
Marechal, Manoel da Nóbrega, denotavam disposição e inspiravam
confiança. Eram poucos, é verdade, muito poucos para a luta desigual que
iam enfrentar, mas não se sentia só. Iam dar trabalho a Sabino. Procurava
convencer-se dessa verdade para transmiti-la aos seus comandados.
Felizmente ninguém via o que se passava, às vezes, no seu coração, pois
havia ocasiões em que ficava aterrorizado. Imaginava-se aprisionado pelo
chefe dos bandidos, que o exibia na cidade como seu trunfo de guerra,
andando com uma corda no pescoço, arrastado pelas ruas humilhadas da
cidade. Seu pai, velho espírita, que não se entusiasmava com a carreira do
filho, costumava defender como uma regra da vida: “Faça a parte que lhe
cabe; Deus a completará.” Matar bandido podia ser incluído nesse
mandamento?
Longe, na Rodagem, talvez, soou, claro, límpido, um estampido. Tiro
de mosquetão, pensou.
Era Sabino que chegava.
Doze

O SOL queimava. Três horas da tarde. O calor vinha do alto e vinha,


também, da terra ardente, da poeira vermelha do caminho, que penetrava
nas roupas, nos chapéus de couro, nas barbas, nas narinas, nos olhos,
envolvendo, por sua vez, os animais numa massa marrom, espessa,
ondulante, sinistra.
Não estranhavam a canícula: nasciam, cresciam e viviam na terra
quente, que o verão prolongado transformava num braseiro. Cobriam todo o
corpo com fazenda grossa ou roupa de couro, só deixando de fora o rosto
queimado, conseguindo, assim, como os demais habitantes dos desertos,
uma temperatura interna mais suportável do que a externa.
Não tinham pressa: a ordem era marchar devagar. Os mais experientes
recordavam o tiroteio de há poucos instantes para subjugar um homem,
Casimiro. Imaginavam o trabalho que os aguardava: dominar uma cidade
inteira.
Fizeram uma parada no sítio Capoeiras, bem próximo da cidade. Não
havia ninguém na casa, no curral, no descampado. Amarraram os animais
na sombra de dois pés de cajarana, cujos galhos se arrastavam quase até o
chão.
Comeram cabrito assado com farinha e um pouco de rapadura. Alguns
descascavam limas-de-umbigo, retiradas de árvores que circundavam a
casa: o perfume agridoce da fruta inundava a tarde opressiva.
Sabino distanciou-se do grupo e, na companhia de Bastião, forçou a
porta da frente e entrou na casa modesta. Abriu duas janelas e sentou-se
num banco perto da mesa rústica. Bastião retirou-se e, daí a pouco, lhe
trazia duas limas descascadas; cortou-as em cruz e as mastigou, ávido.
A mesa, os bancos, o chão de tijolo, a rede presa no armador, tudo lhe
fez recordar a casa de Raimundo Casimiro, o velho maluco e cabeçudo, que
o obrigara a gastar munição como os seiscentos diabos, num assalto que
nada rendera. Pensou, com um frio no estômago: se um homem só, ou dois,
resistiram tanto tempo, o que não podia acontecer numa cidade cheia de
casas! Por sinal, onde se metera o outro sujeito que estava atirando ao lado
do velho? Tinha lhe acontecido, ultimamente, muita coisa sem explicação:
perdera dois cabras bons, num mês, num mistério danado: Valdevino e
Cobra Verde.
Chamou Bastião, o rezador:
– Me chame Laurindo, Marcelino, Bem-te-vi, Gusmão e Maçarico.
Fique, também, para ouvir a conversa.
Entraram seis homens na casa, pois, mesmo sem ser chamado, Rio
Preto apareceu ao lado de Laurindo. Levantou-se do banco, olhou de viés
para os homens, e falou sobre o ataque:
– Vamos ter dois lugares para guarda dos animais: este, onde a gente
está, e outro, no sítio Remédios, perto daqui, na casa de Luiz Boca-Aberta.
Laurindo e Rio Preto vão pra lá, com a metade dos homens; lá, como aqui,
vão ficar dois vigias.
Mencionou os cangaceiros que iam com Laurindo, e prosseguiu:
– Prestem atenção: vamos nos encontrar, perto de cinco horas, na rua
da Matança. De lá descemos para o comércio, onde o Delegado e seus
macacos estão emboscados. Na Praça do Coração de Jesus, há uma
igrejinha. Eu e mais dez homens vamos tomar posição detrás da igreja.
Laurindo e seu pessoal, sete homens com ele, vão parar na rua da
Tamarineira uns cem passos de onde vou ficar. Bem-te-vi, Rio Preto e mais
seis vão demorar algum tempo na rua da Matança, a fim de proteger nossas
costas. Quando todo mundo estiver na sua posição, na hora em que eu gritar
FOGO! vamos disparar as armas ao mesmo tempo, mesmo sem direção, só
para assustar os mata-cachorros.
Fez uma pausa, limpou os dentes amarelos, separados, com um palito
de osso e, em voz pausada, continuou:
– Depois de botar pra correr da praça do comércio o Delegado e seus
macacos, vamos à casa do doutor das Secas, onde tem dinheiro do Governo
e, depois, prendemos o Prefeito Sabino Rotim, meu xará. Vamos pedir 50
contos para soltar o velho.
Maçarico perguntou:
– E o saque do comércio e das casas?
Sabino mastigou em seco, irritado, mas quando voltou a falar, não
mostrou irritação:
– O saque é na hora da saída. Primeiro, a prisão do Prefeito. Você já
ouviu falar na sua vida em cinquenta contos?
Para mudar de assunto, Laurindo indagou:
– O senhor tem ideia, chefe, de quantos homens tem o destacamento
da polícia?
– Pelo que sei, de fonte segura, não veio nenhum reforço da capital.
Continuam os mesmos dez macacos, o Tenente no meio. Além desses, uns
três ou quatro paisanos. Entre estes, o safado do Raimundo Anastácio, que é
um traidor. Mas esse eu quero para mim, entenderam? Vou capá-lo no meio
da rua, todo mundo espiando.
Virou-se para Laurindo:
– Junte seus homens e comece a andar. Antes de cinco horas, na rua da
Matança. Entendeu?
– Entendi.
Dirigiu-se a Bem-te-vi:
– Sabe o que tem a fazer?
– Sei, sim senhor.
Depois da partida de Laurindo, Sabino deixou passar certo tempo.
Gritou, depois, para os restantes:
– Vamos embora. Hoje a gente tira a barriga da desgraça. É bom
lembrar que um grito, um berro bom, um salto, qualquer dessas coisas vale
um tiro.
No alto, na Rodagem, Sabino parou. A cidade estava lá embaixo,
imóvel, esperando. Viam-se, no primeiro plano, as casas de taipa, cobertas
de palha, formando as ruas pobres, tortas; um pouco adiante, depois da rua
do Cemitério, as casas de alvenaria, os telhados na sua maioria queimados,
escuros; os pés de ficus bem verdes quebravam a monotonia do cinzento;
mais na frente, um pedaço da rua do Comércio, onde ficavam as lojas mais
importantes; no fundo da paisagem, a silhueta do Colégio Padre Rolim e, do
lado esquerdo, tocadas pelos últimos raios do sol, as águas mansas do
Açude Grande; altas, sobressaindo das casas, as duas torres da Igreja
Matriz. Lembrou um dito repetido pelo Capitão Virgolino: não se ataca
cidade onde a Igreja tem duas torres. Cisma, besteira do Capitão. Lá
estavam, distintas, banhadas pela luz violácea do poente, como braços
longos erguidos para o céu, as duas torres.
Curioso: não se via um pé de gente. A cidade parecia deserta, parada,
como cobra desprevenida prestes a ser arrebatada pelo gavião. Esperara três
anos pela hora que estava vivendo. Uma coisa o desagradava: a calmaria.
Era uma terça-feira e o comércio só fechava depois das cinco horas.
O olho vermelho do sol sujava de sangue as nuvens que assistiam sua
lenta agonia. Gostava daquela cor; cor de sangue jorrando do ventre de um
mata-cachorro. Aquela sua vida era uma desgraça, mas tinha suas alegrias,
como naquele momento, vendo a cidade orgulhosa aos seus pés, medrosa,
acuada. Pensava: “Dentro de uma hora ou duas, vou casar e batizar aqui.
Vou me vingar da vergonha que sofri.” Foram cinco macacos contra um,
mas isso não apagava as dores das pancadas e a humilhação de ter
apanhado. Fazia três anos. Lembrava os olhares de mangação dos homens,
das mulheres, das crianças. Estas, mais atrevidas, diziam na sua cara: “É o
homem que levou uma surra da Polícia, não é?” Reagia, ameaçava, e era
pior. Agora, tinha voltado. E a dívida antiga seria paga, tim-tim por tim-tim.
Juntou todos os homens e fez estas recomendações finais:
– Se algum de nós for ferido, o companheiro de perto cuidará dele.
Rio Preto destacou-se do meio da tropa:
– E em caso de morte?
Não era ocasião para mostrar desconfiança. Respondeu, calmo:
– É tudo como nas brigas do Capitão. Não deixamos nenhum dos
nossos. Por que pensar em coisas tristes? Vamos enfrentar dez macacos
morrendo de medo, e nós somos vinte e cinco. Com os primeiros tiros, vão
ganhar os matos.
O relógio que o negro Bastião arrancou do bolso marcava dez para as
cinco. Parecia mais tarde. Nuvens esparsas, manchadas de encarnado,
acompanhavam, lentas, o fim do dia. Aves solitárias, outras em bando,
procuravam o pouso habitual para a noite. Marrecos grasnavam, no alto, em
vôo disciplinado, na direção do Açude Grande.

Na rua da Matança, os cangaceiros do primeiro grupo, Sabino à frente,


viram caminhar na sua direção, tranquilo, arrastando uma perna, o aleijado
Cícero Ferreira Lima, que os moleques apelidavam de “Pé-de-cágado”.
Vivia sorrindo, apesar de tudo. Aquele fora um dia bom. Deram-lhe almoço
na casa do doutor José Coelho Sobrinho e ainda levava para casa farinha,
um pão e um bom pedaço de rapadura. Não tinha queixas da vida, fora os
aperreios que lhe causavam os moleques da rua, gritando, quando o viam:
“Pé-de-cágado!” Mas não era todo dia, não. Naquele dia, pelo menos,
tinham se esquecido dele.
Viu a poeira levantar e o monte de cangaceiros se aproximando. Não
era bronco de todo para não saber que dali podia vir o perigo, como do
chocalho de uma cascavel enroscada nas pedras.
Sabino, na frente do bando, perguntou já bem perto dele:
– Que está fazendo por essas horas na rua, seu aleijado? Não sabe que
Sabino Gomes vai atacar a cidade? Não está com medo?
Levantou a cabeça, e respondeu:
– Meu nome é Cícero Ferreira Lima. Não tenho medo de cangaceiro,
nem mesmo de Lampião.
Sabino levantou o mosquetão e lhe deu uma coronhada na cabeça.
Cícero Ferreira Lima, o aleijado, foi jogado a uns três metros, no meio das
pedras, à margem da rua, o rosto esmagado, sangrando. As mãos sem
governo, tortas, enrolaram-se com as pernas curtas, tal como no dia em que
nasceu. As convulsões serenaram num instante. Morreu ali mesmo,
aconchegado à terra dura, umedecida pelo sangue que brotava de sua face.
Como se desse um tiro de misericórdia, Sabino disparou o fuzil na
figura embrulhada. Esse tiro foi ouvido em vários pontos da cidade.

Cuspindo de lado, com desprezo, Sabino arrumou, no cinto-


cartucheira, a longa faca de ponta. Chamou Bem-te-vi e Baraúna. Quando
estes se apresentaram, deu a seguinte ordem:
– Vocês vão espiar como estão as coisas: se há piquetes, movimento de
soldados, gente nos telhados, essas coisas. Não atirem. Vão olhar e contar o
que viram.
Não havia passado meia hora, os dois cangaceiros voltaram, afirmando
que estava tudo calmo.
– Calmo demais – disse Bem-te-vi. – Não gostei, não, chefe. Tá quieto
demais. Debaixo desse angu tem caroço.
Antes da volta dos dois cabras, Sabino estava inquieto, confuso,
inseguro. Era o fim do dia; nessa hora, sentia uma tristeza sem motivo
tomar conta de seu peito. Não entendia aquilo. Um dia ia pedir ao negro
Bastião, o rezador, para arrancar aquele desânimo de dentro dele. As
palavras de Bem-te-vi, apesar de cautelosas, o reanimaram. Foi um chefe
decidido quem, nas proximidades do prédio dos Vicentinos, falou assim:
– A gente sabe que o Delegado está esperando. Se ele se sentisse forte,
ia nos esperar na entrada da cidade e não na rua do Comércio. Repito: só
entramos nas lojas depois de ter afastado a polícia.
Alteando a voz:
– Agora preparem as armas para todo mundo atirar igual.
Assim foi feito. Duas descargas estrondaram na tarde, como sinal
inconfundível da presença dos cangaceiros.
Toda essa conversa, de antes das descargas, foi ouvida pelo fazendeiro
Cornélio de Andrade, que tencionava encontrar-se com o Delegado. Ao
perceber, de longe, o deslocamento dos cangaceiros, bateu na porta da
primeira casa, perto do prédio dos Vicentinos. A dona da casa, nervosa, não
queria abrir a porta de modo nenhum. Cornélio já estava pensando em
correr em direção à rua do Comércio, o que era muito arriscado, quando,
abrindo uma fresta da janela, a senhora o reconheceu pelos trajes
impecáveis: a roupa de linho branco imaculada, o chapéu do Chile, os
óculos de aros de ouro, e deixou o homem entrar.

Os cangaceiros do terceiro grupo, sob a chefia de Bem-te-vi, em vez de


descerem, logo, para o centro da cidade, resolveram saquear algumas
residências da rua da Matança: a do doutor José Coelho Sobrinho, de Abílio
Fernandes, de Manoel Pinheiro, de dona Maria Ribeiro Campos e de
Martinho Barbosa, onde fizeram boa colheita.
Devem, os retardatários, ter ouvido o tiroteio no centro da cidade, mas
fizeram que não. Disseram, depois, que a demora do terceiro grupo de
bandidos pesou no resultado final da luta.

OS DOIS cangaceiros que fizeram o serviço de reconhecimento não notaram


ninguém na rua, e era verdade. Chegaram a ser vistos, mas a ordem era a de
não atirar.
O Tenente Elino, José Teberges, Chicão, Manoel Santana e os soldados
Valões e Isaías estavam dentro da casa comercial situada entre a praça
Coração de Jesus e a rua do Comércio; na outra esquina, rua do Comércio e
rua Quinze de Novembro encontravam-se Romeu Menandro Cruz, Pedro e
Paulo Lucas, Marechal (Joaquim Sobreira Cartaxo), o cabo José Gonçalves,
Manoel da Nóbrega e os soldados Ananias e Damasceno; um pouco mais
recuados, na porta do Mercado e de frente para a rua Sete de Setembro,
concentravam-se o Sargento Rangel, Raimundo Anastácio, Vicente
Marcelo, José Mendes e os três soldados restantes. Este último grupo tinha
duas funções: enfrentar qualquer manobra de envolvimento dos cangaceiros
e defender a Usina da Luz, que ficava no fim da rua Sete de Setembro.
Confiante num resultado favorável, não era a conclusão a que chegava
o Tenente Delegado; não havia, entretanto, desespero no seu ânimo. Claro
que os bandidos contavam com a vantagem da experiência, da crueldade;
matavam com destreza e naturalidade, sem remorso ou inquietação. Mas, do
seu lado, havia um Romeu Cruz, um Raimundo Anastácio, José Mendes,
Vicente Marcelo, o Sargento Rangel e os soldados Valões e Ricarte, duros,
resistentes, que matavam, também, com tranquilidade.
Refletia nessas coisas, pesava, media, e achava lugar para a esperança.
O Senhor era pai de todos, mas havia agressores e agredidos; havia os que
vinham matar e os que queriam somente defender-se. E rezou, usando suas
palavras, procurando comunicar-se com quem podia ajudar.
De súbito, como saídos do inferno, os cangaceiros, Sabino à frente,
irromperam no alto da rua que dava para a praça da igrejinha, na esquina do
jornal O Rio do Peixe, gritando, pulando, berrando, atirando e dizendo
todos os nomes feios que já foram inventados. Eram uns quinze homens ao
todo, segundo suas contas. E os outros? Estariam atacando noutro ponto da
cidade?
Ao se aproximarem da capela consagrada a Santa Terezinha,
receberam os primeiros tiros de Romeu Cruz e seu pessoal. Os cabras,
rápidos, se esconderam detrás da pequena igreja e, de lá, continuaram
atirando. O Delegado, sem muita visão do ponto onde se encontravam os
bandidos, atirava também. A certa altura, gritou para Romeu Cruz:
– Romeu! Poupar munição. Não temos pressa, ouviu?
Da parte dos cangaceiros apareceram os primeiros desaforos:
– Cala a boca, tenentinho de merda! Daqui a pouco, vamos sangrar
você e os cornos que estão do seu lado!
O Tenente Elino esboçou um sorriso. Da outra esquina, Romeu
respondeu:
– Pois venham, seus filhos da puta! Estamos esperando!
Aos desaforos sucedia-se o tiroteio cerrado, as balas sibilando em
todas as direções. Esses assovios, no princípio, espantavam, mas sua
repetição anestesiava a consciência do perigo.
O Tenente recomendava, insistentemente, que não atirassem à toa. E
ficava imaginando qual seria o próximo passo de Sabino. Devia estar
esperando reforço para desalojá-los, a ele e a Romeu, das suas posições de
defesa. Mas ele contava, também, com o apoio de Raimundo Anastácio e do
Sargento Rangel na hipótese de ataque em massa por parte dos cangaceiros.
A luta se prolongava. Seria aquela a última noite? O som e o fogo dos
disparos, o sibilar das balas, as faíscas levantadas, de ricochete, no chão de
pedras, ou enterrando-se nas paredes ou na madeira das portas; os berros
dos cangaceiros, suas alpercatas raspando a terra dura, os desaforos, as
gargalhadas espalhafatosas, tudo era, a princípio, motivo de espanto e
pavor, vizinhança do pânico. Passado algum tempo, repetidos os gestos, os
gritos de guerra, as chamas vomitadas dos canos das armas, as coisas
entravam na cadência da normalidade, do hábito adquirido em segundos,
fazendo esquecer o medo de morrer ou a vontade de fugir.
Via, com admiração e raiva, Sabino Gomes rolar no chão, vezes sem
conta, descarregar o mosquetão de cano serrado, e voltar, rápido, para o
ponto de partida. Usava o chefe dos bandidos ora o fuzil, ora o rifle 44,
papo amarelo, atirando com tanta rapidez que a arma na sua mão parecia
uma tocha de fogo. (Diziam que o apelido de Virgolino, “Lampião”,
resultara dessa imagem fulgurante e terrível.)
Os defensores respondiam com firmeza. Romeu e Chicão, malucos,
corriam para o meio da rua, ocultavam-se detrás dos ficus-benjamin,
descarregavam suas armas e voltavam, céleres, para dentro da casa
comercial onde estavam.
O Tenente Elino tinha mirado, repetidas vezes, a figura de Sabino em
movimento, mas a sofreguidão anulava a pontaria.
Fechara-se a noite. Fazia escuro na Praça do Coração de Jesus. Tiros
dos dois lados tinham espatifado as lâmpadas mais próximas. Para o
Delegado era um mistério não terem aparecido, ainda, os bandidos
restantes. Recebeu, depois, a explicação de parte do Sargento Rangel: um
morador da rua da Matança informara que havia um grupo de cangaceiros
saqueando aquela parte da cidade. Quantos homens? Ninguém sabia.
Raimundo Anastácio, vindo pela parte interna do Mercado, apareceu
para falar com o Tenente. Perguntou:
– Sei que o senhor já pensou no assunto: valeria a pena atacar os
cangaceiros pelo lado direito da igrejinha?
O Tenente coçou a cabeça, dizendo:
– Eles são tão espertos como você, ou como nós. Acho que estão
esperando isso da nossa parte, tocaiados.
Enquanto conversavam, viram seis ou sete cangaceiros, no alto da rua,
caminharem em direção a Sabino.
O Tenente gritou para o lado de Romeu:
– Chegou o reforço. Vão atacar, agora, todos juntos. Vamos aguentar o
rojão. Anastácio e Rangel virão nos ajudar. Ouviu?
– Ouvi.
Raimundo Anastácio voltou para onde estava o Sargento Rangel com
esta ordem: “Quando os bandidos atacarem, todos juntos, pela rua do
Comércio, vocês venham nos ajudar.”
Não demorou muito. Os cangaceiros, colados na parede da Igrejinha,
deslocavam-se lenta e ordenadamente.
O Tenente gritou:
– Romeu!
– Já vi.
Eram vinte homens, aproximadamente. A luz vacilante de um poste
solitário aumentava suas dimensões. Quando pularam para a rua, se
espalhando, foram recebidos pelos fogos cruzados do Tenente e do pessoal
de Romeu. Mas eram vinte contra dez. O Tenente viu dois bandidos caírem
sob o impacto das balas. Imediatamente, dois outros agarraram os feridos e
os levaram para detrás do templo. “Quatro a menos”, contou. A fuzilaria
continuava com mais intensidade. Balas zuniam em todas as direções, e os
bandidos avançavam devagar e firmemente. Nessa ocasião, começaram a
deslocar-se o Sargento Rangel, Raimundo Anastácio e os homens sob seu
comando. Colados nas paredes de um lado e do outro da rua do Comércio,
começaram a atirar, berrando, pulando. Estavam descansados e sabiam ser
decisiva a sua intervenção. Raimundo Anastácio e o Sargento se juntaram a
Romeu, Chicão, José Teberges e os soldados Ricarte e Valões; pareciam
possuídos pelo demônio. A surpresa paralisou, de súbito, o avanço dos
cangaceiros. Sabino gritou com a voz enrouquecida, mas forte: “RECUAR!
RECUAR!”
O Tenente bradou:
– Cada um para o seu posto! Vamos aguardar novo ataque!
Com a volta dos cangaceiros à posição anterior, atrás da igrejinha,
Romeu e Chicão retornaram para os seus postos, o mesmo ocorrendo com
Raimundo Anastácio e o Sargento. Moisés fora ferido no braço esquerdo.
Era preciso levá-lo ao consultório do doutor Otacílio Jurema, aberto para
atender os que dele precisassem. Manoel Santana se ofereceu para levar o
rapaz. O Tenente concordou e deu uma nova ordem:
– Depois de entregar Moisés ao doutor, você e os soldados Valões e
Ricarte vão buscar mais munição.
Saíram os dois, Moisés com o braço direito apoiado no ombro do seu
amigo. Atravessaram o pátio interno do Mercado e saíram pela rua Tenente
Sabino, onde ficava o consultório médico.
Da outra esquina, Chicão gritou para o Tenente:
– Temos novidade. “Eles” estão recuando para a rua da Tamarineira.
– Todos, Chicão?
– Penso que sim. Romeu e Ricarte contaram vinte cabras, sendo que
dois ou três estão ruins.
Raimundo Anastácio foi chegando e ouvindo a conversa. Deu sua
opinião antes de ser perguntado:
– Depois de mandar os feridos com alguém acompanhando, Sabino vai
fazer uma destas coisas: ou preparar uma cilada, fingindo que vai embora;
ou vai tentar cercar a gente na porta do Mercado. Antes, Tenente, não é bom
ver se ainda há alguém detrás da igrejinha?
– Acho que sim. Leve Valões e Chicão com você.
Voltaram em cima dos pés: não havia, ali, vivalma, mas encontraram
um fuzil em boas condições e manchas de sangue na parede traseira da
capela.
O Tenente chamou Romeu e o Sargento Rangel e deu ordens para
todos se concentrarem na porta do Mercado, para onde ia o reforço de
munição. Sem ar de vitória, mas revelando a impressão geral, concluiu:
– Está claro que marcamos um ponto. “Eles” sabem, nesta altura, que
não vieram realizar um “passeio”. E que não vai ser fácil nos dominar, ou
dominar a cidade. Mas não desistiram, e vão tentar nos envolver. Já estamos
devidamente prevenidos e não nos metem mais medo. Agora, as ordens:
José Mendes, Vicente Marcelo, o Cabo Zé Gonçalves, dois soldados à sua
escolha, além de Raimundo Anastácio, vão ficar de prontidão na casa do
Engenheiro Draenner, das Secas, onde os cangaceiros acham que há
dinheiro do Governo. Esse grupo vai defender, também, o motor da luz, que
fica perto da casa para onde vão.
Olhou para um lado e para o outro, e perguntou:
– Vocês me dão notícia de Raimundo Anastácio?
3

NO ACESO da luta, de há poucos instantes, contra sua natureza e seu respeito


pela vida humana, o Tenente Elino Fernando tinha olhos para ver a
coragem, o destemor desesperado do chefe dos cangaceiros. Dava vigoroso
exemplo de bravura pessoal, correndo pela rua com a arma na mão,
atirando, gritando, animando os companheiros. Sozinho valia os cabras que
se apoiavam na loucura, no furor com que se expunha e atacava, ora usando
o mosquetão, ritmando as descargas com as voltas que dava pelo chão, ora
se servindo do rifle 44, papo amarelo, que acendia chispas de fogo no
ventre da noite. Refletindo, na sua fúria, o grande lutador que era, mostrava,
claramente, que estava só no combate, sem ninguém que o imitasse ou o
seguisse no esforço para amedrontar os “macacos”. Era um bandido, um
monstro, um louco dominado pela ânsia da destrutividade, mas era corajoso
e valente como quem mais o fosse. Se chegasse a ser morto ou ferido, seu
grupo entraria em colapso.
Em certo momento, antes da retirada para rua mais afastada do centro,
Sabino deixou a esquina da igrejinha e correu, mais uma vez, para fora do
seu abrigo. Num impulso desesperado, o Tenente o imitou, de certo modo,
saindo para a calçada, se agachando, correndo, pulando e atirando no vulto
assombrosamente móvel do chefe dos bandidos. Os demais ficaram
paralisados, transformando-se em espectadores de uma briga cujo desfecho
era decisivo. De um lado, o ímpeto arrebatado do bandido, seus truques,
seus gritos, suas manhas, seus pulos felinos, o poder de fogo da arma
mortífera; do outro lado, a destreza e a agilidade do jovem oficial de
elevada estatura, que ora ficava da altura das casas com seus saltos e seus
gritos, ora se misturava com a poeira da rua, atirando, atirando. Voltaram,
ilesos, para as suas posições, mas, para os capangas de Sabino, ficou a
imagem de um Tenente tão doido e de corpo tão fechado como o seu chefe.
Fora para isso, via, agora, mais por instinto do que por reflexão, que se
expusera àquela prova, contrariando tudo que se esperava de sua calma e do
seu senso de medida. Sentira, também, além da tremedeira indisfarçável, e
ao mesmo tempo, o medo e o gosto do desafio, o prazer de enfrentar a
morte, o êxtase do suicida na fronteira do desconhecido. Pedira a Deus, em
silêncio, que o livrasse de outra, mas o fato é que a luta mal começara.
Depois do confronto, houve uma trégua inesperada. Sabino, atilado,
feito nos tiroteios e nas escaramuças, percebeu ter à sua frente um inimigo
perigoso. Viu, também, com clareza, que estava gastando munição demais.
Decidiu, então, recuar para a rua da Tamarineira e, de lá, traçar novos
planos para arrasar os mata-cachorros. Reconheceu Raimundo Anastácio, o
traidor, atirando contra ele e seus homens. Iam ver todos eles quem era
Sabino Gomes. Ia pegá-los pelas costas e liquidá-los.
Fez pouso na tamarineira que dava nome à rua. Logo depois chegou
um emissário de Laurindo, que avisava encontrar-se nas proximidades da
Usina da Luz. Mais: que na porta do Mercado estavam concentrados cerca
de dez ou doze homens, entre soldados e paisanos. Mandou chamar
Laurindo para acertarem os novos planos. O portador, Dois de Ouro,
trouxera uma boa notícia: Laurindo mandara dizer que o soldado Lourenço
viajara para o Inferno.
Não era desmiolado pra se enganar com a realidade: havia fracassado
na primeira tentativa de botar os soldados pra correr. Perdera três homens:
um morto, Marcelino, e dois feridos gravemente. E os dois que os levaram
até onde estavam as montarias, Bastião e um cabra novo, talvez não
tivessem tempo de voltar. Olhava para a cara de seus homens: estavam
surpresos, confusos, espantados. Precisava entrar em ação imediatamente,
antes de esfriarem de todo. Concentrava a irritação que o dominava nas
pessoas do Tenente e de Raimundo Anastácio, responsáveis pela resistência
da cidade. Reconhecia, com raiva, que o Delegado era um homem de
coragem. Era meio doido, mas ele, Sabino, era doido e meio.
Quando Laurindo apareceu, o chefe dos bandidos levou-o para um
canto e lhe falou em voz baixa:
– Com cinco cabras que se afastaram, conto, neste momento, com 18.
Um dos feridos deixou o ponto que guarnecia e foi assaltar a casa de um
ricaço. Deu-se mal: arrancaram, com um tiro de raspão, um pedaço da cara
dele. O negro Bastião, que conversa muito, disse que morreram uns sete do
outro lado. Logo sete, que é a conta do mentiroso... Que conta você,
Laurindo?
– A gente acabou com uns três deles, só. E agora, chefe, que se vai
fazer?
– Vamos quebrar a Usina da Luz e, depois, cercar o Delegado, seus
chaleiras e o resto dos macacos. Vá com dois cabras, antes, à casa de
Raimundo Anastácio e agarre a puta da mulher dele. Vai ser um trunfo nas
mãos da gente.

Desceram, então, a rua da Tamarineira. Na caminhada, Sabino viu


alguém abrir uma fresta da janela. Mesmo em movimento, atirou de
revólver no abelhudo e, pelo grito que ouviu, alcançou o sujeito. O alfaiate
Eliezer Alexandre, de 21 anos, casado de novo, pagou, com a vida, o gesto
de pura curiosidade.
– Esse tá fora de combate – gabou-se o cangaceiro.
Da Tamarineira, passou para a rua Quinze de Novembro. Nesta rua
ficava a casa do Major Epifânio Sobreira, arrolado como um dos ricos do
lugar. Deslocou três cabras para saquear a residência do Major Sobreirinha
e entrou, com o grosso dos homens, na casa de Raimundo Anastácio,
arrombando o portão das traseiras.
Um dos cangaceiros deslocados para invadir a casa do Major (devia
ser Namorado), com voz afinada e bonita, cantava um trecho de modinha
bem conhecida:

Cai a tarde tristonha e serena,


Em macio e suave langor,
Despertando em meu coração
A saudade do primeiro amor...

O canto era interrompido com uma enfiada de nomes feios, em que


eram homenageadas, principalmente, as mães dos defensores da cidade e
suas partes pudendas.
Os três cangaceiros encarregados do saque da casa do Major Sobreira
encontraram o primeiro obstáculo: o pesado e alto portão de ferro, estava
fechado com dois cadeados. Tentaram quebrá-los a coice de rifle, quando
partiram disparos de dentro da casa. Recuaram. Um cabra mais afoito
achegou-se ao portão e tentou quebrar os cadeados com tiros de revólver.
Conseguiu. Abriu o portão e os outros entraram, correndo. Perceberam que
duas pessoas, pelo menos, resistiam, atirando. O homem que abriu o portão
levou a mão ao rosto, de onde saía muito sangue. Mas os outros não
desistiram; debaixo dos degraus da pequena escadaria miravam a fechadura
da porta do alpendre. Ouviram, animados, uma voz de mulher gritar:
“Papai, o senhor está ferido!” Logo depois o major falou: “Vá lá pra dentro.
É um ferimento ligeiro!” A porta já começara a ceder, quando os
cangaceiros ouviram tiros vindos do balde do Açude Grande. “São os
macacos”, berrou o homem ferido no rosto. Saíram os três correndo pela
rua Quinze de Novembro, entrando num portão aberto que Euclides, com a
mão no rosto, afirmou ser a casa de Raimundo Anastácio, onde Sabino
estava. Não havia ninguém do “índio” em casa. Com marreta e aluvião,
encontrados no quintal, quebravam tudo que encontravam: mesas, cadeiras,
guarda-louças, o fogão de alvenaria, as panelas de barro; rasgaram as
roupas, os vestidos, as redes, os lençóis, numa fúria estranha. Sabino
também tomava parte na devastação. Ao ver os três homens que chegavam,
indagou:
– Conseguiram alguma coisa?
Euclides, com o lenço no rosto, cheio de sangue, falou pelos outros:
– Não chegamos a entrar na casa; apareceram uns seis macacos e
fomos obrigados a vir embora.
Sabino, exaltado, não se conteve:
– Com seiscentos mil diabos! Vocês são mesmo uns porqueiras.
Arrependeu-se, logo, do que disse:
– Euclides, vamos tratar desse ferimento. Maçarico! Veja o ferimento
de Euclides.

Da porta do Mercado, de frente para a rua Sete de Setembro,


Raimundo Anastácio percebeu alguns homens nas janelas e, às vezes, na
frente de sua casa. Sentiu um frio de morte na boca do estômago: os
bandidos tinham Dorinha em seu poder. Não pensou duas vezes. Falou para
o Sargento Rangel:
– Vou para junto de minha mulher; ela está precisando de mim.
O Sargento aconselhou:
– O senhor está coberto de razão, mas nós prometemos ao Tenente
Elino esperá-lo aqui. E ele não demora, seu Raimundo.
– Sei disso. O Tenente vai compreender. Se os cabras querem me
castigar, tá certo; mas minha mulher nada tem a ver com esta luta.
Ao chegar à porta do Mercado, logo depois, acompanhado da maior
parte dos homens, o “índio” já ia longe. Gritou, assim mesmo:
– Raimundo! Raimundo!
Mas este continuou sua caminhada como se nada tivesse ouvido.
Embora desiludido com a possibilidade de um desfecho favorável,
ponderou:
– Pode ser que ache um meio de sair dessa. Vamos ficar preparados
para ir em seu auxílio.
O Sargento Rangel adiantou:
– Pela conversa dele, os cangaceiros escolheram sua casa, também,
porque é o melhor ponto para atacar tanto a Usina da Luz como a casa do
Engenheiro das Secas. Disse mais: que a casa de seu João Bichara fica a uns
sessenta passos da sua. Que ia tentar chegar lá e procurar saber notícia da
mulher.
Enquanto isso, Raimundo Anastácio andava, devagar, pelo meio da
rua, com a arma abaixada, gingando. Súbito, parou, debaixo do poste da
luz. Amarrou um lenço na ponta do mosquetão, e prosseguiu a caminhada
que, nessa altura, parecia vacilante, desanimada, insegura.
Alguém quebrou o silêncio pesado:
– De onde está, já pode ser alvejado. Mas querem ele com vida.
De repente, o “índio” desapareceu.
Chicão, tenso, explicou:
– Deve ter entrado na casa de seu Bichara.

Foi, em verdade, o que aconteceu. Encostou-se no gradil que fechava o


alpendre, e gritou:
– Seu João! Sou eu, Raimundo Anastácio. Preciso entrar. Os
cangaceiros estão na minha casa.
Dona Maroquinha Sobreira, cunhada do dono da casa, abriu o portão
do alpendre. Era uma moça baixinha, magra, cabelos pretos e olhos da
mesma cor, vivos, decididos, firmes.
– Entre, seu Raimundo. Dorinha está aqui.
Aliviado com a notícia, procurou o dono da casa.
– Seu João, minha presença na sua casa pode criar dificuldades para o
senhor.
– Que dificuldades? – perguntou João Bichara.
– Os cangaceiros me viram entrar. Têm mais ódio a mim do que ao
próprio Delegado.
– Antes do senhor aparecer, já estavam ameaçando degolar todo
mundo: homens, mulheres e crianças. Vi, há pouco, chegar gente armada na
casa do doutor Draenner. Não sei por que os cangaceiros não atiraram neles.
O cabo Zé Gonçalves estava com eles. É gente do Delegado, não é?
– Sim, é gente do Tenente Elino. A situação está melhorando. Se os
cangaceiros saírem da minha casa, vão ficar na mira do pessoal da casa do
Engenheiro.
Abriu a janela da frente e gritou:
– Doutor Drene! O Delegado vai descer já. Aguente aí, não deixando
os cabras saírem lá de casa...
Suas palavras foram interrompidas por uma saraivada de balas na
direção da casa do Engenheiro. Foi para o alpendre, arrumou as
cartucheiras, carregou o mosquetão e o revólver e viu, então, dona
Maroquinha aproximar-se dele. Com toda atenção, disse para a moça:
– É bom a senhora ir para dentro de casa, dona Maroquinha.
Ela sorriu e lhe perguntou:
– O que é que o senhor vai fazer?
– Vou ficar atirando daqui. Pulo para o poste da calçada, descarrego a
arma em cima deles e volto, de novo, para onde estou.
Dona Maroquinha, nervosa, mas com voz firme:
– Pois enquanto o senhor atira com o mosquetão, eu carrego o
revólver; quando estiver atirando com o revólver, eu carrego o mosquetão.
Fique sem cuidado; sei fazer isso.
Raimundo não sabia o que dissesse:
– E seu João, seu cunhado, sabe disso?
– Sabe.
João Bichara apareceu no alpendre. Raimundo repetiu a conversa de
dona Maroquinha e o dono da casa achou que ela podia ajudá-lo. O pessoal
do Engenheiro respondia ao tiroteio.
Raimundo Anastácio começou, então, a fazer o que prometera: dava
um pulo até o poste, atirava, e voltava para o alpendre. Parecia um gato
grande, desajeitado, mas preciso e rápido nos saltos. Quando atingia o
alpendre, dona Maroquinha lhe dava ora o revólver carregado, ora o
mosquetão. João Bichara atirava da janela, mas era interrompido, de vez em
quando, pela mulher que se agarrava a ele, puxando-o para dentro de casa.
No meio da confusão, das descargas, dos nomes feios, do sibilar das
balas, o “índio” achava um espanto aquela moça miúda, de olhos pretos, de
cabelo amarrado num coque, ali, ao seu lado, participando da luta. A filha
de dona Sinhara Sobreira, com sua coragem, lhe deu novas forças, pois
quando ali chegara, a fadiga começava a fazer pesadas as pernas, os braços,
as mãos.
Duma hora para outra, o silêncio. Os bandidos deviam estar
preparando uma investida. Gritou para o pessoal do Engenheiro:
– Que é que há?
Foi o próprio engenheiro quem respondeu:
– Parece que foram embora. Viram o Tenente e uns doze homens
descendo a rua em nossa direção.
– Não será safadeza deles, doutor?
Voltou-se para dona Maroquinha e pediu desculpas pela “má palavra”.
– Acho que não; a casa está vazia. Há sinais de fogo, até.
Nessa ocasião, vindo dos fundos da casa de seu Bichara, Dorinha
abraçou-se com Raimundo, chorando. Consolou-a:
– Que é isso, mulher? Choro nessa ocasião dá azar e abre caixão de
defunto. O pior já passou. Fique aqui, pois tenho de falar com o Tenente.
– Não vá, Raimundo. Os bandidos querem sangrar você. Era só o que
diziam, com os nomes mais feios do mundo. Cruz! Credo!
– Tenha calma, mulher. Você sabe que tenho de ir.
Voltou-se para dona Maroquinha e agradeceu a ajuda dela. Com um
sorriso nos lábios finos, ela disse:
– Ora, seu Raimundo, não fiz nada de mais.
Foi ver sua casa. Felizmente o incêndio não vingara, mas os bandidos
quebraram tudo que havia: móveis, louças, panelas, fogão, banheiro.
Juntou-se ao Tenente Elino na casa do Doutor das Secas, mas não tocou no
assunto. O que tinham a fazer pela frente era mais importante.

Ao aproximar-se do prédio da Delegacia, acompanhado dos soldados


Ricarte e Valões, para apanhar munição, Manoel Santana viu, por acaso,
dois cangaceiros diante do gradil da casa do Coronel Matias de Alencar,
sogro de Mariá.
– Acabo de ver dois cangaceiros tentando entrar na casa do Coronel
Alencar. Podemos ir em socorro dele?
O soldado Ricarte ponderou:
– De jeito nenhum, Manoel. Você sabe que nossa tarefa tem
preferência sobre qualquer outra. O Tenente Elino recomendou, e você deve
ter ouvido, que a gente fugisse de qualquer briga. Pegar e levar a munição é
nossa missão.
O soldado Valões assim se manifestou:
– Tá doido, rapaz? Além do mais, o que você está pensando em fazer é
arriscado demais.
Manoel insistiu:
– Vocês têm razão, mas não posso deixar de ir ajudar alguém que se
encontra naquela casa. Digam ao Tenente que não demoro, e que ele me
perdoe.
Tomou o mosquetão, encheu a cartucheira com pentes de cinco balas e
saiu em direção à casa do Coronel Alencar. Era uma ironia do destino,
arriscar-se pelo Coronel e seu filho; mas não se arriscava por eles e, sim,
por Mariá. Já ia a meio do caminho quando ouviu os primeiros tiros.
Apressou os passos e parou em frente da casa, do outro lado da rua. Os
bandidos não poupavam munição, mas de dentro de casa duas ou três
pessoas atiravam. Os bandidos forçaram o portão do gradil e entraram no
jardim. Um deles, agachado, visava a fechadura da porta da frente. Apesar
da distância, Manoel Santana fez pontaria e atirou. O cabra deu um pulo
para trás de uma touceira de plantas e ficou procurando localizar de onde
partira o tiro. Quando enxergou Manoel, atirou. Mas afastou-se de perto da
porta. O outro cabra, mais distante, tentava quebrar uma janela lateral com
o coice da arma. Manoel correu e ficou colado no gradil. Viu, claramente, a
cara cor de cobre, os olhos vesgos, os cabelos duros saindo do chapéu e a
boca meio disforme. Lembrou-se, num relâmpago, do homem que matara
seu pai. Paralisado pela surpresa e pela emoção, quase lhe foi fatal a
vacilação: os dois cangaceiros, agora juntos, atiraram na sua direção, as
balas ricocheteando no gradil e passando, quentes, pela sua cara. Jogou-se
no chão e ficou quieto, esperando que os cabras dessem sinal de vida. O
sujeito de olhos enviesados pensou que tivesse atingido Manoel; levantou a
cabeça e, de joelhos, ficou assuntando; Manoel mirou com calma e
disparou. Viu que tinha ferido o cangaceiro, pois este levou a mão ao rosto
e saiu correndo. Não teve chance de atirar no outro, pois de dentro da casa
disparavam na sua direção. Estirou-se, de novo, no chão, e gritou:
– Coronel Alencar! Não atire! Sou eu, Manoel Santana. Os bandidos já
foram embora.
Se não estivesse colado ao chão, os disparos de dentro da casa teriam
acabado com ele. Gritou, de novo:
– Coronel! Sou eu, Manoel Santana! Vim lhe ajudar e o senhor quer
acabar comigo?
Ouviu um grito de mulher:
– É Manoel Santana, seu Matias. Não atire!
Falou, de novo, mais animado:
– Mariá! Sou eu, Manoel Santana. Os bandidos já se foram. Está tudo
bem, então? Vou saindo.
– Não! Espere! – falou o Coronel com a voz forte de quem estava
acostumado a mandar. – Meu filho está ferido. Preciso levá-lo a um médico.
Abriram a porta e Manoel entrou. Viu o Coronel Alencar sentado no
chão, ajeitando a cabeça do filho num travesseiro sobre as pernas. O
homem parecia gravemente ferido, pois a camisa branca estava empapada
de sangue. O Coronel não tirava os olhos do filho, murmurando como se
falasse com uma criança:
– Disse a ele, mais de uma vez, que ficasse longe da porta; não me
ouviu; não ligava ao que eu dizia.
Mariá, de pé, encostada num móvel pesado, dirigiu-se ao sogro:
– O senhor não teve culpa de nada, seu Matias. Precisa, agora, alguém
ir chamar o doutor Otacílio Jurema.
– Ou levar o rapaz até o consultório do doutor. Ele está de plantão, lá,
atendendo os feridos – esclareceu Manoel Santana.
A aflição não o impedia de ver que Mariá estava mais bonita do que
nunca. Tudo só servira para mostrar, dolorosamente, que ela se colocava
cada vez mais longe de seu alcance. Mal se falaram.
De súbito, trancando a cara, o Coronel perguntou a Manoel:
– Como é que o senhor veio parar aqui? A luta não é na praça do
Comércio?
– Vim, com dois homens, apanhar mais munição na Delegacia e vi os
cangaceiros tentando entrar na sua casa. Acha que fiz mal?
Vindo de dentro de casa, um homem armado, de má catadura,
perguntou:
– Alguma novidade, Coronel?
– Você não está vendo meu filho ferido, homem?
Voltando-se para Manoel:
– O senhor me ajuda a levar meu filho até o médico?
– Ajudo, sim senhor. E tem que ser logo. Está perdendo muito sangue.
Mariá fitou-o com uma expressão de espanto e desespero. Manoel lhe
disse:
– Tenha calma; vamos levá-lo ao doutor Otacílio que é um grande
médico.
Falou ao Coronel:
– Antes, vou ver se os bandidos não voltaram.
Seu Osório, o vaqueiro, saiu acompanhando o rapaz. Regressaram,
incontinenti, com a notícia de que a rua estava deserta.
– Como vamos levar meu filho? – indagou o Coronel.
A sugestão veio do vaqueiro Osório:
– Numa rede pequena. É o melhor modo de evitar mais perda de
sangue.
Mariá trouxe do interior da casa uma rede nos braços. Só então Manoel
pôde ver o vestido branco todo manchado de vermelho. Colocaram o corpo
na rede. O ferido respirava com dificuldade, arfando pesadamente.
Manoel falou ao Coronel:
– Lembrei-me, agora, de que tenho de pegar o resto da munição, na
Delegacia, e levá-la para a rua do Comércio. Não posso acompanhar o
senhor.
– Nem é preciso. Sei onde fica o consultório médico.
Manoel voltou-se para Mariá:
– Adeus, Mariá.
– Adeus, Manoel.

Os soldados Ricarte e Valões tinham conseguido levar toda a munição.


Manoel Santana encaminhou-se para a rua do Comércio, de onde partia o
rumor inconfundível dos disparos. Ao passar pela casa do Coronel Matias,
viu, assombrado, a porta aberta, pois a luz da sala da frente estava acesa.
Resolveu apurar o que havia. Entrou na casa e gritou:
– Mariá! Mariá!
Vinda do interior da casa, num vestido azul, com gola de renda e
bolinhas brancas, que ele conhecia, a moça apareceu. Perguntou:
– Que está fazendo aqui?
– Vi a porta da frente aberta e esta luz acesa e vim verificar se você já
tinha ido para o consultório.
Torcendo as mãos, respondeu:
– Não podia ir só; o Coronel não esperou por mim. Vamos?
Manoel notou que ela estava descalça.
– E os seus sapatos, Mariá?
A circunstância desmanchou, duma vez, as defesas da moça. Temendo
uma crise de nervos, Manoel aproximou-se dela, que se abraçou com ele,
chorando:
– Manoel, sou uma infeliz. Nada deu certo comigo. Pode gabar-se do
acerto de sua profecia.
O rapaz recuou um pouco e enxugou, com as pontas dos dedos, as
lágrimas que desciam pelo rosto amado. Ela quis continuar falando, mas ele
não permitiu, pôs as mãos nos lábios trêmulos e os beijou com delicadeza.
Sentiu (e ela, também) o mundo revirar. Abraçados, beijavam-se
apaixonadamente. Quando Manoel a deixou, um momento, para fechar a
porta, ela disse, sem convicção:
– Vamos, agora.
Ele a envolveu, de novo, nos braços e ficaram, depois, de joelhos,
trocando beijos como se estivessem descontando o tempo perdido. Tirou,
Manoel, com jeito, o vestido azul, de bolinhas brancas, e se amaram na sala
iluminada. Os sons, as cores, a alegria, o amor, a beleza, a plenitude da
vida, o mundo inteiro se resumiu naquele instante de paixão e desespero.
Depois de algum tempo, amando-se outra vez, ela ponderou:
– Precisamos ir.
Ela foi buscar os sapatos, ajeitou o vestido e os cabelos e saíram para a
rua como dois sonâmbulos em direção à casa do médico. Ela batia com os
saltos do sapato na calçada, quebrando o silêncio reinante na rua.
Não chegaram a despedir-se. Perto do consultório, olharam-se
demoradamente, e Manoel Santana saiu correndo em direção ao centro da
cidade, de onde vinha o rumor do tiroteio.

***

O soldado reformado Lourenço Dunga, quando a tosse o sufocava,


rasgando a garganta, o peito, o estômago, pedia a Deus que o levasse. Para
que viver como vivia? Morando num quarto afastado da casa, isolado, para
a doença não passar para os filhos, só via a mulher quando lhe vinha trazer
a comida, com medo e nojo. Santinha, sua mulher, cada dia que se passava
ficava mais nova e, para ele, mais bonita. O pior era que o mal não lhe tirara
o desejo de fazer amor com ela. Santinha vendia saúde. Os seios grandes, e
ainda firmes, tremiam quando punha a trouxa de roupa na cabeça e saía
para entregá-la à sua freguesia. Tinha, na solidão amarga, ódio de seu vigor,
de sua saúde, de sua vida cheia de força e de energia. Às vezes pensava em
matar-se, mas, quando se lembrava da mulher, esfriava sua intenção. Talvez
o fato de permanecer vivo fosse a única vingança com que a obrigava a
pagar seus ciúmes, seus desgraçados ciúmes.
Ultimamente, só se falava, na cidade, na vinda de Sabino Gomes, que
vinha atacar Cajazeiras ao lado do seu chefe, Lampião. O cabo Ormeu, já
reformado, lhe prevenira, um dia desses, a respeito dessa ameaça,
lembrando que Sabino era vingativo como uma cascavel. Não iria esquecer,
nunca, a surra que levara por ter querido dançar à força com Santinha. Já
não dormia bem. A notícia agravou sua insônia. Atravessava a noite em
claro, balançando-se na rede solitária, imaginando a possibilidade de Sabino
localizá-lo. O engraçado é que não tomara parte na surra. Quando os
companheiros vieram buscá-lo, Santinha agarrou-se com ele, não o
deixando sair de casa naquela noite. O cabo Ormeu sabia disso melhor do
que ninguém, pois foi ele quem veio avisar-lhe da empreitada. Santinha,
que nesse tempo gostava um pouco dele, disse ao cabo:
– Dunga não vai. Não houve nada entre Sabino e eu. Quis dançar
comigo e eu não fui. Só isso.
Tempos depois um parente lhe confidenciou:
– Cuidado com esse cabo Ormeu. Não tira os olhos de Santinha.
Não deu importância a essa suspeita como a muitas outras, aparecidas
depois. Era inveja que tinham dele. De ter um pedaço de mulher como
Santinha.
Vivia quase só. Quando a mulher saía, levava os filhos para a casa da
sogra, temendo que passasse a doença para os três meninos. O pior é que
tinha os mesmos ciúmes de outrora, não os manifestando para não aumentar
a irritação e o desprezo da mulher.
Na terça-feira, pela manhã, tiveram uma discussão meio azeda,
somente interrompida pelo violento acesso de tosse, que o deixou exangue.
Santinha lhe disse, no calor da briga:
– Vive aí morrendo de medo de Sabino. Tomara que se lembre de
você, se vier, mesmo, atacar Cajazeiras.
Deixou-lhe um pedaço de pão e um naco de rapadura, despedindo-se
com ar de deboche:
– É seu almoço. Só volto de noite.
Já tinha escurecido. Saiu do quarto, no fundo do quintal, e foi para a
frente da casa, andando com dificuldade e arfando a cada passo que dava.
Ouviu passos se aproximando. Não havia mais tempo para correr: Santinha
ia brigar, de novo, por ter-se afastado do quarto. Tossiu e a vista ficou turva.
Ouviu o vulto perguntar:
– Você é o soldado Lourenço?
– Sim senhor.
– Pois Sabino Gomes mandou dizer que seu dia chegou.
– Sabino Gomes?
– Sim, seu cabra safado!
Arqueou os ombros, confuso ou resignado. Se tivesse força, poderia ter
falado ao seu matador: “Mata um homem morto.” O bandido tinha vindo
dar-lhe um tiro. E deu. Na cabeça.

Romeu Cruz tinha grande amizade pelo Tenente. Não era somente pelo
favor que dele recebera: a amizade se baseava, também, na admiração pela
sua conduta à frente da Delegacia durante esses últimos seis meses.
Naquela noite, de luta violenta e desigual, ele mostrara ser um homem de
fibra, corajoso, firme. Achava, entretanto, que seu amigo já estava pecando
por excessiva prudência. Se eles tivessem aproveitado a correria dos
cangaceiros ao deixarem a igrejinha e se meterem na rua da Tamarineira,
talvez, naquela hora, tudo estivesse resolvido. Seu amigo temera que a
manobra, muito apressada, escondesse a astúcia de uma emboscada.
Consolava-se em saber que, afora dois ou três feridos, o pessoal estava
inteiro. E o fato era motivo de satisfação.
Já se preparava para ir ao encontro do Tenente, quando viu, do seu
posto, e ouviu, troca de tiros na altura da casa do Major Epifânio Sobreira,
que ficava perto do balde do Açude Grande. Chamou seus amigos
cearenses, Pedro e Paulo Lucas, e saíram em socorro do Major. No
caminho, lembrara que não tinha avisado ao Delegado. Esperava não
demorar. Tomou uma viela, acompanhado de seus amigos, contornou o
muro do grande quintal da casa, e alcançaram o balde do açude. Os
cangaceiros continuavam a atirar para dentro de casa, mas o Major
Sobreirinha e outra pessoa respondiam aos tiros com firmeza. A uns
sessenta passos da casa, Romeu e seus amigos começaram a atirar. Os
cabras, desnorteados, reagiram, disparando na sua direção. Depois,
afastaram-se correndo.
Ao avistar-se com o Tenente, narrou o incidente. Olhou em derredor e
não viu medo na cara dos homens que estavam ao lado do Delegado.
Animou-se. Notou a falta do “índio” e perguntou:
– Cadê Raimundo Anastácio?
Apontando o fim da rua, o Tenente Elino lhe disse:
– Neste momento está na casa de seu João Bichara. Fez-nos um susto
danado. Parecia estar caminhando para a morte...
– Por que o senhor deixou, Tenente? É uma loucura. Se há uma pessoa
que eles querem pegar é Raimundo.
– Quando cheguei aqui, ele já estava no meio da rua. Não adiantaram
as ponderações do Sargento Rangel, nem as minhas. Acha que dona
Dorinha está nas mãos dos cangaceiros.
Daí a pouco chegaram os soldados Ricarte e Valões, com mais
munição, tendo sido feita sua distribuição. O Tenente perguntou por Manoel
Santana.
– O rapaz foi ferido?
O soldado Ricarte esclareceu:
– Manoel Santana viu dois cangaceiros tentando entrar na casa do
Coronel Matias de Alencar. Apesar dos nossos conselhos, e de lembrar as
ordens recebidas, tomou o mosquetão e seguiu naquela direção.
Estava afrouxando o comando, ruminou o Oficial para ele mesmo.
Romeu, há pouco; Raimundo Anastácio, e, agora, Manoel Santana,
justamente na hora decisiva para atacar os cangaceiros! Felizmente enviara
alguns homens para a casa do Doutor Draenner, das Secas, que ficava perto
da Usina da Luz e quase defronte da casa de Raimundo Anastácio.
Nessa ocasião, vindo da rua Grande, em trajes civis, com o andar
desajeitado de Padre sem batina, lhe apareceu o Padre Gervásio Coelho,
com um rifle na mão e uma cartucheira na cintura.
– Venho me juntar ao senhor.
Era difícil e delicado recusar o oferecimento do vigário. Fez um
arrodeio:
– Padre Gervásio, agradeço de coração seu oferecimento; mas um dos
nossos pontos fracos é a defesa da casa do Prefeito, que fica em frente a do
senhor, não é verdade? Não posso tirar ninguém de lá; gostaria que o
senhor, mesmo da sua casa, reforçasse aquele setor.
O Padre não insistiu, mas falou meio zangado:
– Se é a minha condição de Padre que lhe atrapalha, eu lhe digo que só
sou Padre porque sou homem. Mas o senhor é quem manda. Obedeço.
O Tenente agradeceu e teve a seguinte conversa com os homens que
estavam na porta do Mercado:
– Vamos, desta vez, tomar a ofensiva; vamos atacar. Sabino e seus
cabras estão na casa de Anastácio, que é uma casa pequena, como vocês
sabem. Há um grupo nosso que já começou a atirar da casa do Doutor
Draenner, incluídos dois ou três empregados dele. Se os bandidos
permanecerem ali, nós vamos atacá-los pela frente e pelas traseiras da casa
de Raimundo Anastácio. Cabeça fria e mãos quentes.
Desceram, em marcha lenta, pela rua Sete de Setembro. O tiroteio
entre a casa do Engenheiro e os bandidos enchia a noite com seu estrondo, o
sibilar das balas e as chispas de fogo furando a semi escuridão da noite. Os
bandidos se revezavam nas janelas e alguns, mais afoitos, como Sabino,
atiravam da calçada, pulavam, berravam e entravam, de novo, na casa.
O Tenente Elino viu o esforço desesperado de Raimundo Anastácio,
atirando da casa de seu João Bichara. A hora estava madura. Mandou
Romeu, Ricarte, Valões, Manoel Santana, José Teberges e mais três para as
traseiras da casa do “índio” e os demais iriam com ele, pela frente. Era
agora ou nunca! Nessa ocasião, do lado da Usina da Luz, vinha o estrondo
de estranhos estampidos, com uma cadência impressionante. Parou um
pouco para apurar o que era aquilo. Algum reforço dos municípios
vizinhos? A coisa já demorava uns dez minutos, quando Chicão sorrindo,
no meio da confusão, explicou:
– Não é nada demais. O mecânico que cuida do motor esclareceu que o
estampido resulta da quebra da polia da roda grande do motor, partida ao
meio. Toda vez que a metade da correia bate na parede estronda como um
tiro.
O tiroteio, por sua vez, havia cessado completamente. Fez-se um
silêncio pesado. Romeu disse:
– Parece que não há mais ninguém na casa de Anastácio. Quer que vá
ver, Tenente?
O soldado Misael Pereira, ouvindo a conversa, saiu do meio do pessoal
e, sem consultar ninguém, avançou, em linha reta, atravessando a rua, à
procura dos bandidos. O Tenente, advertido, quis gritar para que parasse,
mas não adiantava mais, pois o soldado já havia alcançado a metade da rua;
nesse instante, vários tiros partidos da casa o alcançaram, levantando,
também, uma onda de poeira em torno dele. Sua arma voou das mãos
desgovernadas e o rapaz ensaiou dois ou três passos pesados, sem direção,
como se estivesse embriagado, desabando sob a fuzilaria dos bandidos.
Refazendo-se da surpresa, responderam ao fogo com veemência, e os
cangaceiros se retraíram mais uma vez. Do lado da Usina da Luz
continuava a partir o som dos estampidos com uma cadência regular e
firme.
Não houve mais nenhuma movimentação por parte dos ocupantes da
casa de Raimundo Anastácio. O Tenente determinou, então, que sob o
comando do Sargento Rangel, metade dos homens se deslocasse para a
traseira da casa. Dentro de cinco minutos, ele atacaria pela frente, com o
pessoal restante, numa ação que, para ele, ia decidir o novo impasse.
Daí a pouco, acenando com um lenço branco, Chicão apareceu na
janela da casa invadida, gritando, com visível satisfação:
– Foram embora! Foram embora!

A casa estava totalmente arrasada, sem um objeto inteiro: mesas,


cadeiras, panos, redes, louças, panelas e até o fogão de alvenaria com bocas
de ferro. Até as gaiolas tinham sido rebentadas. Num canto da gaiola
grande, esmagado, o graúna brincalhão.
Romeu, agitado, bradava:
– É a hora de acabar com eles!
Raimundo Anastácio entrou na conversa:
– Acho que Sabino ainda está por aí, tentando saquear algumas casas.
Existe, ainda, o perigo de uma emboscada.
– Por que emboscada?
– Saiu depressa demais.
O Tenente deu a palavra final:
– Em vez de correr atrás deles, vamos fazer um atalho pela rua do
Comércio.
Havia, entretanto, no alvoroço geral, a convicção de que os bandidos
tinham deixado a cidade.
Raimundo queria admitir, também, essa certeza, mas a experiência,
aliada à sua natureza desconfiada, recomendava toda prudência. A regra, no
cangaço, era fugir, sempre, quando a briga se tornava confusa e incerta,
como naquele caso. Uma boa retirada era creditada à esperteza e à
habilidade do chefe do grupo, principalmente quando não resultava em
baixas. Mas não podia deixar de lado, também, a doidice e a vaidade de
Sabino Gomes, em busca de ser tão famoso como o Capitão Virgolino
Ferreira, o Lampião.
Confidenciava essas coisas ao Tenente e a Romeu Cruz, quando dele
se aproximou Manoel Santana, refletindo, no sorriso aberto e no brilho do
olhar, a alegria incontida da vitória. Vira como esse rapaz, quase um
menino, se comportara na luta, com coragem e decisão.
Manoel Santana estava quase na frente de Raimundo Anastácio,
quando este viu acender-se, no fim da travessa, no coração da treva, o brilho
inconfundível de um disparo. Viu, ainda, no mesmo segundo, o rapaz levar
a mão à cabeça, num gesto que não chegou a completar. Soube, logo, que
Manoel levara um tiro fatal, pois, empurrado pelo impulso da bala, caiu na
rua com todo o corpo. Abaixou-se, instintivamente, com a arma
engatilhada, fitando o ponto do escuro de onde saíra a língua de fogo.
Ouviu-se, na ocasião, nítido, o ruído de patas de cavalo na rua
próxima, a da Tamarineira.
Os homens, atônitos, esquecidos do perigo, com a cabeça descoberta,
formaram um círculo de dor em torno do menino morto.
O Tenente Elino, branco como uma vela, pediu a Chicão:
– Levem o rapaz para a casa do Engenheiro.
Foi o último tiro que se ouviu, naquela noite, na cidade de Cajazeiras.
Logo em seguida, sob o comando do Delegado, os homens, num grupo
compacto, saíram apressados à procura dos cangaceiros. Percorreram o
centro, as ruas próximas, a Matança, o caminho do Cemitério até à
Rodagem, ponto extremo da cidade, mas não descobriram sinal dos
atacantes. Algumas pessoas, agitadas, nervosas, informavam que os
cangaceiros haviam passado, correndo, em direção à estrada para o Ceará.
Eram 9 horas da noite.
Ao regressarem da Rodagem, o Delegado e seus comandados já
encontraram as ruas cheias de gente. A notícia da retirada dos bandidos
correra com a velocidade do vento. Alguns, exaltados, levantavam para o ar
as armas virgens.
Conduziram o Tenente e seus homens até à rua Grande, onde ficava a
residência do Prefeito. Os tribunos elogiavam, com entusiasmo, os
defensores da cidade, destacando os nomes do Delegado, de Romeu Cruz,
de Raimundo Anastácio e de Chicão.
Os sinos da Igreja Matriz, bem próximos, badalavam, na noite da
libertação, sua mensagem de alegria, abafando, algumas vezes, as palavras
dos oradores. O Tenente descobria, no toque festivo do campanário, uma
nota triste, quase um dobre escondido pelas mortes do soldado Misael
Pereira e de Manoel Santana.

Raimundo Anastácio vinha acompanhando os amigos no passo lento,


gingando nas suas pernas tortas. Ao se aproximar do centro da cidade,
deixou o pessoal avançar e tomou, discretamente, o caminho de casa. Não
parecia, de modo nenhum, um vencedor. Queria dormir. Dormir um sono de
três dias e três noites. Dormir e esquecer. Entrou pelo portão traseiro. Reviu
a destruição de todas as coisas que fora juntando durante seu casamento,
muitas delas feitas pelas suas próprias mãos. Depois, com a mulher,
pensaria no que fazer. Agora, queria dormir. Dormir e esquecer. Esquecer a
morte do rapaz, quase uma criança, por uma bala que lhe era destinada.
Estava a ver o sorriso feliz do moço ao admitir a vitória. Na caminhada
falaram no velório de Manoel. Era sua obrigação, mas não iria. Não havia
intenção, gesto, palavra que consolasse dona Petronila.
Apanhou uns panos rasgados, pedaços de lençóis e cobertores
estraçalhados; juntou-os num canto do quarto e neles ajeitou o corpo
cansado.

FIM

Rio de Janeiro, setembro de 1983


a julho de 1984
Este livro foi composto com a família tipográfica Bitstream Vera Serif na
LINOLIVRO S/C COMPOSIÇÕES GRÁFICAS LTDA.
Rua Dr. Odilon Benévolo, 189 – Benfica
e impresso nas oficinas da
EDITORA VOZES LTDA.
Rua Frei Luiz, 100 – Petrópolis
para a
LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA S.A.
em novembro de 1984

Ano da 8.ª BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO


(em São Paulo, 16 a 26 de agosto)
– 450.º aniversário de nascimento do Padre José de Anchieta
PATRONO – EDITOR JOSÉ OLYMPIO
(★ 1784 † 10-11-1843)
Sesquicentenário de nascimento de Luís Delfino
(★ 25-08-1834 † 31-01-1910)
Centenário de nascimento de Augusto dos Anjos
(★ 20-04-1884 † 12-11-1914)
Roquette-Pinto, Edgar (★ 25-09-1884 † 18-10-1954)
J. Carlos (de Brito e Cunha) (★ 18-06-1884 † 02-10-1950)
Cornélio Pires (★ 13-07-1884 † 17-02-1958)
Herbert Moses (★ 27-07-1884 † 11-05-1972)
Martins Fontes (★ 23-06-1884 † 26-06-1937)
Cinquentenário de morte de Coelho Neto (★ 21-02-1864 † 28-12-1934)
Humberto de Campos (★ 25-10-1886 † 05-12-1934)
João Ribeiro (★ 24-06-1860 † 13-04-1934)

J.O.
CÓD. JO: 02254

RJ: Rua Marquês de Olinda, 12, RIO DE JANEIRO


SP: Av. Paulista, 807 – cj. 701/02/03, SÃO PAULO
MG: Rua Carijós, 244 – Edifício Walmap, BELO HORIZONTE
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NOTA DA EDITORA (Dados Biobibliográficos do Autor) -
CRONOLOGIA
PREFÁCIO
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze

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