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Cf. Weimann, Robert. “Narrative perspective: Point of View Reconsidered”. In Structure and Society in
Literary History. Studies in the History and Theory of Historical Criticism. Expanded edition. Baltimore
and Longon, The Johns Hopkins University Press, 1984.
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2
Candido, Antonio. “O Homem dos Avessos”. In Tese e Antítese. São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1964.
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“Lima Barreto não soube resolver formalmente, como construção verbal ficcional,as proposições de
conteúdo indiciadas em sua obra.Ele é pólo oposto a Guimarães Rosa. Este,devido ao seu
conservadorismo político,acabou se prejudicando como escritor.Dotado de grande virtuosismo verbal,ele
sempre recuou ante as possibilidades abertas pelos enredos,personagens e situações de suas narrativas.A
forma do conto lhe serviu como refúgio ante esse recuo sistemático.O que ele recuava em conteúdo
acabava tentando compensar com malabarismos formais.Não por acaso ele tem sido o autor ideal para um
período de repressão ideológica.” Flávio R. Kothe, “O Mundo de Lima Barreto, ajudando a sonhar com o
futuro”. In Jornal da Tarde,São Paulo,6/6/1981, Divirta-se. Caderno de Programas e Leituras.
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“Há em Guimarães Rosa (desculpe-se a heresia, o santo é grande demais,o andor vaporoso,a procissão
caudalosa;apesar da imensa e declarada admiração,repito,que tenho por Rosa), há em Guimarães Rosa um
lado Rui Barbosa,um lado Euclides da Cunha, um lado Coelho Neto, um lado Afonso Arinos de Pelo
Sertão, um tipo de linguagem que procuro satirizar[...]”. Autran Dourado. “Estilo e Lugar-Comum”. In
Uma Poética de Romance.São Paulo, Perspectiva/INL-MEC,1973,p.85.
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das concepções artísticas de hoje. O que foi identificado como formalismo conservador
do estilo de Rosa é, ao contrário, a demonstração objetiva da impossibilidade moderna
de haver estilos metafísicos. Objetivamente, sua experiência com a forma é um modo
muito materialmente calculado de dissolução da linguagem existente, como ocorre em
outros escritores modernos, Mallarmé, Roussel, Oswald de Andrade, Lezama Lima,
Joyce. A forma de Rosa não é a forma de Joyce, obviamente, mas ambos têm em
comum a recusa da linguagem existente, pois sabem que é impossível escrever em uma
língua degradada e reduzida à estupidez instrumental. O mundo produzido por Rosa
com os destroços das linguagens existentes é poeticamente fechado em si mesmo,
bárbaro e arcaico. A nostalgia de unidade que o leitor pode ter quando faz contato com a
sua inteireza épica não é, porém, a de alguma mítica e regressiva unidade perdida, mas
simplesmente a nostalgia de si mesmo, como a saudade do futuro que nasce do
pensamento da precariedade da própria existência no que ainda não veio.
O pressuposto poético de Rosa é outro e passa fora dos esquematismos da
oposição realismo/formalismo. Não autonomiza a linguagem como objeto de exercícios
que dissociam forma e conteúdo porque não a concebe instrumentalmente. Não idealiza
a realidade prática da linguagem como superestrutura ideológica ou reflexo empirista da
unidade contraditória da realidade. Enfrenta o simbólico como o que efetivamente é:
realidade prática de prática contraditória. Não é formalista, mas absolutamente formal5.
Explora a inigualdade de significante e significado e passa ao lado das adequações
miméticas dos classicismos e da representação do realismo, para afirmar o primado da
intuição irredutível ao racionalismo das linguagens degradadas.
Falando da linguagem supra-nacional que inventava, afirmou que não era
“revolucionário”, como a vanguarda concretista propôs ao compará-lo a Joyce. Preferia
ser conhecido como “reacionário” da linguagem, pois a ficção de sua língua literária
queria voltar à língua que se falou antes de Babel para conferir à palavra o “sentido
original” perdido nas objetivações da racionalidade instrumental contemporânea. O
grande sertão é o mundo em que o homem ainda não provou do fruto da árvore do bem
e do mal, dizia. Não é somente o da “civilização do couro” da referência empírica da
bela fórmula de Capistrano de Abreu. Como gostava de dizer, citando Goethe, é o sertão
5
Leia-se o que diz a Lorenz sobre a sinceridade no uso da língua, sobre a responsabilidade do escritor,
sobre a ética do estilo, sobre a língua da metafísica Cf. “Literatura deve ser vida- Um diálogo de Günter
W. Lorenz com João Guimarães Rosa”. In: Catálogo da Exposição do Novo Livro Alemão. Frankfurt am
Main,Otto Lembeck, 1971.
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“Duas Cartas”. In Cavalo Azul 3. São Paulo, Edição de Dora Marianna,1968.
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Kettle, Arnold. “Dickens and the Popular Tradition”. In Zeitschrift für Anglistik und Amerikanistik, 9,
1961, p.230.
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do seu movimento como leitor. Nessa apreensão, as essências da metafísica e suas filiais
religiosas não são substâncias a serem interpretadas como revelação de fundo. São
substanciais apenas funcionalmente. Como peças do artifício produtor do fundo
indefinido dessa apreensão, as imagens fazem falar o que a ideologia silencia, pois as
coisas figuradas nelas só têm existência como a realidade do possível poético que
estranha os hábitos perceptivos do leitor.
Quando o leitor topa, em “Buriti”, de Corpo de Baile, um enunciado como O
vento úa, morrentemente, avuve, é uma oada- êle igreja as árvores, deve entender que a
onomatopéia “úa” se conjuga analogicamente como verbo ou predicado de um sujeito,
“vento”; e que um adjunto adverbial, formado de um particípio presente,
“morrentemente”, circunstancializa sua ação. Também, que a predicação de “ser”
introduz “oada”, onomatopéia substantivada, e que novo verbo analógico, “igreja”, faz
nova predicação. Embora possa entender que a composição poética da estrutura do
enunciado tem as funções gramaticais, não é evidente o que o “igrejar” do vento lhe
comunica como significação e sentido do enunciado. Quando busca na memória uma
representação conhecida que lhe permita achar e reconhecer uma significação provável,
não a encontra imediatamente e adapta o vazio do seu entendimento ao que supõe saber.
Sua tradução deixa para trás, no entanto, um resto de sentido indefinido, que sua leitura
relaciona com outros restos de traduções que já fez de outras imagens. A presença
indefinida da unidade do contínuo de sentido indefinido é percebida pelo leitor como
substância difusa que se estende entre as imagens relacionando-as indefinidamente,
como que abaixo, acima ou fora da linguagem. Materialmente, tecnicamente e
ficcionalmente, as deformações das imagens produzem o efeito de fundo indefinido;
mas o leitor não nega o lugar em que vive e tende a lê-lo como fundo substancial e,
quase sempre, como presença misteriosa de uma causa substancial das imagens e das
coisas figuradas nelas. Como não tem conceito para ele, figura-o negativamente-
sublimemente- como fundo indizível e irrepresentável de essência só apreensível e
interpretável pelos conhecimentos não-literários a que recorre para fazê-lo, filosofia,
religião, mito, psicanálise.
Quando deforma as imagens, no entanto, o autor mantém em todas as
deformações o uso do desuso léxico, sintático e semântico dos usos. As deformações
relativizam e deslocam as adequações da verossimilhança semântica e sintática
pressupostas na memória literária do leitor habituado a coisas mais claramente
empiristas, mas continuam a repetir a verossimilhança gramatical das funções da língua.
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“… nos jogos de linguagem de Rosa, alternam-se e contaminam-se significação e
designação,retorcem-se efeitos recíprocos de significantes e significados, multiplicam-se homonímias,
ressaltam-se iterações, produzem-se permutações de todas as espécies, das tautológicas às agramaticais,
de predicados e sujeitos, adjetivações e adverbializações de substantivos, multiplicam-se os efeitos de
recepção, abolindo-se o livro como fetiche: sempre a divergência dos procedimentos, a libertar a língua
como muitas línguas, também elas declinantes por todos os lados e de muitos modos, sem limites, o que
se resume como efeito de paradoxo, como quodlibet seqüente a p &~ p etc”.Cf. Leon
Kossovitch.“Prefácio”. In João Adolfo Hansen. O O. A ficção da literatura em Grande Sertão:Veredas.
São Paulo, Hedra, 2000, p. 12.
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Cf. Kerstin Behnke. “A Crise da Representação”. Tradução de Luiz Costa Lima. In Crises da
Representação. Edição de João Cezar de Castro Rocha e Lara Valentina da Costa. Rio de Janeiro,
Departamento de Letras da UERJ, 1994, Cadernos do Mestrado/Literatura- 10, p. 15
9
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Cf. Paolo Fabbri “ Babel Feliz- ‘Babelix,Babelux(...)ex Babele Lux”. In Crises da Representação.
Edição de João Cezar de Castro Rocha e Lara Valentina da Costa. Rio de Janeiro, Departamento de Letras
da UERJ, 1994, Cadernos do Mestrado/Literatura- 10, p. 36.
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Trato dessa questão em o O. A ficção da literatura em Grande Sertão: Veredas. São Paulo, Hedra, 2000,
pp. 83-88.
12
Em “São Marcos”, de Sagarana, o procedimento de correlação babélica das línguas é enunciado na
encenação de asserções teóricas do narrador sobre a orientação do sentido da palavra, como acontece nas
suas considerações sobre o rol de reis assírio-babilônicos e o “sentido prisco” e o “ileso gume do
vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fôra, se jamais usado”. O mesmo
procedimento de correlação de referências disparatadas agenciadoras de indeterminação é explicado pelo
escritor em uma carta para Edoardo Bizarri, seu tradutor italiano, onde comenta seu processo de invenção
de seres que povoam a imaginação popular, como o nhã-ã, o gôro, o onho, o saponho, o ôsgo, o
zambezão, o quibungo-branco, o morcegaz: “... o nhã-ã: anhangá (o diabo dos índios tupis e guaranis,
dado em forma de propósito deturpada, reduzida a ‘fórmula’. Além disso, há Ngaa, o adversário do
Criador, segundo um mito espalhado na Sibéria, sobretudo entre os Tártaros do Sul. Ngaa é ‘a morte
personificada’. Em nhã-ã reluz o esqueleto, o substrato de nenhum, ninguém etc. isto é, o nada, a
negação= o mal, o Diabo. O gôro: o que se frustrou, o ser informe, incompleto, larva ou lêmure, duende.
O onho: o medonho resumido em seu sufixo, só por si já horrível. O saponho: o sapo meio-humano e
gigantesco. O ôsgo: sáurio, crocodilo, dragão. O Zambezão: inventei. Porque podia ser um ‘monstro
africano’( De Zambeze, o rio, de nome sugestivo). O quibungo-branco. Este, existe, isto é, existe o
QUIBUNGO. Monstro, devorador de meninos, das lendas africanas, trazidas pelos escravos. O morcegaz-
homem morcego?”. Cf. Correspondência com o Tradutor Italiano.São Paulo,Instituto Cultural
Ítalo-Brasileiro,1972, Caderno 8.
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Cf. Mary Lou Daniel. João Guimarães Rosa: Travessia Literária. Introdução de Wilson Martins. Rio de
Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1968.
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regionalista dos românticos, realistas e naturalistas brasileiros do século XIX é uma das
principais matérias estilizadas e parodiadas. Também a de modernistas dos anos 1930. O
autor também seleciona e indetermina matérias de textos de ideólogos brasileiros dos
séculos XIX e XX que, à esquerda e à direita, trabalham com as oposições de
litoral/sertão, moderno/arcaico, industrial/rural, desenvolvido/subdesenvolvido ,
letrado/iletrado, alfabeto/analfabeto, culto/popular, cultura/raça, civilizado/primitivo,
branco/negro, ordem/desordem, progresso/atraso etc.-quando escrevem sobre o sertão e
a ideologia da “brasilidade”.16
O autor comunica ao leitor a própria correlação como pragmática avaliativa da
representação que efetua nela. Com isso, evidencia que a seleção dos materiais, como se
pode observar nos muitos cadernos de notas de Rosa, pressupôs a avaliação da
funcionalidade de seu uso como matéria da representação. Na correlação, o autor produz
o atrito das retóricas das matérias, traduzindo-as umas pelas outras como suspensão do
sentido que têm nos usos onde foram selecionadas. Com a operação, avalia a
representação montada com elas como negação, duplicidade, ironia, paródia e humor
resultantes da relativização e esvaziamento de suas primeiras significações. O
procedimento de correlação evidencia-se funcionalmente como técnica de dramatização
de formações ideológicas de diferentes situações políticas e posições intelectuais da
história do país. Na dramatização, o autor relativiza as representações do sertão e da
chamada “brasilidade” feitas da perspectiva letrada dos intelectuais da civilização
litorânea que, desde o século XIX, cercaram o mato de flores degeneradas ou idílico
arame farpado. Confere autonomia antropológica à ação dos personagens sertanejos,
mas não a unifica como unidade de natureza sertaneja justamente porque escreve
demonstrando saber das contradições que desde o século XVIII dividem as
interpretações que trabalham com a oposição “litoral/sertão” e equivalentes. Não propõe
a unidade ou a natureza do sertão, pois as representações dele pressupõem
necessariamente as representações ilustradas. É o que ocorre exemplarmente na
correlação das questões do doutor emudecido e das respostas de Riobaldo no diálogo
implícito de Grande Sertão: Veredas. Funcionalmente, a correlação relativiza a
universalidade pretendida pelas representações letradas do doutor, mas também a
unidade arcaica, idílico-degenerada, das representações sertanejas. Esvaziando as
unidades ideológicas pressupostas na oposição “litoral/sertão”, o ponto de vista do
16
Cf. Roncari, Luiz. O Brasil de Rosa: mito e história no universo rosiano: o amor e o poder. São Paulo,
Editora UNESP, 2004.
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autor evidencia e sugere que o sertão não é natureza, como na literatura romântica e
naturalista, mas diversidade cultural com historicidade própria, cujos códigos
independem da cultura letrada, embora sejam determináveis a partir dela.
Na correlação, os elementos mínimos, como os do léxico, operam
disjuntivamente. Por exemplo, quando Riobaldo diz ao doutor emudecido: “Inda hoje
apreceio um bom livro, despaçado”, a forma arcaica do verbo, “apreceio”, classificada
como popular e iletrada por oposição à norma culta e letrada, “aprecio”, faz a
predicação irônica do objeto totêmico da cultura iluminista. Divertidamente, a
enunciação crítica vem do mato analfabeto para a cidade letrada, evidenciando-se
parodicamente como particularidade de perspectiva popular que domina os critérios
especializados tidos como necessários para avaliar a qualidade do objeto. Ocorre o
inverso, quando a cidade faz turismo no sertão. Por exemplo, quando, por analogia
erudita com termos técnicos, como “sema”, “fonema”, “morfema”, o autor inventa a
unidade mínima distintiva de mudez que não ocorreu aos semióticos, o “mutema”, para
o nome da sertaneja Maria Mutema, que mata justamente por meio da palavra.
Transformando múltiplas matérias simbólicas, as correlações tendem ao
barbarismo da mala affectatio, a incongruência que põe de lado a mediação da
adaequatio intellecti et rei reguladora do engessamento normativo dos classicismos, da
linguagem documental do realismo e da banalidade conativa dos meios de comunicação
de massa. Não-aristotélica, não-clássica e não-realista, sua forma desdenha o endoxon, a
“boa opinião”, que, na representação, é o a priori da semelhança mórfica, sintática e
semântica proporcionada. Seu estilo “elegantemente bárbaro”, na fórmula de Mary Lou
Daniel, passa ao lado da adequação reguladora da imagem literária como semelhança
modelar. Poeticamente, toda a ficção de Rosa pressupõe que, ao ser interposta na forma
como ordenação lógica do conceito, a adequação limita e subordina o sentido da
experiência que representa o “verdadeiro pensamento” às definições estáticas das
classificações científicas e filosóficas de um intelectualismo quase sempre
esquematicamente racionalista, que lineariza, divide e opõe coisas efetivamente unidas
no movimento do seu devir. “Zola vinha apenas de São Paulo”, Rosa disse a Günter
Lorenz, ironizando a pretensão de universalidade da razão instrumental capitalista e
suas operações e produtos: o racionalismo de civilização desoladoramente técnica, a
concepção instrumentalista de linguagem que separa “forma” e “conteúdo”, a estupidez
14
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Cf. “Literatura deve ser vida- Um diálogo de Günter W. Lorenz com João Guimarães Rosa”. In:
Catálogo da Exposição do Novo Livro Alemão. Frankfurt am Main,Otto Lembeck, 1971.
15
função religiosa, pois o vir é bonus porque tem a memória dos beneficia, os bens, que
sua fala faz presentes para a coesão da república. A memória do vir bonus é a dos
lugares-comuns que constituem os gêneros do dizer, o deliberativo, o judiciário e o
demonstrativo, e das técnicas adequadas a eles. Tratando da memória reciclada pela
imaginação do vir bonus dicendi peritus, Cícero conta a seguinte história:
“Entre os gregos, Temístocles, o Velho, teve fama de grande sabedoria e incrível
inteligência. Um dia, um sábio dos mais instruídos o procurou e se ofereceu para
ensinar-lhe o segredo, recentemente descoberto, da memória artificial.- Qual é a
utilidade dessa arte? perguntou Temístocles. -A de lembrar de todas as coisas, disse o
sábio. -Você me convenceria mais se antes me ensinasse o segredo de esquecer à
vontade” (Cic. II, 74).
Um dos personagens do diálogo, Antônio, diz:
“ Não vou ao ponto, como Temístocles, de quem eu não tenho o grande engenho, de
preferir a arte de esquecer à de lembrar, e agradeço ao velho Simônides de Cós que foi,
como se conta, o inventor da memória artificial”(II, 86).
Para nós, infelizmente, não há nenhuma arte do esquecimento, como queria
Temístocles. Mas Antônio evidencia que ele pode preferir a arte de esquecer porque tem
grande engenho. É capaz de imaginar por outros modos. A retórica é técnica que se
aprende; para a maioria dos homens que não têm grande engenho, existe a arte de
lembrar, como mnemotécnica ou ars memorativa. Ela é a memória artificial que
Antônio aplica na inventio e na actio de seus discursos.
É possível falar dela genericamente por meio de duas entradas complementares;
primeiramente, relacionando-a com a inventio. No ato da invenção, o vir bonus dicendi
peritus aplica lugares, que lembra como teses genéricas, particularizando-os com
hipóteses dispostas numa ordem determinada, que ornamenta, para constituir o
destinatário em posição receptiva própria do gênero e da causa debatida. O público
empírico conhece os lugares e recebe a fala na posição do destinatário como variação
elocutiva deles. Por exemplo, como público que espera os lugares que constituem a
indignatio para o destinatário no judiciário; ou o acúmulo ornamental e a erudição que
lhe dão prazer, no demonstrativo. A circularidade de código constitui o destinatário
como sinônimo do sujeito de enunciação ou conhecedor dos lugares e dos preceitos com
que avalia sua variação elocutiva. A recepção é autoral, por isso os juízos do público
empírico sobre o discurso são ordenados por graus de sua adequação à memória dos
lugares e preceitos. Com essa medida comum, os juízos vão da desqualificação do efeito
como vício contra a arte, em classificações negativas, “roubo”, “pirataria”, “frieza”,
“pedantismo”, “mala affectatio”, até o elogio da sua excelência, o aplauso e a emulação.
Desde Aristóteles até a grande arte moderna iniciada pelos românticos alemães
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“(...) per quas (visiones) imagines rerum absentium ita repraesentantur animo, ut eas cernere oculis ac
praesentes habere videamur”. Quintiliano, Instit. orat. 8,3,88).
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destinatário contemporâneo dos aspectos que “vê” per partes, como diz Quintiliano
(9,2,40), efetuando sua combinação e simultaneidade. A enargeia ou evidentia
intensifica o efeito de clareza dos ornatos aplicados, tornando-os mais nítidos (nitidiora)
(Quintil. 8,3,61)19.
Em todas as definições antigas, que ainda são recicladas pelo positivismo na
arte realista e parnasiana do final do século XIX, o efeito de enargeia ou evidentia é
entendido como presença no aspecto. Para especificar essa “presença no aspecto”, é
útil observar que, repetindo Quintiliano e Aristóteles, Rufiniano fala de visão
incorporeis oculis, visão “com olhos incorpóreos”, que vêem intelectualmente as
imagens da imaginatio. Sabe-se que, em grego, o termo theoria relaciona-se à
contemplação em que se presenta o eidos, o desenho intelectual da coisa vista pelo juízo
no seu conceito. Um verbo cognato de eidos, eidenai, significa justamente ver o eidos,
ou seja, saber. Relacionado a ele, o verbo theorein, “contemplar” e “teorizar”, significa
em geral ver o eidos da coisa como alétheia, (des)velamento. Aristotelicamente, o efeito
da enargeia ou evidentia é o da imagem que põe sob os olhos incorporais do juízo um
topos que é semelhante, na elocução do seu aspecto sensível, à opinião considerada
verdadeira sobre o eidos que a memória natural e a memória artificial fornecem à
imaginação. Descrito verbalmente, o topos também pode ser pintado ou esculpido, pois
a visão não é a da reprodução de coisas empíricas, mas visão de imagem intelectual
construída mimeticamente como proporção do logos- “razão” e “discurso”- referido ao
eidos quando opera com aspectos sensíveis. Na recepção empírica, o juízo do ouvinte
ou leitor verifica se a fantasia é semelhante às boas opiniões do costume consideradas
verdadeiras (endoxa), julgando se o efeito de presença de coisas ausentes é
conceitualmente verossímil ou semelhante ao verdadeiro. Aristotelicamente, a
especificação da visão do juízo que vê com olhos incorpóreos o aspecto de um
lugar-comum fictício descrito com palavras pela imaginação determina que a imagem
se dirija aos olhos do intelecto, que avalia as duas coisas referidas: se a aplicação do
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Como se lê em Schemata Dianoeas, em que Júlio Rufiniano define enargeia :
“Enargeia é imaginação, que expõe o ato aos olhos incorpóreos e se faz de três modos: com
pessoa, com lugar e com tempo. Com pessoa, quando chamamos o ausente como se estivesse presente
(...). Com lugar, quando aquilo que não está na nossa visão demonstramos como se o víssemos (...) Com
tempo, quando usamos o presente como passado” “Enargeia est imaginatio, quae actum incorporeis
oculis subicit et fit modis tribus: persona, loco, tempore. Persona, cum absentem alloquimur quasi
presentem. (...)Loco, cum eum, qui non est in conspectu nostro tanquam videntes demonstramus(...)
Tempore, cum praeterito utimur quase praesenti(...).Schemata Dianoeas quae ad Rhetores Pertinent,
Iullii Rufiniani. In Carolus Halm. Rhetores Latini Minores. Ex Codicibus Maximam Partem Primum
Adhibitis. Leipzig (Teubner), 1868. Dubuque,Iowa-Reprint Library, s/d, p. 71.
19
révèlent qu’au fur et à mesure de chacun de leurs actes, sans que leur caractère soit
défini au préalable »23.
Não é necessário saber se Rosa é realmente platônico. Mas tópicas e
procedimentos platônicos são poética e funcionalmente pertinentes como metáforas de
pressupostos, meios técnicos e efeitos de essência com que inventa a utopia da sua arte.
A noção de fantasia de Plotino – a imaginação que suscita pensamentos geradores de
palavras- ou a tópica da "língua do indizível” do tratado do Pseudo-Longino sobre o
sublime são poeticamente eficazes em sua racionalização negativa da forma. Por
exemplo, quando Rosa declara a Lorenz que Riobaldo "provavelmente é somente
Brasil" e que “brasilidade” é a “língua do indizível”, sugere que perspectiva a tópica da
"brasilidade" pelo viés do sublime, efetuando-a negativamente na correlação que
indetermina suas versões.
Como em Platão, em vários lugares da ficção de Rosa o tempo é definido como
a imagem móvel da eternidade24.
Aqui se acha o núcleo da poética de Rosa: a lógica da sua invenção pressupõe
que as linguagens dos classicismos, do realismo e da comunicação de massa
reproduzem estados das coisas na lógica de suas adequações interpostas na forma como
racionalismo exterior e estático, pois fixado em esquemas. É preciso fazer as coisas
nomeadas encontrar seu sentido artisticamente superior no movimento mesmo do seu
devir, indeterminando a exterioridade de suas definições esquemáticas para apanhá-las
acima do movimento, na duração do seu ser, na intuição. Para tanto, o platonismo é
eficaz, como procedimento técnico e metáfora crítica do efeito poético.
A forma deve ser o instantâneo da transição em que se indetermina, por isso é
composta negativamente, eliminando-se as boas proporções miméticas que a fixam
como adequação a unidade modelar. Rosa a inventa como instantâneo das deformações
do seu deslocamento pelo movimento que a faz sofrer aumentos ou diminuições de
suas qualidades. Cada instantâneo descrito ou narrado relaciona-se com seu instantâneo
anterior e subseqüente e também com os instantâneos de outras formas anteriores ou
subseqüentes. Como a dança dos corpos de um corpo de baile, a seqüência sintática do
enunciado figura a duração dos desenhos das correspondências entre formas produzidas
pelo movimento universal que liga cada instantâneo delas. A sintaxe figura também as
intensidades com que o movimento temporal rompe momentaneamente o percurso delas
23
Cf. Francisco Faus. « João Guimarães Rosa, le ‘contemplatif transparent’ ». In La Table Ronde. Paris,
abril de 1964, no. 195, págs. 62 e ss.
24
Cf. Platão, Timeu, 37d.
22
com sua força dissolvente de mágico de todas as traições. Como formas deformadas
pela força do movimento, são imagens próprias, como imagens de coisas de um mundo,
o sertão efetuado como sua referência; simultaneamente, imagens que soltam o fundo
indefinido do sentido do movimento que as anima, aludindo-o como voz não-humana
do “quem” das coisas que as (des)figura.
Lida isoladamente, a imagem sempre é plástica, nítida e visualizante, pois
composta de pequeníssimos detalhes abstraídos do natural pela observação muito
acurada e empática do autor, que põe suas mínimas minúcias de coisas sertanejas frente
ao olho do leitor como a enargeia ou a evidentia antigas. A luz da evidentia quase
sempre é correlato objetivo do que vai pela alma do personagem, como a manhã azul,
com pássaros floridos e ipês cantantes, em que Nhô Augusto Matraga sai ao léu,
montado no burro, ao encontro da sua hora e vez. Ou a outra manhã, em que a estrela
d’alva brilha e Riobaldo sente os frios pés do orvalho antes de partir para seu destino de
raso jagunço atirador cachorrando pelo sertão. Lidas pontualmente, isoladas da
correlação com outras, parecem realistas. Mas, como são imagens dispostas como
correlação da seqüência do enunciado, o fundo produzido como resíduo indefinido nas
deformações das suas formas une-as, difusamente, em correspondências que reverberam
seus conceitos de imagens de coisas como imagens das almas das coisas - “rosnar
maligno” de tortas raças de pedras, “farfal” do vento, “tatalar” do buriti, “colossalidade”
do angico, “selva moldada em jarro jônico” do gravatá, “plim” da abelha, “nhar” de
gavião, “urubuir” do urubu, “bró de cavalo e jibóia” do Hermógenes, “luz” e “neblina”
dos olhos verdes de Diadorim etc.
No espaço do mato, cada um dos graus de existência das coisas figuradas nas
imagens move-se na co-operação simpática ou antipática com os outros graus de todas
as outras coisas. A irradiação espontânea de suas almas nas formas luminosas contrasta,
vividamente, com a indefinição do fundo, fazendo-as agregar-se surdamente no
movimento do seu devir como se ritmadas por Forma apenas sugerida. Como acontece
exemplarmente em contos de Primeiras Estórias, como “Sorôco, sua Mãe, sua Filha”,
“Nenhum, Nenhuma”, “Partida do Audaz Navegante”, “Darandina”, “O Espelho”,
“Pirlimpsiquice”, “A Terceira Margem do Rio”, “Nada e a nossa condição”, “Luas de
Mel”, “Substância”, o movimento do fundo também anima os personagens na
iluminação súbita de sua intuição independente de entendimento, elaboração racional e
discurso. Sugerida como a alma do mundo que se fala nos bois de “Conversa de Bois”;
nos nomes dos reis assírio-babilônicos e no mato luxuriante de “São Marcos”; na
23
25
“Literatura deve ser vida- Um diálogo de Günter W. Lorenz com João Guimarães Rosa”. In: Catálogo
da Exposição do Novo Livro Alemão. Frankfurt am Main,Otto Lembeck, 1971. Certamente, o romance
admite a leitura que aplica a verossimilhança realista para reconhecer o que autor conhece
magnificamente bem, geologia, geografia, flora, fauna, cultura e conflitos do sertão empírico. Mas essa
25
leitura satisfaz-se com pouco, pois é feita como reconhecimento documental do que o leitor supõe já
conhecer.
26
doce, que vira azangada, e a da mandioca brava, que pode vir a ser mandioca mansa; a
imagem da faquinha só cabo quando a lâmina é roída no tanque de barbatimão; as
imagens da terra doida, lagoa de areia, do Liso do Sussuarão; as da animalidade dos
jagunços do Hermógenes; a do macaco comido na fímbria do Liso e que era homem; as
dos catrumanos no limiar da natureza; as imagens das Veredas Mortas, onde Riobaldo
escolhe a indeterminação,querendo a força do imaginário, “diabo”, para ter o imaginário
da força no seu poder de chefe; as do Hermógenes, figurado como demônio ctônico
posto em correlação com Diadorim, que a linha atravessa, a um tempo luz e sombra,
virtus unitiva do amor e ferocidade do ódio. E a imagem da rua do Paredão, a linha
mesma. Nela, o princípio superior da luz, figurado em Diadorim, desce, enquanto o
princípio inferior da matéria escura, figurado no Hermógenes, sobe, para anularem-se
mutuamente, dando origem à ausência que funda a memória e a palavra do narrador.
Em “Buriti”, de Corpo de Baile, a linha imaterial é atravessada na insônia pânica do
chefe Zequiel, vigilante do “imundo”, o indiferenciado que sobe do fundo dos mil
ruídos noturnos misturados. Em “O Recado do Morro”, a linha é dita na estrada
vermelha em S que começa grande frase e divide nitidamente os membros da expedição
- o cientista alemão, Seu Olquiste, o religioso, frei Sinfrão, o fazendeiro comerciante,
seu Jujuca, como tipos racionalistas da determinação, e os sete - o homenzinho todo
arcaico, Gorgulho, o débil Catraz, o menino Joãozezim, o débil Guegue, o louco
religioso Nomindomine, o Coletor das falas e Laudelim, o poeta. Os sete ouvem a voz
indeterminada do fundo e a passam adiante, com figuração crescentemente humana em
motivos cujas notas e acordes correlacionados antecipam a determinação da arte final
expressa no poema de Laudelim como profecia. Novamente, o leitor encontra a negação
da “lógica” e a afirmação dessa outra coisa, efetuada artificialmente como coisa alheia à
representação. Na efetuação, as imagens de Rosa orientam o sentido poético sugerido
no indeterminado da forma como evidência do sentido objetivo da liberdade da arte.