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HANSEN, João Adolfo. “Forma, indeterminação e funcionalidade das imagens de


Guimarães Rosa”, in Veredas no Sertão Rosiano. SECCHIN, Antonio Carlos et.al.
(Org.). São Paulo: 7 Letras, 2008.

“A violeta é humildezinha, apesar de zigomorfa; não se temam


as difíceis palavras”
(Guimarães Rosa, “Prefácio”. Tutaméia - Terceiras Estórias-.
Rio de Janeiro, José Olympio, 1967, p.151)

De Sagarana a Tutaméia, Guimarães Rosa relaciona sua arte e a tradição


literária universal como autor de um ato estético que integra duas funções narrativas,
representação, a referência imaginária figurada ficcionalmente, e avaliação, a
comunicação do ponto de vista do autor que avalia o sentido da representação para o
leitor1. Precária, frágil, condicionada pelas condições brasileiras de produção artística, a
integração deslimita os limites dos usos da “moeda corrente” da palavra no evento de
um outro, “sertão”, que libera as muitas línguas presas na língua, sugerindo aquela
goetheana comunicação universal da língua supra-nacional que um dia ainda há-de vir,
quando a barbárie de hoje finalmente estiver extinta.
Hoje, sua leitura pressupõe a complexidade crescente das parcialidades
contraditórias de suas interpretações e das condições sociais de si mesma como leitura
parcial feita quando o sentido negativo da crítica moderna está eliminado, como outros
projetos de transformação social, pelas redefinições do capital. Em 1930, Beckett dizia
que seus contemporâneos eram decadentes demais para ler Joyce. Em 2007, a
banalidade unidimensional das linguagens “pós-utópicas” continua decaindo
triunfalmente da sua ausência de transcendência estética. No futuro, quando as
experiências voltarem a ter identidade, as banalidades de hoje serão a pré-história
ruinosa de si mesmas no formidável saber dos signos das anamorfoses de Rosa.

1
Cf. Weimann, Robert. “Narrative perspective: Point of View Reconsidered”. In Structure and Society in
Literary History. Studies in the History and Theory of Historical Criticism. Expanded edition. Baltimore
and Longon, The Johns Hopkins University Press, 1984.
2

Em 1957, logo após a publicação de Grande Sertão : Veredas, Antonio Candido


o comparou com Os Sertões. Lembrando que tem as três articulações da obra de
Euclides da Cunha, a terra, o homem, a luta, propôs que a semelhança pára aí, pois onde
Euclides descreve para classificar sociologicamente, Rosa descreve para sugerir
ficcionalmente2. Aqui, nos limites de um ensaio, trato de alguns aspectos da sugestão
ficcional das imagens dos textos de Rosa. Suponho que não devam ser estudadas
apenas estilisticamente, como acessórios elocutivos dos tropos e figuras ornamentais
poeticamente responsáveis, como sentido figurado da representação, pelos muitos
“sagrados”, “segredos”, “mitos”, “metafísicas”, “enigmas”, “epifanias”, “desvios”,
“transgressões”, “rupturas”, “novidades”, “carnavalizações” e “revoluções” já reduzidos
a algumas centenas de sentidos próprios pela crítica.
Proponho ler as imagens e sua sugestão funcionalmente, entendendo-as como
evidências dos processos retóricos que constituem, na variação elocutiva da forma, a
intencionalidade autoral que as avalia e comunica ao leitor segundo um sentido
objetivamente crítico. Nos textos de Rosa, a integração de representação da fábula e
avaliação da linguagem aplicada à representação relaciona o ficcional do efeito
imaginário e o intencional dos procedimentos técnicos como tensão contínua de
indeterminação do efeito e comunicação da técnica. O efeito imaginário das imagens -
por exemplo, a maneira não-reflexiva como os personagens vivem a experiência de seu
mundo- depende totalmente dos procedimentos técnicos aplicados poeticamente para
inventá-lo – seleção de matérias sociais, correlação e estilização das matérias nos
enunciados, invenção vocabular, motivação dos nomes, enunciação paradoxal,
deformações de significados, produção de fundo indeterminado, metaforização
platonizante do fundo, composição de correspondências musicais, negação, ironia,
paródia etc. Poeticamente ou construtivamente, os procedimentos indeterminam a forma
e as significações representadas nas imagens. Retoricamente ou comunicacionalmente,
sabendo-se que o contrato enunciativo é um ato de fala que compõe a posição do
destinatário no estilo, a mesma indeterminação corresponde à posição do destinatário,
que o leitor empírico ocupa para receber a indeterminação dos efeitos e, teoricamente,
reproduzi-los como posição de destinatário. Evidentemente, autor e leitor estão em
pontos diferentes do tempo e o intervalo cronológico e semântico entre ambos impede a

2
Candido, Antonio. “O Homem dos Avessos”. In Tese e Antítese. São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1964.
3

identidade do leitor com o destinatário, o que produz vazios no seu entendimento


quando lê a indeterminação efetuada na forma. Na leitura, tais vazios são comunicados
ao leitor como elementos integrados à sua percepção e entendimento do modo como as
imagens da ficção compõem a existência imaginária do seu mundo, “sertão”.
Poeticamente, as imagens produzem deformações aptas para figurar a unidade da ficção
da experiência indeterminada, arcaica e bárbara dele; retoricamente, as mesmas
deformações constituem o destinatário e o leitor numa posição avaliativa da ficção da
unidade da ficção do sertão como arte resultante de artifícios evidenciados na sua
indeterminação crítica ou distanciadora. Funcionalmente, as imagens da representação
saem diretamente dos atos da invenção do autor. Funcionalmente, não são meros
apliques elocutivos, biscuits rococós ou acessórios neo-parnasianos exteriores, mas
deformações aplicadas para sugerir ao leitor que o ser das coisas representadas como
“sertão” necessariamente cai fora da sua própria representação.
Antigamente, falou-se do conservadorismo e do formalismo de Rosa. O
conservadorismo foi identificado nos conteúdos arcaicos da experiência não-reflexiva
de seus personagens. Propôs-se que substituiriam, em sua regressão ao incondicionado
de essências, os bons conteúdos críticos do reflexo realista organicamente
representativo das contradições sociais da chamada “realidade brasileira”3. Jogos de
linguagem barroquistas demonstrariam a perícia artesanal com que o autor dava forma
“de renda e bordado” ao arcaico como escritor coelhonetal perigosamente próximo do
kitsch4. Essas coisas puderam ser ditas porque pressupõem a concepção instrumental
de linguagem que concebe a liberdade artística de modo muito estreito, ignorando as
condições modernas da produção artística e a funcionalidade das deformações da forma
na invenção do mundo fechado do “sertão”. A inteireza épica e bárbara dele contrasta
vivamente com a falta de sentido do presente, que também é a da banalidade de muitas

3
“Lima Barreto não soube resolver formalmente, como construção verbal ficcional,as proposições de
conteúdo indiciadas em sua obra.Ele é pólo oposto a Guimarães Rosa. Este,devido ao seu
conservadorismo político,acabou se prejudicando como escritor.Dotado de grande virtuosismo verbal,ele
sempre recuou ante as possibilidades abertas pelos enredos,personagens e situações de suas narrativas.A
forma do conto lhe serviu como refúgio ante esse recuo sistemático.O que ele recuava em conteúdo
acabava tentando compensar com malabarismos formais.Não por acaso ele tem sido o autor ideal para um
período de repressão ideológica.” Flávio R. Kothe, “O Mundo de Lima Barreto, ajudando a sonhar com o
futuro”. In Jornal da Tarde,São Paulo,6/6/1981, Divirta-se. Caderno de Programas e Leituras.
4
“Há em Guimarães Rosa (desculpe-se a heresia, o santo é grande demais,o andor vaporoso,a procissão
caudalosa;apesar da imensa e declarada admiração,repito,que tenho por Rosa), há em Guimarães Rosa um
lado Rui Barbosa,um lado Euclides da Cunha, um lado Coelho Neto, um lado Afonso Arinos de Pelo
Sertão, um tipo de linguagem que procuro satirizar[...]”. Autran Dourado. “Estilo e Lugar-Comum”. In
Uma Poética de Romance.São Paulo, Perspectiva/INL-MEC,1973,p.85.
4

das concepções artísticas de hoje. O que foi identificado como formalismo conservador
do estilo de Rosa é, ao contrário, a demonstração objetiva da impossibilidade moderna
de haver estilos metafísicos. Objetivamente, sua experiência com a forma é um modo
muito materialmente calculado de dissolução da linguagem existente, como ocorre em
outros escritores modernos, Mallarmé, Roussel, Oswald de Andrade, Lezama Lima,
Joyce. A forma de Rosa não é a forma de Joyce, obviamente, mas ambos têm em
comum a recusa da linguagem existente, pois sabem que é impossível escrever em uma
língua degradada e reduzida à estupidez instrumental. O mundo produzido por Rosa
com os destroços das linguagens existentes é poeticamente fechado em si mesmo,
bárbaro e arcaico. A nostalgia de unidade que o leitor pode ter quando faz contato com a
sua inteireza épica não é, porém, a de alguma mítica e regressiva unidade perdida, mas
simplesmente a nostalgia de si mesmo, como a saudade do futuro que nasce do
pensamento da precariedade da própria existência no que ainda não veio.
O pressuposto poético de Rosa é outro e passa fora dos esquematismos da
oposição realismo/formalismo. Não autonomiza a linguagem como objeto de exercícios
que dissociam forma e conteúdo porque não a concebe instrumentalmente. Não idealiza
a realidade prática da linguagem como superestrutura ideológica ou reflexo empirista da
unidade contraditória da realidade. Enfrenta o simbólico como o que efetivamente é:
realidade prática de prática contraditória. Não é formalista, mas absolutamente formal5.
Explora a inigualdade de significante e significado e passa ao lado das adequações
miméticas dos classicismos e da representação do realismo, para afirmar o primado da
intuição irredutível ao racionalismo das linguagens degradadas.
Falando da linguagem supra-nacional que inventava, afirmou que não era
“revolucionário”, como a vanguarda concretista propôs ao compará-lo a Joyce. Preferia
ser conhecido como “reacionário” da linguagem, pois a ficção de sua língua literária
queria voltar à língua que se falou antes de Babel para conferir à palavra o “sentido
original” perdido nas objetivações da racionalidade instrumental contemporânea. O
grande sertão é o mundo em que o homem ainda não provou do fruto da árvore do bem
e do mal, dizia. Não é somente o da “civilização do couro” da referência empírica da
bela fórmula de Capistrano de Abreu. Como gostava de dizer, citando Goethe, é o sertão

5
Leia-se o que diz a Lorenz sobre a sinceridade no uso da língua, sobre a responsabilidade do escritor,
sobre a ética do estilo, sobre a língua da metafísica Cf. “Literatura deve ser vida- Um diálogo de Günter
W. Lorenz com João Guimarães Rosa”. In: Catálogo da Exposição do Novo Livro Alemão. Frankfurt am
Main,Otto Lembeck, 1971.
5

da alma, em que as oposições racionalistas de sujeito/objeto desaparecem nos efeitos


poéticos de indeterminação.
Para falar do estilo singular desse “grande sertão”, usava de fórmulas
mitológicas, como a referida, “língua que se falou antes de Babel”, e outras não menos
ideológicas, “língua do indizível”, “brasilidade”, acrescentando, no caso de Grande
Sertão: Veredas, que “Provavelmente Riobaldo é somente Brasil”. E soltava opiniões
que eliminam o ficcionante da ficção, propondo-a como expressão figurada de crenças
pessoais. Em uma carta para Vicente Ferreira da Silva, datada de 21 de maio de 1958,
escreve: “Valeria a pena (quem sabe?) reler também o Grande Sertão: Veredas - que,
por bizarra que V. ache a afirmativa, é menos literatura pura do que um sumário de
idéias e crenças do autor, com buritis e capim devidamente semi-camuflados”6.
Obviamente, pode mesmo ter escrito expressando suas crenças conservadoras.
Muitos o lêem validando essa opinião. É fácil, basta ler-se a si mesmo, projetivamente,
sem observar a objetividade do artifício. Lembremos que sua arte são “contos críticos”,
como diz a Curt Meyer-Clason, e um romance, não tratados religiosos ou filosóficos.
Produto de um autor, Guimarães Rosa, sua ficção independe da opinião do homem João
Guimarães Rosa, pois o autor não é uma categoria biográfica, mas a forma objetivada
de uma sensibilidade simbólica particular7. No caso, forma de sensibilidade que inventa
histórias onde a experiência humana é figurada indeterminadamente na ficção da língua
pré-babélica que também mimetiza fórmulas metafísicas de Platão, Plotino, Cristo,
Marsílio Ficino, Berdiaev, Bergson etc. Ficcionalmente, toda a metafísica que se
interprete nelas é antes de tudo a do fingimento artístico, que agencia essências como
figuras poéticas e avaliativas do seu sentido estético objetivo. Quando se observam os
atos avaliativos da representação nas deformações da forma, a ficção da língua que se
falou antes de Babel não é a superfície ornamental de “renda e bordado” de texto escrito
só para lingüistas. Nem a expressão substancial de essências supra-celestes, alma do
mundo, voz incondicionada da natureza, não-linguagem radical do “quem” das coisas
etc.
A imaginação de Rosa é produtiva, não reprodutora. Desloca-se das imagens
dos usos lingüísticos e literários que o leitor tem na memória, inventando a forma como
imagem das transições da apreensão intuitiva das significações representadas no devir

6
“Duas Cartas”. In Cavalo Azul 3. São Paulo, Edição de Dora Marianna,1968.
7
Kettle, Arnold. “Dickens and the Popular Tradition”. In Zeitschrift für Anglistik und Amerikanistik, 9,
1961, p.230.
6

do seu movimento como leitor. Nessa apreensão, as essências da metafísica e suas filiais
religiosas não são substâncias a serem interpretadas como revelação de fundo. São
substanciais apenas funcionalmente. Como peças do artifício produtor do fundo
indefinido dessa apreensão, as imagens fazem falar o que a ideologia silencia, pois as
coisas figuradas nelas só têm existência como a realidade do possível poético que
estranha os hábitos perceptivos do leitor.
Quando o leitor topa, em “Buriti”, de Corpo de Baile, um enunciado como O
vento úa, morrentemente, avuve, é uma oada- êle igreja as árvores, deve entender que a
onomatopéia “úa” se conjuga analogicamente como verbo ou predicado de um sujeito,
“vento”; e que um adjunto adverbial, formado de um particípio presente,
“morrentemente”, circunstancializa sua ação. Também, que a predicação de “ser”
introduz “oada”, onomatopéia substantivada, e que novo verbo analógico, “igreja”, faz
nova predicação. Embora possa entender que a composição poética da estrutura do
enunciado tem as funções gramaticais, não é evidente o que o “igrejar” do vento lhe
comunica como significação e sentido do enunciado. Quando busca na memória uma
representação conhecida que lhe permita achar e reconhecer uma significação provável,
não a encontra imediatamente e adapta o vazio do seu entendimento ao que supõe saber.
Sua tradução deixa para trás, no entanto, um resto de sentido indefinido, que sua leitura
relaciona com outros restos de traduções que já fez de outras imagens. A presença
indefinida da unidade do contínuo de sentido indefinido é percebida pelo leitor como
substância difusa que se estende entre as imagens relacionando-as indefinidamente,
como que abaixo, acima ou fora da linguagem. Materialmente, tecnicamente e
ficcionalmente, as deformações das imagens produzem o efeito de fundo indefinido;
mas o leitor não nega o lugar em que vive e tende a lê-lo como fundo substancial e,
quase sempre, como presença misteriosa de uma causa substancial das imagens e das
coisas figuradas nelas. Como não tem conceito para ele, figura-o negativamente-
sublimemente- como fundo indizível e irrepresentável de essência só apreensível e
interpretável pelos conhecimentos não-literários a que recorre para fazê-lo, filosofia,
religião, mito, psicanálise.
Quando deforma as imagens, no entanto, o autor mantém em todas as
deformações o uso do desuso léxico, sintático e semântico dos usos. As deformações
relativizam e deslocam as adequações da verossimilhança semântica e sintática
pressupostas na memória literária do leitor habituado a coisas mais claramente
empiristas, mas continuam a repetir a verossimilhança gramatical das funções da língua.
7

Na contínua indecisão de reiteração da função gramatical e desordenação sintática e


indeterminação semântica, o autor comunica ao leitor a própria continuidade da
aplicação do procedimento técnico deformador e produtor do fundo. Agenciado nas
imagens, o fundo insiste, na forma e nos intervalos sintáticos da forma, como fundo
gramaticalmente contínuo e poeticamente indefinido. É evidente como forma de fundo,
artifício, mas o leitor o recebe como fundo das formas, essência, interpretando-o com
seus saberes não-literários para conferir significação e sentido ao seu “mistério”. Como
artifício, o fundo é funcional. É um objeto intencional comunicado ao leitor, no ato da
sua percepção da forma, como critério técnico da avaliação autoral que relativiza,
ironiza, parodia e dissolve a mediação das suas representações familiares. O que faz
com humor. O autor orienta a indeterminação das formas do “sertão” aquém e além do
opinável, desfaz o feito e diverte o leitor, literalmente, pelo raso da Catarina de suas
representações. O humor do desvio atravessa o desertão das suas certezas racionalistas,
sugerindo-lhe que as veredas por onde sua leitura passa também são para não se
interpretar, mas para produzir o grande sertão das suas legibilidades.
Tanto é assim que, falando de sua arte, Rosa citava Humboldt e Max Müller,
para dizer que religião é coisa de poesia e que a poesia nasce da transformação de
realidades lingüísticas. A língua da poesia do seu mundo sertanejo inventado como
transformação de realidades lingüísticas é língua de dicionários. Compendiária, inclui
de tudo, do esquimó ao tártaro. Alusivo, brincava, dizendo que ainda ia escrever um
dicionário: sua autobiografia, quando fizesse cem anos. Como ocorre em Drummond e
Mallarmé, a valorização do dicionário e das palavras “em estado de dicionário”
corresponde ao trabalho da forma temporalmente imanente aos objetos designáveis e
significáveis quando se explora a materialidade da palavra8. Pois em Rosa a palavra não
é reprodução, adequação, semelhança, cópia ou reflexo de imagens da memória do
leitor, mas matéria do trabalho da forma que faz falar a multiplicidade indefinida das
determinações sociais dos seus usos na indeterminação, como no Finnegan’s Wake. Ou,
com outros pressupostos históricos, como na Comédia, de Dante.

8
“… nos jogos de linguagem de Rosa, alternam-se e contaminam-se significação e
designação,retorcem-se efeitos recíprocos de significantes e significados, multiplicam-se homonímias,
ressaltam-se iterações, produzem-se permutações de todas as espécies, das tautológicas às agramaticais,
de predicados e sujeitos, adjetivações e adverbializações de substantivos, multiplicam-se os efeitos de
recepção, abolindo-se o livro como fetiche: sempre a divergência dos procedimentos, a libertar a língua
como muitas línguas, também elas declinantes por todos os lados e de muitos modos, sem limites, o que
se resume como efeito de paradoxo, como quodlibet seqüente a p &~ p etc”.Cf. Leon
Kossovitch.“Prefácio”. In João Adolfo Hansen. O O. A ficção da literatura em Grande Sertão:Veredas.
São Paulo, Hedra, 2000, p. 12.
8

Absolutamente formais, os procedimentos técnicos e as indeterminações das


anamorfoses deslocam os usos da língua literária de sua convenção representacional
sem pressupor a oposição realismo/formalismo, pois passam ao largo dos critérios da
adequação mimética que define e constitui os termos da oposição. Na imagem realista, a
forma é determinação sensata, morphe mimética, adequada à ordem cartesiana e
científica da representação. Como reprodução verossímil de significações científicas e
sociológicas que um sujeito racional, autor e narrador, põe como interpretações
verdadeiras do sentido das ações da experiência representada, recorta-se, crítica, lógica,
adequada, clara e distintamente, como unidade de significante e significado em imagens
objetivadas como representação de conceitos de tipos humanos, ações, eventos e
estruturas, que condensam e criticam objetivamente o sentido contraditório do processo
histórico.
Diferentemente, a forma de Rosa solta um fundo, não como fundo da expressão
e conteúdo da forma ou essência substancial, mas como forma de fundo ou artifício
funcional, que indetermina os critérios e valores miméticos da representação de
fundamento aristotélico, cartesiano e positivista. O autor inventa o sertão, na ficção da
língua pré-babélica, como experiência não-reflexiva da intuição do sentido desse fundo.
Como autor moderno, pós-kantiano e pós-husserliano, faz a figuratividade unívoca do
conceito clássico e realista afastar-se de si mesma na intuição da infinitude do sentido
que se manifesta no inesgotável das interpretações das idéias estéticas de seu mundo9.
Na ficção da língua pré-babélica, as formas miméticas da figuração clássica e da
representação realista subsistem à dissolução de si mesmas nas indeterminações do
fundo. Como os resíduos de um onho que, sendo arcaico, é moderno, quem sabe como
um ôsgo, provavelmente como o zambezão daquele medonhoso enormonho dronho do
Hermógenes, que assombra o discurso e os intérpretes como imagem deformada do
procedimento técnico dada a ler poeticamente como o bró de jibóia e de cavalo da
experiência não-reflexiva de seus personagens de eleição.
Como se sabe, Rosa ama pra valer os capiaus iletrados, os matutos do mato, as
crianças, os aluados, os débeis, os loucos, os bêbados, os poetas populares e mais
sistemáticos clavicórdios sempre postos às bordas da racionalidade iluminista enquanto
deslizam pela linha imaterial que separa e opõe determinado/indeterminado, como

9
Cf. Kerstin Behnke. “A Crise da Representação”. Tradução de Luiz Costa Lima. In Crises da
Representação. Edição de João Cezar de Castro Rocha e Lara Valentina da Costa. Rio de Janeiro,
Departamento de Letras da UERJ, 1994, Cadernos do Mestrado/Literatura- 10, p. 15
9

aquele louco trepado na palmeira, em “Darandina”, que a cultura dominante constitui


como seres de exceção também em suas versões realistas. Quando valoriza a
experiência de homens que a cultura dominante desclassifica como irrepresentáveis ou
irresponsáveis sem competência para pensar e falar, a indeterminação da forma é
elemento antropológico e político intencionalmente crítico, pois é meio técnico de
figuração poética da experiência de um outro cultural que é plenamente apto a fazê-lo
e, simultaneamente, meio avaliativo dos limites históricos das lógicas dominantes que
definem as ideologias do leitor quando eventualmente pensa nesses tipos.
Tratando de Dante, Paolo Fabbri comenta o verso da Comédia em que fala
Nemrod: Raphèl maí amècche zabí almí. Perfeitamente incompreensível, mas
exatíssimo em prosódia e rima. Lembrando que Virgílio diz a Dante que abandone
Nemrod, pois fala uma língua que só ele conhece, Fabbri propõe que o poeta é como
Nemrod:
“Dante sabe que no eclipse do ‘velho sol’ do latim se pode surpreender a nova
língua italiana; o ‘novo sol’ do futuro vernáculo apenas pode amanhecer na experiência
da diferença dos dialetos e no jogo com o prazer da poética. Dar um nome à língua.
Então, Babel não é a cidade da unidade perdida. É aquele lugar feliz, confuso, que
permitiu a tradução de todas as línguas”10.
Para dar voz aos seus personagens, Rosa precisa da língua de Nemrod. Com ela,
faz da ficção do sertão não o lugar de alguma mítica unidade perdida, como se lê às
vezes, mas “aquele lugar feliz, confuso, que permitiu a tradução de todas as línguas” do
belo ensaio de Fabbri. Infelizmente, esse lugar ainda não aconteceu para nós. Mas
continua acontecendo na ficção de Rosa. É o lugar do menino em contato com a alma
dos bois, em “Conversa de Bois”, e o da coragem ascética de Nhô Augusto Matraga, em
Sagarana. Em Primeiras Estórias, é o lugar da fala estúpida da menina de lá, a
Nhinhinha debilzinha, que perguntava “ O sapo xurugou?”, fazendo o evento acontecer
com a força da palavra, como na vez em que pediu um caixãozinho branco enfeitado de
verdes. É o lugar de Sorôco e sua Mãe e sua Filha, levando atrás de si,
comovedoramente, todo o povo na algaravia incompreensível do canto que só as loucas
conhecem, como Nemrod. É o lugar da fala de Brejeirinha, em “Partida do Audaz
Navegante”, que lança as palavras como dados - “Zito, tubarão é desvairado, ou é
explícito ou demagogo?”- pondo em relevo a estrutura material do significante que
desloca categorias do discurso monológico de V/F nos paradoxos efetuadores dos

10
Cf. Paolo Fabbri “ Babel Feliz- ‘Babelix,Babelux(...)ex Babele Lux”. In Crises da Representação.
Edição de João Cezar de Castro Rocha e Lara Valentina da Costa. Rio de Janeiro, Departamento de Letras
da UERJ, 1994, Cadernos do Mestrado/Literatura- 10, p. 36.
10

nonsenses do inexpresso do sentido11. Em Estas Estórias, é o lugar da fala do monstro


arrependido de ter matado suas amigas e amantes, as onças, que vai, como Haroldo de
Campos demonstrou, pouco a pouco se malhando selvagem, fala-iauára pintada pelo
retorno do recalcado-açu tupi. Em Corpo de Baile, é o lugar do texto central de sua
poética, “O Recado do Morro”, em que o racionalismo burocrático da ciência, da
religião e do comércio modernos é a verdadeira ignorância andando ao lado das formas
antiqüíssimas e anônimas da alma popular sutilizadas na álgebra mágica do poema que
cria, expressa e profetiza a realidade autêntica das coisas. Em Grande Sertão: Veredas,
é o lugar das referências de Riobaldo à intuição da duração do amor sem palavras e ao
“dificultoso” do narrar. E o lugar divertidíssimo dos prefácios de Tutaméia12.
Para nomear a técnica da ficção da sua Babel, Rosa falava de “alquimia”, talvez
lembrando Rimbaud, e usava a fórmula de Novalis, “álgebra mágica”, com que o poeta
alemão define a poesia como expressão do “real autêntico absoluto”. Os dispositivos
poéticos da sua “álgebra mágica” substituem signos mediados pela representação -
signos indiretos, arbitrários e imotivados dos usos gramaticalmente normativos e
literariamente realistas - por figurações diretas e singulares, inventadas como se as
colhesse na aurora de uma língua anterior às convenções gramaticais, retóricas e
literárias. Pontualmente, como Mary Lou Daniel demonstrou exaustivamente em seu
livro magnífico13, opera por analogia, com que inventa termos inesperados, mas
plausíveis para o “espírito” da língua; por transposição, com que reclassifica e

11
Trato dessa questão em o O. A ficção da literatura em Grande Sertão: Veredas. São Paulo, Hedra, 2000,
pp. 83-88.
12
Em “São Marcos”, de Sagarana, o procedimento de correlação babélica das línguas é enunciado na
encenação de asserções teóricas do narrador sobre a orientação do sentido da palavra, como acontece nas
suas considerações sobre o rol de reis assírio-babilônicos e o “sentido prisco” e o “ileso gume do
vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fôra, se jamais usado”. O mesmo
procedimento de correlação de referências disparatadas agenciadoras de indeterminação é explicado pelo
escritor em uma carta para Edoardo Bizarri, seu tradutor italiano, onde comenta seu processo de invenção
de seres que povoam a imaginação popular, como o nhã-ã, o gôro, o onho, o saponho, o ôsgo, o
zambezão, o quibungo-branco, o morcegaz: “... o nhã-ã: anhangá (o diabo dos índios tupis e guaranis,
dado em forma de propósito deturpada, reduzida a ‘fórmula’. Além disso, há Ngaa, o adversário do
Criador, segundo um mito espalhado na Sibéria, sobretudo entre os Tártaros do Sul. Ngaa é ‘a morte
personificada’. Em nhã-ã reluz o esqueleto, o substrato de nenhum, ninguém etc. isto é, o nada, a
negação= o mal, o Diabo. O gôro: o que se frustrou, o ser informe, incompleto, larva ou lêmure, duende.
O onho: o medonho resumido em seu sufixo, só por si já horrível. O saponho: o sapo meio-humano e
gigantesco. O ôsgo: sáurio, crocodilo, dragão. O Zambezão: inventei. Porque podia ser um ‘monstro
africano’( De Zambeze, o rio, de nome sugestivo). O quibungo-branco. Este, existe, isto é, existe o
QUIBUNGO. Monstro, devorador de meninos, das lendas africanas, trazidas pelos escravos. O morcegaz-
homem morcego?”. Cf. Correspondência com o Tradutor Italiano.São Paulo,Instituto Cultural
Ítalo-Brasileiro,1972, Caderno 8.
13

Cf. Mary Lou Daniel. João Guimarães Rosa: Travessia Literária. Introdução de Wilson Martins. Rio de
Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1968.
11

recategoriza classes e categorias gramaticais; por motivação, com que substancializa o


arbitrário; por derivação, com que usa afixos de maneira impensada; por etimologia e
pseudo-etimologia, com que falsifica origens; por arcaísmos, que usa como predicação
de neologismos e vice-versa; pela frase nominal encabeçada por anacolutos ou
acumulada de particípios passados que se acompanham de predicados nominais
visualizantes etc. A estrutura sonora dos signos, a transposição morfológica de classes e
categorias gramaticais, a sintaxe gaga que tateia fingidamente o conceito, a inversão das
relações de sujeito e predicado dos paradoxos e a imprevisibilidade semântica fazem o
discurso ser enunciado como efeito da ação de uma terceira margem da linguagem, a do
sentido. Com idealismo, Rosa a chamava de “indizível”, citando o Perí Hypsous, do
Pseudo Longino.
O processo material da “álgebra mágica” que libera as línguas da língua no
“indizível” do fundo é artificialíssimo. Como dispositivo teatralizador de idéias, é
comparável ao que Deleuze propôs para outro solitário da invenção moderna, o
Mallarmé de Mimique. Figura não só eventos, ações, personagens, coisas e estados de
coisas como objetos do movimento, mas principalmente instantâneos das transições do
próprio movimento, constituindo o que Riobaldo chama de o “balancê” que as coisas
têm nas oscilações da fala em que a imaginação produz a memória.
Em todos os níveis dos seus textos, dos termos às situações dramáticas e
seqüências narrativas, Rosa dispõe as palavras numa correlação que integra
representação e avaliação. Representativamente, as imagens correlacionadas figuram
conteúdos do sertão e da experiência não-reflexiva dos personagens; avaliativamente,
são objetos intencionais que comunicam a indeterminação como elemento avaliador da
representação. As diversas matérias sociais encenadas nas correlações remetem o leitor
para campos simbólicos literários e não-literários onde o autor as selecionou. Como já
foi demonstrado, são matérias semióticas orais, principalmente as variantes dialetais do
14
Português do Brasil Central , e padrões poéticos e retóricos da escrita literária de
textos antigos e modernos, brasileiros e estrangeiros15, de poesia e prosa. A prosa
14
Rosa escreve, em carta para Mary Lou Daniel: “Os sertanejos de Minas Gerais,isolados entre as
montanhas, no imo de um Estado central, conservador por excelência, mantiveram quase intacto um
idioma clássico-arcaico,que foi o meu, de infância, e que me seduz. Tomando-o por base, de certo modo,
instintivamente tendo a desenvolver suas tendências evolutivas,ainda embrionárias,como caminhos que
uso”. Cf. “Carta do autor datada de 3 de novembro,1964”. In Mary Lou Daniel. João Guimarães Rosa:
Travessia Literária. Introdução de Wilson Martins. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1968,
p. 91.
15
Por exemplo, a estrutura dialógica de Grande Sertão:Veredas estiliza a estrutura do Dom Quixote,
fundindo em Riobaldo a cultura oral representada por Sancho e a cultura letrada exemplificada por Dom
Quixote.
12

regionalista dos românticos, realistas e naturalistas brasileiros do século XIX é uma das
principais matérias estilizadas e parodiadas. Também a de modernistas dos anos 1930. O
autor também seleciona e indetermina matérias de textos de ideólogos brasileiros dos
séculos XIX e XX que, à esquerda e à direita, trabalham com as oposições de
litoral/sertão, moderno/arcaico, industrial/rural, desenvolvido/subdesenvolvido ,
letrado/iletrado, alfabeto/analfabeto, culto/popular, cultura/raça, civilizado/primitivo,
branco/negro, ordem/desordem, progresso/atraso etc.-quando escrevem sobre o sertão e
a ideologia da “brasilidade”.16
O autor comunica ao leitor a própria correlação como pragmática avaliativa da
representação que efetua nela. Com isso, evidencia que a seleção dos materiais, como se
pode observar nos muitos cadernos de notas de Rosa, pressupôs a avaliação da
funcionalidade de seu uso como matéria da representação. Na correlação, o autor produz
o atrito das retóricas das matérias, traduzindo-as umas pelas outras como suspensão do
sentido que têm nos usos onde foram selecionadas. Com a operação, avalia a
representação montada com elas como negação, duplicidade, ironia, paródia e humor
resultantes da relativização e esvaziamento de suas primeiras significações. O
procedimento de correlação evidencia-se funcionalmente como técnica de dramatização
de formações ideológicas de diferentes situações políticas e posições intelectuais da
história do país. Na dramatização, o autor relativiza as representações do sertão e da
chamada “brasilidade” feitas da perspectiva letrada dos intelectuais da civilização
litorânea que, desde o século XIX, cercaram o mato de flores degeneradas ou idílico
arame farpado. Confere autonomia antropológica à ação dos personagens sertanejos,
mas não a unifica como unidade de natureza sertaneja justamente porque escreve
demonstrando saber das contradições que desde o século XVIII dividem as
interpretações que trabalham com a oposição “litoral/sertão” e equivalentes. Não propõe
a unidade ou a natureza do sertão, pois as representações dele pressupõem
necessariamente as representações ilustradas. É o que ocorre exemplarmente na
correlação das questões do doutor emudecido e das respostas de Riobaldo no diálogo
implícito de Grande Sertão: Veredas. Funcionalmente, a correlação relativiza a
universalidade pretendida pelas representações letradas do doutor, mas também a
unidade arcaica, idílico-degenerada, das representações sertanejas. Esvaziando as
unidades ideológicas pressupostas na oposição “litoral/sertão”, o ponto de vista do

16
Cf. Roncari, Luiz. O Brasil de Rosa: mito e história no universo rosiano: o amor e o poder. São Paulo,
Editora UNESP, 2004.
13

autor evidencia e sugere que o sertão não é natureza, como na literatura romântica e
naturalista, mas diversidade cultural com historicidade própria, cujos códigos
independem da cultura letrada, embora sejam determináveis a partir dela.
Na correlação, os elementos mínimos, como os do léxico, operam
disjuntivamente. Por exemplo, quando Riobaldo diz ao doutor emudecido: “Inda hoje
apreceio um bom livro, despaçado”, a forma arcaica do verbo, “apreceio”, classificada
como popular e iletrada por oposição à norma culta e letrada, “aprecio”, faz a
predicação irônica do objeto totêmico da cultura iluminista. Divertidamente, a
enunciação crítica vem do mato analfabeto para a cidade letrada, evidenciando-se
parodicamente como particularidade de perspectiva popular que domina os critérios
especializados tidos como necessários para avaliar a qualidade do objeto. Ocorre o
inverso, quando a cidade faz turismo no sertão. Por exemplo, quando, por analogia
erudita com termos técnicos, como “sema”, “fonema”, “morfema”, o autor inventa a
unidade mínima distintiva de mudez que não ocorreu aos semióticos, o “mutema”, para
o nome da sertaneja Maria Mutema, que mata justamente por meio da palavra.
Transformando múltiplas matérias simbólicas, as correlações tendem ao
barbarismo da mala affectatio, a incongruência que põe de lado a mediação da
adaequatio intellecti et rei reguladora do engessamento normativo dos classicismos, da
linguagem documental do realismo e da banalidade conativa dos meios de comunicação
de massa. Não-aristotélica, não-clássica e não-realista, sua forma desdenha o endoxon, a
“boa opinião”, que, na representação, é o a priori da semelhança mórfica, sintática e
semântica proporcionada. Seu estilo “elegantemente bárbaro”, na fórmula de Mary Lou
Daniel, passa ao lado da adequação reguladora da imagem literária como semelhança
modelar. Poeticamente, toda a ficção de Rosa pressupõe que, ao ser interposta na forma
como ordenação lógica do conceito, a adequação limita e subordina o sentido da
experiência que representa o “verdadeiro pensamento” às definições estáticas das
classificações científicas e filosóficas de um intelectualismo quase sempre
esquematicamente racionalista, que lineariza, divide e opõe coisas efetivamente unidas
no movimento do seu devir. “Zola vinha apenas de São Paulo”, Rosa disse a Günter
Lorenz, ironizando a pretensão de universalidade da razão instrumental capitalista e
suas operações e produtos: o racionalismo de civilização desoladoramente técnica, a
concepção instrumentalista de linguagem que separa “forma” e “conteúdo”, a estupidez
14

da comunicação de massa, a aridez espiritual 17. O estranhamento que lampeja na ficção


da língua pré-babélica como não-linguagem demonstra a razão estética e política que é
ignorada quando se fala de formalismo e conservadorismo.
Para entender "a brasilidade", diz a Lorenz, é importante antes de tudo aprender
a reconhecer que a sabedoria é algo distinto da lógica. Toda a sua ficção e suas
declarações a tradutores, como Edoardo Bizzarri e Curt Meyer-Clason, negam a
“lógica”, desqualificando-a como “intelectualismo” e “racionalismo” de mediação
representativa. À primeira vista, a negação parece obscurantista, como pareceu para
alguns, que reforçaram sua ortodoxia artística entendendo que a figuração dos
personagens como seres arcaicos que a dispensam é prova suficiente. A negação da
“lógica” é, contudo, procedimento técnico e poético também comunicado
funcionalmente como avaliação da forma. Rosa insiste na superioridade artística da
enunciação por paradoxos que afirmam dois sentidos contrários simultaneamente
válidos por oposição à enunciação “lógica”, que pressupõe a contradição e o princípio
do 3º. excluído como critérios de determinação da verdade e verossimilhança. Afirma
que sua ficção- como prática de um autor e efeito num leitor- desloca os limites das
linguagens literárias fundamentadas na adequação mimética do costume aristotélico, na
unidade do cogito e no reflexo realista, produzindo a forma como inadequação da
designação, incongruência da significação e estranhamento do valor e do sentido das
“opiniões verdadeiras” do leitor. Opera com decisões, que evidenciam o arbitrário do
significante e do procedimento construtivo: “Pão ou pães é questão de opiniães”, como
diz Riobaldo.
Funcionalmente, a coisa principal envolvida na negação da “lógica” é a
verossimilhança mimética do aristotelismo e da representação de versões cartesianas e
positivistas em que o signo é mediação transparente dos conceitos de um sujeito unitário
expresso neles. A negação incide sobre o conceito mesmo de “representação” e os
modelos e esquemas - imitação, emulação, expressão, similitude, adequação,
proporção, harmonia, equilíbrio, gênero, estilo, clareza, brevidade, distinção,
verossimilhança, bom senso, senso comum, sensatez, gosto, bom gosto, decoro etc. –
que pressupõem a identidade de significante e significado quando a representação
medeia a forma. Negando a “lógica”, recusa os padrões normativos que, na forma
clássica e realista, são mediação da palavra e da sintaxe como adequação semântica do

17
Cf. “Literatura deve ser vida- Um diálogo de Günter W. Lorenz com João Guimarães Rosa”. In:
Catálogo da Exposição do Novo Livro Alemão. Frankfurt am Main,Otto Lembeck, 1971.
15

enunciado a “opiniões verdadeiras” memorizadas e aplicadas pela imaginação e pelo


juízo de autores e leitores. A negação faz produzir a forma como movimento que leva o
entendimento do leitor para aquém e para além do meio-termo proporcional previsto na
representação, fazendo falar a ficção de voz indeterminada. Como em “O Recado do
Morro”, voz fictícia da alma do mundo intuída sem reflexão analítica.
Por outras palavras, a negação da lógica feita por um intelectual não é um
anti-intelectualismo obscurantista, mas afirmação de outro pressuposto poético.
Logo, “a língua que se falou antes de Babel” não revela a substância de um antes
cronológico, arcaico e mitológico; nem significa a substância de um alto transcendente,
Deus e essências; nem expressa a substância de um profundo psicológico, alma e
epifanias da alma; nem reflete a realidade de um fora empírico, o chapadão dos Gerais,
pois é a realidade do possível da linguagem poética que inventa a indeterminação
pré-babélica extensiva e intensivamente por procedimentos técnicos totalmente
materiais. Extensivamente, as classes gramaticais, categorias lingüísticas, formas
léxicas, sintáticas e semânticas nomeiam objetos que usualmente não são designados e
classificados por elas; intensivamente, as correlações estabelecidas entre as palavras e as
temporalidades disparatadas de suas referências e conceitos forçam a língua a significar,
aquém e além do conceito sensato, algo que, segundo a rotina de hábitos petrificados
como ideologia, não pode ser assim nomeado e significado. Poética e funcionalmente
apta para figurar e avaliar um outro cultural, a indeterminação pressupõe outra
imaginação.
Para apenas sugerir como opera a imaginação de Rosa, veja-se primeiramente o
que recusa e o que retém da forma mimética antiga e da forma da representação
fundamentada na unidade do cogito e no reflexo realista. Classicamente, a imaginação
trabalha combinando imagens fornecidas pela memória. Duas idéias aristotélicas são
lugares-comuns nessa operação: a primeira é que se pensa por imagens, entendendo-se
por “imagem”, esquematicamente, a forma resultante da imitação deliberada de um
topos como semelhança de vários graus; a segunda é que as imagens da fantasia são
buscadas em imagens que, armazenadas na memória, servem de lastro de verdade para
a sua verossimilhança. Na invenção e na recepção, autor e público conhecem e
lembram o que os latinos chamam de elencha auctorum, os elencos dos autores ou
autoridades imitados na iniciativa emulatória.
No De oratore, quando Cícero discute definições do termo orator como vir
bonus dicendi peritus, o homem bom perito em falar, afirma que a eloqüência tem
16

função religiosa, pois o vir é bonus porque tem a memória dos beneficia, os bens, que
sua fala faz presentes para a coesão da república. A memória do vir bonus é a dos
lugares-comuns que constituem os gêneros do dizer, o deliberativo, o judiciário e o
demonstrativo, e das técnicas adequadas a eles. Tratando da memória reciclada pela
imaginação do vir bonus dicendi peritus, Cícero conta a seguinte história:
“Entre os gregos, Temístocles, o Velho, teve fama de grande sabedoria e incrível
inteligência. Um dia, um sábio dos mais instruídos o procurou e se ofereceu para
ensinar-lhe o segredo, recentemente descoberto, da memória artificial.- Qual é a
utilidade dessa arte? perguntou Temístocles. -A de lembrar de todas as coisas, disse o
sábio. -Você me convenceria mais se antes me ensinasse o segredo de esquecer à
vontade” (Cic. II, 74).
Um dos personagens do diálogo, Antônio, diz:
“ Não vou ao ponto, como Temístocles, de quem eu não tenho o grande engenho, de
preferir a arte de esquecer à de lembrar, e agradeço ao velho Simônides de Cós que foi,
como se conta, o inventor da memória artificial”(II, 86).
Para nós, infelizmente, não há nenhuma arte do esquecimento, como queria
Temístocles. Mas Antônio evidencia que ele pode preferir a arte de esquecer porque tem
grande engenho. É capaz de imaginar por outros modos. A retórica é técnica que se
aprende; para a maioria dos homens que não têm grande engenho, existe a arte de
lembrar, como mnemotécnica ou ars memorativa. Ela é a memória artificial que
Antônio aplica na inventio e na actio de seus discursos.
É possível falar dela genericamente por meio de duas entradas complementares;
primeiramente, relacionando-a com a inventio. No ato da invenção, o vir bonus dicendi
peritus aplica lugares, que lembra como teses genéricas, particularizando-os com
hipóteses dispostas numa ordem determinada, que ornamenta, para constituir o
destinatário em posição receptiva própria do gênero e da causa debatida. O público
empírico conhece os lugares e recebe a fala na posição do destinatário como variação
elocutiva deles. Por exemplo, como público que espera os lugares que constituem a
indignatio para o destinatário no judiciário; ou o acúmulo ornamental e a erudição que
lhe dão prazer, no demonstrativo. A circularidade de código constitui o destinatário
como sinônimo do sujeito de enunciação ou conhecedor dos lugares e dos preceitos com
que avalia sua variação elocutiva. A recepção é autoral, por isso os juízos do público
empírico sobre o discurso são ordenados por graus de sua adequação à memória dos
lugares e preceitos. Com essa medida comum, os juízos vão da desqualificação do efeito
como vício contra a arte, em classificações negativas, “roubo”, “pirataria”, “frieza”,
“pedantismo”, “mala affectatio”, até o elogio da sua excelência, o aplauso e a emulação.
Desde Aristóteles até a grande arte moderna iniciada pelos românticos alemães
17

no século XVIII, a recepção é construída textualmente como recepção autoral do


destinatário. Ele sofre os afetos figurados como efeitos das imagens da fantasia e
simultaneamente avalia as adequações da técnica aplicada para produzi-las como
semelhanças da “opinião verdadeira” reciclada na circularidade de código que o faz
sinônimo do sujeito de enunciação. Para que a circularidade de código da semelhança
ou verossimilhança seja eficaz como efeito persuasivo, movendo o destinatário no afeto
figurado, as imagens da fantasia devem ser vívidas, nítidas e claras.
O termo grego para “vividez”, enargeia, é traduzido em latim por evidentia,
“vidência” ou “visão para fora”. Quando mimetiza propriedades da coisa (o topos ou a
res retórica) segundo o endoxon - a opinião verdadeira que os sábios têm da coisa- o
autor- orador, historiador, poeta- sabe que a memória do público empírico armazena a
mesma opinião. Ao julgar o efeito, o público observa se a imagem é análoga e
proporcionada à opinião, maravilhando-se com a probabilidade eficaz da beleza
resultante da engenhosidade da invenção e da perícia elocutiva da arte que, com coisas
e palavras já conhecidas, produzem afetos inesperados. Nenhuma minúcia da imagem é
informal, pois todas se incluem em uma invenção e elocução que aplicam preceitos
previstos para transformar a audição do ouvinte, que é constituída na variação elocutiva
do estilo, num olho incorporal que os avalia.
Para ainda tratar da sugestão da imagem em Rosa, é útil pensar o que vem a ser
a opsis ou a videntia, a visão, desse “pôr sob os olhos” proposto por Aristóteles e
repetido doutrinariamente até a revolução romântica. A primeira coisa a dizer é que não
é a visão realista e naturalista das nossas histórias literárias e histórias da arte.
Aristóteles diz que o efeito da fantasia é enargeia - ao pé da letra, “vividez”- como se
vê no advérbio enargos, “vividamente”. A vividez é efetuada como pro ommaton, “na
frente do olho”. Assim, também diz que as metáforas de ação impressionam mais,
porque com elas o orador e o poeta compõem o evento que narram como se os ouvintes
o estivessem vendo. Latinamente, o efeito de pathos ou intensidade patética da imagem
é visio, “visão”. Diz Quintiliano: “... por tais visões as imagens das coisas ausentes são
assim representadas para o ânimo, para que pareça que as vemos presentes com os
olhos “18. As técnicas aplicadas compõem a visão do destinatário no estilo; para isso,
compõem os aspectos das coisas por uma perspectiva determinada segundo o ponto fixo
da enunciação que calcula as distâncias exatas da imagem e seu conceito para tornar o

18
“(...) per quas (visiones) imagines rerum absentium ita repraesentantur animo, ut eas cernere oculis ac
praesentes habere videamur”. Quintiliano, Instit. orat. 8,3,88).
18

destinatário contemporâneo dos aspectos que “vê” per partes, como diz Quintiliano
(9,2,40), efetuando sua combinação e simultaneidade. A enargeia ou evidentia
intensifica o efeito de clareza dos ornatos aplicados, tornando-os mais nítidos (nitidiora)
(Quintil. 8,3,61)19.
Em todas as definições antigas, que ainda são recicladas pelo positivismo na
arte realista e parnasiana do final do século XIX, o efeito de enargeia ou evidentia é
entendido como presença no aspecto. Para especificar essa “presença no aspecto”, é
útil observar que, repetindo Quintiliano e Aristóteles, Rufiniano fala de visão
incorporeis oculis, visão “com olhos incorpóreos”, que vêem intelectualmente as
imagens da imaginatio. Sabe-se que, em grego, o termo theoria relaciona-se à
contemplação em que se presenta o eidos, o desenho intelectual da coisa vista pelo juízo
no seu conceito. Um verbo cognato de eidos, eidenai, significa justamente ver o eidos,
ou seja, saber. Relacionado a ele, o verbo theorein, “contemplar” e “teorizar”, significa
em geral ver o eidos da coisa como alétheia, (des)velamento. Aristotelicamente, o efeito
da enargeia ou evidentia é o da imagem que põe sob os olhos incorporais do juízo um
topos que é semelhante, na elocução do seu aspecto sensível, à opinião considerada
verdadeira sobre o eidos que a memória natural e a memória artificial fornecem à
imaginação. Descrito verbalmente, o topos também pode ser pintado ou esculpido, pois
a visão não é a da reprodução de coisas empíricas, mas visão de imagem intelectual
construída mimeticamente como proporção do logos- “razão” e “discurso”- referido ao
eidos quando opera com aspectos sensíveis. Na recepção empírica, o juízo do ouvinte
ou leitor verifica se a fantasia é semelhante às boas opiniões do costume consideradas
verdadeiras (endoxa), julgando se o efeito de presença de coisas ausentes é
conceitualmente verossímil ou semelhante ao verdadeiro. Aristotelicamente, a
especificação da visão do juízo que vê com olhos incorpóreos o aspecto de um
lugar-comum fictício descrito com palavras pela imaginação determina que a imagem
se dirija aos olhos do intelecto, que avalia as duas coisas referidas: se a aplicação do

19
Como se lê em Schemata Dianoeas, em que Júlio Rufiniano define enargeia :
“Enargeia é imaginação, que expõe o ato aos olhos incorpóreos e se faz de três modos: com
pessoa, com lugar e com tempo. Com pessoa, quando chamamos o ausente como se estivesse presente
(...). Com lugar, quando aquilo que não está na nossa visão demonstramos como se o víssemos (...) Com
tempo, quando usamos o presente como passado” “Enargeia est imaginatio, quae actum incorporeis
oculis subicit et fit modis tribus: persona, loco, tempore. Persona, cum absentem alloquimur quasi
presentem. (...)Loco, cum eum, qui non est in conspectu nostro tanquam videntes demonstramus(...)
Tempore, cum praeterito utimur quase praesenti(...).Schemata Dianoeas quae ad Rhetores Pertinent,
Iullii Rufiniani. In Carolus Halm. Rhetores Latini Minores. Ex Codicibus Maximam Partem Primum
Adhibitis. Leipzig (Teubner), 1868. Dubuque,Iowa-Reprint Library, s/d, p. 71.
19

preceito produtor do efeito é conveniente e se o efeito se assemelha verossimilmente ao


endoxon ou eikon do topos imitado. Verifica-se, enfim, se há semelhança do discurso
com aquilo que a teoria da coisa- a visão intelectual do eidos da coisa - determina que
seja considerado como o bom desenho da “opinião verdadeira” partilhada pela maioria
dos sábios sobre a coisa.
Em todos os casos, as imagens de coisas ausentes efetuadas pela imaginação
devem ser já conhecidas pela memória, funcionando como suplementos sensíveis de
suas identidades pressupostas. Na relação que estabelece entre as imagens e as
identidades modelares armazenadas na memória, a imaginação é reprodutora e
permanece sensata mesmo quando “excessiva”, inverossímil ou fantástica, pois a
significação da combinatória discursiva e o juízo sobre ela sempre pressupõem a
adequação das imagens a significados prévios da memória. Assim operada, a imagem é
semelhança proporcionada de idealidades, essências, reminiscências, referências ou
tópicas ausentes sempre identificáveis pela operação interpretativa, que as classifica e
hierarquiza segundo as espécies e os graus de sua maior ou menor adequação ao
conceito conhecido ou memorizado. O discurso constituído pela imaginação
reprodutora é obra, como generalidade prescritiva de objetos feitos pela imitação
subordinada aos preceitos miméticos de modelos ou gêneros, tópicas, estilos,
verossímeis e decoros. Toda diferença de suas imagens é interpretada ou como
progresso na direção do modelo ou como desvio defeituoso dele, conformando-se como
semelhança positiva ou negativa de sua identidade pressuposta. A imaginação
reprodutora orienta e reduz as operações do discurso às operações do juízo que se
espelha nele, como juízo de ouvinte e leitor, enquanto se (re)conhece a si mesmo nele,
reproduzindo o que já foi reproduzido como classicismo e realismo residuais, que
encontram novas semelhanças nas categorias de seu juízo de ouvinte e leitor que
reconhece o familiar, reconhecendo-se a si mesmo como mais um caso da idealidade
pressuposta.
Rosa sempre produz a evidentia na forma da imagem, fazendo-a visualizante,
nítida e luminosa, mas recusa sua adequação modelar. Inventa imagens vívidas, mas
deformantes, que alteram a proporção pressuposta do eidos, o desenho do conceito das
coisas. Por isso, introduzindo indeterminação na forma, suas anamorfoses alteram seu
entendimento pelo leitor. Sua imaginação pode ser pensada como a da definição de
Coleridge: faculdade demiúrgica ou “ esemplástica”, do grego eís èn pláttein , “que dá
20

forma e unifica”20. Diferente da fantasia aristotélica, que associa ou combina imagens


fornecidas pela memória, passa ao lado das reproduções da semelhança modelar, mas
reativa poeticamente, quando explora a inigualdade de significante e significado, o
conceito neoplatônico de imaginação como demiurgia ou produção de imagens sem
semelhança, que compõem o dizer de narradores e personagens como desenho
visualizante de algo indeterminado que lhes acontece sem que a memória lhes forneça a
identidade dos conceitos figurados. Quando ocorre, apanha-os “pelo meio”, nas
transições do devir de suas sensações. Sempre indeterminado, anima-lhes a fala e a ação
como evento fulminante e hieroglífico que se inscreve neles sem depender da sua
vontade21. A força da sua irrupção, figurada como animação de fundo, modula-os como
se eles fossem letras dos enunciados de um drama anônimo levado no teatro do seu
mundo. Assim como os logoi spermatikoi dos estóicos, que animam todos os seres com
a semente da palavra criadora, ou a metáfora sem semelhança das hierarquias angélicas
do Pseudo-Areopagita, ou a imaginação das imagens pelo espírito fantástico, em
Marsilio Ficino, a forma da imagem deformada é invenção artificiosíssima do estilo
singular que dissolve as acepções tradicionais de estilo. Soltando o fundo na
indeterminação das imagens, parece propô-las paradoxalmente não como meros signos
operando com a inigualdade de significante e significado - o que elas efetivamente são e
efetivamente fazem- mas como imagens motivadas de Forma ou código que se expressa
sensivelmente como princípio unitivo nas formas mutáveis do sertão, soletrando nelas o
dicionário universal do ser22.
Aqui, o leitor encontra o platonismo apontado com precisão por Francisco Faus:
“En lisant ces oeuvres extrêmement personnelles, on ne peut laisser de percevoir,
sous les tonalités particulières, cette attitude contemplative qui est la caractéristique
d’une mystique d’inspiration néoplatonicienne.Il y a, chez Guimarães Rosa, une vue
insatiable tournée vers quelque chose de plus clair et de plus profond, qui est ultérieur
aux choses,et qu’elles communiquent à travers mille voiles, en une véritable
métaphysique de transparence(...)Et de même les hommes- les personnages- ne se
20
“The Fancy brings together images which have no connection natural or moral, but are yoked together
by the poet by means of some accidental coincidence; as [...] the Imagination modifies images and gives
unity to variety;it sees things in one, il più nell’uno (Table talk, June, 21,1834). In S.T.Coleridge.
Biographia Literaria(Everyman’s Library, ch.IV,p.50).
21
Por exemplo, como Rosa escreve a Meyer Clason, comentando a tradução de O Recado do Morro:
“...deve haver indeterminação, porque na minha Weltanschauung, as coisas ‘acontecem’, ninguém ‘faz’
nada, só pensa que faz”. João Guimarães Rosa. Correspondência com o seu tradutor alemão Curt
Meyer-Clason (1958-1967). Edição, organização e notas de Maria Apparecida Faria Marcondes
Bussolotti. Rio de Janeiro, Nova Fronteira: Academia Brasileira de Letras; Belo Horizonte: Ed. da
UFMG, 2003, pág. 242 (Sublinhado do autor).
22
Garin, Eugenio. “Phantasia e imaginatio fra Ficino e Pomponazzi”. In: PHANTASIAIMAGINATIO. Atti
del V Colloquio Internazionale del Lessico Intellettuale Europeo . Roma 9-11 gennaio 1986. Roma,
Edizioni dell’ Atteneo, 1988, p. 7.
21

révèlent qu’au fur et à mesure de chacun de leurs actes, sans que leur caractère soit
défini au préalable »23.
Não é necessário saber se Rosa é realmente platônico. Mas tópicas e
procedimentos platônicos são poética e funcionalmente pertinentes como metáforas de
pressupostos, meios técnicos e efeitos de essência com que inventa a utopia da sua arte.
A noção de fantasia de Plotino – a imaginação que suscita pensamentos geradores de
palavras- ou a tópica da "língua do indizível” do tratado do Pseudo-Longino sobre o
sublime são poeticamente eficazes em sua racionalização negativa da forma. Por
exemplo, quando Rosa declara a Lorenz que Riobaldo "provavelmente é somente
Brasil" e que “brasilidade” é a “língua do indizível”, sugere que perspectiva a tópica da
"brasilidade" pelo viés do sublime, efetuando-a negativamente na correlação que
indetermina suas versões.
Como em Platão, em vários lugares da ficção de Rosa o tempo é definido como
a imagem móvel da eternidade24.
Aqui se acha o núcleo da poética de Rosa: a lógica da sua invenção pressupõe
que as linguagens dos classicismos, do realismo e da comunicação de massa
reproduzem estados das coisas na lógica de suas adequações interpostas na forma como
racionalismo exterior e estático, pois fixado em esquemas. É preciso fazer as coisas
nomeadas encontrar seu sentido artisticamente superior no movimento mesmo do seu
devir, indeterminando a exterioridade de suas definições esquemáticas para apanhá-las
acima do movimento, na duração do seu ser, na intuição. Para tanto, o platonismo é
eficaz, como procedimento técnico e metáfora crítica do efeito poético.
A forma deve ser o instantâneo da transição em que se indetermina, por isso é
composta negativamente, eliminando-se as boas proporções miméticas que a fixam
como adequação a unidade modelar. Rosa a inventa como instantâneo das deformações
do seu deslocamento pelo movimento que a faz sofrer aumentos ou diminuições de
suas qualidades. Cada instantâneo descrito ou narrado relaciona-se com seu instantâneo
anterior e subseqüente e também com os instantâneos de outras formas anteriores ou
subseqüentes. Como a dança dos corpos de um corpo de baile, a seqüência sintática do
enunciado figura a duração dos desenhos das correspondências entre formas produzidas
pelo movimento universal que liga cada instantâneo delas. A sintaxe figura também as
intensidades com que o movimento temporal rompe momentaneamente o percurso delas
23
Cf. Francisco Faus. « João Guimarães Rosa, le ‘contemplatif transparent’ ». In La Table Ronde. Paris,
abril de 1964, no. 195, págs. 62 e ss.
24
Cf. Platão, Timeu, 37d.
22

com sua força dissolvente de mágico de todas as traições. Como formas deformadas
pela força do movimento, são imagens próprias, como imagens de coisas de um mundo,
o sertão efetuado como sua referência; simultaneamente, imagens que soltam o fundo
indefinido do sentido do movimento que as anima, aludindo-o como voz não-humana
do “quem” das coisas que as (des)figura.
Lida isoladamente, a imagem sempre é plástica, nítida e visualizante, pois
composta de pequeníssimos detalhes abstraídos do natural pela observação muito
acurada e empática do autor, que põe suas mínimas minúcias de coisas sertanejas frente
ao olho do leitor como a enargeia ou a evidentia antigas. A luz da evidentia quase
sempre é correlato objetivo do que vai pela alma do personagem, como a manhã azul,
com pássaros floridos e ipês cantantes, em que Nhô Augusto Matraga sai ao léu,
montado no burro, ao encontro da sua hora e vez. Ou a outra manhã, em que a estrela
d’alva brilha e Riobaldo sente os frios pés do orvalho antes de partir para seu destino de
raso jagunço atirador cachorrando pelo sertão. Lidas pontualmente, isoladas da
correlação com outras, parecem realistas. Mas, como são imagens dispostas como
correlação da seqüência do enunciado, o fundo produzido como resíduo indefinido nas
deformações das suas formas une-as, difusamente, em correspondências que reverberam
seus conceitos de imagens de coisas como imagens das almas das coisas - “rosnar
maligno” de tortas raças de pedras, “farfal” do vento, “tatalar” do buriti, “colossalidade”
do angico, “selva moldada em jarro jônico” do gravatá, “plim” da abelha, “nhar” de
gavião, “urubuir” do urubu, “bró de cavalo e jibóia” do Hermógenes, “luz” e “neblina”
dos olhos verdes de Diadorim etc.
No espaço do mato, cada um dos graus de existência das coisas figuradas nas
imagens move-se na co-operação simpática ou antipática com os outros graus de todas
as outras coisas. A irradiação espontânea de suas almas nas formas luminosas contrasta,
vividamente, com a indefinição do fundo, fazendo-as agregar-se surdamente no
movimento do seu devir como se ritmadas por Forma apenas sugerida. Como acontece
exemplarmente em contos de Primeiras Estórias, como “Sorôco, sua Mãe, sua Filha”,
“Nenhum, Nenhuma”, “Partida do Audaz Navegante”, “Darandina”, “O Espelho”,
“Pirlimpsiquice”, “A Terceira Margem do Rio”, “Nada e a nossa condição”, “Luas de
Mel”, “Substância”, o movimento do fundo também anima os personagens na
iluminação súbita de sua intuição independente de entendimento, elaboração racional e
discurso. Sugerida como a alma do mundo que se fala nos bois de “Conversa de Bois”;
nos nomes dos reis assírio-babilônicos e no mato luxuriante de “São Marcos”; na
23

coragem da ascese de Nhô Augusto Matraga, em Sagarana; como recado do morro,


em “O Recado do Morro”, traduzido inicialmente pelo personagem Gorgulho como
loxías, atributo do Skoteinos, o Apolo Obscuro do oráculo de Delfos, e passado adiante
até moldar-se em voz humana articulada na poesia produtora da realidade; como
“quem” das coisas, na viagem do Grivo, de “Cara- de- Bronze”; ou classificada
cristãmente como Luz e Bem, “Deus”, e movimentação da matéria escura, “diabo”, em
Grande Sertão : Veredas; e sempre indiciada neoplatonicamente nas misturas materiais,
como “voz de irara” e “ bró de cavalo e jibóia” que indeterminam o Hermógenes, a voz
artificial do fundo não tem tradução nos modelos interpretativos do leitor, que deve ter a
paciência de não querer o conceito imediato e esperar o terceiro pensamento, para
avaliar o sentido objetivo dessa imaginação.
Para isso, o leitor deve observar que a enunciação dos personagens de Rosa é
construída com a mesma correlação em que dispõe as imagens. Por exemplo, a
enunciação de Riobaldo. Quando fala, nomeia coisas, eventos, personagens e ações
como realidade própria do sertão; simultaneamente, como elementos de um alfabeto
móvel, que em cada ponto do movimento da enunciação da fala ou da ação narrada nela
soletram parcialmente a significação de outra cena que Riobaldo só intui e que
invariavelmente indicia como força de uma presença unitiva, muda e anônima, “Deus”,
ainda quando as coisas se separam, “diabo”. O intenso efeito de oralidade com que o
autor compõe a escrita da fala sugere o murmúrio da voz anônima que insiste em cada
ponto dela, atravessando suas designações como potência de alusão ao segredo do
mundo refratado na consciência culpada do narrador. A composição do ato de fala é
análoga, como disse, à composição das imagens que o preenchem: referências muito
precisas da cultura sertaneja e referências muito precisas da cultura ilustrada são
justapostas nele, esvaziando-se umas às outras. Em cada segmento da fala, dialogam
duas formações simbólicas diversas, que remetem o leitor a duas formações históricas
precisas, a duas formações ideológicas precisas, dois usos lingüísticos precisos,
correspondentes aos campos simbólicos onde as matérias da representação foram
selecionadas. Como as imagens, a fala é condensada por pequenas sínteses culturais,
muito definidas, dos usos lingüísticos ou das versões dos textos dramatizados;
simultaneamente, a correlação encena os intervalos cronológicos e semânticos das
matérias como dissimetrias e incongruências ideológicas. Quando o oral traduz o escrito
e vice-versa, quando o iletrado avalia o letrado e vice-versa, produzem-se vazios na
significação imediata dos termos e fórmulas. Poeticamente, os vazios põem a
24

significação entre parênteses, nonada. Funcionalmente, comunicam o procedimento que


os efetua para o leitor.
O ato de fala é contínuo e nunca coincide com a significação do que diz, pois é
levado pelo movimento temporal que o faz escorrer diferencialmente, em novas
posições, como falta de unidade das versões refratadas nele. Sujeito de uma enunciação
que tenta dizer o valor e o sentido da experiência passada, Riobaldo produz imagens dos
buracos e acidentes do lembrado em enunciados provisórios do que supõe ser, no
presente em que fala, o significado que a imaginação lhe sugere ter sido o significado
das suas sensações passadas. Mas o tempo corroeu a unidade da experiência do passado.
O que pode dizer sobre ela é sua reverberação em imagens parciais e deformantes, pois
o movimento do tempo o faz devir outro. Assim, o sentido da experiência da cegueira
do poder e da perda do amor permanece inexpresso, deslocando-se como não-dito nas
imagens que o dizem. A ausência é algo elidido, que permanece aludido no ato
narrativo produtor do imaginário do leitor que, iludido, entende-a como faz com o
fundo: como ausência de algo substancial, que tenta identificar com os conteúdos de
seus sistemas familiares de interpretação. Ficcionalmente, como integração de
representação e avaliação, é apenas o exterior relacional de um “antes” de passado e um
“além” de transcendência produzido pelo ato enunciativo. Riobaldo só diz o que
efetivamente o desloca e metaforiza como sujeito da enunciação. Sua fala cala o que
não pode dizer justamente para o autor representar a duração afetiva da sua experiência
existencial nas imagens que a compõem com muita nitidez dissolvida em
indeterminação.
A maneira lenta, acumulada e minuciosa como o autor descreve; a paciência
com que devagar delineia os atos da sensação de personagens nas imagens nítidas e
móveis sugerem ao leitor que seu mundo não está acabado. Tanta minúcia seria um
regionalismo realista, se os instantâneos das transições da forma não fossem ligados
pelo fundo indefinido que a percepção por assim dizer instintiva do leitor apreende, na
intensa movimentação das coisas, como unidade de idéia superior irrepresentável ou só
apreensível pela intuição. Como em Dante, o princípio que traduz o sentido do fundo e
une as imagens é o amor, sugerido e diretamente enunciado como força de virtus
unitiva. Volta o mote: “Zola vinha apenas de São Paulo”25.

25
“Literatura deve ser vida- Um diálogo de Günter W. Lorenz com João Guimarães Rosa”. In: Catálogo
da Exposição do Novo Livro Alemão. Frankfurt am Main,Otto Lembeck, 1971. Certamente, o romance
admite a leitura que aplica a verossimilhança realista para reconhecer o que autor conhece
magnificamente bem, geologia, geografia, flora, fauna, cultura e conflitos do sertão empírico. Mas essa
25

O autor situa a experiência dos narradores, personagens e mais seres do sertão


num movimento temporal que pressupõe e implica a posição simultânea de todos os
graus das realidades intermediárias entre eles e o fundo. Como em Plotino, que o autor
cita e estiliza, as qualidades negativas de um ser malvado e inferior, como o
Hermógenes, em Grande Sertão:Veredas, ou a boicininga, de “Bicho Mau”, de Estas
Estórias, e as qualidades positivas de um ser superior e bom, como Lina, na “Estória de
Lélio e Lina”, de Corpo de Baile, ou o burrinho pedrês, de “O Burrinho Pedrês”, de
Sagarana, não são específicos apenas deles, como acidentes particulares isolados ou
isoláveis como qualidades que tipificam um caráter. As qualidades negativas também
equivalem à diminuição dos graus da qualidade superior acima delas, assim como as
positivas implicam o aumento dos graus da qualidade inferior abaixo. Poeticamente, as
imagens de qualidades sugerem, nos aspectos sensíveis das descrições da sua sombra
ou luz, a emanação indefinida dos seres que lhes são imediatamente superiores ou
inferiores. Sua maldade ou sua bondade são o que são, em si mesmas, mas também
vibram e como que se esticam tocadas da influência simpática e antipática de outras
realidades, que ignoram. Tudo se concerta em sua existência como música inaudível de
correspondências que compõem o sertão como um todo fechado sobre si mesmo.
Os personagens são figurados “pelo meio”, captados instantaneamente no
movimento deslizante em que, envolvidos da irradiação do fundo, descem ou sobem
sobre a linha imaterial que separa determinado/indeterminado, os dois princípios
lógicos das transições de suas qualidades. Nenhum deles é diretamente representado,
mas sua ação irradia-se na multiplicidade do existente. Por ablação e negação, o autor
produz graus crescentemente inferiores dos elementos que determinam a qualidade
humana, fazendo os personagens transpor a linha da determinação e afundar, aquém
dela, em barbárie e bestialidade. Por depuração os faz subir, além do determinado, na
iluminação poética e santidade.
Dos personagens malvados de Rosa, o Hermógenes, de Grande Sertão:
Veredas, é o que melhor realiza a imaginação neoplatônica da correlação de inocência e
maldade. Figurando-o aquém do determinado como ser dos movimentos da matéria
escura que o fazem devir monstro, o autor o põe no limite da forma de homem como
mistura infernal, cavernosa bronca, em que pedaços de coisas incompossíveis se

leitura satisfaz-se com pouco, pois é feita como reconhecimento documental do que o leitor supõe já
conhecer.
26

atritam: “bró de cavalo e jibóia”. As imagens o figuram poeticamente como impossível


de receber predicação unitária, pois está possuído da maldade das misturas materiais
que se agitam como azougue maligno no seu nome, sugestivo da linguagem
platonicamente pensada. As metáforas neoplatônicas que o autor transforma em meios
do seu procedimento técnico moderno de crítica da representação são totalmente aptas
para figurar a barbárie do coronelismo e da jagunçagem, compondo o Hermógenes
como ser das passagens, filho hermético de Hermes ou hermeneuta feroz,
jagunço-psicopompo que manda e conduz almas de homens assassinados para o
Inferno. O autor compõe sua imagem de ser da designação material por meio do artigo
definido- “o Hermógenes” - e pelo demonstrativo, “aquele Hermógenes”- que indicia
sua não-pessoa como coisa “vindo saindo de brejos e cachoeiras”. Sua voz é
“desgovernada desigual” e “torta entortada”, em duplicações que intensificam a
tautologia não-culturalista da sua matéria amplificada pela junção dos incompossíveis
que se agitam nele, “caramujo”, “tigre”, “cavalo”, “jibóia”, “cão”, “irara”, “suindara”.
Em Grande Sertão: Veredas, também Aleixo, Pedro Pindó, Maria Mutema, os jagunços
que limam os dentes em forma de dentes de piranha deslizam para aquém da linha,
fazendo a matéria escura do artifício do fundo aflorar como maldade.
Simetricamente, como todo grau superior equivale a uma diminuição do inferior,
muitos personagens ultrapassam a linha da determinação na ascese inconsciente que os
faz ser atraídos pela irradiação de graus mais elevados. O exemplo maior, que antecipa a
ascese de Riobaldo, é Nhô Augusto Esteves, de “A Hora e Vez de Augusto Matraga”,
que vai, na processão contínua de sua épica, desde o escuro buraco infernal onde o casal
de negros o encontra arrebentado até a transfiguração final no São Jorge que vem, com
a palavra que invoca os poderes de Deus, para matar o dragão da maldade. Outros
personagens têm ascensão análoga, mas com diverso sentido: o louco, em “Darandina”,
que trepa palmeira acima, vê o supra-senso. Nhinhinha, “a menina de lá”, está aquém,
na debilidade, mas sua palavra comunica-se com o indeterminado do fundo como força
demiúrgica. Como ela, também os meninos de “Pirlimpsiquice” ultrapassam a linha
para cima, na representação teatral em que encenam a cena impossível de teatro. A
menina de “Fita verde no cabelo” atravessa a linha, como Idéia entrando na realidade
empírica.
O texto de Grande Sertão: Veredas é inteiramente marcado pelas imagens dos
atravessamentos e deformações da linha. Por exemplo, as imagens da cachoeira, que é
barranco e água, mas que não é mais, quando a água é consumida; as da mandioca
27

doce, que vira azangada, e a da mandioca brava, que pode vir a ser mandioca mansa; a
imagem da faquinha só cabo quando a lâmina é roída no tanque de barbatimão; as
imagens da terra doida, lagoa de areia, do Liso do Sussuarão; as da animalidade dos
jagunços do Hermógenes; a do macaco comido na fímbria do Liso e que era homem; as
dos catrumanos no limiar da natureza; as imagens das Veredas Mortas, onde Riobaldo
escolhe a indeterminação,querendo a força do imaginário, “diabo”, para ter o imaginário
da força no seu poder de chefe; as do Hermógenes, figurado como demônio ctônico
posto em correlação com Diadorim, que a linha atravessa, a um tempo luz e sombra,
virtus unitiva do amor e ferocidade do ódio. E a imagem da rua do Paredão, a linha
mesma. Nela, o princípio superior da luz, figurado em Diadorim, desce, enquanto o
princípio inferior da matéria escura, figurado no Hermógenes, sobe, para anularem-se
mutuamente, dando origem à ausência que funda a memória e a palavra do narrador.
Em “Buriti”, de Corpo de Baile, a linha imaterial é atravessada na insônia pânica do
chefe Zequiel, vigilante do “imundo”, o indiferenciado que sobe do fundo dos mil
ruídos noturnos misturados. Em “O Recado do Morro”, a linha é dita na estrada
vermelha em S que começa grande frase e divide nitidamente os membros da expedição
- o cientista alemão, Seu Olquiste, o religioso, frei Sinfrão, o fazendeiro comerciante,
seu Jujuca, como tipos racionalistas da determinação, e os sete - o homenzinho todo
arcaico, Gorgulho, o débil Catraz, o menino Joãozezim, o débil Guegue, o louco
religioso Nomindomine, o Coletor das falas e Laudelim, o poeta. Os sete ouvem a voz
indeterminada do fundo e a passam adiante, com figuração crescentemente humana em
motivos cujas notas e acordes correlacionados antecipam a determinação da arte final
expressa no poema de Laudelim como profecia. Novamente, o leitor encontra a negação
da “lógica” e a afirmação dessa outra coisa, efetuada artificialmente como coisa alheia à
representação. Na efetuação, as imagens de Rosa orientam o sentido poético sugerido
no indeterminado da forma como evidência do sentido objetivo da liberdade da arte.

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