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VOLUME
6 OBRAS LITERÁRIAS
LIVRO DIDÁTICO
AULAS 21 A 30
Aula Português
21 6D
Sagarana I
João Guimarães Rosa
Obra – Temática – Estilo “O burrinho pedrês”, os animais de “Conversa de bois”
e o anti-herói Lalino de “A volta do marido pródigo”.
Aspectos fundamentais que caracterizam a obra de Personagem inesquecível é Augusto Matraga, do
Guimarães Rosa: último conto do volume. Sua trajetória, da incapacidade
a) Os temas de ambientação regional, pois as histórias de compreender recados místicos até o pleno enten-
se passam todas no interior de Minas Gerais, são dimento dos mistérios da existência, que o leva, no
apresentados com tratamento universal, ou seja, o que momento da morte, a encarnar a justiça divina de forma
acontece num determinado lugar vale para qualquer inusitada, tornam o personagem figura obrigatória de
lugar e tempo. qualquer antologia da literatura brasileira.
b) A linguagem criativa e revolucionária trabalhada pelo
escritor, tornou-se sua marca registrada. Essa lingua-
gem supera sua matriz regional, para fazer-se universal
O burrinho pedrês
E, ao meu macho rosado,
na estilização da fala sertaneja. Esta constitui, de fato,
carregado de algodão,
o ponto de partida: a oralidade e o ritmo aludem ao
falar mineiro. Na transmissão oral das histórias, veicu- preguntei: pra donde ia?
ladas por contadores de causos, como ocorre entre Pra rodar no mutirão.
os vaqueiros de “O burrinho pedrês” e os animais de
“Conversa de bois”, está presente, de forma palpável, Resumo e análise
a cultura mineira.
O foco da narrativa está centrado no burrinho que
c) Violência, traição, mistério, superstições e crendices aparece pouco na ação, mas domina o universo da nar-
que povoam os temas abordados atendem ao rativa com sua sabedoria e intensa “humanidade” que
gosto das histórias populares. A cultura urbana e paira sobre tudo e todos e que testemunha um trágico
civilizada de alguns narradores em primeira pessoa acidente. Em contraponto com a intriga que se desen-
(“Minha gente”, “São Marcos” e “Corpo fechado”) é
volve entre os boiadeiros, há episódios relacionados
questionada, encurralada pela sabedoria sertaneja,
com o ciclo mítico do boi, onipresente na vida sertaneja.
mais competente para lidar com os fatos inexplicáveis
que se sucedem nas tramas. Era um Burrinho pedrês (salpicado de preto e bran-
co na cor), miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo,
d) O título do livro exemplifica um dos procedimentos
linguísticos mais importantes da obra de Guimarães Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão. Cha-
Rosa, o neologismo: ele é formado pela junção da mava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como outro
expressão nórdica Saga (= lenda), com a terminação não existiu e nem pode haver igual.
tupi rana (= à maneira de). Agora, porém, estava idoso, muito idoso...
Esse título é bastante feliz, as histórias são contadas Mas nada disso vale fala, porque a estória de um
“como se fossem lendas”, o que sugere que talvez não burrinho, como a história de um homem grande, é
sejam. De fato, as narrativas de Sagarana oscilam entre bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a
o real e o irreal. Há, inclusive, a fábula de “Conversa existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas
de bois”, na qual os animais se comunicam. Tão horas – seis da manhã à meia-noite – nos meados do
surpreendentes quanto essas circunstâncias são alguns mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale
dos heróis das narrativas, como o personagem-título de do Rio da Velhas, no centro de Minas Gerais.
1
Misturando descrições da paisagem numa lingua- No decorrer da viagem entre aboios e cantos, Ray-
gem melódica e bem detalhada, entremeando o enredo mundão conta a história do touro Calundu que não batia
central com diversos “causos” de vaqueiros, de boiadas e em gente a pé, mas gostava de correr atrás de cavaleiro.
de bois bravos, Guimarães Rosa, transforma o Sete-de- Certa vez, na proteção de um grupo de vacas com seus
-Ouros num herói. bezerros novinhos, Calundu enfrentou uma onça preta,
Já velho e decrépito o burrinho foi usado como amedrontando a fera e pondo-a para correr; acabou por
montaria para a viagem de uma boiada até a cidade. matar o menino Vadico, filho do fazendeiro Neco Borges.
O pai, vendo o filho ensanguentado no chão, puxou o re-
Na Fazenda da Tampa, do Major Saulo, os homens
vólver para matar o touro. Vadico, antes de morrer, pediu
estão ultimando os preparativos para sair pela estrada.
que o pai não matasse Calundu. Neco Borges mandou
O dia é de chuva, mas ela ainda não veio. Major Saulo
o touro para outra fazenda para ser vendido ou dado
ordena que os homens preparem os animais.
a alguém. Raymundão foi quem levou o bicho. O zebu
Por causa da fuga de alguns cavalos, o burrinho ficou uma noite apenas no curral soltando mugidos que
Sete-de-Ouros é escolhido como montaria para a via- mais pareciam lamentos doloridos. No outro dia, estava
gem. Para montá-lo, o Major escolheu o vaqueiro João morto.
Manico, vaqueiro miúdo, velho e experiente, que foi alvo
Depois da chuva grossa, a boiada chegou ao córrego
de brincadeiras e piadas dos companheiros
da Fome. Estava cheio. A travessia era perigosa e o Major
Sete-de-Ouros ainda sem saber de sua missão, volta Saulo pediu cautela. Ali já morrera muita gente. Mas a
e meia observava a confusão da boiada nos currais, a travessia é feita sem perdas. Até Sete-de-Ouros atraves-
variedade de raças oriundas de outras regiões e voltava sou sem reclamar.
a cochilar.
Silvino provoca um boi feroz que ataca Badu. Este,
Alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas, com habilidade, se livra do touro. Silvino então planeja
oscilava a mastreação dos chifres. E comprimiam-se os matar o inimigo pessoalmente, na viagem de volta, de-
flancos dos mestiços de todas as meias raças plebeias pois de atravessarem o ribeirão da Fome ganhar estrada
dos campos gerais do Urucuia, dos tombadores do Rio e sumir no mundo.
Verde, das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das
Em determinado ponto do caminho, Major Saulo
estepes do Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão
ordenou que Francolim trocasse de montaria com João
sem fim. Sós e seus de pelagem, com as cores mais
Manico e viajasse perto; é então que o capataz conta ao
achadas e impossíveis...
major o caso de Badu e Silvino: Badu está na fazenda há
E segue a descrição detalhada das inumeráveis raças apenas dois meses e já tomou a namorada do Silvino,
de gado de todas as cores, que se amontoam, se chifram uma moça caolha. Por isso, os dois viraram inimigos,
e se empurram nos apertados currais. E seguem as um querendo prejudicar o outro. Francolim já avisou o
brincadeiras do major Saulo com seus homens, fica-se major sobre o perigo de um matar o outro. Raymundão
sabendo da rivalidade entre Silvino e Badu por causa acha que o caso não é para morte. O casamento com
de mulher. Os preparativos chegam ao fim e começa Badu já está marcado. Depois foi Raymundão que em
lentamente a partida da multidão de cabeças de gado prosa com o Major, informou que Silvino vendeu umas
saindo dos currais. quatro cabeças de gado por preço abaixo do normal.
– Eh, boi lá!... Eh-ê-ê-eh, boi... Tou! Tou! Tou!... Outra informação que veio do Francolim: Silvino está
As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das com bagagem além do normal. O Major Saulo, antes da
vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no chegada ao povoado, determina que Francolim, na vol-
meio, na massa embolada, com atritos de couros, com ta, vigie Silvino o tempo todo. O Major está convencido
estalos de guampas, estrondos e baques, e o berro de que Silvino já planejou a morte de Badu.
queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com A chegada ao povoado foi uma festa. O povo, mesmo
muita tristeza, saudade dos campos, querência dos com a meia-chuva, foi para o curral da estrada de ferro
pastos de lá do sertão... ver o embarque. Depois, que os animais foram embar-
“Um boi preto, um boi pintado, cados no trem especial, os vaqueiros andaram pelo
cada um tem sua cor. povoado bebendo e se divertindo.
Cada coração um jeito Na hora de ir embora, cada um pegou a sua mon-
taria. Badu ficou por último: estava bêbado e tinha ido
de mostrar o seu amor.”
comprar um presente para sua morena. Por maldade,
Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi ber- deixaram-lhe o burrinho Sete-de-Ouros. Na saída do po-
rando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá voado, alguém vaiou: Badu era por demais grande para
direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, o burrinho pedrês, os pés iam quase arrastando no chão.
vai varando...
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Aula 21
Francolim deixou Badu para trás e foi juntar-se ao Se o burro entrasse na água, os cavalos o seguiriam. É
grupo. Queria mesmo era ficar de olho em Silvino que que burro não entra em lugar de onde não pode sair.
ia bem na frente com o irmão Tote que tentava dissuadir Sete-de-Ouros entrou levando Badu às costas.
o mano do crime. Silvino estava determinado. Esperava Os cavalos seguiram-no e instigados pelos vaqueiros,
apenas o momento certo para fazer o serviço e cair no jogavam-se na correnteza no afã de a vencerem e foram
mundo. levados de arrastão morrendo com seus cavaleiros.
João Manico, por insistência de todos, contou mais Foi uma tragédia: oito vaqueiros mortos naquela
uma vez a história de sua mocidade. Um pretinho pro- noite. Sete-de-Ouros, com Badu agarrado às crinas e
vocou o estouro de uma boiada montado num touro, Francolim agarrado à cauda, sábio e experiente, entrou
quando o Major Saulo, ainda novo, era tratado por na enxurrada devagar e quando não sentiu mais o
Saulinho. No estouro, de madrugada, o gado passou por fundo deixou-se levar pela correnteza até conseguir,
cima dos dois vaqueiros que estavam de vigia. centenas de metros adiante, pisar novamente no
Já era noite fechada quando os cavalos empacaram, fundo, na outra margem.
pressentindo o mar de água. O riacho, com a chuva de Já em terra firme, livrou-se de Francolim e seguiu
algumas horas, engrossara e virara uma torrente forte. ligeiro para a fazenda. Ali, livraram-no do vaqueiro, que
Resolveram esperar Badu e o burrinho Sete-de-Ouros. dormia, e dos arreios.
Testes
Assimilação 21.03. Avalie as afirmações a seguir sobre a obra e o estilo
de Guimarães Rosa.
21.01. (FUVEST – SP) – João Guimarães Rosa, em Sagarana,
permite ao leitor observar que: 1. O sertão que vem de Guimarães Rosa não se restringe aos
limites geográficos brasileiros, ainda que dele extraia sua
a) explora o folclórico do sertão. matéria-prima.
b) é muito sutil na apresentação do cotidiano banal do 2. O sertão aparece como uma forma de aprendizado sobre
jagunço. a vida, sobre a existência, não apenas do sertanejo, mas
c) em episódios muitas vezes palpitantes surpreende a rea- do homem.
lidade nos mais leves pormenores e trabalha a linguagem 3. A linguagem, a verdadeira matéria de todos os textos ro-
com esmero. sianos, ainda que calcada em aspectos do falar sertanejo,
d) limita-se ao quadro do regionalismo brasileiro. mistura-se à pesquisa erudita, aos arcaísmos, à exploração
sonora, sintática e semântica do português.
e) é intimista hermético.
4. Inúmeras citações são inseridas por acaso no corpo dos textos
21.02. (PUC – SP) – Em carta escrita a João Condé, revelan- de Guimarães Rosa, sem outra finalidade que não a de ser
do os segredos de Sagarana, João Guimarães Rosa elenca as apenas mais uma digressão a integrar a estrutura da obra.
doze histórias que comporiam a obra. De uma delas afirma: Estão corretas apenas as afirmações
“Peça não-profana, mas sugerida por um aconteci- a) 1 e 2.
mento real, passado em minha terra, há muitos anos: o
b) 1, 2 e 3.
afogamento de um grupo de vaqueiros, num córrego cheio”.
Tal afirmação refere-se ao conto c) 2 e 4.
a) “Sarapalha”, que também narra a partida da esposa de d) 2, 3 e 4.
Ribeiro que o abandonou por um vaqueiro ou foi rapta- e) 1 e 3.
da pelo diabo.
21.04. Assinale a alternativa correta.
b) “Conversa de bois”, cujo enredo envolve, também, a
morte de um carreiro, provocada pelos bois e pelo me- a) O romance Sagarana aborda histórias e causos do interior
nino-guia. de Minas Gerais.
c) “A hora e vez de Augusto Matraga”, cujo personagem b) A linguagem revolucionária de Guimarães Rosa coloca-o
principal é marcado a ferro com um triângulo inscrito entre os primeiros modernistas de 22.
numa circunferência, como se fosse gado do Major. c) Guimarães Rosa evita utilizar neologismos.
d) “O burrinho pedrês”, cujo personagem Francolim desem- d) A obra Sagarana utiliza a linguagem do modernismo
penha um papel relativamente importante na história. regionalista de 30.
e) “Minha gente”, cuja ação e trama ocorrem no local cha- e) São características fundamentais da obra o regionalismo
mado Todo-Fim-É-Bom. e o universalismo.
Português D 3
21.05. Avalie as afirmações a respeito de Sagarana, de c) combater frontalmente e sem concessões as atitudes
Guimarães Rosa. dos homens, que considera confusas e desarrazoadas.
1. Em Sagarana renasce o anônimo “contador de estórias”, d) ignorar os perigos que o mundo apresenta, agindo
o homem-coletivo que se enraíza nos rapsodos gregos como se eles não existissem.
e nas canções de gesta medievais. e) escolher a inação e a inércia, confiando inteiramente seu
2. Desde o início do conto (Era um burrinho pedrês...) destino às forças do puro acaso e da sorte.
esboça-se claramente a atitude ingênua e espontânea
21.07. (FUVEST – SP) – Como exemplos da expressividade
da “palavra lúdica”, que não aprisiona o falar nos limites
sonora presente nesse excerto, podemos citar a onomato-
rígidos do individualismo, mas se identifica com a palavra
peia, em “Chu-áa! Chu-áa...”, e a fusão de onomatopeia com
anônima e coletiva.
aliteração, em:
3. A fórmula linguística caracterizadora da narrativa elemen- a) “vestindo água”.
tar, da fábula, da lenda (Era um burrinho...), mais o tempo
e modo verbais tiram à narrativa o caráter de coisa datada, b) “ruge o rio”.
para projetá-la na esfera intemporal do universo de ficção. c) “poço doido”.
4. A mescla de precisão e imprecisão documental no registro d) “filho do fundo”.
do espaço (vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, e) “fora de hora”.
ou não sei onde no sertão) e a dimensão antropomórfica
(forma humana) que é dada à personagem cen- 21.08. TEXTO
tral, o “burrinho-gente”, situa a narrativa na fronteira entre Alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas, oscilava
o real e o mágico. a mastreação dos chifres. E comprimiam-se os flancos dos
Estão corretas as afirmativas. mestiços de todas as meias raças plebeias dos campos gerais,
a) 1, 2, 3 e 4; do Urucuia, dos tombadores do Rio Verde, das reservas baia-
b) 2, 3 e 4; nas, das pradarias de Goiás, das estepes do Jequitinhonha,
dos pastos soltos do sertão sem fim.
c) 1, 3 e 4;
d) 1, 2 e 3; A linguagem de Guimarães Rosa no excerto acima, re-
tirado de O burrinho pedrês, revela importante característica
e) 1, 2 e 4.
de seu estilo que é
a) o uso intensivo de neologismos.
Aperfeiçoamento b) a personificação dos animais.
TEXTO PARA AS PRÓXIMAS QUESTÕES: c) o regionalismo mineiro.
Vestindo água, só saído o cimo do pescoço, o burrinho d) a descrição detalhada.
tinha de se enqueixar para o alto, a salvar também de fora o
focinho. Uma peitada. Outro tacar de patas. Chu-áa! Chu-áa... e) a sintaxe revolucionária.
– ruge o rio, como chuva deitada no chão. Nenhuma pressa!
Outra remada, vagarosa. No fim de tudo, tem o pátio, com os 21.09. Avalie os excertos retirados do conto O burrinho
cochos, muito milho, na Fazenda; e depois o pasto: sombra, pedrês, da obra Sagarana, de Guimarães Rosa.
capim e sossego... Nenhuma pressa. Aqui, por ora, este poço 1. O texto: “...de botas e esporas, corpulento, quase um obeso,
doido, que barulha como um fogo, e faz medo, não é novo: de olhos verdes, misterioso, que só com o olhar mandava
tudo é ruim e uma só coisa, no caminho: como os homens um boi bravo se ir de castigo, e que ria, sempre ria – riso
e os seus modos, costumeira confusão. É só fechar os olhos. grosso, quando irado; riso fino, quando alegre, e riso mudo,
Como sempre. Outra passada, na massa fria. E ir sem afã, de normal”, refere-se ao personagem Major Saulo.
à voga surda, amigo da água, bem com o escuro, filho do 2. “Como correntes de oceano, movem-se em cordões
fundo, poupando forças para o fim. Nada mais, nada de graça; constantes, rodando remoinhos: sempre um vaivém,
nem um arranco, fora de hora. Assim. os focinhos babosos apontando, e as caudas, que não
João Guimarães Rosa. “O burrinho pedrês”, Sagarana. cessam de espanejar com as vassourinhas”. Este trecho
faz parte de uma das diversas descrições que o autor faz
21.06. (FUVEST –SP) – Em trecho anterior do mesmo conto, da manada.
o narrador chama Sete-de-Ouros de “sábio”. No excerto, a 3. “Tropeiam, agora, socornando e arfando, mas os alcantis
“sabedoria” do burrinho consiste, principalmente, em: encapelados, eriçados de pontas, guardam uma fidelidade
a) procurar adaptar-se o melhor possível às forças adversas, de ritmos, escorrendo estrada avante. E o chapadão atroa,
que busca utilizar em benefício próprio. à percussão debulhada dos mil oitocentos e quarenta
b) firmar um pacto com as potências mágicas que se ocul- cascos de unha dupla”: Pelo texto ficamos sabendo que
tam atrás das aparências do mundo natural. havia 460 animais na manada.
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4. “...Então, eu acho que cheguei a dormir, mas não sei... c) Francolim, de brincadeira, jogou um pano vermelho nas
O canto do pretinho, isso havia!... E sonhei com uma tro- costas de Badu.
voada medonha, e um gado feio correndo, desembolado, d) O boi foi escoiceado pelo cavalo do vaqueiro e investiu
todo doido, e com um menino preto passar cantando furioso contra a montaria de Badu.
toda a vida, sentado em cima do cachaço de um marruaz
nambiju!..”. O trecho faz parte da história do boi calundu, e) O acontecido fazia parte do plano de Silvino para matar
que matou um menino e acabou morrendo de tristeza. Badu, por vingança.
Estão corretas, apenas 21.12. Leia o texto a seguir, retirado do conto O burrinho
a) 1 e 2. pedrês, de Guimarães Rosa.
b) 1 e 3. (Os bois) Esperam que a trovoada bata pilão na grota
c) 2 e 3. longe, e então se sobrechegam e se agitam, recomeçando
d) 1, 3 e 4.
os espiralados deslocamentos.
e) 1, 2 e 3. Enfarado de assistir a tais violências, Sete-de-Ouros
fecha os olhos. Rosna engasgado. Entorna o frontispício.
21.10. (UNIOESTE – PR) – Em relação ao conto “O burrinho pe- E, cabisbaixo, volta a cochilar. Todo calma, renúncia e força
drês”, de João Guimarães Rosa, NÃO é pertinente afirmar que: não usada. O hálito largo. As orelhas peludas, pendidas por
a) A sabedoria instintiva de Sete-de-ouros, adquirida por diante, como duas mal enroladas folhas secas. A modorra
experiência ao longo da vida, pode ser associada à expe-
que o leva a reservatórios profundos.
riência de João Manico, o vaqueiro mais velho da comitiva.
b) A sabedoria do velho burro Sete-de-ouros, capaz de É evidente no texto a presença do recurso de estilo deno-
atravessar a salvo a grande enchente, contrapõe-se à minado
inexperiência dos cavalos fogosos que morrem afogados.
a) prosopopeia ou personificação.
c) O empenho de Maneco Dias, muito orgulhoso da confiança
do patrão, evita que Zé Tereza mate Badu, completamente b) antítese ou paradoxo.
embriagado, e desapareça na imensidão do sertão. c) anáfora ou repetição.
d) A profunda tristeza do canto do pretinho, que estava sen-
do levado a contragosto para longe da mãe, contamina d) hipérbole ou exagero.
os vaqueiros, fazendo que aflorem neles as lembranças e) onomatopeia ou eco.
mais ternas e doloridas.
e) Badu, completamente bêbado e sem consciência do peri- 21.13. Avalie as afirmativas a seguir.
go que corria, só se salva da enchente graças à esperteza 1. Guimarães Rosa revitalizou os recursos da expressão
de Sete-de-ouros. poética (ritmo, rima, aliterações, cortes e deslocamentos
21.11. Leia o texto a seguir, retirado do conto O burrinho de sintaxe).
pedrês. 2. O escritor de Sagarana evita utilizar vocabulário insólito,
– Põe pra lá, marroeiro!... erudito, arcaico e neologismos.
Preciso. O aguilhão feriu o focinho, a vara jogou como 3. Seu modo peculiar de escrever visa a captar e imortalizar
um braço de biela, e já Badu empurrou o perfil do boi, tirando os valores espirituais humanos e culturais de um povo em
o corpo para a esquerda, num pulo de pés juntos. transição, em transformação acelerada de uma estrutura
– Passa, corisco! Aratanha! agrícola para a urbanização industrial.
Passou com ventania e estrondo. 4. A lírica e a narrativa distinguem-se claramente uma da
– Topada certa! Boa vara e bom vaqueiro meu!... outra, marcando categoricamente os limites existentes
entre os gêneros.
Já o touro, tendo ido a poucos passos, mugiu curto e volta-
va, com sua fúria no mais, mais. Tomara a dor e entrava em Estão corretas, apenas as afirmativas
Badu outra vez.
a) 1 e 2.
Assinale a alternativa que encaixa corretamente, no contexto
do conto, a cena acima. b) 2 e 3.
a) O ataque de uma serpente assustou o boi, que investiu c) 1 e 3.
contra o vaqueiro mais próximo.
d) 2 e 4.
b) Badu ferroou o animal, que era feroz, para pô-lo de volta
na manada. e) 3 e 4.
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Texto Assinale a alternativa que apresenta a figura de linguagem
Mudo e mouco vai Sete-de-Ouros, no seu passo curto em destaque nos excertos.
de introvertido, pondo, com precisão milimétrica, no rasto a) Antítese.
das patas da frente as mimosas patas de trás. b) Hipérbole.
– Escuta uma pergunta séria, meu compadre João c) Neologismo.
Manico: você acha que burro é burro? d) Metáfora.
– Seô Major meu compadre, isso é até é que eu não e) Onomatopeia.
acho, não. Sei que eles são ladinos demais...
Bem que Sete-de-Ouros se inventa sempre no seu. 21.17. (ENEM PPL)
Não a praça larga do claro, nem o cavouco do sono: só um Apuram o passo, por entre campinas ricas, onde pastam
remanso pouso de pausa, com as pestanas meando os ou ruminam outros mil e mais bois. Mas os vaqueiros não
olhos, o mundo de fora feito um sossego, coado na quase esmorecem nos eias e cantigas, porque a boiada ainda tem
sombra, e, de dentro, funda certeza viva, subida de raiz; com passagens inquietantes: alarga-se e recomprime-se, sem
as orelhas – espelhos da alma – tremulando, tais ponteiros de motivo, e mesmo dentro da multidão movediça há giros
quadrante, aos episódios para estrada, pela ponte nebulosa estranhos, que não os deslocamentos normais do gado em
por onde os burrinhos sabem ir, qual a qual, sem conversa, marcha — quando sempre alguns disputam a colocação na
sem perguntas, cada um no seu lugar, devagar, por todos os vanguarda, outros procuram o centro, e muitos se deixam
séculos e seculórios, mansamente, amém. levar, empurrados, sobrenadando quase, com os mais fracos
rolando para os lados e os mais pesados tardando para trás,
21.14. Sobre o texto é correto afirmar que Guimarães Rosa
apresenta o burrinho Sete-de-Ouros no coice da procissão.
a) com as mesmas características das fábulas e histórias – Eh, boi lá!... Eh-ê-ê-eh, boi!... Tou! Tou! Tou...
infantis. As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas
b) com exagerada fantasia que identifica seu estilo com o e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na
surrealismo. massa embolada, com atritos de couros, estralos e guampas,
c) manifestando, exclusivamente, sua natureza animal. estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira,
d) objetivamente, levado apenas por seus instintos irracio- de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos,
nais. querência dos pastos de lá do sertão...
e) de maneira poética atribuindo-lhe qualidades físicas e “Um boi preto, um boi pintado,
emocionais. cada um tem sua cor.
21.15. Tendo em vista ainda o texto da questão anterior, Cada coração um jeito
assinale a alternativa correta. de mostrar seu amor”.
a) O narrador atribui ao animal a capacidade de interpretar Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando...
o mundo.
Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem,
b) O texto prescinde da fusão de gêneros literários. volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...
c) Na pergunta do Major, as palavras repetidas pertencem ROSA J. G. O burrinho pedrês. Sagarana.
à mesma classe gramatical.
d) A última expressão do texto apresenta uma referência Próximo do homem e do sertão mineiros, Guimarães Rosa
irônica ao costume dos vaqueiros de fazerem orações. criou um estilo que ressignifica esses elementos. O fragmento
expressa a peculiaridade desse estilo narrativo, pois
e) O texto dá a entender que o burrinho pedrês previu a
tragédia que iria acontecer. a) demonstra a preocupação do narrador com a verossimi-
lhança.
21.16. Leia com atenção os excertos retirados do conto b) expressa o fluir do rebanho e dos peões por meio de
O burrinho pedrês. recursos sonoros e lexicais.
• Sete-de-Ouros estava. Só e sério. Sem desperdício, sem c) recorre à personificação dos animais como principal
desnorteio, cumpridor de obrigação, aproveitava para recurso estilístico.
encher, mais um trecho, a infinita linguiça da vida. d) produz um efeito de legitimidade atrelada à reprodução
• No covo da ipueira, o coaxar dos sapos avançava longe da linguagem regional.
e voltava – um... um... um... – como se corressem escalas e) revela aspectos de confluência entre as vozes e os sons
em enorme teclado fanho. da natureza.
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21.18. (UP – PR) – Sobre “O burrinho pedrês”, narrativa 21.19. (PUC – SP) – João Guimarães Rosa escreveu
de abertura de Sagarana (1946), de João Guimarães Rosa, Sagarana em 1946, obra composta de nove contos, entre
é correto afirmar: os quais se destaca “O burrinho pedrês”. Leia o trecho que
a) Badu e Francolim se salvam do afogamento no córrego segue.
da Fome, porque a embriaguez permitiu que o medo Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cube-
não os dominasse, como aconteceu com os demais tos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros,
companheiros. churriados, corombos, cornetos, bocalvos, borralhos, chum-
b) Badu se salva do afogamento no córrego da Fome, por- bados, chitados, vareiros, silveiros... E os tocos da testa do
que estava bêbado e montado no sagaz burrinho pe- mocho macheado, e as armas antigas do boi cornalão...
drês, o que não aconteceu com Francolim e os demais Deste trecho é correto afirmar que é marcadamente ritmado
companheiros. e sonoro. Esses efeitos se alcançam por causa
c) Badu e Francolim se salvam do afogamento no córrego
da Fome, porque Sete-de-Ouros possuía uma percep- a) da enumeração caótica estabelecida no jogo adjetivo
ção muito acurada para ler e compreender os sinais da dos termos e pela rima interna na constituição dos pares
natureza. vocabulares.
d) Badu se salva e os demais companheiros se afogam por b) da diversidade de tipos de bois e do jogo contrastivo de
uma mera questão do destino, pois todos estavam em termos que designam essa diversidade.
condição de igualdade na travessia do córrego da Fome. c) das medidas dos diferentes segmentos frásicos e pela
e) Badu, Francolim e o Major se salvam do afogamento no dominante presença da redondilha maior.
córrego da Fome, porque as suas posições sociais, mais d) de uma possível métrica presente no trecho, caracterizada
elevadas, permitiram que tivessem montarias possantes. como redondilha menor, e da presença de aliterações.
e) do jogo sonoro provocado pela dominância de vogais
fechadas e pela presença de cadência de sons apenas
longos e átonos.
Gabarito
21.01. c 21.19. d
21.02. d “O burrinho pedrês”, de Sagarana, é um dos contos em que Guima-
21.03. b rães Rosa mais explora a musicalidade. O trecho em questão poderia
21.04. e ser lido, entre outros modos, como versos pentassílabos ou redon-
21.05. a dilhas menores em que notadamente se percebem as aliterações e
21.06. a assonâncias:
21.07. d Ga/ lhu/dos/, gai/o/ los (5)
21.08. b es/tre/ los/ es/pá/cios, (5)
21.09. e com/bu/cos/, cu/be/tos, (5)
21.10. c lo/bu/nos/, lom/par/dos, (5) (...)
21.11. e 21.20. b
21.12. a Badu e Francolim foram salvos por Sete-de-Ouros; Major Saulo ficou
21.13. c na cidade; Manico e Juca não entraram no córrego.
21.14. e
21.15. a
21.16. d
21.17. b
21.18. c
Português D 7
Português
Aula 22 6D
Sagarana II
João Guimarães Rosa
A volta do marido pródigo Maria Rita, mulher de Lalino é uma jovem linda,
provocante, desejada por muitos e apaixonada pelo
Negra danada, siô, é Maria: marido irresponsável, malandro e mentiroso. Seduzido
ela dá no coice, ela dá na guia, pelas próprias mentiras, Laio resolve abandonar a
lavando roupa na ventania. mulher e experimentar as delícias imaginárias da vida
Negro danado, siô, é Heitô: pervertida no Rio de Janeiro. Com a promessa de sumir
de calça branca, de paletó, e nunca mais voltar, Lalino arranca um bom dinheiro de
Ramiro, um imigrante espanhol que andava rondando
foi no inferno, mas não entrou!
Maria Rita. Abandonada pelo marido, depois de muito
O conto A volta do marido pródigo narra as peripé- chorar, a bela morena, por vingança, aceita viver com o
cias, malandragens e aventuras de um herói picaresco, espanhol de quem não gosta.
Eulálio Salãthiel (Lalino - Laio). Irresponsável, festeiro e A maioria dos que o conheciam comentavam que
brincalhão, sempre de bom-humor. Quando chega atra- Laio era um canalha, que vendera a mulher para Ramiro.
sado ao trabalho na construção de uma rodovia, o que As aventuras na capital duraram seis meses. Desilu-
acontece com frequência, acalma o chefe com mentiras dido com a falsidade e ganância das mulheres e quase
bem contadas e alegra os companheiros com histórias sem dinheiro, o espertalhão retorna a sua terra para
mirabolantes a respeito de mulheres lindas e fáceis da espanto de Ramiro, surpresa de Rita, maledicências dos
capital, onde aliás, ele nunca esteve. conhecidos e fuxicos em geral. Meio deslocado e tentan-
Lalino nunca foi soldado, mas sabe unir forte os do se enturmar, passa as horas à espera de uma ideia
calcanhares, ao defrontar seu Marra. E assenta os que o faça recuperar o prestígio e a mulher. Ramiro, para
olhinhos gateados nos olhos severos do chefe. evitar que ele reencontrasse a ex-mulher, perdoou-lhe a
dívida e devolveu-lhe o violão.
– Bom dia, seu Marrinha! Como passou de ontem?
À beira de um riacho onde descansava, Laio deu de
– Bem. Já sabe, não é? Só ganha meio dia. cara com seu Oscar, filho do chefe da política local. Era
E seu Marra saca o lápis e a caderneta, molha a ponta época de campanha eleitoral. Trocaram ideias, e Oscar
do dedo na língua, molha a ponta do lápis também, e prometeu falar com o velho (Major Anacleto) para arran-
toma nota, com a seriedade de quem assinasse uma jar um trabalho para Laio na campanha política do pai.
sentença. – ... Olha: tu quer, mas quer mesmo, de verdade,
acertar um propósito? Se emendar?
Em vez de trabalhar duro, como os outros, Lalino
inventa histórias, conta causos. A maioria admira-o. Mas – Pois então, seu Oscar! Quero! Pois quero! Estou
há quem enxergue nele apenas um aproveitador. campeando é isso mesmo...
– Bom, prometer eu não prometo... Não posso. Mas
– Mulatinho descarado! Vai em festa, dorme que
vou falar com o velho. Vou ver se arranjo p’ra ele lhe dar
horas, e quando chega, ainda é todo enfeitado e
um serviço.
salamistrão!
– Lhe honro a letra, seu Oscar! Não desmereço...
O simpático malandro entretém os companheiros
– Eu acho de encomenda, p’ra um como você, tomar
com planos fantasiosos de comprar terras, criar animais
uma empreitada com essa política, que está brava...
exóticos, plantar, enriquecer. Alguns colegas, encanta-
dos com as histórias de Lalino fazem o trabalho por ele. – Isto! seu Oscar... Vão ver que eleiçãozinha diferente
E o mulato planeja festas, com cantorias e rodadas de que vão ter... Arranja mesmo, seu Oscar... Já estou aflito...
cerveja. Já estou vendo a gente ganhando no fim da mão!
8 Extensivo Terceirão
Aula 22
Chefe político do distrito, Major Anacleto era religio- o contrário: que Ritinha não gostava mais do marido,
so, rígido, moralista. Não queria nem ouvir falar daquele gostava de verdade era do espanhol. Dias depois, Riti-
cachorro, pervertido e ateu que abandonara a mulher. nha entrou impetuosamente na casa do Major, jogou-se
Oscar argumentou que o mulatinho era esperto, criador aos seus pés e suplicou-lhe proteção contra Ramiro que
de confusão, a solução para enfrentar a politicagem a estava maltratando, que não deixasse os espanhóis
suja e sem-vergonha do outro candidato, o Benigno. Tio levá-la à força dali. O Ramiro jurara que ia matá-la, matar
Laudônio, um sujeito quietão, observador e que diziam o Laio e suicidar-se.
ter o dom da premonição, era conselheiro do irmão. Pois O Major mandou chamar Lalino e soube que o
Tio Laudônio opinou: mulato estava bebendo com um deputado que chegara
– Um mulato desses pode valer ouros... A gente de automóvel e passaria ali pela região acompanhado
esquenta a cabeça dele, depois solta em cima dos de Benigno. Estava divertindo as autoridades cantando
tais, e sopra... Ajusta o mulatinho, mano Cleto, que modinhas e contando histórias.
esse-um é o Saci.
Foi a conta: o Major pensou que eram da oposição e
Lalino só apareceu no outro dia e o Major o foi expul- começou a xingar o Laio.
sando já na entrada da casa. Mas o rapaz explicou que
não viera antes, pois andara bisbilhotando para tomar O Major bramia:
pé da situação. Contou que muitos dos eleitores iriam – Cachorrão! Bandido!... Mas tu não está entenden-
trair o Major; seu Benigno andara comprando votos e le- do, mano Laudônio?! É o diabo do homem, do tal, o
vando até parentes do Major a se rebelarem; espalhava deputado da oposição!... Parou... Decerto! Tinha de gos-
boatos de que o Major estava doente e não aguentava tar... Pois encontra o mulatinho bêbedo, botando prosa,
mais o repuxo, que o Major não tinha mais o apoio do contando o caso da Boa Vista, e tudo... Nem quero fazer
governo, que era de pouca religião e que o Vigário iria ideia de como é que vai ser isto por diante... Cachorro!
apoiar o adversário, frequentador assíduo da Missa Agora vai dar tudo com os burros n’água, só por causa
confessando e comungando todos os dias com a família. daquele cafajeste! Mal-agradecido! E logo agora que eu
O Major, surpreso e furioso com o que acabara de saber, ia proteger o capeta, fazer as pazes dele com a mulher,
contratou o mulatinho, deu-lhe um bom dinheiro e até mandar os espanhóis para longe... Mas vai ver! Me paga!
colocou a serviço dele o Estevão, seu melhor capanga, Leva um sova de relho, não escapa!
como guarda-costas. De repente, lá vem o Laio dentro de um automóvel.
O Major Anacleto começou sua campanha pela E a surpresa foi geral. Na verdade, não era deputado da
igreja. O padre teve de aceitar leitoa, visita, dinheiro, oposição como se supunha, era gente do governo, Sua
confissão e um cargo, tecendo rasgados elogios a Lalino, Excelência o Senhor Secretário do Interior. E o Major
como homem de bem, devoto e desapegado. desmanchou-se em sorrisos e gentilezas, ofereceu ca-
Lalino passava os dias aprontando, protegido pela fezinho, e a autoridade, satisfeita, elogiou muito o Laio,
cara feia de Estevão conhecido como exímio atirador. pediu ao Major que, indo à capital, levasse o mulato
Desacatou os espanhóis, jogou beijinho para Rita, junto.
desmentiu as reclamações de Ramiro, explicou ao Major E assim, graças a uma série de artimanhas que, no
que os espanhóis não votavam, portanto não mereciam primeiro momento, pareciam ser desastrosas para a po-
atenção e ajuda. O esperto mulatinho tocou violão, be- lítica do Major, mas que na verdade eram intrigas muito
beu e se divertiu com Nico, filho do candidato adversário, hábeis contra o adversário político, Lalino garantiu o
o Benigno, deixando o Major furioso com a “traição”, mas sucesso eleitoral do patrão.
como se saberá depois, Nico vai desonrar a filha de um
O Major, contentíssimo, mandou trazer Maria Rita
grande aliado de Benigno. E o pai da moça, com todos os
para as pazes com Laio. Convocou a jagunçada e orde-
seus seguidores tornam-se eleitores do Major.
nou: “mandem os espanhóis tomarem rumo”! Se miar,
Oscar, a pedido de Lalino foi dar um recado a Rita, mete a lenha! Se resistir, berrem fogo!
mas, em vez disso, Oscar assediou, a moça, passou uma
conversa mole e pediu um beijo. Ritinha expulsou-o, não E, no brejo – friíssimo e em festa – os sapos conti-
sem antes confessar que gostava mesmo era do Laio e nuavam a exultar
que ia morrer gostando dele. De volta, seu Oscar contou – Chico? – Nhô! – Você vai? – Vou!
Português D 9
Sarapalha mostrou os efeitos da doença em si mesmo. E Primo Ribeiro
lembrou-se de sua mulher que fugira seis meses depois que
Canta, canta canarinho, ai, ai, ai... o médico fora embora. Cansado de sofrer calado começa
a falar de Luísa. Primo Argemiro de repente se perturbou
Não cantes fora de hora, ai, ai, ai... e ficou vermelho, lembrou-se de que a conhecera e se
a barra do dia aí vem, ai, ai, ai... apaixonara por ela antes do casamento. Dois meses depois
coitado de quem namora! do casamento de Luísa e Ribeiro, abandonou suas terras e
veio morar com o primo para ficar perto de Luísa.
Tapera de arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram E enquanto Primo Ramiro se deita no chão tremendo
largado um povoado inteiro: casas, sobradinho, capela; de frio, Primo Argemiro recorda: ... Morena, os olhos muito
três vendinhas, o chalé e o cemitério; e a rua, sozinha e pretos... Tão bonita!... Os cabelos muito pretos... Esquisita
comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto sim que ela era... De riso alegrinho mas de olhar duro...
que o mato a entupiu. Que bonita!... O boiadeiro tinha ficado três dias na fazen-
Ao redor, bons pastos, boa gente, terra boa para o da, com desculpa de esperar outra ponta de gado...
arroz. E o lugar já esteve nos mapas, muito antes da Primo Argemiro, por respeito ao Primo Ribeiro guardou
malária chegar. em segredo sua paixão. Nunca disse uma palavra. Só olhava
O conto se demora longamente na descrição da paisa- e admirava a prima. Agora, imaginava que podia ter sido ele
gem, do abandono, citando nomes e mais nomes popula- a fugir com a morena que percebera a paixão nos olhares
res de plantas, aves e insetos da região, atribuindo a eles dele. Talvez agora estivesse pensando nele e achando que
atitudes, sentimentos e comportamentos quase humanos. ele fora um pamonha.
Aí a beldroega, em carreirinha indiscreta – ora- Primo Ribeiro revela que nos delírios provocados pela
-pro-nobis! ora-pro-nobis! – apontou caules ruivos no febre vê mulheres de todo tipo passando, mas não consegue
baixo das cercas das hortas, e talo a talo, avançou. Mas ver a sua Luísa. Depois que Primo Ramiro agradeceu a Primo
o cabeça-de-boi e o capim-mulambo, já donos da rua, Argemiro a companhia, a ajuda de todo aquele tempo como
tangeram-na de volta; e nem pôde recuar, a coitadinha de um filho ou irmão, Primo Argemiro resolveu revelar seu
rasteira, porque no quintal os joás estavam brigando segredo. Pedindo perdão insistentemente, revelou que tam-
com o espinho-agulha e com o gervão em cor.... Os bém tinha gostado muito de Luísa, mas que sempre a havia
passarinhos espalhavam sementes novas. A gameleira, respeitado, nunca dissera nada a ela, respeitara o primo e sua
fazedora de ruínas, brotou com raizame nas paredes casa. A reação de Primo Ribeiro é furiosa.
desbarrancadas. Morcegos das lapas se domesticaram – Fui picado de cobra... Fui picado de cobra... Ô mun-
na noite sem fim dos quartos, como artistas de trapézio, do!
pendentes dos caibros.
– Mas sossega, Primo Ribeiro... Já lhe jurei que não
Ali perto, no vau da Sarapalha, numa fazenda desman- faltei nunca ao respeito a ela... Nem eu não era capaz de
telada vive uma negra velha que capina e cozinha o feijão cair num pecado desses...
para os patrões: Dois homens sentados, juntinhos, num
– Fui picado de cobra...
casco de cocho emborcado, cabisbaixos, quentando-se
ao sol. Primo Ribeiro e primo Argemiro, ambos com malá- – O senhor está variando... Escuta! Me escuta, pelo
ria e sujeitos a periódicos ataques de febre cada vez mais amor de Deus...
sérios, esperam a morte. São os únicos habitantes do vau – Não estou variando, não, mas em-antes estivesse!...
da Sarapalha, lugar dizimado pela epidemia e abandonado Some daqui, homem, vai p’r’as suas terras... Vai p’ra bem
pelos demais moradores. longe de mim!... Mas vai logo de uma vez!
À medida que descreve os arredores, o narrador em Não adiantou Primo Argemiro implorar, suplicar. Saiu
terceira pessoa fala dos mosquitos e da doença. Ela chega- com a roupa do corpo, foi caminhando pelo caminho co-
ra depois das cheias e obrigara as pessoas do arraial a se berto de mato, espantando passarinhos. Começou a sentir
mudarem. Só ficaram esses três. um grande arrepio, muito frio. Lembranças de Luísa. Fica
Observe a onomatopeia na descrição do zumbido pro- parado para tremer e pensar. Senta-se nas folhas secas. E o
vocado pelo quinino: ...Arrasta um fio fino e longínquo, universo treme com ele.
de gonzo, fanho e ferrenho,, que vem de longe e vai dar Estremecem, amarelas, as flores da aroeira. Há um
no longe... Estica ainda mais o fiapo amarelo de surdina. frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. A erva-de-
Depois o enrola e desenrola, zonzo, ninando, ninando... -anum crispa as folhas, longas, como folhas de manguei-
E, quando a febre toma conta do corpo todo, ele parece, ra. Trepidam, sacudindo suas estrelinhas alaranjadas,
dentro da gente, uma música santa, de outro mundo. os ramos da vassourinha. Tirita a mamona, de folhas
Primo Ribeiro, naquela manhazinha fria, não tomou o peludas, como o corselete de um cassununga, brilhando
remédio. Queria morrer. Não aguentava mais a tremedeira, em verde-azul. A pitangueira se abala do jarrete à grim-
a friagem e o delírio. Pede a Primo Argemiro que coloque pa. E o açoita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas,
no caixão alguns pertences. entrando em convulsões.
Conversam a respeito do doutor que brabo com a – Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar
ignorância do povo, para convencer as pessoas de que eram bonito p’r’a gente deitar no chão e se acabar!...
os mosquitos e não as frutas que provocavam a doença É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a
e de que deveriam abandonar o lugar, deixou-se picar, sezão.
10 Extensivo Terceirão
Aula 22
Testes
Estão corretas somente as alternativas
Assimilação
a) 1, 2 e 3.
22.01. O narrador, no conto O burrinho pedrês, de João
Guimarães Rosa, afirma que: “[...] a estória de um burrinho, b) 2, 3 e 4.
como a história de um homem grande, é bem dada no resu-
mo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros c) 1, 3 e 4
cresceu toda em algumas horas [...] nos meados do mês de d) 2 e 3.
janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das
Velhas, no centro de Minas Gerais”. e) 1, 2 e 4.
Tendo por base o conto O burrinho pedrês, e a afirmação
acima, assinale a alternativa correta. 22.04. Assinale a alternativa que identifica corretamente a
a) O grande feito de Sete-de-Ouros foi ter salvo Badu – personagem.
completamente bêbado, e sem noção do que acontecia a) Marra é sócio e chefe da companhia mineradora em que
à sua volta – de um tiro disparado por Silvino, que queria
vingar-se do rival. Laio trabalha. Mudou-se do arraial para fazer teatro.
b) Sete-de-Ouros tornou-se um burro velho e famoso, no b) Benigno é um capanga respeitado do Major Anacleto. Ja-
sertão de Minas Gerais, por ter, ao longo de toda a vida, mais ria. Tinha pontaria invejável: atirava no umbigo para
se mantido a salvo das picadas de cobras, das pisaduras, que a bala varasse cinco vezes o intestino e seccionasse
dos bernes e das ervas daninhas. a medula, lá atrás.
c) O grande feito de Sete-de-Ouros foi ter salvo a si mesmo, c) Estêvão era o encarregado dos serviços, admirador de
a Badu – completamente bêbado – e a Francolim de uma
grande enchente, na qual morreram oito vaqueiros da Lalino, acabava sempre “fechando um olho” para as pi-
Fazenda da Tampa, bem como seus animais. lantragens de Lalino. Tentou conquistar Maria Rita.
d) Sete-de-Ouros tornou-se famoso no sertão de Minas d) Anacleto é um imigrante espanhol, muito rico que, ofe-
Gerais por ter salvo um “negrinho”, cujo canto provocou recendo um bom dinheiro a Lalino, ficou com Ritinha,
o estouro de uma boiada, na qual morreram os vaqueiros mulher do mulato malandro.
Aristides e Octaviano.
e) João Manico, um velho e experiente vaqueiro, se salva e) Tio Laudônio era irmão do Major Anacleto. Esteve no
da enchente porque prefere montar o burrinho Sete-de- seminário, vivia isolado na beira do rio. Poucas vezes vinha
-Ouros, por saber que este, muito experiente, consegue ao povoado. Diziam que tinha chorado na barriga da mãe,
evitar qualquer tipo de perigo. por isso enxerga no escuro, vê o futuro, sabe de que lado
vem a chuva e escuta o capim crescer. Era conselheiro do
22.02. Assinale a alternativa que apresenta características
Major.
da personalidade de Lalino Salãthiel, protagonista do conto
A volta do marido pródigo.
22.05. Assinale a alternativa correta, a respeito do conto
a) vivacidade e facilidade de comunicação.
A volta do marido pródigo.
b) responsabilidade e sinceridade.
a) Lalino, apesar de muito sabido e muito esperto ainda não
c) pontualidade e dedicação ao trabalho. percebeu, como os companheiros, que seu chefe, o Marra,
d) amor e dedicação à família. anda rondando sua mulher.
e) dificuldade para superar problemas e imprevistos. b) Eulálio de Souza Salãthiel entretém os companheiros des-
crevendo as lindas mulheres que conheceu nos bordeis
22.03. Avalie as seguintes afirmativas a respeito do estilo
de Guimarães Rosa e sua obra. do Rio de Janeiro.
1. A linguagem é apenas um registro fiel da região, dos habi- c) O título do conto, de inspiração bíblica, tem a ver com
tantes e do modo de falar do mundo sertanejo brasileiro. a fracassada viagem de aventuras e farras que Lalino fez
2. A presença de recursos poéticos dissolve os limites entre ao Rio e com a empreitada para recuperar a mulher que
prosa e verso. havia deixado.
3. O reaproveitamento da singularidade e da expressividade d) Para o chefe que sonha ser ator, Lalino narra as peças de
da linguagem oral revela um trabalho artesanal com teatro a que assiste quando, volta e meia vai para a cidade.
relação à linguagem.
4. A ampla utilização das virtualidades da língua extrai do e) Trabalhando na campanha política, o protagonista mudou
sertão a forma de aprendizado sobre a existência, não seu comportamento habitual, assumindo seriamente suas
apenas do sertanejo, mas do homem. responsabilidades.
Português D 11
22.09. (AFA) – Atente para este excerto do conto Sarapalha:
Aperfeiçoamento “Estremecem, amarelas, as flores da aroeira. Há um
22.06. Assinale a alternativa correta a respeito dos perso- frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. A erva-de-
nagens de Sarapalha. anum crispa as folhas, longas, como folhas de mangueira.
a) Primo Argemiro, fazendeiro da região, não quis abandonar Trepidam, sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os
a vila e contraiu a malária. Tem febre e frio todos os dias, o ramos da vassourinha. Tirita a mamona, de folhas peludas,
baço sempre mais inchado. Vive esperando a morte. No como o corselete de um cassununga, brilhando em verde-
início da doença, foi abandonado pela esposa, Luísa que
e-azul. A pitangueira se abala, do jarrete à grimpa. E o
fugiu com um boiadeiro.
açoita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas, entrando em
b) Primo Ribeiro, como Primo Argemiro, vai sobrevivendo à
malária. Os dois moram isolados, numa região em que a convulsões”.
febre já expulsou toda a gente. Apesar de ter terras em
Observando-se nele várias palavras da área semântica de
outra região, prefere ficar ao lado de Primo Argemiro, tal
a amizade que os une. “tremer”, pode-se dizer que, com esse recurso estilístico, o
c) Luísa, preta velha, meio surda, permaneceu na vila e vai viver narrador busca sugerir o reflexo na natureza de relevante
na fazenda de Primo Argemiro, cozinha feijão para os patrões, fato da narrativa.
e cultiva alguns alimentos para a subsistência dos três. a) estouro de boiada.
d) Prima Conceição, mulher de Ribeiro, morena, olhos pretos, b) morbidez de malária.
cabelos pretos... muito bonita. De riso alegrinho, mas de
olhar duro. Desde jovem despertou a paixão dos dois c) prenúncio de vendaval.
primos e acabou fugindo com um vaqueiro. d) aproximação do caipora.
e) Jiló, cachorro perdigueiro magrelo e sarnento que, como
os donos, vive cochilando à frente da tapera. Quando o 22.10. Leia e analise o que se diz a respeito do conto
dono se deita no chão por causa da tremedeira da maleita,
ameaça lamber-lhe a cara. Sarapalha.
1. A linguagem neutra do conto articula toda uma expe-
22.07. Assinale a reflexão que se refere ao conto Sarapalha.
riência psicológica que leva as personagens a se com-
a) Bem-aventurados os que possuem um amor por que eles
serão consolados. portarem como suicidas, evitando tomar os remédios
b) Foram eles, Cassiano Gomes e Timpim Vinte-e-Um, que me que certamente curariam seus males.
ensinaram que a vingança é um prato que se come frio. 2. Sarapalha se desenvolve em tom de tragédia, que con-
c) Coitado de quem tem um amor. trasta com o caráter do conto A volta do marido pródigo.
d) Ela tinha aversão ao marido por causa de seu papo e de 3. O conto mostra não apenas as ruínas físicas do arraial
sua falta de higiene.
abandonado e das personagens macilentas e esvaveira-
e) Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa
das pela malária, como também o aniquilamento moral
filosofia.
e a desonra provocados pela infidelidade da mulher.
22.08. (PUC – SP) – Do conto “A Volta do Marido Pródigo”,
que integra a obra Sagarana, de João Guimarães Rosa, NÃO 4. Em Sarapalha o narrador assume a perspectiva dos per-
é correto afirmar que sonagens, como se estivesse também doente, cúmplice
a) há, no protagonista, uma espécie de heroísmo gaiato, da angústia do lugar e da situação. A linguagem do conto
correlacionado às espertezas das histórias de sapos utili- “treme” com os personagens.
zadas na narrativa.
Está correto, somente o que é afirmado em
b) a personagem principal é Lalino Salãtiel, mulatinho des-
carado, malandro, enganador, mas simpático. Sabe como a) 1, 2 e 3.
poucos contar uma boa história e age na vida como se
b) 1, 3 e 4.
estivesse em contínua representação.
c) traz no título uma alusão bíblica que se concretiza nas c) 3 e 4.
ações de abandonar a família, gastar o pouco que tem d) 2 e 3.
com bandalheiras, retornar para casa fragilizado e ser de
novo aceito. e) 2, 3 e 4.
d) mostra total alheamento quanto a situações políticas
e de disputas de poder, uma vez que os personagens,
que atuam na história, são gente do povo e operários da
construção de estradas.
12 Extensivo Terceirão
Aula 22
Português D 13
22.16. As cenas finais do conto A volta do marido pródigo, O trecho extraído do conto “Sarapalha”, do livro Saga-
apresentam um recurso de estilo recorrente na obra de rana, de Guimarães Rosa, exemplifica um aspecto que está
Guimarães Rosa. Aponte a alternativa que aponte esse presente em todos os contos do mesmo livro. Assinale a
recurso. alternativa que reconhece esse aspecto de forma adequada.
a) Onomatopeia do canto dos pássaros. a) A religiosidade cristã católica rege as decisões humanas e
b) O tremor das plantas como se estivessem com maleita. transforma os homens e a natureza a partir da ação direta
de Deus.
c) Aliteração que imita o tropel dos cavalos.
b) A ausência de aliterações e a economia de adjetivos são
d) Onomatopeia do coaxar dos sapos no brejo.
recursos utilizados para representar a aridez da natureza.
e) Assonância que imita o sibilar da ventania.
c) A descrição pormenorizada do espaço físico visa a excluir
22.17. Leia o excerto a seguir, do conto Sarapalha. a dimensão psicológica e mística da narrativa, para forta-
– Primo Ribeiro... eu nunca tive coragem pra lhe contar lecer a feição pitoresca da região.
uma coisa...Vou lhe contar uma coisa... O senhor me perdoa?!... d) São narrados duelos que se travam entre o meio e o ho-
Pouco depois dessa fala, Primo Argemiro revela ao Primo Ribeiro mem e que são vencidos apenas pelo uso da força física
e da valentia.
a) que sabia da intenção de Luísa abandoná-lo.
e) A descrição do meio físico é mediada pela visão do
b) que Luísa também o havia convidado a fugir com ela. narrador, que apresenta a natureza como elemento tão
c) que também tinha sido secretamente apaixonado por reversível quanto a condição humana.
Luísa.
22.20. (PUC – SP) –
d) que tinha sido ele a apresentar a prima ao vaqueiro.
O sol cresce, amadurece. Mas eles estão esperando é
e) que tinha tido um relacionamento com Luísa antes do a febre, mais o tremor. Primo Ribeiro parece um defunto –
casamento dela. sarro de amarelo na cara chupada, olhos sujos, desbrilhados,
22.18. Assinale a alternativa que preenche corretamente as e as mãos pendulando, compondo o equilíbrio, sempre a
lacunas. Guimarães Rosa, no personagem Lalino Salãthiel, escorar dos lados a bambeza do corpo. Mãos moles, sem
personifica o poder da_________ e da _______ para se firmeza, que deixam cair tudo quanto ele queira pegar.
conseguir os objetivos. Baba, baba, cospe, cospe, vai fincando o queixo no peito;
e trouxe cá para fora a caixinha de remédio, a cornicha de
a) sinceridade – paciência pó e mais o cobertor.
b) persistência – comunicabilidade
O trecho acima integra o conto Sarapalha e faz parte da obra
c) fantasia – teimosia Sagarana de João Guimarães Rosa. Dessa narrativa como um
d) alegria – coragem todo, é errado afirmar que
e) honestidade – autoconfiança a) apresenta duas narrativas, uma em tempo presente e
outra, em tempo passado, a qual assume dimensão mítica
22.19. (UFPR) – Leia o trecho abaixo, extraído de Sagarana, na cabeça delirante de Primo Ribeiro.
de João Guimarães Rosa:
b) enfoca a solidão, o abandono e a decadência de duas
Estremecem, amarelas, as flores da aroeira. Há um frêmito
personagens acometidas de maleita e que passam os dias
nos caules rosados da erva-de-sapo. A erva-de-anum crispa as
em diálogo sobre suas condições físicas e sentimentais.
folhas, longas, como folhas de mangueira. Trepidam, sacudindo
as estrelinhas alaranjadas, os ramos da vassourinha. Tirita a ma- c) gera um conflito entre dois primos, quando um deles
mona, de folhas peludas, como o corselete de um caçununga, revela ter gostado muito de Luísa, mulher do outro, que
brilhando em verde-azul! A pitangueira se abala, do jarrete à o abandonara por um boiadeiro.
grimpa. E o açoita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas, en- d) usa predominantemente discurso indireto livre, que faz
trando em convulsões. – Mas, meu Deus, como isto é bonito! aflorar o pensamento íntimo da personagem e despreza
Que lugar bonito p’r’a gente deitar no chão e se acabar!... É o o diálogo objetivo e direto por sua incapacidade de
mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão. interlocução.
GUIMARÃES ROSA. “Sarapalha”. Sagarana.
Gabarito
22.01. c 22.05. c 22.09. b 22.13. a 22.17. c
22.02. a 22.06. e 22.10. e 22.14. d 22.18. b
22.03. b 22.07. c 22.11. a 22.15. a 22.19. e
22.04. e 22.08. d 22.12. b 22.16. d 22.20. d
14 Extensivo Terceirão
Português
Aula 23 6D
Sagarana III
João Guimarães Rosa
Português D 15
Cassiano ficou de tocaia à espera do inimigo. À noite, A doença avançava rapidamente e Cassiano teve de
houve uma troca de tiros que Cassiano não entendeu, parar. Não conseguia mais ir adiante e procurava algum
pois quando parou de atirar, os tiros entre dois pontos valentão para fazer o serviço. Foi quando conheceu
continuaram. No outro dia, Chico Barqueiro encarou Antônio, apelidado de Timpim Vinte-e-Um, por ser o
Cassiano, pensando que ele fosse aliado de um inimigo. último dos vinte e um irmãos e que vivia apanhando
Demorou mas Cassiano conseguiu acalmar o barqueiro. dos irmãos mais velhos. Não reagia às pancadas do
Cassiano tinha pressa de caçar o assassino, que irmão porque a mãe lhe dissera que ele não levantas-
não devia estar longe. E o balseador, sabendo ter se a mão para irmão mais velho. E todos eram mais
de guardar neutralidade, deixou-o rondar por ali, velhos. Vinte-e-Um era casado e sua mulher acabara
inutilmente, até à hora do almoço. Turíbio Todo não de ter criança. Cassiano deu-lhe dinheiro para comprar
apareceu. galinhas e alimentar a esposa. No outro dia, Vinte-e-Um
– Decerto ele teve medo, por causa dos tiros... fez uma surpresa ao doente: trouxe-lhe o filho para lhe
Gastei muito do meu chumbo.. tomar bênção. Cassiano ficou emocionado e piorou.
– É... Deste jeito eu não arranjo nada, e fico me Um dia, quando Cassiano estava pior ainda, Vinte-e-Um
acabando à toa... É melhor eu voltar pr’a casa e deixar apareceu chorando: o filhinho estava muito doente,
passar uns tempos, até que ele sossegue e pegue a ele sem recursos para socorrê-lo. Cassiano deu-lhe o
relaxar... dinheiro para trazer o médico até a criança e comprar
E Cassiano Gomes estava enganando a si próprio, os remédios necessários. “Veio o médico; veio o padre:
pois na realidade se sentia de repente cansado, porque Cassiano confessou-se, comungou, recebeu os santos
um homem é um homem e não é de ferro, e o seu vício óleos, rezou, rezou”. Sentindo que a morte já estava na
cardíaco começara a dar sinal de si. porta, deu todo o dinheiro que possuía para o compadre
Pouco depois de Cassiano partir, Turíbio chega à Vinte-e-Um (agora tratavam-se como compadres). Logo
balsa, meio ansioso tentando explicar ao barqueiro os depois, morreu e foi para o céu.
tiros da noite anterior. Durante a travessia, o barqueiro Por meio de uma carta da mulher, que o invocava
depois de tentar desmoralizar Turíbio, acalmou-se, quis para o lar, Turíbio Todo ficou sabendo da morte de Cas-
puxar conversa sobre aves de arribação, patos-bravos, siano. “Ele tinha ganho já uns bons cobres”. Comprou
irerês, garças, gaviões e paturis que atravessavam o rio. mala e presentes, pôs um lenço verde no pescoço para
Turíbio respondia secamente às perguntas do barqueiro. disfarçar o papo, calçou botas vermelhas de lustre e veio
Descendo da balsa, Turíbio seguiu estrada afora de trem. Para perfazer o resto do caminho, arranjou um
conhecendo lugares, plantas e gentes diferentes, e acal- cavalo emprestado. No caminho, foi alcançado por um
mou-se sentindo-se livre daquela correria sem fim, até cavaleiro miúdo, montando um cavalo magro. Via-se
que os dois, cavaleiro e cavalo, estavam em petição de
chegar ao rio Pará, onde a maleita tinha feito estragos.
miséria. Depois de continuarem pela estrada, a miniatura
Mesmo com a ameaça da doença não atravessou o rio.
de homem perguntou se ele era mesmo o Turíbio Todo,
– Ah, isso não! Passar, não passo, que já atravessei seleiro de Vista-Alegre, que estava vindo das estranjas.
dois e mais não quero, porque quem passa três rios Turíbio confirmou. A viagem prosseguiu. Turíbio falava
grandes esquece o seu bem-querer... Mas, qual o co- da felicidade próxima: ver a mulher, talvez levá-la para
mércio mais forte daqui por perto? São Paulo. O caipirinha mostrava-se pessimista: não
– É Sant’Ana-do-São-João-Acima... valia a pena a gente alegrar-se.
E, de repente, Turíbio Todo estremeceu, ao ouvir,
– Vou lá p’ra ver se mando uma cartinha p’r’a firme e crescida, outra voz, que ainda não tinha escu-
mulher! tado ao capiau:
Depois, uma turma de sujeitos alegres o interpe- – Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou
lou. Iam para o sul, para as lavouras de café. Baianos lhe matar!
são-pauleiros. E um deles:
– Deixa de unha, cachorro, que eu te retalho na
– Eh, mano velho! Baâmo pro São Paulo, tchente!... taca!...
Ganhá munto denheêro... Tchente! Lá tchove denheê-
– Não grita seu Turíbio, que não adianta... Peço
ro no tchão!...
perdão a Deus e ao senhor, mas não tem outro jeito,
Sentiu saudades da mulher. Mas, era só por uns porque eu prometi ao meu compadre Cassiano, lá no
tempos. Mandava buscá-la, depois. Foi também. Mosquito, na horinha mesma d’ele fechar os olhos.
Cassiano Gomes continuava visitando Silivana que Turíbio tentou ganhar tempo, fez que ia rezar, puxou
lhe mostrou as cartas de Turíbio, a caminho de São Pau- o revólver e empinou o cavalo.
lo. O médico avisou Cassiano que ele não duraria muito Mas a garrucha não negou fogo. Turíbio Todo
mais. Cassiano então resolveu vender tudo o que tinha e pendeu e se afundou na sela, com uma bala na cara
ir para o sul para pegar Turíbio. esquerda e outra no meio da testa.
16 Extensivo Terceirão
Aula 23
Português D 17
O assassinato de Bento Porfírio – O Ramiro? É o noivo de Armanda, amiga minha...
Outro dia, o narrador convidou Bento Porfírio a irem – E quem é Armanda, Maria Irma? É bonita? Filha
novamente pescar. Queria ouvir de novo os sussurros do de fazendeiro? Mora aqui por perto?
poço. Os córregos ali eram misteriosos, correm às vezes – É muito bonita, foi educada com parentes no Rio,
à tona da terra, às vezes pelas fendas do calcário nos já esteve na Europa, é filha de fazendeira – porque o
leitos subterrâneos. Ou outro regato que sobe de nível pai já morreu -, mora no Cedro... e você é que nem um
repentinamente, sem chuva. Um sabiá aparece cantan- padre para especular!
do triste e Bento canta para abafar os lamentos da ave:
....................................
“Ouvi um sabiá cantando
– Maria Irma, sabe de uma coisa? Você gosta do
na beira do ribeirão... Ramiro e o Ramiro gosta é de você. Apenas...
Ô pássaro que canta triste! – Há outra coisa também, que você não sabe...
Não me traz consolação...” – Que é, prima?
Bento Porfírio volta a falar na amante: o marido, – É que você é um imbecil, primo!
o Alexandre, não sabe que está sendo enganado...
Mas aquilo não é pouca-vergonha, não: é amor sério...
A de-Lourdes não tolera o marido, não dorme com Continua o jogo da sedução
ele, não beija, nem nada... Estão combinando fugir Tio Emílio comprou uma máquina de escrever
juntos... e encarregou Maria Irma e o primo de escreverem
Quando justamente estava dizendo que o cartas aos “amigos e correligionários”, muitos deles
Alexandre era um bobo, este aparece e com uma insignes analfabetos.
foiçada mata o Bento que desaparece na água do O narrador aproveitou-se das horas passadas
poço. Tio Emílio, calmamente deu ordens para juntos e acabou se declarando para “Mariairmazi-
encontrarem o assassino e escondê-lo das autori- nha” que afirmou não acreditar nele e que o achava
dades, até ter tempo de escolher os jurados. Não infantil por se irritar com a negativa dela.
queria perder nem um eleitor. Maria Irma pouco Dormi mal, acordei de saudades, corri para junto
se surpreendeu apenas lamentou o sofrimento das de Maria Irma. Antes não tivesse feito: quanto mais eu
esposas. E o narrador desabafa: pelejava para assentar o idílio, mais minha prima se
Pororoca! Será que ninguém aqui pensa como mostrava incomovível, impassível, sentimentalmente
eu?!... distante.
O narrador não foi ao enterro, Maria Irma foi le- Numa tarde, gastou um tempo no pasto, fuman-
var consolo à viúva e à outra, Tio Emilio foi generoso do, observando os cavalos e admirando a habilida-
com as duas. Gente boa. de de um pretinho de oito anos, o Moleque Nicanor
que, apenas com um cipó, consegue pular no lombo
Maria Irma começa a mexer suas peças no jogo do
nu de um poldrinho. E aprendeu com o moleque a
amor
arte de se aproximar e dominar um animal arisco.
Depois da hora do almoço, o narrador cochilou Avisou o tio e Maria Irma que iria a uma fazenda
na rede e sonhou com países e mulheres famosas. próxima de um adversário político conversar com a
Acordou com a prima ali perto, curiosa para saber Aldinha uma antiga namorada de brinquedo. Maria
se ele tinha alguém esperando por ele. Na manhã Irma confirmou que Aldinha era bonita, mas que
seguinte foram tomar leite fresco, depois café quen- ele gostaria muito mais de Armanda, uma moça de-
te, em seguida foram até a horta onde ele começou sembaraçada, independente, moderna que dirigia
a regar as hortaliças com a mangueira. Maria Irma automóvel e montava a cavalo.
pegou em seu braço, ele teve maus pensamentos.
Sem querer, o narrador costurou uma jogada
Foram ao galinheiro observar a grande variedade
com o Juca Futrica, pai de Aldinha, que ia ajudar Tio
das aves.
Emílio a ganhar mais votos. De volta à fazenda do
Outro dia. Outro incômodo para o narrador. Apa- tio tornou a se declarar para a prima, que continua-
receu um rapaz para visitar Maria Irma. Trouxe-lhe va irredutível. Então o narrador resolve partir.
livros. O narrador sentiu ciúmes e ódio do visitante
– Espera... Para onde você vai?
e saiu para cavalgar e ver uma boiada que passava
na estrada. À noitinha, quando voltou, Maria Irma – Primeiro para as Três Barras, amanhã mesmo. De
estranhou seus modos e irritou-se com o interroga- lá à Vila, e às Tabocas, onde tomarei o trem...
tório. – Espera... Não vá ainda... Fica mais uns dias...
18 Extensivo Terceirão
Aula 23
– Por que, Maria Irma? Para quê? – Saltem um cálice da branquinha potabilíssima de
Januária, que está com um naco de umburana macerado
É que... É que eu convidei Armanda para vir passar
no fundo da garrafa!... Viva Santana, com seus peões!...
uns dias aqui, depois da eleição...
Volto! Vou lá.
– Que astúcia você tem na cabecinha, prima? ... Não cedo!... Mas quero que ela saiba que eu não
– Bem, é melhor que você vá. Você era capaz de gosto dela mais...
pensar que é por minha causa que eu estou pedindo... A estrada do amor, a gente já está mesmo nela, desde
– Adeus Maria Irma... Irma Maria... que não pergunte por direção nem destino. E a casa do
amor – em cuja porta não se chama nem se espera – fica
– Tenho um retrato de Armanda... Você quer ver? um pouco mais adiante.
– Mostra ao Ramiro! Quando Maria Irma lhe apresentou Armanda,
sentiu imediatamente que com ela é que ia se casar.
– Teimoso!
Parecia que a conhecia há muito tempo. E Armanda
– Adeus, Maria Irma! disse a mesma coisa. Pelos caminhos do jardim as
– Adeus, trapalhão! mãos se tocaram e ambos estremeceram.
Vinha um odor duro das flores carminadas. Os aloen-
dros, em fila, nos separavam do mundo. Pensamentos
A virada no jogo e...xeque-mate! me agitavam. Queria...
E o narrador confessa que chegou a chorar. Todo - Você gosta de Maria Irma?
aquele amor que acumulara tinha sido inútil. E a lua
– Não...
que ele espiava da varanda da fazenda de tio Ludovico
o fazia sofrer mais ainda. Não conseguia tirar Maria Irma – De quem?
da cabeça. Foi quando recebeu duas cartas: Uma trazia – De você... Sempre gostei. Sempre! Antes de saber
um recado do tio, escrito à máquina, certamente datilo- que você existia...
grafada pela prima, comunicando a vitória e insistindo – É engraçado...
para que ele voltasse. – É verdade.
A outra carta era do amigo Santana. Comentava o – Não... Não é isso...
lance daquela partida de xadrez que jogavam enquanto Armanda jogou fora o botão de bogari, e entrecru-
cavalgavam, e que Santana pedira para suspender pois zou os dedos. E disse...
a julgara perdida. Ao contrário, analisando melhor,
– É com você que eu vou casar.
Santana descobrira que teria ganho. O narrador
entendeu o simbolismo do jogo, pulou de alegria, que – Comigo!?
poderia virar o jogo e voltou à fazenda do Tio Emílio, – Então, por que você não me beija? Porque aqui na
pois percebeu que não fora derrotado pelo amor de roça não é uso?
Maria Irma. Descobriu que não gostava mais dela. Podia E eles se casaram ainda antes do casamento de
vencer a parada. Maria Irma com Ramiro.
Português D 19
Testes
23.04. Assinale a alternativa que indica a personagem dona
Assimilação da seguinte fala:
- Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!
23.01. Assinale a alternativa correta a respeito das perso-
nagens do conto Duelo. a) Cassiano Gomes
a) Cassiano Gomes, excluído da polícia por uma junta mé- b) Timpim Vinte-e-Um
dica, tinha fama de exímio atirador, andava sempre com c) Um baiano são-pauleiro
um rifle ao alcance da mão.
d) Chico Barqueiro
b) Elias Ruivo, seleiro de profissão, tinha pelos compridos
e) Primo Ramiro
nas narinas, chorava sem fazer caretas. Quando rarearam
os pedidos de arreios e cangalhas caiu na vadiagem. 23.05. Assinale a alternativa correta a respeito do enredo
c) Dona Silivana tinha grandes olhos bonitos, de cabra do conto de Guimarães Rosa, Minha gente.
tonta e, apesar de ter cometido adultério, não revelou a a) Maria Irma apaixonou-se pelo narrador, aproximou-se,
ninguém os planos, o destino e as cartas que recebia do declarou-se, mas o rapaz a evitava pois não queria quebrar
marido. a tradição interiorana de primos não namorarem.
d) Turíbio Todo fugindo do inimigo, levava desvantagem b) Tio Emílio meteu-se na política, mas os emaranhados
por ser mais velho e por não conhecer a região tão bem dos apoios e oposições formaram um quebra-cabeça por
como seu inimigo e perseguidor. demais complicado para ele.
e) Timpim Vinte-e-Um, morador do povoado Mosquito, foi c) Maria Irma quer apresentar ao primo, a amiga Armanda,
o valentão forte e mal-encarado que Cassiano, antes de moça linda, extrovertida, inteligente a moderna, para
morrer, contratou para, em seu lugar, matar Turíbio. ajudá-lo a vencer a timidez.
23.02. Assinale a alternativa correta a respeito do conto d) O jogo de xadrez, abordado reiteradamente no conto,
Minha gente. apresenta uma analogia com as tramas do enredo, insi-
nuando que a conquista amorosa é um jogo de surpresas
a) O espaço único do conto é a fazenda das Três Barras
em que a estratégia e os lances escondem, mais que
(interior de Minas Gerais), de um tio do narrador chamado
revelam, as verdadeiras intenções.
Ludovico.
e) O conto, que fala quase exclusivamente do apego à vida,
b) Armanda, noiva de Ramiro, abusou da confiança da amiga
e descreve a fauna, a flora e os costumes de Minas Gerais,
Maria Irma para roubar-lhe o namorado.
deixa quase esquecidos os sentimentos de integração
c) O enredo do conto é uma espécie de paródia, meio sen- com a natureza e o lirismo dos temas do amor e da solidão.
timental e meio irônica, das estórias de amor com final
feliz.
d) O autor utiliza uma linguagem clássica evitando a criação Aperfeiçoamento
de neologismos.
e) A narrativa central deixa pouco espaço para outras histó- 23.06. (FUVEST – SP) –
rias e dramas paralelos. “Canta, canta, canarinho, ai, ai, ai...
23.03. Assinale a alternativa correta a respeito do conto Não cantes fora de hora ai, ai, ai...
Duelo. A barra do dia aí vem, ai, ai, ai...
a) O narrador em primeira pessoa não tem acesso às verda- Coitado de quem namora!...”
deiras intenções das personagens.
b) Em nenhum momento o narrador estabelece diálogos Esta quadrinha é a epígrafe do conto “Sarapalha”. Ela aponta
com o leitor ou referências metalinguísticas. para o clímax da estória que se dá por ocasião:
c) Por ser onisciente, o narrador evita emitir juízos de valor a) da eleição de seu Major Vilhena: tiroteio com três mortes.
e opiniões pessoais sobre os acontecimentos e as perso- b) da declaração de Ribeiro e ruptura deste com o boiadeiro.
nagens. c) do casamento de Luísa com o boiadeiro e despedida dos
d) Duelo pode ser lido como uma alegoria da fatalidade, da primos.
inexorabilidade do destino humano. d) da morte do boiadeiro, que Argemiro mata em respeito
e) Apesar de se terem encontrado diversas vezes, Turíbio ao primo.
e Cassiano evitaram o duelo para não atingir pessoas e) da confissão de Argemiro e sua expulsão da casa de
inocentes que nada tinham a ver com seu caso. Ribeiro.
20 Extensivo Terceirão
Aula 23
23.07. (PUC – SP) – Assinale a alternativa correta. 23.09. Assinale a alternativa correta a respeito do enredo
a) A obra de Guimarães Rosa partilha com o regionalismo do conto de Guimarães Rosa, Minha gente.
romântico do século XIX a intenção programática de a) Maria Irma apaixonou-se pelo narrador, aproximou-se,
construir uma identidade nacional a partir da literatura. declarou-se, mas o rapaz a evitava pois não queria quebrar
b) Em vários dos contos de “Sagarana”, o autor denuncia a a tradição interiorana de primos não namorarem.
ignorância e a superstição do povo, males a que ele atribui b) Tio Emílio meteu-se na política, mas os emaranhados
a culpa pelo atraso em que vive o sertanejo no interior do dos apoios e oposições formaram um quebra-cabeça por
país. demais complicado para ele.
c) A fala dos personagens é escrita num registro linguístico c) Maria Irma quer apresentar ao primo, a amiga Armanda,
que se mantém nos limites da norma culta, o que apro- moça linda, extrovertida, inteligente a moderna, para
xima “Sagarana” a “Contos Novos”, de Mário de Andrade. ajudá-lo a vencer a timidez.
d) Em Sagarana de Guimarães Rosa, a viagem deixa de ser d) A partida de xadrez, narrada no início do conto, apresenta
apenas um acontecimento a mais do enredo para repre- uma analogia com as tramas do enredo, insinuando ao lei-
sentar um rito de iniciação, um estágio vital cumprido, tor que a vida é um jogo de surpresas em que a estratégia
simbologia também presente em obras posteriores do e “jogadas” escondem, mais que revelam, as verdadeiras
autor. intenções.
e) No conto Duelo, o marido que busca a amante da espo- e) O conto, que fala quase exclusivamente do apego à vida,
sa é o embate entre Cassiano e Turíbio Todo; o homem e descreve a fauna, a flora e os costumes de Minas Gerais,
buscando o assassino do irmão é o embate entre Turíbio deixa quase esquecidos os sentimentos de integração
Todo e Cassiano. com a natureza e o lirismo dos temas do amor e da solidão.
23.08. (UEL – PR) – Em 1937, João Guimarães Rosa parti- 23.10. Avalie as seguintes afirmações.
cipou de concurso de contos promovido pela Editora José 1. A narração de Duelo apresenta alguns diferenciais como
Olympio. A obra entregue intitulava-se “Contos”. Coube-lhe o toque de humor que Guimarães Rosa dá à narrativa, o
o segundo lugar. Em dezembro do mesmo ano, o autor estabelecimento de diálogos com o leitor, a mesclagem
cuidou de encaderná-la, intitulando-a “Sezão”, conforme do que se narra com a fala de algumas das personagens
originais presentes no Arquivo Guimarães Rosa, do Instituto e com as opiniões pessoais do narrador em determinadas
de Estudos Brasileiros. Em 1945, reviu-a e atribuiu-lhe o nome situações.
definitivo: “Sagarana”. Sabendo-se que “sezão” significa “febre 2. Sobre o título do conto, não se pode interpretar a palavra
intermitente ou cíclica”, conclui-se que, em 1937, o nome da “duelo” literalmente dentro da história, pois o confronto
obra esteve diretamente vinculado ao seguinte conto: não vai acontecer, e o que acontece é um duelo de es-
tratégias, entre as espertezas do mais fraco contra a falta
a) “Sarapalha”, visto que aí se depara o leitor com dois primos de experiência e a fraqueza de saúde do mais forte.
acometidos pela malária a ajustarem velhas contas.
3. A trama se desenrola de maneira não-linear com a uti-
b) “O burrinho pedrês”, posto que Sete-de-Ouros, depois da lização de flasbacks, por parte das personagens, que as
travessia do Córrego da Fome, foi acometido pela malária. remetem ao passado para buscar explicações de conflitos
c) “A hora e a vez de Augusto Matraga”, pois o protagonista, no momento atual.
depois da surra que leva dos empregados do Major Con- 4. Em O duelo, a linguagem não é difícil ou rebuscada, mas
silva, é acometido pela malária. sim um jogo de recriações, invenções e resgates do falar
regional que levam o leitor a constantes descobertas.
d) “O burrinho pedrês”, porque Sete-de-Ouros vive numa
Guimarães Rosa, um “artesão” da linguagem, trabalha as
fazenda na qual a malária acometeu os moradores. palavras como ninguém.
e) “Sarapalha”, uma vez que aí se estabelece o diálogo de Estão corretas, apenas as afirmações
dois primos a rememorarem Luísa, morta em decorrência
a) 1, 2 e 4.
da malária.
b) 2, 3 e 4.
c) 1 e 2.
d) 1, 2 e 3.
e) 2 e 4.
Português D 21
3. Por sua vivência em contato com o ambiente sertanejo, as
Aprofundamento descrições presentes nos contos de Sagarana atestam um
conhecimento minucioso do autor a respeito das gentes,
23.11. Analise as informações sobre o conto Minha gente. plantas e bichos da região.
1. A narração se desenvolve na terceira pessoa contando a
4. Os nomes próprios como Turíbio Todo, Vinte-e-Um, Siliva-
história de um rapaz, criado na fazenda de um tio.
na, Chico Barqueiro, dentre outros, compõem um recurso
2. Apesar de não ser a primeira vez que visita a fazenda do literário que, através do exagero, destaca as características
tio, o narrador reconhece que ainda não aprendeu tudo específicas e a personalidade própria das personagens,
a respeito da vida no interior. assim como o hábito, comum no interior de dar apelidos.
3. As artimanhas na política e nos relacionamentos, e a Está correto, apenas o que se afirma em
serenidade com que as pessoas encaram acontecimentos a) 1 e 2.
chocantes impressionam o visitante.
b) 2, 3 e 4.
4. As mulheres, apesar do isolamento em que vivem e da
pouca cultura que apresentam, demonstram ser espe- c) 1, 2 e 3.
cialmente ardilosas. d) 2, 3.
Está correto, somente o que se afirma em e) 1 e 4.
a) 1 e 4.
23.14. (FAC. ALBERT EINSTEIN)
b) 2 e 3. Mas... Houve um pequeno engano, um contratempo
c) 3 e 4. de última hora, que veio pôr dois bons sujeitos, pacatíssi-
d) 1, 3 e 4. mos e pacíficos, num jogo dos demônios, numa comprida
complicação.
e) 2, 3 e 4.
O trecho acima faz parte do conto “Duelo”, uma das narrativas
23.12. Avalie as afirmações a seguir sobre o conto Minha de Sagarana, de João Guimarães Rosa. Essa narrativa, como
gente. um todo, apresenta
1. O conto serve de pretexto para a documentação dos a) duas histórias de vingança que se entrelaçam, ou seja,
costumes, dos infortúnios e da pobreza da vida na roça. um marido buscando o amante da esposa e um homem
buscando o assassino do irmão.
2. Como numa novela, há várias intrigas, episódios e perso-
nagens secundários. b) uma trama protagonizada por uma mulher de olhos
bonitos, sempre grandes, de cabra tonta, que se envolve
3. Numa das digressões do narrador, Bento Porfírio comete com um pistoleiro que acaba sendo morto por ela.
adultério com a de-Lourdes, casada com Alexandre, o
c) as peripécias vividas por um capiau que se torna o agente
Xandrão Cabaça, que acaba matando o rival.
de um crime contra seu compadre e amigo, Cassiano
4. Há no contexto do conto a campanha eleitoral com a der- Gomes, por desavenças de traição amorosa.
rota de Emílio do Nascimento, do partido João-de-Barro d) cenas de adultério praticadas por dona Silivana, no mais
e tio do narrador-personagem. doce, dado e descuidoso dos idílios fraudulentos, com o
Estão corretas, apenas as afirmativas amante Turíbio Todo, o que provoca tragédia entre seus
a) 1, 2 e 3. pretendentes.
b) 2, 3 e 4. 23.15. Assinale a alternativa correta.
c) 1 e 2. a) Em A volta do marido pródigo, o narrador compõe um
quadro profundo e sensível da psicologia dos vencidos
d) 1 e 3.
pela desolação, dos efeitos morais e sociais da vingança.
e) 2 e 3. b) A linguagem do conto Duelo acompanha o clima de des-
graça e doença, os momentos de tremedeira e desvario
23.13. Avalie as afirmativas a seguir.
dos dois maleitosos.
1. As personagens de Duelo estão intimamente ligadas à c) A seguinte epígrafe: “Coitado de quem namora!” condensa
paisagem do interior mineiro, pois vivem e trabalham em o significado de Sarapalha, como acontece com a epígrafe
fazendas – como acontece na maior parte dos contos de de outros contos de Sagarana.
Sagarana. d) O conto Minha gente pode ser lido como uma alegoria
2. As personagens de Guimarães Rosa são admiravelmente da fatalidade, de inexorabilidade do destino humano.
delineadas e caracterizadas não apenas externamente, e) A leitura de O burrinho pedrês comprova que, enquanto
mas com uma rara percepção da mentalidade, da lingua- os homens se perdem na busca de seus objetivos, de um
gem e da psicologia do homem rústico. fim, algo superior dispõe o contrário, o imprevisto.
22 Extensivo Terceirão
Aula 23
23.16. Sobre os contos de Sagarana, de Guimarães Rosa, 23.18. (FUVEST – SP) – Leia a epígrafe do conto Duelo
marque a única alternativa correta. E grita a piranha cor de palha, irritadíssima:
a) Sarapalha traz uma realidade brasileira, uma epidemia de – Tenho dentes de navalha, e com um pulo de ida‐e‐
varíola que durante muito tempo afetou a população do volta resolvo a questão!...
interior do país.
– Exagero... – diz a arraia – eu durmo na areia, de ferrão
b) Sete de ouros, personagem de “O burrinho pedrês”, com
a prumo, e sempre há um descuidoso que vem se espetar.
sua sabedoria, atravessou a enchente e salvou a vida de
Badu e Manico. – Pois, amigas, – murmura o gimnoto*, mole, carregan-
c) “Estremecem, amarelas, as flores da aroeira.” Pode-se dizer do a bateria – nem quero pensar no assunto: se eu soltar três
que essa é uma metáfora para a situação de Argemiro e pensamentos elétricos, bate‐poço, poço em volta, até vocês
Ribeiro, protagonistas de Avolta do marido pródigo. duas boiarão mortas...
d) “Nhor não...Esse-um eu não vi não” Nesse trecho de *peixe elétrico.
“Duelo”, a presença de duas negativas é um exemplo da Esse texto, extraído de Sagarana, de Guimarães Rosa,
metalinguagem utilizada por Rosa.
a) antecipa o destino funesto do ex‐militar Cassiano Gomes
e) Todos os contos do livro têm Minas Gerais como cenário, e do marido traído Turíbio Todo, em “Duelo”, ao qual serve
estado onde Guimarães Rosa passou boa parte da vida. como epígrafe.
23.17. (FUVEST – SP) – Leia o trecho do conto Minha gente, b) assemelha‐se ao caráter existencial da disputa entre
de Guimarães Rosa, e responda ao que se pede. Brilhante, Dansador e Rodapião na novela “Conversa de
“Oh, tristeza! Da gameleira ou do ingazeiro, desce um Bois”.
canto, de repente, triste, triste, que faz dó. É um sabiá. Tem
quatro notas, sempre no mesmo tom, porque só ao fim da c) reúne as três figurações do protagonista da novela “A hora
página é que ele dobra o pio. Quatro notas, em menor, a e vez de Augusto Matraga”, assim denominados: Augusto
segunda e a última molhadas. Romântico. Estêves, Nhô Augusto e Augusto Matraga.
Bento Porfírio se inquieta: d) representa o misticismo e a atmosfera de feitiçaria que
– Eu não gosto desse passarinho!... não gosto de violão... envolve o preto velho João Mangalô e sua desavença com
De nada que põe saudades na gente. o narrador‐personagem José, em “São Marcos”.
J. Guimarães Rosa. Minha gente. Sagarana. e) constitui uma das cantigas de “O burrinho pedrês”, em
Avalie as afirmações a seguir, a respeito do texto. que a sagacidade da boiada se sobressai à ignorância do
1. No trecho, a menção ao sabiá e a seu canto, enfaticamente burrinho.
associados a “Romântico” e a “saudades”, indica que o texto
de Guimarães Rosa pode remeter a um poema, dos mais 23.19. Texto
conhecidos da literatura brasileira, escrito em um período E Cassiano Gomes pensou: vendo tudo o que tenho,
em que se afirmava o nacionalismo literário. apuro o dinheiro, vou no Paredão-do-Urucuia, dar a despe-
2. Considerando o trecho no contexto de Sagarana, a prová- dida p’ra a minha mãe... Depois, então, afundo por aí abaixo,
vel referência, nele presente, a um autor brasileiro indica e pego o Turíbio lá no São Paulo, ou onde for que ele estiver.
que Guimarães Rosa é um escritor nacionalista, que rejeita E despediu-se de todo mundo, sabendo que nunca mais ia
o contato com línguas e culturas estrangeiras. voltar.
3. O trecho de Minha gente pode remeter ao poema Psico-
Cassiano tomou essa decisão
logia de um vencido, de Augusto dos Anjos, que pertence
à segunda geração de poetas românticos brasileiros. a) ao saber que Silivana já tinha outro amante.
4. O estilo de Guimarães Rosa caracteriza-se por um intenso b) depois que descobriu o endereço de Turíbio.
trabalho linguístico. O nome da obra em que Minha gente
se insere, Sagarana, foi composto por meio de hibridismo, c) porque não podia mais suportar a lembrança da morte
ou seja, pela fusão de palavras de línguas diferentes: saga, do irmão.
(elemento procedente do antigo escandinavo) e rana, d) quando ficou sabendo que tinha pouco tempo de vida.
sufixo tupi.
e) porque uma cigana garantiu que ele conseguiria vingar
Estão corretas, apenas as afirmações a morte do irmão.
a) 1 e 2.
b) 2 e 3.
c) 3e4
d) 1, 2 e 3.
e) 1 e 4.
Português D 23
23.20. Texto
Dormi mal, acordei de saudades, corri para junto de Maria Irma. Antes não o tivesse feito: quanto mais eu pelejava para
assentar o idílio, mais minha prima se mostrava incomovível, impassível, sentimentalmente distante.
Não importa, no começo é assim mesmo – pensei. Devo mostrar-me caído, enamorado. Ceder terreno, para depois
recuperá-lo. É boa tática... Um “gambito do peão da Dama”, como Santana diria...
Avalie as afirmações a seguir tendo em vista o texto e o conto Minha gente.
1. A leitura deste texto apenas não nos permite classificar o narrador nem o foco narrativo.
2. Percebe-se no texto a presença de um recurso frequente no autor que é a criação de vocábulos novos.
3. O texto e o conto como um todo estabelecem uma analogia entre o jogo do amor e o jogo de xadrez.
4. Maria Irma acabará por ceder e se apaixonará pelo primo.
Estão corretas, apenas as afirmativas
a) 1 e 2.
b) 1 e 3.
c) 2 e 3.
d) 2, 3 e 4.
e) 1, 2 e 3.
Gabarito
23.01. a 23.06. e 23.11. b 23.16. e
23.02. c 23.07. d 23.12. e 23.17. e
23.03. d 23.08. a 23.13. b 23.18. a
23.04. b 23.09. d 23.14. a 23.19. d
23.05. d 23.10. e 23.15. c 23.20. c
24 Extensivo Terceirão
Português
Aula 24 6D
Sagarana IV
João Guimarães Rosa
Português D 25
Para Izé, a simples sonoridade de palavras desconhe- pelo ar pelo cheiro por que não ele? E assim começa
cidas e até absurdas trazia em si um envolvimento com a caminhar, pé por pé, pé por si. Cabeçada em árvore,
a poesia e com o sentimento estético. Cita ainda como esbarrões, arranhadas, uma árvore de casca enrugada,
exemplos de poesia pura o pedido do menino por “dez cheiros que ele reconhece...
‘tões de biscoito de talxots”; as palavras desconhecidas Canso-me. Vou. Pé por pé, pé por si... Pè-porpé, pè-
“intimismo, paralaxe, palimpsesto...” que Josué Corne- porsi... Pepp or pepp, epp or see... Pêpe orpèpe, heppe
tas ensina a um sujeito; as saudades que a população Orcy.
sente das arengas que ninguém entendia dos sermões
Mas, estremeço, praguejo, me horrorizo. O alhum!
do antigo vigário. E o desafio se estende por várias
O odor maciço, doce-ardido, do pau-d’alho! Reco-
semanas sem nunca os contendores se encontrarem.
nheço o tronco. Deve haver uma aroeira nova, aqui
As descrições detalhadas das plantas e paisagens se ao lado. Está. Acerto com as folhas: esmagadas nos
sucedem interminavelmente: dedos, cheiram a manga. É ela, a aroeira.
Pelas frinchas, entre festões e franças, descortina, Machucado, revoltado, quase aos prantos, começa
lá embaixo, a água das Três Águas. Três? Muitas mais! a berrar a oração de São Marcos. A voz mudou de tom,
A lagoa grande, oval, tira de seu polo rombo dois proferiu blasfêmias, sentiu vontade de derrubar, esma-
córregos, enquanto entremete o fino da cauda na flo- gar, destruir e saiu correndo loucamente. Sentiu que a
resta. Mas ao redor, há o brejo, imensa esponja onde ameaça vinha da casa do feiticeiro. A fúria o empurrou
tudo se confunde: trabéculas de canais, pontilhado de para a casa do Mangolô. Queria matar o feiticeiro. Mulhe-
poços, e uma finlândia de lagoazinhas sem tampa. res gritaram assustadas. O preto gemeu, choramingou,
E as superfícies cintilam, com raros jogos de pediu para não ser morto. Zé avanço na direção da voz,
espelho, com raios de sol, espirrando asterismos. E, agarrou o velho e já o estava esganando quando voltou
nas ilhas, penínsulas, istmos e cabos, multicrescem a enxergar. Atordoou-se com a claridade mas viu que o
taboqueiras, tabuas, taquaris, taquaras, taquariúbas, velho tentava esconder um boneco de pano grosseiro.
taquaratingas e taquarassus. – Conte direito o que você fez, demônio! – gritei,
O narrador senta-se para descansar, observa as aplicando-lhe um trompaço.
diversas espécies de aves aquáticas que vêm se banhar – Pelo amor de Deus, Sinhô... Foi brincadeira... Eu
nas águas dos lagos. O tempo passa, ele está deitado costurei o retrato, p’ra explicar ao Sinhô...
meio de lado, vivendo em estado de paz. – E que mais??! – Outro safanão, e Mangolô foi
E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: à parede e voltou de viagem, com movimentos de
como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo rotação e translação ao redor do sol, do qual recebe
de grau em grau – um ponto, um grão, um besouro, um luz e calor.
anu, um urubu, um golpe de noite... E escureceu tudo. – Não quis matar, não quis ofender... Amarrei só
esta tirinha de pano preto nas vistas do retrato, p’ra
Não sabe o que está acontecendo. Não vê nada, nem
Sinhô passar uns tempos sem poder enxergar... Olho
sombras, nem reflexos, mas ouve tudo ao redor, os pás-
que deve de ficar fechado, p’ra não precisar de ver
saros o vento, as águas. Atirou uma pedra e os marrecos
negro feio...
gritaram. Horrorizado percebeu que só ele estava cego.
Coração acelerado. Reza a Santa Luzia, protetora dos A ruindade do feiticeiro espancado era cheia de cal-
olhos, nada. Sabia que estava num lugar isolado onde ma, a raiva de José passara e então entregou uma nota
ninguém mais ia. Tentou animar-se gritando. Ouvindo os de dez mil réis ao velho preto, como bandeira da paz.
sons da mata pensou que poderia sair dali orientando-se – Olha, Mangolô: você viu que não arranja nada
pela escuta. E, sabendo que não podia ficar ali começou contra mim, porque eu tenho anjo bom, santo bom
a andar: apalpa, grita, reza, toma fôlego, se enfurece. e reza-brava... Em todo caso, mais serve não termos
Se os patos, os pombos, os animais no cio se orientam briga... Guarda a pelega. Pronto!
26 Extensivo Terceirão
Aula 24
Português D 27
Cerveja vai, cerveja vem, Manuel Fulô desabafa – Podem entregar a minha Beija-Fulô p’ra o seu
outra raiva: o Toniquinho das Pedras tinha justamente Antonico das Águas, que agora ela é dele...
uma sela como a que ele queria, encostada, sem uso Os dois voltaram a fechar-se no quarto. Houve um
porque Toniquinho não tinha montaria. Mas a raiva de espanto geral. Alguém rezou o credo, portas e janelas
Manuel era porque o das Pedras não vendia a sela por foram fechadas que o Targino vinha vindo. Manuel saiu
dinheiro nenhum, pois queria mais era comprar a mula do quarto sem nenhuma arma, seguido pelo Tonico que
de Fulô. garantiu:
Desaforo!... Não pega a minha mulinha, nem a – Fechei o corpo dele. Não careçam de ter medo,
troco de uma mina de brilhante!... que para arma de fogo eu garanto!...
– Sossega, Manuel. Targino ficou admirado de ver Manuel Fulô caminhar
– Tenho ódio dele, tenho mesmo! É um sujeito sem em direção a ele. A cerca de dez metros do valentão,
préstimo, sem aquela coisa na cara... É o pior pedreiro Manuel com uma voz estranha e enérgica xingou a mãe
do mundo, não sabe nem plantar um parede. Só sabe de Targino. Targino puxou o revólver. Os insultos foram
é fazer feitiço, vender garrafada de raiz do mato, e de lado a lado. Manuel tirou da cintura uma faquinha.
rezar reza brava. Tem partes com o porco-sujo... Não Cinco tiros assoviaram na rua.
presta! Gente assim não devia de ter!... E quando espiei outra vez, vi exato: Targino, fixo,
Manuel já estava vesgo de tanto beber. Foi quando como um manequim, e Manuel Fulô pulando nele e
apareceu na porta da venda o valentão Targino, feio o esfaqueando pela altura do peito. O valentão caiu
como um defunto vivo, chamou o Manuel Fulô de lado e e morreu na hora. E Manuel o esfaqueou outras vezes
cochichou em voz alta que todos ouviram. cuspindo no cadáver.
– Escuta, Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Manuel Fulô ficou sendo um valentão manso e deco-
Dor, e venho visitar sua noiva, amanhã... Já mandei rativo, para manter a tradição e a glória do arraial. Volta
recado, avisando a ela... É um dia só, depois vocês po- e meia, enchia a cara e pedia a Beija-Flor emprestada ao
dem se casar... Se você ficar quieto, não te faço nada... Antonico das Pedras e voltava a infernizar a vila, galo-
Se não... – E Targino, com o indicador da mão direita, pando e dando tiros para o alto, até adormecer agarrado
deu um tiro mímico no meu pobre amigo, rindo, rindo, ao pescoço da mula.
com a gelidez de um carrasco.
E o valentão se foi. Conversa de bois
Manuel cambaleou até o balcão, gaguejou, juntou- – Lá vai! Lá vai! Lá vai!...
-se gente lamentando os noivos. O doutor levou o amigo
– Queremos ver... Queremos ver...
até sua casa e prometeu que iria tomar providências.
Manuel pediu para não fazer nada. Ninguém podia com – Lá vai o boi Cala-a-Boca
Targino, não queria ser um herói morto, não conseguia fazendo a terra tremer
coordenar os pensamentos para achar uma saída para A visão de mundo dos animais contrasta com a bes-
enganar o valentão. Na manhã seguinte, vizinhos, tialidade humana. Reflexões sobre o poder e a fraqueza
conhecidos, o delegado, o padre aconselharam o doutor centralizam a temática deste conto narrado em terceira
a não se meter. pessoa por Manuel Timborna que, em vez de caçar servi-
Os parentes achavam que Manuel devia entregar ço para fazer, vive falando invenções só lá dele mesmo,
nas mãos de Deus e ficar quieto. O subdelegado saíra coisas que as outras pessoas não sabem e nem querem
do arraial de madrugadinha. Marias das Dores estava escutar...
de cama, doente chamando pelo noivo. Targino ainda – ... Boi fala o tempo todo. Eu até posso contar um
estava em casa. caso acontecido que se deu.
Foi quando de repente entrou na casa o Antonico E Manuel Timborna conta que um dia estava
das Pedras, chamando Manuel Fulô a um canto – para dormindo à sombra de um jatobá e agarrou uma irara
assunto secretíssimo. que estava bisbilhotando ali pertinho. Para recuperar a
Aí, de chofre, se abriu a porta do quarto-da-sala, liberdade ela prometeu contar minuciosamente uma
onde os dois davam suas vozes, e o Antonico das Pe- história a Manuel.
dras surgiu, muito cínico e sacerdotal, requisitando Estava ela rolando na areia e tomando sol numa
agulha-e-linha, um prato fundo, cachaça e uma lata estrada do interior de Minas Gerais, quando ouviu o ran-
com brasas. E Manuel Fulô reapareceu também, mui- gido forte das rodas de um carro de boi aproximando-
to mais amarelo do que antes, dizendo ao povo Veiga, -se. Levantou o focinho bigodudo e, escondida, ficou
funebremente: espiando.
28 Extensivo Terceirão
Aula 24
Por aí se vê que a irara era genial, às vezes; mas, Os bois continuam conversando e pensando como
no fundo, não passava de uma mulherzinha teimosa, os seres humanos.
sempre a suplicar: - Me deixem espiar um pouquinho, Suando e mais furioso, Soronho xinga o menino,
que depois eu vou-me embora... amaldiçoa e ferroa os bois, os animais se agitam, tam-
Mal se amoitara, porém, e via surgir, na curva bém se irritam. Tiãozinho tem que ficar esperto para
detrás da restinga, o menino guia, o Tiõzinho – um controlar os animais.
pedaço de gente, com a comprida vara no ombro, com
- Ôa, Namorado!...
o chapéu de palha furado, as calças arregaçadas, e a
camisa grossa de riscado, aberta no peito e excedendo Também, quem tem a culpa d’eles ficarem assim
atrás em fraldas esvoaçantes. Vinha triste... desinquietos é o carreiro, que vem picando os bois, à
A dois palmos da cabeça de Tiãozinho vinham as ca- toa, à toa, sem precisão. É mau mesmo. “Mas, agora,
beças enormes de Buscapé e Namorado, os bois da guia. tu vai ver!... Acabou-se a boa vida... Acabou-se o pa-
Mais atrás vinha a dupla Capitão e Brabagato, seguidos gode”... P’ra que falar isso?!... Seu Soronho sempre não
de Dançador e Brilhante. A última junta era formada por xingou, não bateu, de cabresto, de vara-de-marmelo,
Realejo e Canindé. As quatro juntas de bois arrastavam de pau?!... E sem ter caso para mão brava, nem hora
uma enorme carreta aos solavancos. E a irara espiando. disso, pelo que ele lidava direito, o dia inteiro, capinan-
Sentado na beira do carro vinha o carreiro, Agenor do, tirando leite, buscando os bois no pasto, guiando,
Soronho, grandalhão, ruivo, mal-encarado. A caravana tudo... Mas Tiãozinho espera... Há de chegar o dia!...
distanciava-se e a irara resolveu segui-la, escondendo- Quando crescer, quando ficar homem, vai ensinar
-se nas moitas. Agenor Soronho fumava, o carro ia ao seu Agenor Soronho... Ah, isso vai!... Há-de tirar
guinchando, a poeira envolvia tudo e os oito bovinos, desforra boa, que Deus é grande!...
abanando as caudas para espantar a mosquitada se- Tiãozinho recorda Didico, outro menino-guia que
guiam remoendo o capim comido de manhã. morrera ainda pequeno.
O calor estava sufocante e Brilhante começou a Brilhante lembra a história do boi Rodapião, muito
lamentar a vida difícil que levava, diferente dos bois que inteligente, que explicava para os outros bois coisas prá-
viviam no pasto comendo sem fazer nada. Pensativo e ticas da vida deles: é preciso olhar para tudo, observar
triste, todo vestido de preto como se estivesse de luto, para encontrar onde o pasto é melhor e o capim não é
ruminava consigo de cabeça baixa: – Boi... boi... boi... venenoso, onde tem menos mosquito e mais sombra,
Brabagato lhe dá apoio: – Tem também o homem... para saber o que o homem pretende fazer. Até que um
E o Dançador, lerdo, mole-mole: - É, tem também dia o boi Rodapião teimou que havia água em cima de
o homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na- um morro, quis subir até lá, mas acabou escorregando
-ponta. nas pedras e rolou morro abaixo quebrando-se inteiro
E os bovinos conversam sobre o bicho homem um, e morrendo.
covarde e fraco que fugiu de uma vaca, e outro que foi Tiãozinho relembra as cenas de tristeza fingida da
chifrado e pisoteado. mãe e de Soronho, quando foram chegando as visitas
Ao cruzar com uns cavaleiros na estrada, Agenor para ver o defunto. O carro para dentro de um riacho
Soronho informa que está levando umas rapaduras para que corta a estrada, Tiãozinho se refresca, os bois bebem
a cidade e um defunto para enterrar. Ao ouvir falar do muita água e a viagem é retomada.
defunto, que era seu pai, Tiãozinho fica ainda mais triste. Tiãozinho caminhava sonolento. Agenor Soronho
A moça que estava com os cavaleiros olha com nojo para dormia na beira do carro cai-não-cai. O bois começam a
o defunto. O corpo rolara do esquife e de sua boca saía ouvir os pensamentos uns dos outros e do menino que
um mingau escuro atraindo milhares de moscas. Soro- sonhava com a morte de Soronho. Capitão pergunta:
nho castiga os bois furiosamente, lamenta a trabalheira,
ameaça o menino com castigos e mais trabalho agora – Onde está o homem-do-pau-comprido?
que está órfão. Tiãozinho, ao olhar para o cadáver do pai, – O homem-do-pau-comprido-com-o-marimbon-
quase chora. Lembra os sofrimentos do pai nos últimos do-na-ponta está trepado no chifre do carro...
anos de vida, entrevado e cego, preso à cama. Lembra
– E o bezerro-de-homem-que-caminha-sempre-
das vezes que o ouviu chorando à noite, ao ouvir a
mulher, no cômodo ao lado cochichando com Soronho. -na-frente-dos-bois?
Apesar de a mãe ser nova e bonita, Tiãozinho não gosta- – O bezerro-de-homem-que-caminha-adiante vai
va dela, nem do carreiro Soronho que o maltratava física caminhando devagar... Ele está babando água dos
e moralmente. olhos...
Português D 29
Tiãozinho caminha dormindo e meio sonhando Tiãozinho chorava como um doido. Goela seca.
imagina que pode matar Soronho, que é grande e mais Tremor. Os bois olham e esperam calmamente. Chega
forte que qualquer boi. Os bois passam a falar e pensar gente, desentalam o corpo, assustam-se com o outro
em voz alta identificando-se com o menino. Os bois corpo. Alguém toca os bois que reiniciam a caminhada.
comentam que, se o menino gritasse e todos os bois E logo agora, que a irara Risoleta (se fosse uma
arrancassem de repente ao mesmo tempo... De repente, mulher ela se chamaria Risoleta) se lembrou de que
o menino sonhou e...: tem um sério encontro marcado, duas horas e duas
– Namorado, vamos!!!... – Tiãozinho deu um grito léguas para trás, é que o caminho melhorou. Tiãozinho
e um salto para o lado, e a vara assobiou no ar... E os – nunca houve melhor menino candeeiro – vai em
oito bois das quatro juntas se jogaram para diante, de corridinha, maneiro, porque os bois, com a fresca,
uma vez... E o carro pulou forte, e craquejou, estram- aceleram. E talvez dois defuntos deem mais para a
belhado, com um guincho do cocão. viagem, pois até o carro está contente – renhein...
Virgem, minha Nossa Senhora!... Ôa, ôa, boi!... Ôa, nhein... – e abre a goela do chumaço, numa toada
meu Deus do céu!... triunfal.
Agenor Soronho tinha o sono sereno, a roda
esquerda lhe colhera mesmo o pescoço, e a algazarra
não deixou que ouvisse xingo ou praga – assim não se
pôde saber aos certo se o carreiro despertou ou não,
antes de desencarnar.
Testes
Assimilação
24.01. O título do conto São Marcos refere-se Das afirmações apresentadas estão corretas
a) a uma reza-brava em que o devoto, ao invocar o demônio, a) apenas 2 e 3.
é possuído pelas forças do mal. b) todas.
b) ao nome da vila “São Marcos do Calango-Frito” citada c) apenas 1, 2 e 3.
como residência do narrador.
d) apenas 3 e 4.
c) a uma imagem do apóstolo São Marcos que é venerada
na tapera do feiticeiro João Mangolô. e) apenas 2, 3 e 4.
d) a uma espécie de cipó, abundante nas matas de Minas 24.03. Assinale a alternativa correta no que diz respeito ao
Gerais, que tem a característica de enrolar-se nas árvores conto São Marcos.
e sufocá-las. a) Em todas as fábulas do texto processa-se uma volta às
e) ao padroeiro da capela da cidade do Calango-Frito e a origens: através da reintegração total dos sentidos, da
uma lagoa da região, muito visitada pelos turistas. aproximação com a natureza, da crença na força da pa-
lavra.
24.02. Avalie as afirmações a seguir, a respeito do conto
b) Narrado em terceira pessoa, o foco narrativo ilumina os
Corpo fechado.
passos do protagonista, mas também esconde certas su-
1. Corpo Fechado é um dos contos no qual evidencia-se o tilezas que servem para camuflar o sentido mais profundo
universo primitivo e fantástico do autor. da história.
2. É narrado em primeira pessoa, com o narrador participan- c) A reza de São Marcos não interessa enquanto significado,
do da história e tendo visão limitada dos fatos que narra. sentido - “é melhor não esquecer as palavras” - mas como
3. Quem narra a estória é um médico de um vilarejo do fato, iniciação satanista.
interior. O caso central de Corpo Fechado começa pro- d) Tanto nas rezas como nos poemas citados no conto o
priamente na última parte do texto. sentido denotativo e lógico das palavras deve ser mais
4. A técnica narrativa do conto é em forma de entrevista. compreendido que intuído.
O “doutor”, no decorrer da história, vai entrevistando e) Conta-se a história dos desvios de um destino que se
Manuel Fulô, um valentão manso e decorativo, como oculta na ignorância estética superior do universo, e não
mantença da tradição e para glória do arraial. na imersão sensual/sensorial mágica da natureza.
30 Extensivo Terceirão
Aula 24
Português D 31
24.08. Sobre Sagarana, assinale a única alternativa correta. 24.10. (PUC – SP) – Assinale, nas alternativas abaixo, todas
a) É composto por nove contos, nos quais a cultura sulista é extraídas do mesmo conto, o trecho que indica a presença
destacada, o que rendeu a Rosa a classificação de regio- de uma gradação.
nalista. a) “E as flores rubras, vermelhíssimas, ofuscantes, queimando
b) Em “Corpo fechado”, Guimarães Rosa trabalha com a os olhos, escaldantes de vermelhas, cor de guelras de
cultura popular, ao reproduzir o ritual consagrado pela traíra, de sangue de ave, de boca e bâton.”
umbanda. b) “E, nas ilhas, penínsulas, istmos e cabos, multicrescem
c) Guimarães Rosa utiliza nessa obra uma linguagem que taboqueiras, tabuas, taquaris, taquaras, taquariúbas,
ultrapassa os limites da língua padrão, para se constituir taquaratingas e taquarassus.”
dos recursos capazes de reproduzir a fala. c) “E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente, [...] um
d) “Conversa de Bois”, como o próprio título aponta, é um ponto, um grão, um besouro, um anu, um urubu, um
diálogo entre os bois que puxam uma carroça e discutem golpe de noite... E escureceu tudo.”
o futuro que os aguarda na fazenda. d) “Vou. Pé por pé, pé por si... Pèporpé, pèporsi... Pepp or
e) Em “Duelo”, Guimarães Rosa traz a figura do valentão nor- pepp, epp or see …Pêpeorpèpe, heppe Orcy…”
destino, temido por todos, que é morto pelos soldados. e) “Debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi
branco, de cauda branca. E, ao longe, nas prateleiras dos
24.09. Leia os fragmentos a seguir, extraídos de “O burrinho morros cavalgavam-se três qualidades de azul.”
pedrês” e “Conversa de bois”, contos que integram a coletânea
Sagarana, de João Guimarães Rosa.
I. Alguém que ainda pelejava, já na penúltima ânsia e
farto de beber água sem copo, pôde alcançar um ob-
Aprofundamento
jeto encordoado que se movia. E aquele um aconteceu 24.11. (FUVEST – SP) – Texto
ser Francolim Ferreira, e a coisa movente era o rabo do
burrinho pedrês. E Sete-de-Ouros, sem susto a mais, sem Sim, que, à parte o sentido prisco, valia o ileso gume
hora marcada, soube que ali era o ponto de se entregar, do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente
confiado, ao querer da correnteza. Pouco fazia que esta o usado, melhor fora se jamais usado. Porque, diante de um
levasse de viagem, muito para baixo do lugar da travessia. gravatá, selva moldada em jarro jônico, dizer-se apenas
Deixou-se, tomando tragos de ar. Não resistia. drimirim ou amormeuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio
“O burrinho pedrês”. da mata, um angelim que atira para cima cinquenta metros
II. “– O bebedouro fica longe, – disse o boi Rodapião. – Cansa de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um
muito ir até lá, p’ra beber... Vou pensar um jeito qualquer, vocativo absurdo e bradá-lo - Ó colossalidade! - na direção
mais fácil... Pensando, eu acho... “Aí, nós nem responde- da altura?
mos. Aquilo era mesmo do boi Rodapião. Porque eu não João Guimarães Rosa, “São Marcos”, In: Sagarana
tinha precisado de pensar, p’ra achar onde era que estava
PRISCO = antigo, relativo a tempos remotos.
o bebedouro, lá em baixo, mais longe.”
GRAVATÁ = planta da família das bromeliáceas.
“Conversa de bois”.
Neste excerto, o narrador do conto “São Marcos” expõe alguns
A leitura dos fragmentos I e II permite afirmar que, nas duas traços de estilo que correspondem a características mais
narrativas, gerais dos textos do próprio autor, Guimarães Rosa. Entre
a) para se libertar do jugo de seus opressores, os animais tais características só NÃO se encontra
devem exercer uma conduta racional, apreendida no a) a busca da concisão e da previsibilidade da linguagem.
convívio com os seres humanos.
b) o emprego de neologismos.
b) para ultrapassarem os obstáculos que se apresentam
c) a conjugação de referências eruditas e populares.
em suas vidas cotidianas, os animais devem adotar o
comportamento humano. d) a liberdade na exploração das potencialidades da língua
portuguesa.
c) tanto a racionalidade humana quanto a sabedoria natural
dos animais são inúteis diante do acaso, pois o destino e) o gosto pela palavra rara.
dos seres já está traçado.
d) a sabedoria instintiva, característica dos animais, é supe-
rior ao pensamento racional, próprio dos seres humanos.
32 Extensivo Terceirão
Aula 24
24.12. (UFU) – Leia os dois trechos abaixo de Conversa de d) um conhecido feiticeiro de Calango Frito, João Mangolô,
bois, de Guimarães Rosa: e o próprio narrador, José/João, homem letrado e inte-
“Mal se amoitara, porém, e via surgir, na curva de trás da ressado por botânica: para se vingar das piadas racistas,
restinga, o menino guia, o Tiãozinho - um pedaço de gente Mangolô lança um feitiço que cega o narrador; o narrador,
com a comprida vara no ombro, com o chapéu de palha por sua vez, lança mão de seu conhecimento acerca da
furado, as calças arregaçadas, e a camisa grassa de riscado, planta São Marcos para curar-se da praga jogada.
aberta no peito e excedendo atrás em fraldas esvoaçantes”. e) João Mangolô, conhecido feiticeiro de Calango Frito, e
“Quem manda agora na nossa cafua sou eu... Eu, Tião- José, homem interessado pelos mistérios da natureza
zinho!... Sou grande, sou dono de muitas terras, pode mais brasileira e pelos efeitos da planta São Marcos: ambos dis-
nem falar no nome do seu Soronho... Não deixo!... Tiãozão... putam quem tem o maior poder dentro da comunidade
Tiãozão!... Oung... Hmong... Mûh!...”
a partir do conhecimento de cada um – a planta de São
Considerando os trechos acima, assinale a alternativa Marcos ou os feitiços de Mangolô.
INCORRETA.
24.14. (PUC – SP) – A respeito do conto São Marcos que
a) O diminutivo Tiãozinho marca o sentimento de fragilidade integra a obra Sagarana, de João Guimarães Rosa, é incorreto
do personagem diante das tragédias da vida, enquanto o afirmar que
aumentativo, Tiãozão, prenuncia o amadurecimento do
personagem. a) é um conto de linguagem marcadamente sinestésica,
isto é, que ativa os órgãos sensoriais como meios de
b) No último trecho, as onomatopeias apontam para o fato conhecimento da realidade, em suas diferentes situações
de que Tiãozinho se deixa conduzir pelos seus instintos narrativas.
violentos, simbolizados pela força física e vingativa dos
bois, imitando, inclusive, a fala dos animais. b) refere as ações domingueiras do personagem narrador Izé,
que se embrenha no mato, carregando uma espingarda
c) Nos dois trechos, há a presença de um narrador oniscien- a tiracolo com o firme propósito de caçar irerês, narcejas,
te, com ponto de vista fora da história, o que possibilita jaburus e frangos-d’água.
uma descrição objetiva tanto dos aspectos físicos quanto
psicológicos da personagem. c) desenvolve um tenebroso caso de ação sobrenatural, por
obra de um feiticeiro, que produz cegueira temporária no
d) A descrição inicial de Tiãozinho caracteriza-o como uma protagonista e da qual ele se safa por meio de uma reza
criança indefesa, ao apresentá-lo por meio da metonímia brava, sesga, milagrosa e proibida.
“pedaço de gente” e ao descrevê-lo usando um vestuário
gasto e grande demais para seu corpo. d) vem introduzido por uma epígrafe, extraída da cultura
popular, das cantigas do sertão e que condensa e dá,
24.13. (UP – PR) – Sobre “São Marcos”, sexta narrativa que sugestivamente, o tom da narrativa.
compõe Sagarana (1946), de João Guimarães Rosa, é correto e) caracteriza o espaço dos bambus, lugar onde se encon-
afirmar que o enredo se constrói a partir do conflito entre: tram gravados os nomes dos reis leoninos e onde se trava
a) João Mangolô, conhecido feiticeiro de Calango Frito, floral desafio entre o narrador e “Quem Será”.
e a personagem José/João, homem interessado pelos
mistérios da natureza brasileira e pelos efeitos da oração 24.15. Assinale a alternativa correta sobre o conto São
de São Marcos: ambos disputam a posição de autoridade Marcos.
espiritual na região, pois, devido ao isolamento, o poder a) O narrador faz a narração em primeira pessoa e logo de
da igreja não consegue chegar ao povoado, que se vê início elenca e ironiza uma série de superstições populares
dividido, em suas preferências espirituais, pelos dois e feiticeiros da região.
personagens.
b) O personagem conta que tinha o costume de, todos os
b) João Mangolô, conhecido feiticeiro de Calango Frito, e o domingos, sair de manhã com espingarda e cachorro para
próprio narrador, José/João, homem letrado e interessado
ir passear e caçar na mata.
pela natureza: o feiticeiro, vítima de piadas racistas, resolve
vingar-se do narrador lançando um feitiço que o cega; o c) A exceção para a descrença generalizada do narrador era
narrador, por sua vez, reza a oração de São Marcos, que a fé que botava numa oração milagrosa que, invocando
o conduz à casa de Mangolô para obrigá-lo a desfazer o São Marcos o protegia de serpentes venenosas.
feitiço. d) Perto de um bambuzal, o narrador se encontra novamente
c) um conhecido feiticeiro de Calango Frito, João Mangolô, com um poeta popular com quem, a cada domingo, faz
e o protagonista, José/João, homem letrado e interessado trovas numa espécie de desafio literário.
por botânica: ambos disputam a atenção da audiência ao
contarem, alternadamente, “causos” que envolvem magia e) A oração de São Marcos encheu o protagonista de fúria
e ciência, de modo a convencer o grupo de pessoas de destruidora, fê-lo sentir que a ameaça vinha da casa do
suas convicções. Mangolô e o levou instintivamente até lá.
Português D 33
24.16. Assinale a alternativa correta a respeito do conto 24.18. (UFPR) – “E não é bem assim que as palavras têm
Corpo fechado. canto e plumagem. E que o capiauzinho analfabeto Matutino
a) Manuel Fulô orgulhava-se da Beija Flor, sua mula lisa, vis- Solferino Roberto da Silva existe e, quando chega na bitácula,
tosa e lustrosa, sábia, mansa e garbosa, que ele conseguira impõe: – “Me dá dez ‘tões de biscoito de talxóts!’ – porque
numa treta com os ciganos. deseja mercadoria fina e pensa que “caixote” pelo jeitão
b) Manuel Fulô, alto, forte, de feições duras e cara esverdeada, plebeu deve ser termo deturpado. E que a gíria pede sempre
tinha somente a aparência de valentão, pois ao menor roupa nova e escova. E que o meu parceiro Josué Cornetas
perigo acovardava-se. conseguiu ampliar um tanto os limites mentais de um sujeito
c) A epígrafe “A barata diz que tem...”, que abre o conto, só bidimensional, por meio de ensinar-lhe estes nomes:
antecipa a mania de Manuel Fulô de fechar a cara, mostrar intimismo, paralaxe, palimpsesto, sinclinal, palingenesia,
brabeza e contar vantagens sobre a própria valentia. prosopopese, amnemosínia, subliminal...”
d) A esperança de Fulô era que o amigo doutor conseguisse João Guimarães Rosa – do conto São Marcos, in Sagarana
convencer o valentão Targino a não desonrar Maria das Considerando a visão de mundo e a linguagem de autores
Dores, sua noiva. representativos da ficção brasileira do século XX, escolha as
e) Misteriosamente paralisado, Targino não conseguiu sacar alternativas corretas:
o revólver e acabou morrendo esfaqueado por Manuel
a) a obra de Guimarães Rosa enfatiza a separação entre a
Fulô.
cultura popular, que tende a preservar a língua, e a cultura
24.17. (PUC – SP) – O conto São Marcos, que integra a obra erudita, entendida como principal fonte da renovação
“Sagarana”, de João Guimarães Rosa, apresenta linguagem constante do vocabulário.
marcadamente sinestésica, isto é, que ativa os órgãos sen- b) Os enredos secundários e a citação de versos populares,
soriais como meios de conhecimento da realidade, em suas que aparecem com frequência nos contos de Sagarana,
diferentes situações narrativas. No ponto culminante da têm função ilustrativa, criando apenas uma espécie de
narrativa, o narrador é afetado em sua capacidade sensorial, pano de fundo para a estória narrada, e poderiam ser
particularmente ligada suprimidos sem qualquer prejuízo para a compreensão.
a) ao olfato, que lhe permite perceber o “cheiro de musgo. c) A ênfase na experimentação linguística e na metalin-
Cheiro de húmus. Cheiro de água podre”, bem como o guagem leva Guimarães Rosa a dispensar pouca atenção
“odor maciço, doce ardido, do pau d’alho”. ao enredo, especialmente nos contos de Sagarana, que
b) à audição, que lhe faculta “distinguir o guincho do paturi praticamente não narram história alguma.
do coincho do ariri, e até dissociar as corridas das preás d) A obra de Guimarães Rosa realiza em grande medida
dos pulos das cotias, todas brincando nas folhas secas”. algumas reivindicações de autores significativos do Movi-
c) ao tato, que se ativa “com o vento soprando do sudoeste, mento Modernista, que propuseram o direito permanente
mas que mudará daqui a um nadinha, sem explicar a à pesquisa estética e a estabilização de uma consciência
razão”, além de lhe permitir sentir o “horror estranho que criadora nacional.
riçava-me a pele e os pelos”. e) Como acontece em Sagarana, outras obras da primei-
d) ao paladar, ativado na mastigação “de uma folha cheirã ra metade do século XX realizaram a aproximação en-
da erva-cidreira, que sobe em tufos na beira da estrada”, tre linguagem oral e linguagem escrita. São exemplos
e usada, segundo a personagem, para “desinfetar”. São Bernardo, Angústia e Vidas secas, de Graciliano
Ramos.
e) à visão, que lhe permite contemplar as plantas, as aves,
os insetos, as cores e os brilhos da natureza, como em
“debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi
branco, de cauda branca”.
34 Extensivo Terceirão
Aula 24
24.19. (FUVEST – SP) – Leia os textos. 24.20. (UNICAMP –SP) – Conversa de Bois, de Guimarães
– Eu acho que nós, bois, – Dançador diz, com baba Rosa, narra acontecimentos de uma viagem no carro de
– assim como os cachorros, as pedras, as árvores, somos bois, em que estão o carreador Agenor Soronho, Tiãozinho
pessoas soltas, com beiradas, começo e fim. O homem, não: e o corpo de seu pai morto. O trecho a seguir reproduz um
dos diálogos entre os bois.
o homem pode se ajuntar com as coisas, se encostar nelas,
crescer, mudar de forma e de jeito… O homem tem partes – Que é que está fazendo o carro?
mágicas… São as mãos… Eu sei… – O carro vem andando, sempre atrás de nós.
João Guimarães Rosa, “Conversa de bois”. Sagarana. – Onde está o homem-do-pau-comprido?
– O homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-
Um boi vê os homens -ponta está trepado no chifre do carro...
Tão delicados (mais que um arbusto) e correm – E o bezerro-de-homem-que-caminha-sempre-na-fren-
e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos te-dos-bois?
de alguma coisa. Certamente falta-lhes – O bezerro-de-homem-que-caminha-adiante vai cami-
nhando devagar... Ele está babando água dos olhos...
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
Conversa de Bois, em João Guimarães Rosa, Sagarana.
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves, Avalie as seguintes afirmações.
até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam
1. Guimarães Rosa defendeu a ideia de que a linguagem
nem o canto do ar nem os segredos do feno, literária baseia-se na utilização de uma lógica diferente
como também parecem não enxergar o que é visível da qual estamos acostumados. Conversa de bois é um
exemplo desta ideia, pois parte de sua narrativa é contada
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
pelos bois, e as coisas são vistas da perspectiva desses
e no rasto da tristeza chegam à crueldade. animais, com resultados que tornam estranho o que é
Carlos Drummond de Andrade, “Um boi familiar.
vê os homens”. Claro enigma. 2. O menino Tiãozinho é chamado de “bezerro-de-homem”,
Assinale a alternativa que interpreta corretamente os textos tal como, do ponto de vista humano, o bezerro seria “o
a) Em ambos os textos, o assombro de quem vê (os bois) bebê do boi”. O ato de chorar, por sua vez, é entendido
decorre das avaliações contrastantes sobre quem é visto como “babar água dos olhos”, numa assimilação entre o
(os homens), para isso o conto de Rosa e o poema de comportamento dos homens e o dos animais.
Drummond valem-se de diferentes figuras de linguagem. 3. O “pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta” é a vara
b) No primeiro texto, o boi Dançador constata a inferioridade com uma ponta de ferro que Agenor Soronho usava para
do Homem sobre os irracionais apesar de ser provido de açoitar os bois, que sentiam uma dor semelhante à da
mãos. picada de um marimbondo.
c) No segundo texto, as reflexões recaem sobre a natureza 4. O caráter opressor de Agenor Soronho aparece na forma
íntima do ser humano, provida de atributos essenciais como este tratava os bovinos semelhante à com que
que o tornam mais sensível ao mundo que o rodeia. tratava Tiãozinho.
d) O conto de Rosa e o poema de Drummond, ao apresenta- Estão corretas
rem conceitos elaborados por seres irracionais, valem-se a) Todas as afirmativas.
um, da prosopopeia ou personificação; o outro, do para- b) Apenas 1, 2 e 3.
doxo.
c) Apenas 2, 3 e 4.
e) Tanto o excerto de “Conversa de bois” como o de “Um boi
vê os homens” transcrevem reflexões dos animais sobre a d) Apenas 1, 3 e 4.
condição humana. e) Apenas 1, 2 e 4.
Gabarito
24.01. a 24.06. e 24.11. a 24.16. c
24.02. b 24.07. d 24.12. c 24.17. e
24.03. a 24.08. c 24.13. b 24.18. d
24.04. d 24.09. d 24.14. b 24.19. e
24.05. b 24.10. c 24.15. e 24.20. a
Português D 35
Português
Aula 25 6D
Sagarana V
João Guimarães Rosa
A hora e vez de Augusto Matraga possui mais nada, que perdeu suas fazendas e rique-
zas, e que vai ficar pobre, o já-já... E estão conversando,
Sapo não pula por boniteza o Major mais outros grandes, querendo pegar o senhor
mas porém por percisão. à traição. Estão espalhando... – o senhor dê o perdão
pr’a minha boca, que eu só falo o que é preciso – estão
Depois da quermesse nos fundos da igreja, duas dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros
mulheres à-toa estavam felizes porque eram só duas e nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má,
eram disputadas por um bando de homens. Angélica, que quem vê tem que matar por obrigação.
preta e capenga, não era tão cobiçada, e o povão exigia
Qualquer outro, sem ser Augusto Esteves, teria perce-
que a outra, a Sariema, cujo nome era Tomázia, branca,
bido que seus dias de glória estavam no fim, perceberia
de pescoço e pernas finas, fosse leiloada. Daí apareceu
a chegada do azar, pensaria em sumir por uns tempos.
Nhô Augusto que a arrematou pela pequena “fortuna”
Mas Nhô Augusto era osso duro e antes de matar Otávio
de cinquenta mil réis. Aclamado, o arrematador mandou
e Dionóra, resolveu ir até a chácara do Major Consilva
dar uns tabefes no capiau apaixonado pela mulher.
tirar satisfação. Seus próprios capangas o derrubaram
Quando passava pela frente da igreja que tinha mais luz
do cavalo, deram-lhe pauladas na cabeça, nos ombros
Nhô Augusto olhou melhor para a Sariema:
e nas coxas. O Major deu ordem para o levarem, marcar
– Que é!... Você tem perna de manuel-fonseca, uma a ferro e matá-lo.
fina e outra seca! E está que é só osso, peixe cozido sem
tempero... Capim p’ra mim, com uma assombração E, seguro por mãos e pés, torcido aos pulsos dos ca-
dessas!... Vá-se embora, frango d’água! Some daqui! pangas, urrava e berrava, e estrebuchava tanto, que a
roupa se estraçalhava, e o corpo parecia querer partir-
E empurrando a rapariga, que abriu a chorar o
-se em dois pela metade da barriga. Desprendeu-se,
choro mais sentido de sua vida, Nhô Augusto desceu
por uma vez. Mas outros dos homens desceram os
a ladeira sozinho – uma ladeira que a gente tinha de
porretes. Nhô Augusto ficou estendido, de bruços, com
descer quase correndo, porque era só cristal e pedra
a cara encostada no chão.
solta.
Dionóra, a mulher, cansada dos desmandos e da Arrastaram o ferido até a beira de um barranco, acen-
indiferença de Augusto resolveu, embora temesse a deram fogo, abrasaram o ferro com a marca do gado do
reação violenta do marido, fugir com o amante, levando Major (um triângulo inscrito num círculo) e o marcaram
Mimita, a filha de dez anos. na nádega direita. Nhô Augusto acordou com um berro
e um salto medonhos e atirou-se do barranco rolando
Nhô Augusto tivera uma infância louca e sem rédeas
pelas moitas. Deram-no por morto e se retiraram.
e cada vez foi ficando mais endoidecido, desregrado,
violento, acumulando dívidas, deixando as terras no Um casal de pretos que morava na beira do brejo
abandono. aproximou-se do homem branco e notou nele um fiapo
de vida e o carregaram para o casebre e fizeram um
Quim Recadeiro, homem de confiança de Augusto,
esquife para enterrá-lo. Só que Nhô Augusto deu novo
acompanhou a mulher e a filha do patrão até o local
sinal de vida. Dias depois, ao voltar a si, viu que estava
onde ela se encontraria com Otávio, o amante, e retor-
com talas nas duas pernas. O corpo inteiro doía: costelas
nou para dar as más notícias ao patrão. Além da fuga
e pernas quebradas, marca de ferro nas nádegas, ma-
da mulher, Nhô Augusto soube que seus capangas, sem
chucaduras e cortes em todas as partes do corpo. Apesar
receber pagamento há meses, tinham sido contratados
de tudo, Nhô Augusto achou que era melhor estar vivo.
por seu maior inimigo, o Major Consilva.
Comia, rezava, comia mais e fumava.
– Major de borra! Só de pique, porque era inimigo
Com o passar dos dias, Nhô Augusto Esteves
do meu pai!... Vou lá!
das Pindaíbas sentia tristeza. A raiva foi passando,
– Mal em mim não veja, meu patrão Nhô Augusto, lembrava-se da mulher e da filha. Até que conseguiu
mas todos no lugar estão falando que o senhor não chorar. Um choro alto, solto, soluçado.
36 Extensivo Terceirão
Aula 25
Agora, parado o pranto, a tristeza tomou conta à mente desejos de voltar à vida antiga, descansar o dia
de Nhô Augusto. Uma tristeza mansa, com muita inteiro, fumar, beber.
saudade da mulher e da filha, e com um dó imenso Mas, a vergonheira atrasada? E o castigo? O padre
de si mesmo. Tudo perdido!... O resto, ainda podia... bem que tinha falado:
Mas, ter a sua família, direito, outra vez, nunca. Nem a
– “Você, em toda sua vida, não tem feito senão pe-
filha... Para sempre... e era como se tivesse caído num
cados muito graves, e Deus mandou estes sofrimentos
fundo de abismo, em outro mundo distante.
só para um pecador poder ter a ideia do que o fogo do
Meses depois, Nhô Augusto sentiu vontade de de- inferno é!...”
sabafar, de contar sua história de se confessar. Os pretos,
Sim, era melhor rezar mais, trabalhar mais e esco-
às escondidas, trouxeram-lhe um padre que ouviu sua
rar firme, para poder alcançar o reino-do-céu.
confissão, e passou a visitá-lo outras vezes, dava-lhe
conselhos que o faziam chorar. Conversando muito e desabafando com mãe Qui-
téria, sua mãe preta, depois de meses, Nhô Augusto foi
– Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida
reencontrando a paz de espírito.
é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa
muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode A época das chuvas trouxe bem-estar, alegria de
ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua viver e vontade de fumar, coisa que não fazia há anos.
hora e a sua vez: você terá a sua. Tirou tragadas, soltou muitas fumaças, e sentiu o
Quando pôde andar, com as muletas que os pretos corpo se desmanchar, dando na fraqueza, mas com
lhe fizeram, Nhô Augusto resolveu partir para um sítio uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro,
distante, a única propriedade que ainda possuía. Os parecendo que a gente ia virar uma chuvinha fina.
pretos que o salvaram foram juntos. Não, não era pecado!... E agora rezava até muito
Largaram à noite, porque o começo da viagem melhor, e podia esperar melhor, mais sem pressa, a
teria de ser uma verdadeira escapada. E, ao sair, Nhô hora da libertação.
Augusto se ajoelhou, no meio da estrada, abriu os Foi quando chegou à vila um bando de oito homens,
braços em cruz, e jurou: com muitas armas, cheios de anéis e correntes, valentões
– Eu vou pr’a o céu, e vou mesmo, por bem ou por deixaram o povinho apavorado, mudo e imóvel.
mal!... E a minha vez há de chegar... Pr’a o céu eu vou, E o chefe – o mais forte e o mais alto de todos, com
nem que seja a porrete. [...] um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes
brancos limados em acume , de olha dominador e
Dormindo de dia e viajando à noite, depois de mui-
tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça –
tos dias, chegaram ao povoado, e todos logo gostaram
era o homem mais afamado dos dois sertões do rio [...]
daquele homem esquisito, meio doido e meio santo.
o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-
Trabalhava muito, vivia querendo ajudar os outros, aos
-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-
domingos descansava perambulando pelas matas, à
-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.
noite juntava-se com as beatas para rezar o terço, tratava
os pretos como seus patrões. Para espanto e para surpresa dos bandidos, Nhô
Augusto saiu à rua e foi ao encontro do bando, deu-
E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos -lhes as boas-vindas e ofereceu hospedagem a todos
e meio, direitinho desse jeito, sem tirar e nem por, sem em sua casa. Seu Joãozinho Bem-Bem se agradou dele
mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória à primeira vista. Nhô Augusto acolheu a todos, serviu
inventada, e não é um caso acontecido não senhor. muita comida, bebida e pousada. Recebeu a admiração
Nhô Augusto não fumava, não bebia, não se interes- e o respeito do valentão que lhe ofereceu um lugar no
sava pelas mulheres. Trabalhava sem nenhum interesse bando. Ficaram conversando até altas horas contando e
financeiro e rezava muito. Um velho conhecido, Tião comentando as façanhas, a força, a valentia e as habili-
da Thereza, passando casualmente pelo povoado, dades dos principais membros do bando. Tudo isso era
espantou-se de encontrá-lo vivo naquele fim de mundo, como cachaça para o espirito de Augusto
deu-lhe notícias da filha que se prostituíra, da mulher Depois da partida de Seu Joãozinho Bem-bem,
que ainda vivia com Otávio, do Major Consilva e do Nhô Augusto sentia-se a cada dia mais e mais inquieto.
Quim Recadeiro, assassinado pelos homens do Major. Sentia saudades de mulheres, sentia-se forte e feliz.
Demonstrando nojo e desprezo por aquela caricatura de Continuava trabalhando duro, volta e meia repetindo
homem partiu jurando que não revelaria a ninguém que para si mesmo: – Cada um tem a sua hora, e há-de
o havia encontrado vivo. chegar a minha vez! Nhô Augusto sentia muito mais o
Desde esse dia, Nhô Augusto, às vezes, sentia uma quanto estava decidido a seguir na sua vida de oração e
fraqueza interior, muita tristeza e novamente lhe vinham penitência.
Português D 37
Após a estação das chuvas, os bandos de aves mi- entregar as irmãs do assassino para serem abusadas por
grantes mexiam com ele, parecia que o convidavam a seus homens. Entrou o velho pai da família e, ajoelhado,
partir também. Eram milhares de maitacas, maracanãs, pediu piedade para os filhos e ofereceu-se para morrer
periquitos Depois de muito pensar, Nhô Augusto achou no lugar deles. De nada adiantaram as súplicas doloro-
que estava em tempo de se soltar pelo mundo atrás de sas do velho e o bandido determinou que se cumprisse
seu destino. Despediu-se dos espantados pretos, mon- a vingança.
tou um jegue, como o que esteve presente em várias Então Nhô Augusto adiantou-se e pediu a seu João-
ocasiões na vida de Jesus, e partiu, deixando as rédeas zinho Bem-Bem que não cometesse aquele crime contra
soltas para que o animal decidisse qual caminho e que pessoas inocentes. O bandido num rompante mudou o
direção tomar. tom de voz, mostrou-se indignado com o atrevimento
Cavalgando, apreciando as paisagens, observando a do amigo.
natureza animal, sentia-se leve e quando se viu sozinho – Pois então... – e Nhô Augusto riu, como quem
pegou a cantar uma toada que ouvira aos guerreiros de vai contar uma grande anedota - ...Pois então, meu
seu Joãozinho Bem-Bem: amigo seu Joãozinho Bem-Bem, é fácil... Mas tem que
passar primeiro por riba de eu defunto...
A roupa lá de casa não Joãozinho Bem-Bem se sentia preso a Nhô Augus-
se lava com sabão: to por uma simpatia poderosa, e ele nesse ponto era
lava com ponta de sabre bem assistido, sabendo prever a viragem dos climas e
conhecendo por instinto as grandes coisas. Mas Teó-
e com bala de canhão...
filo Sussuarana era bronco excessivamente bronco, e
Cantar, só, não fazia mal, não era pecado. As estra- caminhou pra cima de Nhô Augusto. Na sua voz:
das cantavam. E ele achava muitas coisas bonitas, e
– Epa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança,
tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas, nos cambada de filhos-da mãe, que chegou a minha vez!...
caminhos do sertão.
E o viajante seguia pelos caminhos observando a E a casa matraqueou que nem panela de assar
pipocas, escurecida à fumaça dos tiros, com os cabras
paisagem, as aves, os pequenos animais que encontrava.
saltando e miando de maracajás, e Nhô Augusto
O jegue o conduziu até o arraial do Rala-Coco onde gritando qual um demônio preso e pulando como dez
estava acampado o bando de Joãozinho Bem-Bem. demônios soltos.
Nhô Augusto foi recebido com alegria, entusiasmo e
descontração. Gritos, palavrões, desaforos eram berrados em meio
à fumaça dos tiros e corpos dos mortos. Joãozinho
Está vendo, mano velho? Quem é que não se Bem-Bem ordenou que deixassem só os dois brigarem.
encontra, neste mundo?... Fico prazido por lhe ver. E Já sem balas os dois, sangrando e com as roupas em
agora é o senhor quem está em minha casa... Vai se farrapos, rodaram para o meio da rua cheia de povo.
arranchar comigo. Se abanque, mano velho, se aban- Como numa dança, saltavam e negaceavam até que
que!... Arranja um café aqui pr’a o parente, Flosino! Nhô Augusto enterrou a faca no baixo ventre de João-
– Não queria empalhar... O senhor está com pouco zinho Bem-Bem rasgando até a boca do estômago.
prazo.. As tripas saltaram e o bandido caiu ajoelhado
– Que nada, mano velho! Nós estamos de saída, segurando os intestinos nas mãos. Agonizando, os
mas ainda falta ajustar um devido, para não se deixar rivais se despediram como amigos. Joãozinho morre e
rabo para trás... Depois lhe conto. O senhor mesmo vai Nhô Augusto, ao ser reconhecido por um primo chamado
ver, daqui a pouco... Come com gosto, mano velho. João Lomba, com um sorriso de contentamento
sussurrou para o primo:
Na conversa com o amigo, Nhô Augusto soube do
caso do Juruminho, guerreiro de seu Joãozinho Bem- – Põe a bênção na minha filha... seja lá onde for
que ela esteja... E, Dionóra... Fala com a Dionóra que
-Bem, morto com um tiro pelas costas por um rapaz do
está tudo em ordem!
arraial, que fugira em seguida. Como vingança, seu João-
zinho Bem-Bem decidiu matar um irmão do fugitivo e Depois, morreu.
38 Extensivo Terceirão
Aula 25
Testes
25.03. Sobre Sagarana, assinale a alternativa correta.
Assimilação
a) Intitula-se Sagarana porque reúne novelas que se de-
25.01. Dos enunciados abaixo, indique aquele cujo conteú- senvolvem à maneira de aventuras guerreiras e lendas, e
do não corresponde ao conto referido. apresentam um tema comum que abarca a vida simples
a) Era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: céle- dos sertanejos da região baiana do São Francisco.
bre do Jequitinhonha à Serra das Araras, (...), maior do que b) Compõe-se de nove novelas, entre as quais se sobressai
Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-treme, Duelo, história de valentões e espertos, de violência e de
o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, mágica, protagonizada por Manuel Fulô.
o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu c) Estrutura-se em doze narrativas de sentido moral e
Joãozinho Bem-Bem. – A hora e vez de Augusto Matraga. embasadas na tradição mineira, entre as quais se destacam
b) Folgado, Sete-de-Ouros endireitou para a coberta. Fare- Questões de família, história meio autobiográfica, e Uma
jou o cocho. Achou milho. Comeu. Então, rebolcou-se, história de amor, expressivo drama passional.
com as espojadelas obrigatórias, dançando de patas no d) Apresenta narrativas apenas de teor místico religioso
ar e esfregando as costas no chão. Comeu mais. Depois como a que se engendra em A hora e vez de Augusto
procurou um lugar qualquer, e se acomodou para dormir, Matraga, cujo estilo destoa do conjunto das outras que
entre a vaca mocha e a vaca malhada, que ruminavam, compõem o livro.
quase sem bulha, na escuridão. – Conversa de bois.
e) Guimarães Rosa utiliza nessa obra uma linguagem que
c) E eu abusava, todos os domingos, porque, para ir ultrapassa os limites da língua padrão, para se constituir
domingar no mato das Três Águas, o melhor atalho dos recursos capazes de reproduzir a fala.
renteava o terreirinho de frente da cafua do Man-
golô, de quem eu zombava já por prática. Com isso 25.04. (UFU – MG ) – Considere o fragmento abaixo e a obra
eu me crescia, mais mandando, e o preto até que A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa. Assi-
se ria, acho que achando mesmo graça em mim. nale a alternativa incorreta.
– São Marcos. “E assim passaram pelo menos seis ou seis anos e meio,
d) O sol cresce, amadurece. Mas eles estão esperando é a direitinho desse jeito, sem tirar e nem por, sem mentira ne-
febre, mais o tremor. Primo Ribeiro parece um defunto nhuma, porque esta aqui é uma história inventada, e não é
- sarro de amarelo na cara chupada, olhos sujos, desbri- um caso acontecido, não senhor.”
lhados, e as mãos pendulando, compondo o equilíbrio, a) Neste fragmento, há um diálogo do narrador com o leitor
sempre a escorar dos lados a bambeza do corpo. (...) e e também uma reflexão sobre a relação entre a literatura
trouxe para cá fora o caixinha de remédio, a cornicha de e o compromisso com a verdade.
pó e mais o cobertor. – Sarapalha.
b) O conto é uma narrativa em terceira pessoa, com narrador
e) Mas, assim, pude passar o dia inteiro ao lado da minha onisciente que penetra nos pensamentos de Augusto
prima. E juntos confeccionamos quase duas dezenas de Matraga como se fosse sua consciência.
cartas, na grande maioria destinadas a insignes analfabe-
c) Após o tempo mencionado no fragmento, Nhô Augusto
tos. – Minha gente.
encontra com a esposa Dinorá que contribuirá para que
25.02. A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, ele abandone o individualismo e o desejo de vingança.
presente na coletânea Sagarana, d) Na obra, a história desenvolve-se em vários espaços: Mu-
a) tem como tema principal a necessidade de redenção. rici, onde Matraga vive como bandoleiro, Tombador, onde
b) retrata de forma realista a injusta política latifundiária do faz penitência e se arrepende da vida de perversidade;
Nordeste. Rala-Coco, onde encontra sua hora e vez, duelando com
c) trata de um militar aposentado que passa a rever sua vida Joãozinho Bem-Bem.
e arrepender-se de suas maldades.
d) apresenta personagens superficiais em contraste com o
casal de negros, analisado em profundidade pelo autor.
e) configura uma exceção na obra do autor, em razão da
linguagem rebuscada, isenta de neologismos e de pos-
sibilidades semânticas alternativas.
Português D 39
25.05. (PUC – SP) – Quando Guimarães Rosa publicou seu 25.07. Com base na variedade de focos narrativos empre-
primeiro livro, Sagarana, em 1946, duas vertentes assinalavam gados nos contos de Sagarana, é possível afirmar que, no
o panorama da ficção brasileira: o regionalismo e a reação trecho destacado – “E assim se passaram pelo menos seis
ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem
espiritualista. A obra do escritor mineiro vai representar uma
pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória
síntese feliz das duas vertentes. Como os regionalistas, volta- inventada, e não é um caso acontecido, não senhor” – ma-
-se para os interiores do país, pondo em cena personagens nifesta-se o relato de um
plebeias e ‘típicas’, a exemplo dos jagunços sertanejos. Leva a) narrador em terceira pessoa onisciente que, à maneira
a sério a função da literatura como documento, ao ponto de um contador de casos, interfere na narrativa, traço
de reproduzir a linguagem característica daquelas paragens. verificado também em “A volta do marido pródigo”.
Porém, como os autores da reação espiritualista, descortina b) narrador-testemunha que, assim como o de “Corpo
largo sopro metafísico, costeando o sobrenatural, em de- fechado”, conta em primeira pessoa a história protago-
manda da transcendência. nizada por outra personagem como se fosse apenas um
observador atento dos fatos.
Dos contos da obra inaugural de Rosa, é correto afirmar que c) narrador em terceira pessoa observador que, semelhan-
os três aspectos abordados no fragmento do artigo lido – re- te a um contador de histórias, reproduz um caso a ele
gionalismo, linguagem inovadora e presença do sobrenatural relatado por outra personagem, característica presente
-, aparecem, com destaque, no conto também em “Conversa de bois”.
a) Sarapalha, que narra a história de Turíbio, que faz um pacto d) narrador em primeira pessoa que, assim como o narrador
de “São Marcos”, assume o ponto de vista de uma perso-
com o diabo na Encruzilhada das Veredas-Mortas.
nagem cética, arrebatada por eventos de natureza mística.
b) A hora e a vez de Augusto Matraga, em que o personagem
principal se torna bom, em virtude das mandingas do 25.08. Sagarana, de João Guimarães Rosa, é uma coletânea
casal de pretos velhos que o socorre. composta por nove narrativas. Dentre as considerações abai-
xo a propósito dessa obra, assinale a(s) correta(s).
c) Minha gente, que traz a história de Bento Porfírio, amal-
a) É um livro com um sopro de renovação, que reinventa
diçoado pela esposa, a quem planejava largar.
a linguagem usada na região da caatinga mineira por
d) São Marcos, cujo narrador ficou cego devido à mandinga vaqueiros e sertanejos.
feita pelo feiticeiro João Mangolô. b) Lalino Salãthiel, do conto O burrinho pedrês, é um per-
e) Conversa de bois, que narra a história do moleque Tião- sonagem ladino, conhecido por ser mulherengo.
zinho, que profere a oração amaldiçoada para se ver livre c) A expressão “ileso gume do vocábulo”, do conto São
do cruel carreiro. Marcos, indica que o narrador defende uma literatura que
procure a força expressiva original da linguagem.
d) O conto Duelo transpõe para o interior de Minas os
Aperfeiçoamento confrontos entre pistoleiros que caracterizam os filmes
de faroeste da indústria cultural hollywoodiana.
25.06. (FUVEST – SP) – Quando nos apresentam os homens e) Riobaldo e Diadorim, personagens de um dos contos
vistos pelos olhos dos animais, as narrativas em que apare- mais conhecidos do livro, mantêm um romance em meio
cem o burrinho pedrês, do conto homônimo (Sagarana), os a conflitos de jagunços com as forças policiais.
bois de “Conversa de bois” (Sagarana) e a cachorra Baleia
(Vidas secas) produzem um efeito de: As questões de números 09 e 10 referem-se ao texto a seguir.
a) indignação, uma vez que cada um desses animais é morto É um fragmento de A hora e vez de Augusto Matraga, de
por algozes humanos. João Guimarães Rosa:
b) infantilização, uma vez que esses animais pensantes são “Então eles trouxeram, uma noite, muito à escondida, o
exclusivos da literatura infantil. padre, que o confessou e conversou com ele, muito tempo,
c) maravilhamento, na medida em que os respectivos narra- dando-lhe conselhos que o faziam chorar.
dores servem-se de sortilégios e de magia para penetrar – Mas será que Deus vai ter pena de mim, com tanta
na mente desses animais. ruindade que fiz, e tendo nas costas tanto pecado mortal?
d) estranhamento, pois nos fazem enxergar de um ponto – Tem, meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não
de vista inusitado o que antes parecia natural e familiar. tira o pé do estribo de arrependido nenhum...
e) inverossimilhança, pois não conseguem dar credibilidade E por aí afora foi, com um sermão comprido, que acabou
a esses animais dotados de interioridade. depondo o doente num desvencido torpor.
40 Extensivo Terceirão
Aula 25
– Eu acho boa essa ideia de se mudar para longe, d) O tema do arrependimento verdadeiro, de que trata o
meu filho. Você não deve pensar mais na mulher, nem em padre, é expresso de modo muito abstrato, tal como
vinganças. Entregue para Deus e faça penitência. Sua vida foi atestam as frases “o Reino do Céu ninguém tira de sua
entortada no verde, mas não fique triste, de modo nenhum, algibeira” e “esta vida é um dia de capina com sol quente”.
porque a tristeza é o aboio de chamar o demônio, e o Reino
do Céu, que é o que vale, ninguém tira de sua algibeira, desde e) Da conversa com o padre, Matraga retirará força e
que você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia inspiração para seguir vivendo, certo de que, apesar de
a nenhum coração contrito! “entortada no verde”, sua vida se acertaria e ele iria para
– Fé eu tenho, fé eu peço, padre... o céu, nem que fosse “a porrete”.
– Você nunca trabalhou, não é? [...] Reze e trabalhe,
fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol Aprofundamento
quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa.
E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada 25.11. Assinale a alternativa correta sobre os contos de
um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua. Sagarana, de Guimarães Rosa.
a) Nos contos O burrinho pedrês e A hora e vez de Augusto
25.09. (PUCCAMP – SP) – Reflita sobre as seguintes afir-
mações: Matraga, os burros desempenham papeis semelhantes,
I. Tal como ocorre nos demais contos de Sagarana, João pois ambos são montados por personagens que escapam
Guimarães Rosa centraliza neste a prática popular da fé da morte.
cristã, encarnada aqui num Augusto Matraga renascido, b) Em Sarapalha e em Duelo, Dionora e Silivana abandonam
que viverá o resto de sua vida num trabalho humilde e os maridos para viverem com seus amantes.
penitente, para além do heroísmo e da violência.
c) Como Amâncio de Casa de pensão, Lalino de A volta do
II. Neste conto, como todos de Sagarana, a linguagem
marido pródigo imagina o Rio de Janeiro como a cidade
do autor promove uma autêntica fusão entre o que é
abstrato e o que é concreto, tal como aqui ocorre na fala das festas, dos salões e das mulheres bonitas, fáceis de
do padre, em que os valores religiosos se enraízam no possuir e pervertidas.
cotidiano sertanejo. d) Os versos: Tira a barca da barreira,/ deixa Maria passar: /
III. A “hora e vez” de que fala o padre vai-se concretizar, Maria é feiticeira./ Ela passa sem molhar, formam a epí-
neste conto, num ato de fé e de bravura do protagonista grafe do conto São Marcos.
contra um inimigo poderoso, o que lembra o clímax de
e) As digressões que aparecem no conto Conversa de bois
dois outros contos do livro: São Marcos e Corpo fechado.
e em outros da obra Sagarana têm um papel apenas
É correto afirmar que:
figurativo na estrutura da narrativa sem importância para
a) apenas II é verdadeira; se entender o espírito da obra.
b) apenas III é verdadeira;
c) apenas I e III são verdadeiras; 25.12. Leia os dois trechos do conto de Guimarães Rosa,
d) apenas II e III são verdadeiras; A hora e vez de Augusto Matraga, em ‘Sagarana’.
e) I, II e III são verdadeiras. “E, páginas adiante, o padre se portou ainda mais
excelentemente, porque era mesmo uma brava criatura.
25.10. (PUCCAMP) – Considerando o excerto dado, identi-
Tanto assim, que, na despedida, insistiu:
fique a afirmação incorreta.
a) A fala do padre é profética, pois é “um pedaço bom de – Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é
alegria” o que Matraga viverá em seus instantes finais, um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito
cheio da “graça de Deus, que ele não regateia a nenhum a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito
coração contrito”. pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua
vez: você há de ter a sua.”
b) Socorrido por um casal de pretos e escapando por milagre
à morte, Matraga seguirá todos os conselhos do padre, “Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos,
trabalhando, penitenciando-se, rezando, até que chega o com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, e de
momento em que emprega sua força a serviço de Deus seu rosto subia um sério contentamento.
e em defesa dos mais fracos. Daí, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora
c) A frase “Deus mede a espora pela rédea e não tira o estribo sussurrando, sumido:
do pé de arrependido nenhum” revela a identificação da – Põe a bênção na minha filha..., seja lá onde for que
linguagem do padre com a dos sertanejos – tal como nesta ela esteja... E, Dionóra... Fala com a Dionóra que está tudo
se inspirou o autor para criar o seu estilo inconfundível. em ordem! Depois morreu.”
Português D 41
Assinale a alternativa que interpreta corretamente os trechos. 5. Em Minha gente, sob a evocação, em epígrafe, de uma
a) O segundo excerto, de certo modo, contradiz os ditos do Maria feiticeira, e, no correr da narrativa, de Circe, feiticeira
padre apresentados no primeiro. da mitologia clássica, temos uma história que se fecha,
melancólica, com uma afirmação de que todo fim é bom.
b) Ao salvar inocentes da sanha vingativa de Joãozinho
Está correto, apenas o que se afirma em
Bem-Bem, Nhô Augusto encontra também a redenção
final, obtida com seu trabalho, sua reza e a fé de que teria a) 1, 2 e 3.
sua hora e vez. Matraga, como Cristo, dá a vida pelos seus b) 1, 2, 3 e 4.
semelhantes.
c) 2, 3 e 4.
c) “A hora e a vez” de Nhô Augusto relacionam-se ao único
d) 1,2 e 4.
encontro que ele tem com outro personagem, Joãozinho
Bem-Bem. Nesse momento, Nhô Augusto precisa realizar e) 2 e 4.
uma escolha. 25.15. Sobre os contos de Sagarana é incorreto afirmar:
d) No duelo fatal, os conceitos de bem e mal são confirma- a) A volta do marido pródigo demonstra, no comportamen-
dos, pois o “mau” Augusto Estêves e o “bom” Joãozinho to do protagonista, o poder criador da palavra, dimensão
Bem-Bem envolvem-se em uma ação que supera o da linguagem tão apreciada por Guimarães Rosa.
maniqueísmo: o primeiro faz o bem à família cometendo b) Tanto em Corpo fechado quanto em Minha gente o es-
assassinato, enquanto o segundo, ao assassinar o prota- paço é variado, deslocando-se a ação de um lugar para
gonista, dá-lhe sua redenção. outro.
e) Segundo a narrativa, “a hora e vez” do protagonista são c) Em Duelo e Sarapalha figuram personagens femininas
asseguradas pela reza e pelo trabalho. cujos traços não aparecem nas mulheres de outros contos.
25.13. (ITA – SP) – O conto “A hora e vez de Augusto Ma- d) O burrinho pedrês, Conversa de bois e São Marcos traba-
traga”, de Guimarães Rosa, faz parte do livro Sagarana, de lham com a mudança de narradores.
1946. Nesse texto, o personagem central vive aquilo que e) A hora e a vez de Augusto Matraga não apresenta a
aparentemente é um processo de conversão cristã, que se inserção de casos ou narrativas secundárias.
inicia quando ele
25.16. Leia os excertos a seguir, retirados de Sagarana, de
a) é socorrido por um casal pobre, após ele ter sido vítima Guimarães Rosa, e analise o que se afirma a respeito deles.
de uma emboscada, na qual quase morreu.
I.
b) conversa com um padre, que lhe diz que o que aconteceu “– P’ra que é que há-de haver mulher no mundo, meu
com ele foi um sinal de Deus para que ele desse outra Deus?!...
direção a sua vida.
– Hein?!...
c) vive cerca de sete anos no povoado do Tombador, levando
Primo Argemiro estremece. Tinha pensado alto. E agora
uma vida de trabalho e de oração.
Primo Ribeiro está espiando para ele, meio espantado, [...].
d) resiste ao convite de Joãozinho Bem-Bem para entrar no Há muito que jogou para um lado o cobertor e voltou-
bando de cangaceiros, tentação essa a que não foi fácil resistir. se a sentar no cocho. Passado o frio, passada a tremura,
e) enfrenta, sozinho, o bando de Joãozinho Bem-Bem, que vem a hora de Primo Ribeiro variar. Primo Argemiro não
estava prestes a cometer uma atrocidade contra uma gosta. Não se habitua àquilo. Ele, nos seus acessos, não
família de inocentes. varia nunca: não tem licença: se delirar pode revelar seu
segredo.”
25.14. Em João Guimarães Rosa, a luta entre o bem e o mal O segredo a que se refere Primo Argemiro, no conto
surge em diversas narrativas. Em Sagarana, esse tema se Sarapalha, é o amor que ele sentia pela mulher do Primo
entrelaça a outros temas em diversos contos. Com relação às Ribeiro.
narrativas dessa obra, avalie as seguintes afirmações.
II.
1. Em A hora e vez de Augusto Matraga, o bem e o mal se
enfrentam, e as personagens que os simbolizam morrem “– Escuta, mano velho...
juntas, numa representação de sua indissolúvel proximidade. Seu Joãozinho Bem-Bem parou em frente a Nhô Augusto,
e continuou:
2. Em Sarapalha, o tema da luta entre o bem e o mal entre-
meia o triângulo amoroso familiar. – ... eu gostei da sua pessoa, em-desde a primeira hora,
quando o senhor caminhou para mim, na rua daquele
3. Em Duelo e em Corpo fechado, o tema da luta entre o
lugarejo... Já lhe disse da outra vez, na sua casa, mas eu
bem e o mal não está configurado.
sei que já deve de ter sido brigador de ofício. Olha: eu,
4. Em Conversa de bois, Agenor Soronho é identificado com até de longe, com os olhos fechados, o senhor não me
o demônio, representando o mal diante de Tiãozinho, engana: juro como não há outro homem p’ra ser mais sem
apresentado como o melhor menino “candieiro”. medo e disposto para tudo. É só o senhor mesmo querer.
42 Extensivo Terceirão
Aula 25
– Sou um pobre pecador, seu Joãozinho Bem-Bem...” Considerando a trajetória do protagonista de “A hora e vez
A cena que se segue ao diálogo culmina em uma briga de Augusto Matraga”, é correto afirmar que o fragmento em
de faca entre os dois jagunços, sendo que Augusto Matraga questão refere-se ao período em que:
acaba morto, enquanto Bem-Bem cumpre com sua vingança, a) Augusto Estêves, após ser abandonado por sua mulher e
no conto A hora e a vez de Augusto Matraga. sua filha, finge-se de louco para os moradores do arraial
do Murici enquanto, na verdade, planeja sua vingança
III. contra Major Consilva, seu inimigo.
“Bem, quinta-feira de-manhã, Turíbio Todo teve por ter- b) Nhô Augusto, arrependido de sua vida passada, vive no lu-
minados os preparativos, e foi tocaiar a casa de Cassiano garejo de Tombador acompanhado de Quitéria e Serapião,
Gomes. Viu-o pela janela, dando as costas para a rua. trabalhando arduamente e ajudando os necessitados da
Turíbio não era mau atirador; baleou o outro bem na nuca. região.
E correu em casa, onde o cavalo o esperava na estaca, c) Augusto Matraga, ao encontrar Joãozinho BemBem e
arreado, almoçado e descansadão. seu bando de matadores, começa a recobrar a memória
Nem por sonhos pensou em exterminar a esposa (Dona perdida após ser espancado pelos capangas do Major
Silivana tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta), Consilva.
porque era um cavalheiro, incapaz da covardia de mal-
d) Nhô Augusto, explorado pelo casal que o havia acolhido
tratar uma senhora, e porque basta, de sobra, o sangue
e influenciado pelo discurso do padre, prepara-se secre-
de uma criatura, para lavar, enxaguar e enxugar a honra
tamente para o confronto com Joãozinho Bem-Bem e
mais exigente.”
seu bando.
O conto Duelo narra o périplo de Turíbio, o marido
traído, até conseguir encontrar o ex-amante da esposa e 25.18. João Guimarães Rosa escreveu em 1946 o livro Sagara-
exterminá-lo a tiro, como a cena lida descreve. na, composto de nove contos. Indique, nas alternativas abaixo,
aquela cujo conteúdo não confere com o conto referido.
Está(ão) correta(s) a(s) afirmativa(s) a) Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da
a) II, apenas. colina, onde a luz andava à roda, debaixo do angelim
b) I e II, apenas. verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca.
E, ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três
c) I, apenas. qualidades de azul. – São Marcos.
d) I e III, apenas. b) De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando
e) I, II e III. de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros,
estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro, mais
25.17. (PUC –SP) – Leia o fragmento a seguir, de “A hora baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes,
e vez de Augusto Matraga”, narrativa que integra Sagarana, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um
de João Guimarães Rosa. coro. (...) O sol ia subindo, por cima do voo verde das aves
O casal de pretos, que moravam junto com ele, era itinerantes. Do outro lado da cerca, passou uma rapariga.
quem mandava e desmandava na casa, não trabalhando Bonita! Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo do céu
um nada e vivendo no estadão1. Mas, ele, tinham-no visto devia de ser mulher. – A hora e vez de Augusto Matraga.
mourejar2 até dentro da noite de Deus, quando havia luar c) Lalino Salatiel vem bamboleando, sorridente. Blusa cáqui,
claro. Nos domingos, tinha o seu gosto de tomar descanso: com bolsinhos, lenço vermelho no pescoço, chapelão, polai-
batendo mato, o dia inteiro, sem sossego, sem espingarda nas, e, no peito, um distintivo, não se sabe bem de quê. Tira o
nenhuma e nem nenhuma arma para caçar; e, de tardinha, chapelão: cabelos pretíssimos, com as ondas refulgindo de
fazendo parte com as velhas corocas que rezavam o terço ou brilhantina borora. – A volta do marido pródigo.
os meses dos santos. Mas fugia às léguas de viola ou sanfo- d) – Nós viemos aconselhar o Mané, p’ra ele não fazer ne-
na, ou de qualquer outra qualidade de música que escuma nhuma doideira... O senhor que ele deve de entregar p’ra
tristezas no coração. Quase sempre estava conversando Deus e ficar quieto? A moça gosta dele... A gente esquece
sozinho, e isso também era de maluco, diziam; porque eles o que se deu, e eles casam... Faz de conta que foi coisa
ignoravam que o que fazia era apenas repetir, sempre que que nem doença... É que nem a gente casar com mulher
achava preciso, a fala final do padre: — “Cada um tem a sua viúva... – Corpo fechado.
hora e a sua vez: você há-de ter a sua”. — E era só. E assim
e) As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e tou-
se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho
ros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa
deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma,
embolada, com atritos de couros, estralos de guampas,
porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso
estrondos e baques, e o berro queixoso do gado Junquei-
acontecido, não senhor. ra, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos
Vocabulário: 1 estadão: luxo. 2 mourejar: trabalhar duro. campos, querência dos pastos de lá do sertão... – Conversa
ROSA, João Guimarães. Ficção completa. Vol 1. p. 307. de bois.
Português D 43
25.19. (UEL – PR) – A rememoração é um procedimento 25.20. Texto
constante na obra de Guimarães Rosa. Em Grande sertão:
veredas, por exemplo, Riobaldo, o protagonista-narrador, De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando
em situação de diálogo com um interlocutor que não se de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros,
manifesta na narrativa, rememora seu passado de jagunço. estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro, mais
As lembranças jorram, manifestando-se de maneira saudosa. baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes,
De acordo com este comentário, assinale a alternativa correta incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um
quanto ao livro de contos Sagarana, de Guimarães Rosa. coro. (...) O sol ia subindo, por cima do voo verde das aves
a) Em Sarapalha, Primo Argemiro e Primo Ribeiro conver- itinerantes. Do outro lado da cerca, passou uma rapariga.
sam para passar o tempo. O passado vem à tona e acaba Bonita! Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo do céu
causando desentendimento entre os parceiros. As lem- devia de ser mulher.
branças são impregnadas de afeto.
O trecho acima integra a obra Sagarana, de Guimarães Rosa.
b) Em A hora e vez de Augusto Matraga, o narrador-prota-
Indique, nas alternativas abaixo, o nome do conto que con-
gonista conta a seu interlocutor a história de sua vida:
sua passagem de coronel irresponsável a penitente pre- tém o referido trecho.
ocupado com o bem-estar da comunidade. a) Conversa de bois, história de sofrimento e maus tratos
c) Em O burrinho pedrês, depara-se o leitor com um narra- contra um menino que traz reflexões dos animais sobre
dor a dialogar com um interlocutor “mudo”. Conta a este a condição humana.
interlocutor a história de Sete-de-Ouros, burrinho já ve- b) Corpo Fechado, história de valentões e de espertos, de
lho que consegue realizar seu maior feito pouco antes violência e de mágica, protagonizado por Manuel Fulô.
de sua morte. c) São Marcos, que relata a desavença entre o narrador e
d) Em Sarapalha, Primo Argemiro rememora o passado e um feiticeiro que o deixa cego por força de uma bru-
Primo Ribeiro não. Este último, marido traído, não quer xaria.
posicionar-se frente ao vivido, preferindo falar de sua d) Minha Gente, em que se relata a situação vivida por um
nova aventura amorosa. moço da cidade que vai passar uma temporada no cam-
e) Em A hora e vez de Augusto Matraga, quem conta a po e vive amores desencontrados.
história é um narrador em terceira pessoa. Reproduz o e) A hora e vez de Augusto Matraga, que narra a violência
relato de Dionóra, esposa do protagonista, que, saudosa como instrumento de redenção, materializada na morte
do marido morto, reconstrói sua vida. de Joãozinho Bem-Bem e do ex-jagunço protagonista.
Gabarito
25.07. a 25.14. d
25.01. b 25.08. c 25.15. e
25.02. a 25.09. a 25.16. c
25.03. e 25.10. d 25.17. b
25.04. c 25.11. c 25.18. e
25.05. d 25.12. b 25.19. a
25.06. d 25.13. b 25.20. e
44 Extensivo Terceirão
Português
Aula Aula 26 6D 1B
26 Nove Noites I
Bernardo Carvalho
Português D 45
combinação de memória e imaginação – como todo Morreu afogado no rio Tocantins, em 1946, durante
romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou uma tempestade, quando tentava salvar a neta peque-
menos direta”. na. Deixou sete filhos, três homens e quatro mulheres.
Na noite de 2 de agosto de 1939, um jovem e pro- Seu corpo, levado pelo rio, foi achado e enterrado em
missor antropólogo americano, Buell Quain, se matou, algum lugar rio abaixo, que ninguém sabe onde é. Foi
aos 27 anos, de forma violenta, enquanto voltava para enterrado e esquecido no meio do mato como Buell
a civilização, vindo de uma aldeia indígena no interior Quain.
do Brasil. O caso se tornou um tabu para a antropologia Tudo que ele relata, real ou imaginário, a respeito
brasileira, foi logo esquecido e permaneceu em grande do antropólogo baseia-se nas conversas que teve em
parte desconhecido do público. nove noites que passou com ele, conversando e princi-
Sessenta e dois anos depois, ao tomar conhecimento palmente ouvindo seus desabafos. Foram nove noites
da história por acaso, num artigo de jornal, o narrador deste que compreendem um intervalo de cinco meses, desde
livro é levado a investigar de maneira obsessiva e inexplica- o dia em que os dois se conheceram até à última viagem
da os fatos, para elucidar o suicídio do antropólogo. do pesquisador à aldeia Krahô.Trata-se de uma carta
Em sua busca obstinada pelas cartas do morto ou alusiva e sinuosa, remetendo a fatos não conhecidos
pelo testamento de um engenheiro que ficara amigo ou simplesmente imaginados: “O que agora lhe conto
do antropólogo nos seus últimos meses de vida, o é a combinação do que ele me contou e da minha
narrador-repórter é guiado por razões pessoais que não imaginação ao longo de nove noites”.
serão reveladas até o final do romance, mas que dizem Através do olhar ou da imaginação do narrador-
respeito à sua experiência de criança na selva, à história -epistolar, tem-se explicitada a intimidade do antropó-
e à morte de seu próprio pai. logo, bem como um efeito de cumplicidade entre esse
O personagem narrador, Manoel Perna, conviveu narrador e o destinatário ausente.
com Quain nove noites durante sua estada no Brasil
e narra numa carta-testamento as conversas que
tiveram numa escrita em itálico no corpo do romance.
A Carta-Testamento de Manuel
Tal estratégia compõe um gênero híbrido que aponta Perna
para a autoficção e a metaficção (a história da história),
criando dados falsos a partir de pistas verdadeiras da 1. (Manoel) “Isto é para quando você vier. É preciso
vida do antropólogo, fundindo romance-reportagem estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar
numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais
com romance policial.
os sentidos que o trouxeram até aqui...”
A história é contada em dois tempos, na tribo
dos índios krahô (interior do sertão brasileiro) e na O narrador-personagem afirma que o antropólogo
combinação progressiva entre a busca pelo testamento americano Buell Quain, seu amigo, suicidou-se na noite
do engenheiro e a pesquisa que o narrador vai fazendo de 2 de agosto de 1939, aos vinte sete anos, de forma
em arquivos, atrás das cartas do antropólogo e dos que violenta e assustadora, cortando-se e enforcando-se,
o conheceram na época. sem explicações aparentes. Diante do horror e do
sangue, os dois índios que o acompanhavam na sua
A história de Buell Quain revela as contradições e os
última jornada de volta da aldeia para Carolina fugiram
desejos de um homem sozinho numa terra estranha,
apavorados.
confrontado com os seus próprios limites e com a
alteridade mais absoluta. Em relatos, para evitar um inquérito sobre a morte/
suicídio, Quain foi chamado de infeliz e tresloucado. Era,
Enredo também, incrédulo e desconfiado.
O narrador-personagem faz um relato sobre o dia da
Manoel Perna chegada do antropólogo à cidade (chamada de morta
Manoel Perna é um sertanejo, engenheiro de Caroli- nas cartas), em março de 1939. Quando o hidroavião
na, cidade na divisa do Maranhão com o atual Tocantins, da Condor chegou, todos correram para o rio. O ilustre
foi encarregado do posto indígena até três anos após etnólogo foi fotografado ao lado dos índios e do piloto,
a morte de Buell Quain. Muito respeitado e amigo dos num momento extraordinário que foi rapidamente
índios, tornou-se amigo e confidente do americano e esquecido por todos, menos pelo narrador. O etnólogo
autor de uma carta testamento dirigida a um “você” apresentava-se por trás de uma elegância, imprópria
que pode ser o fotógrafo amigo e amante do suicida, ou para o lugar e a ocasião. Usava um chapéu branco, cami-
qualquer pessoa (narrador ou leitor) que venha a ler essa sa branca, bombachas e botas, como se fosse o capitão
carta. de um navio.
46 Extensivo Terceirão
Aula 26
“Ninguém podia prever a desgraça que em menos suspeitasse – nem correr o risco de pedir ao professor
de cinco meses lhe arrancaria a vida.” Pessoa que me traduzisse aquelas linhas.”
Manoel Perna foi apresentado ao etnólogo pelo O professor Pessoa já se dizia etnólogo (apesar de
representante da Condor. Algum tempo depois, os dois ser medíocre e ignorante) estudioso dos Krahô. O
tornaram-se aliados e amigos e, Manoel, no primeiro en- narrador também relata que havia guardado a oitava
contro, já via nos olhos de Buell o desespero que tentava carta, porque o destinatário não era ninguém da família
dissimular e nem sempre conseguia. O silêncio do serta- do Dr. Buell, nem outro antropólogo ou missionário.
nejo era a prova de sua amizade que ia conquistando o Desconfiado do conteúdo dessa carta ele jurou que
visitante. Manuel conviveu com os índios desde criança ninguém além do destinatário (o “você” oculto) poria os
e os apreciava muito, mesmo sendo considerado, por olhos nela.
eles, um pouco louco, como todos os brancos. “Faz anos que o espero, mas já não posso me arriscar
“Só mais tarde é que entenderia as circunstâncias ou desafiar a morte. Este mês começam as chuvas. Ama-
e as vantagens de ter um aliado em mim. Só então nhã pego a balsa de volta para Carolina, mas antes deixo
aceitaria a minha amizade, à falta de outra. Posso ser um este testamento para quando você vier.”
humilde sertanejo, amigo dos índios, mas tive educação Manuel Perna morreria ao fazer essa travessia.
e não sou tolo.”
Nenhum fato abalou mais o narrador do que a morte
de Buell, nem sua destituição do cargo de encarregado O narrador jornalista
do posto indígena, que havia conquistado com a ajuda O autor-narrador, provavelmente um jornalista,
do Dr. Buell, nem o massacre da aldeia de Cabeceira levanta dados documentais acerca de um personagem
Grossa, ordenado pelos fazendeiros, um ano após o sui- verídico, o antropólogo norte-americano Buell Quain,
cídio de Quain. interessado em etnologia, que provavelmente se suici-
“Dei a ele o mesmo que dei aos índios. A mesma dara aos 27 anos, em 1939, em meio a uma expedição
amizade. Porque, como os índios, ele estava só e desam- no Tocantins entre os índios krahô. Essa pesquisa é
parado. E a despeito do que pensou ou escreveu, não feita 62 anos depois, ou seja, no presente histórico da
passava de um menino. Podia ser meu filho.” publicação do livro.
Uma semana depois da tragédia, no final da tarde do Para isso, ele não poupa esforços na busca de pistas
dia 9 de agosto de 1939, cinco meses depois que Buell (cartas perdidas, jornais, fotos e depoimentos de con-
tinha chegado a Carolina, uma comitiva de vinte índios temporâneos) que possam conduzi-lo a um desfecho.
entrou na cidade, trazendo a triste notícia e a bagagem Esse narrador-jornalista visita o Xingu, misturando-se
pessoal do doutor. O narrador, muito emotivo, conferiu com os índios em busca de informações sobre o convívio
os objetos do etnólogo. Entre roupas, sapatos, livros de
do antropólogo com os índios Krahô, e, ainda, viaja para
músicas e uma Bíblia, havia um envelope com fotografias,
os Estados Unidos tentando encontrar algum parente e
com retratos dos negros do Pacífico Sul, e dos Trumai do
mais verdades sobre o suicida. Não existe um desfecho
alto Xingu. Porém, não havia nenhuma foto de família.
para o suicídio de Quain e, diante de tantas informações
Os índios, com medo que pudessem ser incriminados,
levaram todos os pertences do etnólogo para a casa do e relatos, o narrador toma a decisão de transformar todo
sertanejo. O professor Pessoa traduziu uma das cartas, material pesquisado em ficção.
em inglês, deixada pelo suicida e acalmou os índios 2. (Repórter) “Ninguém nunca me perguntou.
garantindo a todos que eles não tinham nenhuma E por isso também nunca precisei responder. Não posso
responsabilidade na trágica ocorrência. dizer que nunca tivesse ouvido falar nele, mas a verdade
Buell deixou sete cartas. Manoel despachou algumas é que não fazia a menor ideia de quem ele era até ler o
para o Rio de Janeiro e para os Estados Unidos, ficou com nome de Buell Quain pela primeira vez num artigo de
a endereçada a ele e com outra endereçada ao destina- jornal... Li várias vezes o mesmo parágrafo e repeti o
tário da carta-testamento, a quem mandou apenas um nome em voz alta para me certificar de que não estava
bilhete em código. Manoel esperou seis anos pelo mis- sonhando, até entender – ou confirmar, já não sei – que
terioso destinatário que não apareceu, resolveu então o tinha ouvido antes.”
destruir a carta, ainda fechada, e escreveu o testamento. A antropóloga que havia escrito o artigo foi quem
“Desde então eu o esperei, seja você quem for. Sabia deu as primeiras pistas que ajudaram o narrador a
que viria em busca do que era seu, a carta que ele lhe montar um quebra-cabeça, na tentativa de investigar
escrevera antes de se matar e que, por segurança, me a biografia e o suicídio daquele antropólogo. Os papéis
desculpe, guardei comigo, desconfiado, já que não estavam espalhados em arquivos no Brasil e nos Estados
podia compreender o que ali estava escrito – embora Unidos.
Português D 47
À época da morte de Quain o mundo preparava- tinha atravessado os Estados Unidos de carro. Em 1929,
-se para a guerra, Einstein alertava Roosevelt sobre a antes de entrar para a universidade, passou seis meses
possível criação da bomba atômica. na Europa e no Oriente Médio. Nos anos seguintes, du-
Buel não viu a guerra nem a bomba. Mas lera sobre rante as férias esteve na Rússia, como marinheiro, num
os “fenômenos atômicos” vapor para Xangai. Em 1933 formou-se em zoologia,
em 1935, estava em Nova York, e no ano seguinte, em
“Tinha um fascínio quase adolescente pela ciência
Fiji.
e pela tecnologia. Não podia ter pensado que quanto
mais o homem tenta escapar da morte mais se apro- Quain desembarcou no Rio de Janeiro às vésperas
xima da autodestruição, não podia lhe passar pela do Carnaval, em fevereiro de 1938. Foi morar na Lapa,
cabeça que talvez fosse esse o desígnio oculto e trai- reduto dos vícios, da malandragem e da prostituição.
çoeiro da ciência, sua contrapartida, embora muito do Morreu um ano e cinco meses depois. Alguns colegas
que observou entre os índios e associou por intuição da Universidade de Columbia, em Nova York, não
à própria experiência pudesse tê-lo levado a alguma ficaram surpresos e chegaram a especular que a sua
coisa muito próxima dessa conclusão”. vinda ao Brasil já fizesse parte de um processo suicida
Antes do suicídio, Buell escreveu aos prantos deliberado.
pelo menos sete cartas: Uma era endereçada a Ruth Ao ouvir falar dos inacessíveis índios Trumai, do
Benedict, professora da Universidade de Columbia, alto Xingu, que estavam em vias de extinção, decidiu
em Nova Iorque, orientadora, amiga e admiradora de encarar o desafio.
Quain, que em seus cursos dava preferência e prote- Sua expedição solitária aos Trumai ao longo de
gia estudantes rebeldes e desajustados em relação 1938, sofreu percalços e imprevistos até ser interrom-
ao padrão da cultura americana. Esses jovens “fora da pida pelos órgãos Governamentais do Estado Novo,
curva” eram atraídos por um pensamento liberal que golpe que abalou seu já instável estado de espírito.
se propunha a cortar cientificamente as raízes dos Seu retorno ao Rio, em fevereiro de 1939, coincidiu
preconceitos sociais. Com o fundo deixado por Quain com a chegada de dois colegas ao Brasil: Charles
e com a ajuda da mãe do rapaz, publicou alguns livros Wagley, que vinha estudar os Tapirapé, e William
escritos por ele. Lipkind, antropólogo estudioso dos Karajá. Também
Outra carta foi para Heloísa Alberto Torres, diretora estava de passagem na cidade Ruth Landes, jovem
do Museu Nacional, senhora ativa e poderosa, gorda e antropóloga, que já estava no país com o objetivo
muito pálida, com os cabelos tingidos de azul, vinha de estudar os negros e o candomblé da Bahia. Quain
de uma família da alta burguesia fluminense e sem- e os dois colegas eram os alunos prediletos de Ruth
pre conviveu com o poder, mesmo durante o Estado Benedict. Ao receber a notícia do suicídio do querido
Novo. Era a principal responsável pelos quatro jovens aluno, Benedict escreveu uma carta dolorosa à mãe
antropólogos americanos que na época trabalhavam dele, Fannie Quain, que assumiu a missão de manter
no Brasil: Buell Quain, Ruth Landes, Charles Wagley e viva a memória do filho, publicando seus escritos.
William Lipkind. Tornou-se uma mulher aflita e mostrava uma estra-
A carta para Manoel Perna, seu amigo, dava nha ansiedade, como se, mais do que querer saber a
instruções para que ele distribuísse a correspondência. razão do suicídio do filho, temesse que alguém já a
Na carta para o delegado de polícia da cidade Buell conhecesse ou viesse a descobri-la.
Quain isentava os índios de qualquer responsabilidade Na carta de despedida a Heloísa Alberto Torres,
sobre sua morte. Outras cartas a que o narrador não Buell dizia a ela que estava morrendo de uma doença
teve acesso foram endereçadas ao pai Dr. Eric P. Quain, contagiosa avisava que a carta devia ser desinfetada.
médico e cirurgião nascido na Suécia, recém-divorciado Entretanto, segundo os dois índios, João e Ismael, que
de Fannie Dunn Quain, também médica, que tinha acompanharam o doutor, guiando-o ao sair da aldeia
trinta e oito anos e uma filha, Marion, quando nasceu no dia 31 de julho, ele não mostrava nenhum sintoma
Buell; ao missionário americano Thomas Young que, de doença física; sua prostração era psicológica e já se
com a mulher, administrara a missão em Paunay, em prolongava, desde que recebera a última correspon-
Mato Grosso; ao cunhado Charles C. Kaiser, marido de dência de casa.
Marion, sua irmã.
Os pais de Buell Quain se separaram pouco antes da
Buell viajou pelo mundo todo, talvez procurando morte do filho. Buell, em carta a dona Heloísa, fala de
um lugar que nunca encontrou. “questões familiares” que o estariam obrigando a voltar
Ao terminar o ginásio, aos dezesseis anos, Buell já para Nova York.
48 Extensivo Terceirão
Aula 26
3. (Manoel) “Isto é para quando você vier. Foram Antes de sair de Carolina para a aldeia Krahô, chama-
apenas nove noites. Se agi como se ignorasse os da Cabeceira Grossa, Quain escreveu várias cartas pois
motivos que o levaram ao suicídio foi para evitar o pretendia ficar três meses isolado na aldeia. O narrador
inquérito.” leu três dessas cartas. Uma delas era destinada a Maria
Júlia Porchet, com quem, segundo a filha, o etnólogo,
Depois de passar aproximadamente dois meses um tipo muito bonito, alto, moreno, diferente do ame-
na aldeia dos Krahô, o antropólogo voltou a Carolina, ricano normal, teria tido um “flerte”, no que o narrador
principalmente porque não queria passar o aniversá- não acredita. A carta para a amiga Ruth Landes é mais
rio (31/05) sozinho entre os índios. Nos dias que passou verdadeira, honesta e sarcástica, debocha de Carolina,
na cidade enviara várias correspondências, inclusive uma cidade tediosa, cheia de analfabetos e pseudoin-
para o amigo fotógrafo. Ao voltar para a aldeia pediu telectuais, pomposamente ridículos. Diz ainda para a
a Manoel Perna que lhe enviasse imediatamente por amiga que os índios krahô são pavorosamente obtusos.
um portador a resposta que tanto esperava. Entre as “Há um monte de coisas sobre os brasileiros e as ci-
cartas que enviou pelo próprio irmão a Quain, estava dades brasileiras que me dão vontade de tirar a roupa e
a que seria sua sentença de morte. Pelo nome do re- me masturbar em praça pública. Mas tento me controlar.
metente, Manoel reconheceu o destinatário da carta Seriamente, não dá para ser honesto nem mesmo com
de despedida que o suicida escreveu antes de morrer e pessoas do tipo relativamente sofisticado, como dona
Júlia. E estou furioso com você por ter falado tanto de
que o sertanejo resolveu esconder para que não caísse
mim para ela.
nas mãos de ninguém.
O que Buell Quain queria tanto esconder?”
Segundo os índios, o americano, depois de receber
aquela correspondência, foi tomado por um profundo 5. (Repórter) “O professor Luiz de Castro Faria me
abatimento e decidiu voltar para Nova York. recebeu em Niterói no final da tarde. Eu voltava dos arqui-
“Para uns, disse que seu pai tinha abandonado a vos de Heloísa Alberto Torres em Itaboraí; fazia um calor
sua mãe, idosa e sem recursos – mas, se já havia me de matar. Castro Faria é uma das últimas pessoas vivas
falado daquilo da última vez que estivera em Carolina, que conheceram Quain em sua passagem pelo Brasil.”
não podia ser essa a má notícia que o deixara naquele A foto de pesquisadores que conheceram e convive-
estado. Para outros, disse que a mulher o traíra com o ram com o suicida, impressiona o narrador que tenta ler
irmão dele – mas eu sabia muito bem que não havia algo nos olhos de alguns daqueles sete fotografados.
irmão nenhum.” Castro Faria relatou que nenhum dos conhecidos e
colegas ficou abalado com a morte de Quain; só Heloísa,
Para Manoel Perna, dona Heloísa e Ruth Benedict responsável pela pesquisa dele. Numa carta ao delegado
falou de uma doença incurável e infecciosa. de polícia de Carolina ela chama de vergonha nacional
Durante a viagem para Carolina queimou as cartas a demora em enviarem o material deixado por Quain,
e, chorando muito, escreveu as que deixou, antes de se para ela poder prestar contas ao governo brasileiro e à
suicidar no meio da noite. universidade americana.
“O homem que chegou naquela tarde modorrenta Castro Faria relembra a estranha obsessão de Quain
de março era um homem atormentado. Na véspera em esconder que tinha posses. Morava e vestia-se sim-
plesmente, mas pagava jantares caríssimos aos conhe-
de sua partida para a aldeia, ele estava apreensivo.
cidos e amigos. Chegou a passar necessidade, veio da
E já não sei se era por não saber o que o esperava ou aldeia, uma vez, sem sapatos, sentia-se tímido por sua
justamente por saber. Às vezes, me pergunto em que triste figura. Depois de sua morte, todas as suas posses
momento ele passou a imaginar o que ninguém ali passaram para um fundo de pesquisa administrado por
seria capaz de imaginar. E até que ponto não teria sua orientadora e amiga, Ruth Benedict.
vindo para morrer.” Castro Faria diz ao repórter narrador:
“Eu o encontrei a bordo de um barco que fazia a
4. (Repórter) “Ninguém nunca me perguntou, e por viagem de Corumbá a Cuiabá. Registrei assim no meu
isso também não precisei responder. Todo mundo quer diário: Etnólogo a bordo.” Buell Quain estava indo de
Porto Esperança a Cuiabá, de onde pretendia chegar
saber o que sabem os suicidas. No início, deixei-me levar
aos Trumai. Em Cuiabá, para espanto de Castro Faria, o
pela suposição fácil de que aquela só podia ter sido uma jovem etnólogo americano ajudou a descarregar um
morte passional e concentrei minha busca nesses vestí- caminhão com a bagabem de Lévi-Strauss, o que apenas
gios. Devia haver outra pessoa envolvida. Ninguém pode reforçou na cabeça do brasileiro a ideia de que Buell
estar totalmente só no mundo. Tinha que haver uma carta tinha “a preocupação constante de demonstrar que não
em que ele revelasse os seus desejos e sentimentos”. era ninguém, como se fosse só um serviçal”.
Português D 49
O repórter insiste com Castro Faria para saber se “O pai do chefe da aldeia para onde estou indo era um
Quain era casado. Segundo Castro Faria, talvez o etnó- escravo fugitivo. Todos os dentes visíveis da arcada supe-
logo não fosse casado, porque do contrário teria levado rior são limados de ambos os lados. Esse corte dos dentes
a mulher consigo para as aldeias, pois certas áreas da que você havia mencionado como uma característica dos
cultura indígena não estavam abertas aos homens. negros também é um sintoma de sífilis congênita...
Revelou também que havia comentários de que o Você vê um caso ou outro entre os brasileiros, de vez
etnólogo era muito instável emocionalmente, que era em quando...”
um musicólogo, pianista. No livro que escrevera sobre as O narrador acha verossímil o interesse da amiga por
ilhas Fiji falava de música e dança. traços raciais dos negros, mas estranha a perturbação do
Buell afirma ter sido influenciado “pelo contato com etnólogo ao associar esses traços com a doença; parece
Lévi-Strauss” ao produzir o relatório sobre os índios que se tivesse prestado mais atenção a esses detalhes,
Krahô. Quain e Lévi-Strauss, ambos muito reservados poderia ter evitado alguma coisa.
e retraídos logo simpatizaram um com o outro e passa- “Ele me disse que tinha andado pelo mundo todo,
ram noites conversando no hotel, em Cuiabá, ocasião não tinha mais nada para ver. Era uma pessoa soli-
em que o jovem americano teria revelado a Strauss o tária. Era muito fechado. Essa expressão de alguém
temor de haver contraído sífilis em consequência de que já tinha visto tudo no mundo era realmente de
uma aventura casual com uma enfermeira, durante o quem já não via nenhum interesse de estar presente.
Carnaval no Rio. O convívio dele era muito reduzido. Acho que não
Quase um ano depois, já de partida de Carolina para aprendeu português, nem se interessava pelo Brasil.
a aldeia krahô, Quain escreveu à amiga Ruth Landes Aliás, nunca vi um livro dele. O que ele me disse eu
que tinha convivido com os negros do Harlem e veio ao repito: Castro Faria, eu não tenho mais nada a fazer
Brasil pesquisar o candomblé na Bahia: no mundo. Já vi tudo.”
Testes
Assimilação
26.01. A partir da leitura da obra Nove noites, é correto afirmar: 26.03. Com base na leitura de Nove noites, de Bernardo
a) O jornalista que escreve em 2002 não é o único a ocupar Carvalho, é correto afirmar que, nessa obra, a linguagem:
a posição de narrador. a) Reflete uma sequência de reportagens, de fragmentos de
b) O narrador-epistolar apresenta uma escrita fidedigna com boletins policiais e tons históricos.
relação aos depoimentos do antropólogo americano.
b) Manifesta-se através de tempos que coexistem, num
c) O narrador-jornalista é o único personagem que apresenta ritmo contínuo e linear.
um discurso verossímil, isento de suspeitas e de motivos
secretos. c) Apresenta-se em diversas passagens como descritiva e
objetiva.
d) Conforme é revelado no contexto da obra, o etnólogo foi
assassinado pelos índios. d) Afirma-se na teatralidade caricatural que expõe o com-
e) Buell Quain sempre foi uma pessoa equilibrada; a sífilis portamento das personagens.
afetou seu cérebro o que o levou ao suicídio. e) Reflete em padrão culto os diálogos entre etnólogos e
índios.
26.02. Assinale a alternativa que apresenta uma caracte-
rística de Nove noites, de Bernardo Carvalho. 26.04. A partir da leitura da obra Nove noites, de Bernardo
a) A maior parte do enredo da obra está explicitada nas Carvalho, é correto afirmar:
cartas do cientista suicida. a) O acontecimento trágico repercutiu intensamente na
b) Nessa narrativa tudo é ou se torna suspeito; todas as persona- imprensa nacional e estrangeira.
gens aparentam saber mais do que dizem e toda a investigação b) A causa do suicídio do jovem cientista foi o longo afasta-
parece estar fadada a não descobrir e sim a encobrir. mento da mulher e dos dois filhos pequenos.
c) A troca de correspondência entre Manuel Perna e o c) Buell Quain é personagem fictício, criado para dar apa-
jornalista narrador é que esclarece o mistério do suicídio rência de realidade a uma obra totalmente imaginária.
do etnólogo. d) O autor e narrador é etnólogo reconhecido que deixou
d) Esse romance retrata a morte violenta e inexplicável que sofreu estudos antropológicos e documentação importante
o jovem antropólogo Buell Quain entre os índios Trumai.. sobre a língua Krahô, falada por indígenas brasileiros.
e) A mãe de Quain contratou o investigador narrador, para e) O suicídio de Buell Quain é o ponto de partida dessa nar-
desvendar o mistério da morte de seu filho. rativa: um caso trágico, perdido nos anos e na memória.
50 Extensivo Terceirão
Aula 26
26.05. Sobre a narrativa Nove noites, é correto afirmar: 26.09. Avalie as afirmações a seguir, a respeito de Nove noites.
a) O autor evita fazer referências ao momento histórico que 1. O antropólogo se matou na noite de 2 de agosto de 1939,
o Brasil atravessava. ano do início da Segunda Guerra Mundial.
b) É comum nas obras do autor os casos de desaparecimento 2. Quain, nas últimas horas que precederam o seu suicídio,
de pessoas, que acabam sempre sendo solucionados. escreveu aos prantos pelo menos sete cartas.
c) Bernardo Carvalho evita transformar a reportagem sobre 3. Buell Quain chegou ao Brasil em fevereiro de 1938 e
a morte de Buell Quain em obra de ficção. alguns meses depois estava morto.
4. Buell chegou ao Brasil às vésperas do Carnaval de 1938, no
d) Ao procurar traços da identidade de Quain, o narrador-
Rio de Janeiro, e foi morar numa pensão da Lapa, reduto
-jornalista expõe a própria intimidade e os mecanismos
de vícios, malandragem e prostituição.
da criação literária.
Estão corretas apenas as afirmativas
e) O cientista veio para o Brasil fugindo da difamação em
virtude de sua opção sexual. a) 1, 2 e 3; d) 1, 2 e 4;
b) 1, 3 e 4; e) 3 e 4.
Aperfeiçoamento c) 2, 3 e 4;
Português D 51
26.12. A respeito dos personagens de Nove noites, assinale 26.15. Antes de suicidar-se o antropólogo Buell Quain
a alternativa correta. deixou cartas, das quais sete chegaram ao conhecimento do
a) O corpo de Manuel perna, ao contrário do de Buell Quain, narrador sertanejo. Além dessas, há uma que é endereçada
foi encontrado e sepultado pelos filhos. ao destinatário a quem Manoel Perna escreve sua carta-tes-
tamentária, dando conta, entre outras coisas da morte de
b) Ruth Benedict, em seus cursos, dava preferência e protegia
Quain, em 02 de agosto de 1939. O relato do engenheiro
estudantes de famílias humildes e ajustados em relação
sertanejo foi escrito em que ano?
ao padrão moral da cultura americana.
a) 1939 d) 1944
c) Heloísa Alberto Torres era uma senhora ativa e poderosa
que sempre conviveu com o poder, mesmo durante o b) 1940 e) 1945
Estado Novo. c) 1942
d) Dr. Eric P. Quain, pai de Buell, nascido na Escócia, era
26.16. Avalie as seguintes observações sobre a obra,
médico e cirurgião plástico famoso em Miami.
Nove noites de Bernardo Carvalho:
e) Fannie Dunn Quain tinha trinta e oito anos e dois filhos 1. O romance passa ao largo e deixa de lado temas bastante
Charles e Marion, separou-se do marido logo após o explorados atualmente como identidade, alteridade e
suicídio do filho. sexualidade.
26.13. Avalie as alternativas que apresentam comentários 2. A obra estabelece um diálogo interdisciplinar entre
sobre Nove noites. antropologia, história e jornalismo, mostrando-se uma
1. A narrativa apresenta-se como um misto de romance- narrativa de múltiplos interesses.
-reportagem e de romance policial, selada pela obsessão 3. Diferentemente de Relato de um certo oriente, esta
investigativa e pelo suspense do andamento das desco- obra perde a oportunidade de enriquecer seu conteúdo
bertas, que é, em parte, sustentado pelo minucioso bali- ficcional com recursos epistolares e fotográficos.
zamento das datas e das circunstâncias da investigação. 4. A narrativa é uma combinação de memória e imaginação
2. O romance é muitas vezes marcado pela ótica intros- – como todo romance, em maior ou menor grau, de forma
pectiva: o narrador revela o protagonista em meio às mais ou menos direta.
suas fragilidades, aos seus dramas interiores, vivenciando Estão corretas apenas as observações
situações limite, de abandono, de profunda angústia e
a) 1, 2 e 3; d) 2 e 4;
depressão, com intensa carga sentimentalista.
b) 2, 3 e 4; e) 1 e 3.
3. O relato do jornalista, embora caracterizado pela circuns-
pecção, apresenta momentos marcados pelo humor e c) 1,3 e 4;
pela ironia, particularmente nos episódios em que re-
memora a sua infância com o pai aventureiro e naqueles 26.17. Analise os comentários a seguir, a respeito de Nove
passados junto ao Krahô. noites.
1. Boa parte da narrativa pode ser classificada como uma
4. A narrativa estrutura-se, basicamente, em torno de frases
autobiografia do autor, Bernardo Carvalho.
simples e objetivas, sem artificialismos: à linguagem é
dado um tratamento informal, ausente, portanto, de 2. Na parte dos “Agradecimentos”, em que se esclarecem as
experimentações e preciosismos. circunstâncias do texto, o escritor revela: Este é um livro
Estão corretas somente as alternativas de ficção, embora esteja baseado em fatos, experiências
e pessoas reais.
a) 1, 2 e 3;
3. A narrativa organiza-se por 19 capítulos numerados em
b) 1, 3 e 4; cardinal, ora em itálico ora em cursiva romana, marcando
c) 1, 2 e 4; narradores distintos.
d) 2, e 4. 4. Nove noites, sexto romance de Bernardo de Carvalho,
e) 1 e 4. explora o recurso da metaficção, ou seja, a elaboração
de uma ficção fundada em ficções.
26.14. Assinale a alternativa em que há elementos relevan- Assinale a alternativa em que todos os comentários estão
tes da narrativa de Nove noites. corretos.
a) Conflitos conjugais e repressão policial. a) 1, 2 e 3;
b) Repressão política e erotismo explícito. b) 1, 3 e 4;
c) Questionamento existencial e diversidades culturais. c) 1 e 4;
d) Suspense, mistério e sátira. d) 2, 3 e 4;
e) Violência, assassinato e rebelião social. e) 1, 2 e 4.
52 Extensivo Terceirão
Aula 26
26.18. Leia os excertos a seguir, retirados da obra Nove d) fez uma investigação detetivesca, ampla e detalhada,
noites, de Bernardo Carvalho. que o levou a entrevistar alguns contemporâneos do
antropólogo e a vasculhar importantes arquivos secretos
– “… Vai entrar numa terra em que a verdade e a de várias instituições, que tiveram o cuidado de registrar
mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram aqui...” oficialmente o ocorrido.
(pág. 6)
e) durante uma investigação, ampla e detalhada, teve
“...Terá que contar apenas com o imponderável e a acesso à tradição oral dos índios, que mantiveram intacta
precariedade do que agora lhe conto, assim como tive de
a lembrança desse terrível evento e possibilitaram com-
contar com o relato dos índios e a incerteza das traduções
preender o ato desesperado do personagem.
do professor Pessoa… as histórias dependem antes de
tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de 26.20. Sobre Nove Noites (2002), de Bernardo Carvalho,
interpretá-las”. (pág.7) considere as seguintes afirmativas:
“...o que agora lhe conto é a combinação do que ele 1. É um romance em que o narrador-investigador, ao coletar
me contou e da minha imaginação ao longo de nove noi- uma série de informações em fontes diversas (cartas,
tes...” (pág. 41)
depoimentos, entrevistas etc.), não consegue explicar,
de forma definitiva, a misteriosa morte de Buell Quain,
Esses fragmentos da carta-testamento do engenheiro antropólogo americano que se suicidou no Brasil em 1939.
sertanejo nas primeiras páginas de Nove Noites só não per-
mite inferir que: 2. É um romance publicado em 2002 que retoma a tradição
do romance – reportagem, muito em voga nos anos de
a) o romance é inconclusivo quanto á determinação da
1970, que, com base em fontes diversas – jornais, cartas,
morte do antropólogo Buell Quain, por falta de fatos
prováveis. entrevistas, fotos e depoimentos – elucida, do ponto de
vista realista, o mistério em torno do suposto suicídio de
b) as vozes que se manifestam na narrativa e que vão se Buell Quain.
sobrepondo umas às outras não dão unidade aos fatos e
consequentemente a verdade se dilui nelas. 3. É um romance cuja alternância entre dois planos narrati-
vos – a carta de Manoel Perna e o discurso do narrador-
c) a precariedade da verdade fragmentada pelas vozes
-investigador – conduz a um desfecho no qual não se
narrantes é o que faz o autor optar pela ficção e não um
chega à conclusão definitiva sobre as razões do suicídio
romance-reportagem, em função da impossibilidade de
de Buell Quain.
algum suporte de veracidade.
d) o missivista faz esse relato para inocentar os indígenas 4. É um romance em que o narrador-investigador, após
pela morte de Buell Quain, bem como, para proteger a coletar uma série de informações, descobre que Buell
reputação do antropólogo – colocada em questão – pelas Quain não se suicidou, pois, em uma viagem para os
informações que o sertanejo tinha do mesmo. Estados Unidos, o narrador encontra e conversa com
esse antropólogo, um velho senhor, em seu leito de
e) Ao historiar a ficção, o texto aponta para o predomínio
morte.
do verdadeiro sobre o não documental, já que adota o
propósito comum da pesquisa em extrair dados funda- Assinale a alternativa correta.
mentados e coerentes de determinado assunto, negando a) Somente a afirmativa 2 é verdadeira.
possibilidades que correspondem à verdade histórica.
b) Somente a afirmativa 3 é verdadeira.
26.19. (UP – PR) – No romance Nove noites (2002), de c) Somente a afirmativa 4 é verdadeira.
Bernardo Carvalho, em sua tentativa de desvendar as razões
d) Somente as afirmativas 1 e 3 são verdadeiras.
que levaram Buell Quain ao suicídio, o narrador:
a) decidiu, a partir dos indícios acerca do ocorrido, elaborar e) Somente as afirmativas 2 e 4 são verdadeiras.
um exercício ficcional sobre as motivações do antro-
pólogo americano, o que faz o romance oscilar entre
documento e ficção.
b) teve a sorte de ter acesso à carta inédita de Manoel Per- Gabarito
na, endereçada ao filho americano do antropólogo, que
26.01. a 26.08. e 26.15. e
estava em posse de um dos herdeiros do missivista, ainda 26.02. b 26.09. d 26.16. d
residentes em Goiás. 26.03. c 26.10. d 26.17. d
c) teve a oportunidade de conversar, por acaso, com o 26.04. e 26.11. a 26.18. e
ex-namorado do antropólogo, que estava em um leito 26.05. d 26.12. c 26.19. a
de hospital em São Paulo, à beira da morte, e repetia, 26.06. c 26.13. c 26.20. d
incessantemente, o nome de Buell Quain. 26.07. a 26.14. c
Português D 53
Português
Aula 27 6D
Nove Noites II
Bernardo Carvalho
6. (Manoel) “Isto é para quando você vier e sentir 8. (Manoel) “Isto é para quando você vier. Se é
o temor de continuar procurando, mesmo já tendo ido que realmente quer saber. Ao sairmos da festa, eu me
longe demais. Ele deve ter-lhe falado dos portos que adiantei e convidei o dr. Buell a passar em casa. Ele mal
visitou, do que viu pelo mundo, sempre um pouco mais me reconheceu. Perguntei se estava apreensivo com a
além numa busca sem fim e circular, e do que trouxe partida no dia seguinte.”
para casa, não os objetos que passaram a assombrar Na primeira noite, o etnólogo aceitou constrangido o
a mãe depois da sua morte, mas o que lhe marcou os convite para passar na casa de Manuel Perna, pois estava
olhos para sempre...” cansado; beberam e conversaram. Quando interrogado
Manuel refere, então o que Quain tinha visto pelo por Manuel se estava apreensivo por nunca ter estado
mundo: a morte de um ladrão a chibatadas; o terror numa aldeia indígena, Quain riu, sentiu-se provocado e
de um menino operado pelo pai; o desespero dos que desandou a falar nos Trumai. Outras sete noites foram em
queriam que ele os levasse consigo; a tristeza, o horror e sua passagem por Carolina, quando visitava Manuel em
o sentimento de perdição de ser tomado como salvação busca de apoio. E a última, quando Manuel o acompanhou
de alguém em pior situação do que ele. Manoel imagina no primeiro trecho de volta à aldeia e pernoitaram no mato.
que nesse ponto Buel Quain resolveu se rebaixar mais “O que agora lhe conto é a combinação do que ele
ainda aponto de, ao chegar a Carolina, não estar mais ao me contou e da minha imaginação ao longo de nove
alcance da mão de Manoel. noites. Foi assim que imaginei o seu sonho e o seu
pesadelo. O paraíso e o inferno. Na primeira noite ele me
7. (Repórter) “A situação dos estrangeiros no Brasil falou de uma ilha no Pacífico, onde os índios são negros.”
do Estado Novo era delicada.” Sentiam-se vigiados. Ruth Falou do tempo que passou entre esses índios e de
Landes era quem mais sentia a repressão oficial pois uma aldeia, chamada Nakoroka, onde cada um decidia
convivia com os intelectuais da Bahia, perseguidos e o que queria ser, escolhendo, inclusive, sua própria
presos, acusados de comunistas. Nas cartas escritas em família. Tratava-se de uma sociedade com leis e regras
linguagem meio cifrada “por motivos de segurança” fala rígidas, cabendo aos indivíduos a escolha de seus papéis
de espionagem, de horror e de solidão. na mesma. Uma aldeia com traços genealógicos que
Antes da guerra havia um forte sentimento antiame- não podiam ser conhecidos por estranhos, pois cada um
ricanista no ar e os etnólogos sentiam-se mais acuados, escolhia seus parentes e a própria identidade.
desamparados e solitários Em1931, na comemoração do final de semestre, o
Quain recebeu ordens expressas para encerrar etnólogo e um grupo de amigos beberam muito e foram
imediatamente sua expedição no Xingu. Se tinha algo ao cinema. Na tela, assistiu a uma história de amor no
a esconder, a situação política lhe dava mais razões para Pacífico Sul; um amor proibido pelas leis de uma socie-
a dissimulação e a preservação quase paranoica da sua dade de nativos.
vida pessoal. Inclusive aconselha Ruth a cuidar com “Na escuridão da sala de cinema, a luz de prata se
o que dizer na frente de dona Heloísa. Em carta, Buell acendeu na tela e uma vida impensada se descortinou
aconselha a amiga Ruth Landes: diante dele, uma nova possibilidade e uma saída, como
“Mas uma vez que dona Heloísa já a conhece, ela se um caminho inesperado se abrisse a sua frente... Ao
vai continuar curiosa em relação a você. E se você vier a sair do cinema, lembrava-se apenas dos corpos dos na-
ter mais problemas, ela pode ser útil. Ela realmente tem tivos delineados pelo sol e pela água, as gotas de prata,
influência. Há muito antagonismo aos Estados Unidos como pérolas, nos corpos refletidos de sol contra o céu”.
por aqui.” Trancou sua matrícula da faculdade e embarcou
Castro Faria garantiu ao narrador que o suicídio do num cargueiro para Xangai, disposto a encontrar a
jovem americano não repercutiu em nada no Brasil. Mas ilha encantada do filme. Como o narrador apresentava
William Lipkind foi visto como observador do regime dificuldades para vislumbrar as descrições, Quain, na
brasileiro, passando informações aos americanos. segunda vinda à cidade quando conversaram por mais
54 Extensivo Terceirão
Aula 27
sete noites, mostrou-lhe uma fotografia e um desenho Os Trumai chamavam Quain de capitão. Mal falava
de dois negros muito fortes, que posaram para ele com a língua, e não entendia as relações de parentesco e a
o torso nu. organização social da aldeia. Os índios roubaram todas
“Posso não ter imaginado o paraíso, mas o inferno eu as suas roupas, como proteção contra os mosquitos, e
pude ver. O pesadelo é um jeito de encarar o medo com ele improvisou “trajes sumários” como um mosqueteiro.
olhos de quem sonha. Quando me falava dos Trumai, eu Na aldeia, a violência física não era permitida. Certa vez,
o ouvia falar do medo.” Quain quase desencadeou uma comoção social ao bater
na mão de um menino que lhe roubava farinha e ao
Buell Quain passou quatro meses entre os Trumai,
pisar sem querer no pé de outro.
entre agosto e novembro de 1938. Até ser chamado de
volta ao Rio em dezembro. Viajou de Cuiabá a Simões “Volta e meia o etnólogo via os mais jovens em
Lopes, no Mato Grosso de caminhão, depois seis dias em abraços ou jogos sexuais. Para evitar que os índios
lombo de burro pela mata e uma viagem acidentada de deitassem em sua rede, dizia a todos que o procuravam
canoa por uma semana, até a missão de Thomas Young.. com esse pedido que sua “mulher ficaria zangada” se
soubesse. Não havia virgens na aldeia. Para afastar as
mulheres que o visitavam, ameaçava estuprá-las, e elas
9. (Repórter) Em carta de 1º de novembro de 1940 a
fugiam, em geral às gargalhadas. Estava completamente
Heloísa Alberto Torres, a mãe de Quain conta a história
só.”
dos missionários do rio Coliseu.
A malária estava matando as pessoas na missão.
10. (Manoel) “Isto é para quando você vier. A ele,
Quain, como um salvador enviado por Deus que ouvira
só restava observar, que em princípio era a única razão
as preces dos missionários, levou-lhes o remédio que
da sua presença entre os Trumai. Quando chegou
incluíra na bagagem, lembrando o recorte de jornal que
aqui, estava cansado desse papel. Mas também tinha
a mãe lhe enviara ao Rio, falando da doença. Depois da
horror da ideia de ser confundido com as culturas que
morte do filho, numa palestra dos missionários com
observava. Me contou que, entre os nativos com que
fotos em que ele aparecia entre os Trumai, teve receio
convivera na sua ilha na Melanésia, não podia haver pior
de lhes perguntar alguma coisa, com medo de ouvir o
desgraça para um rapaz do que ser acusado de espreitar
que não queria ouvir sobre o filho. Buell tinha passado
as mulheres. Era um sinal de infantilidade: diziam dos
três semanas com os missionários antes de seguir para
que espreitavam que não eram capazes de alcançar a
a aldeia dos Trumai.
satisfação sexual pelas vias de fato.”
A região era das mais inacessíveis. Eram apenas de-
Aproximou-se das crianças, observou os jogos sexuais
zessete homens, dezesseis mulheres e dez crianças. Vi-
entre crianças e adultos, a marginalização de um órfão
viam em constante terror, com medo de serem atacados
de doze anos, o processo coletivo de autodestruição,
pelas tribos vizinhas, maiores e mais fortes. Os kamaiurá
fazendo abortos e matando recém-nascidos, a relação
ficaram sentidos porque Buell preferiu ficar com os Tru-
sexual de um menino com uma menina diante dele,
mai. Havia um clima de medo e susto constante. Apesar
o rito de iniciação dos meninos que tinham o corpo
disso tudo, a maior parte das relações entre as tribos da
arranhado até sangrar.
região era amistosa. Essa hospitalidade, entretanto, era
“Tudo isso ele me contou naquela primeira noite
causada mais pelo temor do que por algum código de
quando nem nos conhecíamos. E hoje, ao lembrar as
etiqueta.
palavras do dr. Buell, só me vem à cabeça a imagem do
Quando o antropólogo chegou, para espanto dos seu corpo enforcado, cortado de gilete no pescoço e nos
índios raspou os cabelos e as sobrancelhas. Foram dias braços, coberto de sangue, pendurado sobre uma poça
difíceis, achava-os chatos, sujos e entediados, diferen- de sangue, que foi como os índios o encontraram e o
temente dos nativos musculosos com que convivera descreveram ao chegarem à minha casa.”
em Fiji e que transformara num modelo de reserva e
O etnólogo relata ainda como a cultura Trumai
dignidade.
representava coletivamente o desespero que ele próprio
“Não têm nada mais importante para fazer além de vivia. Falava da coragem dos índios, mas parece que eles
me vigiar. Uma criança de oito ou nove anos parece já viviam com medo de serem atacados, tinham pesadelos,
saber tudo o que precisa na vida. Os adultos são irrefreá- acordavam gritando, viviam em estado de terror
veis nos seus pedidos. Não gosto deles. Não há nenhuma permanente, temiam os Suyá, bastava falar deles que
cerimônia em relação ao contato físico e, assim, passo os Trumai entravam em pânico. Numa noite de febre e
por desagradável ao evitar ser acariciado. Não gosto de tempestade, foi obrigado a apagar a o lampião para não
ser besuntado com pintura corporal. Se essas pessoas irritar a chuva. Revelou que viu dois olhos na escuridão
fossem bonitas, não me incomodaria tanto, mas são as como se boiassem na matéria viscosa da escuridão e
mais feias do Coliseu.” disse: Os olhos de uma pessoa que conheci.
Português D 55
“Para mim, o pesadelo era imaginar a viagem de vol- Buell Quain também tinha acompanhado o pai em
ta, os trinta e oito dias de barco a subir os rios por terras viagens de negócios e nunca mais parou de viajar. O
inimigas na apreensão de flechas traiçoeiras, e depois a narrador era obrigado a acompanhar o pai nas viagens
pé e de caminhão por quilômetros e mais quilômetros de maluca, porque pelo acordo do divórcio deviam passar
poeira e terra. Era o que ele teria de enfrentar, deixando as férias juntos.
para trás aquele fim de mundo, embora só quisesse ficar,
O pai cometia terríveis imprudências ao pilotar e por
e seguisse contrariado, coagido pelo Serviço de Proteção
várias vezes escapou milagrosamente de sofrer um aci-
ao Índio a sair imediatamente das terras indígenas.”
dente grave. O velho ficava apavorado, trêmulo, mas não
se corrigia. Através de contatos políticos o pai comprou
11. ( Repórter) Buell Quain, de volta a Cuiabá, sofreu terras no Mato Grosso e no Xingu a preços irrisórios e
um ataque de malária. De sua convivência com os Tru- recebeu incentivos vultosos do governo a título de “de-
mai, o antropólogo relata: senvolvimento da Amazônia”. Estabeleceu-se na ilha do
“Toda morte é assassínio. Ninguém espera passar da Bananal. O narrador lembra que, quando o monomotor
próxima estação das chuvas. Não é raro haver ataques pousava, tinham que aturar uma deprimente recepção
imaginários. Os homens se juntam aterrorizados no dos índios karajá. O hotel às margens do Araguaia cons-
centro da aldeia – o lugar mais exposto de todos – e truído por Juscelino, segundo as más línguas, para seus
esperam ser alvejados por flechas que virão da mata encontros com as amantes, estava servindo de cenário
escura.” para uma fotonovela da revista Sétimo Céu, com cujos
atores passaram a conviver. Ao ser apresentado como
Autobiografia do Narrador Jorna- bisneto do Marechal Rondon, o menino passou ser in-
lista fernizado constantemente pelo assédio principalmente
dos índios. Segundo Quain foi o Marechal Rondon quem
“Ninguém nunca me perguntou, e por isso nunca corrompeu o SPI dando excesso de presentes para civi-
precisei responder que a representação do inferno tal lizar os índios.
como a imagino, também fica ou ficava, no Xingu da As lembranças continuam: O caso do pai com uma
minha infância.”
das atrizes; o mau-humor e a irritação por causa das
A partir deste capítulo o narrador passa a associar sua constantes viagens num jipe corcoveante à procura
biografia à de Buell Quain, estabelecendo semelhanças das terras que o pai queria comprar; o banho de rio
que o fazem sentir-se um “alter ego” do etnólogo. que os adultos diziam estar infestado de piranhas para
Relata suas experiências na selva durante a infância, aterrorizar as crianças; o assédio das crianças indígenas
com o pai que, separado da mulher, ficava com a guarda do Xingu que o tocavam e tiravam sua roupa; o fracasso
do filho durante as férias. Ao mesmo tempo faz um rela- grotesco do encontro entre tribos em guerra para a
to da vida aventureira, das estripulias e da morte inglória celebração da união, promovido com alarde pelos Villas
desse pai. Boas; o voo rasante do pai na despedida, assustando os
Lembra uma casa verde, na fazenda Vitoriosas, no índios e irritando os sertanistas.
meio da mata, ao lado de um precário campo de pouso. Outras lembranças desastrosas são desfiadas pelo
“Lembro de uma casa escura, de gente armada, de jornalista narrador: Os mosquitos, vespas e abelhas da
mulheres recolhidas e caladas, de um céu carregado, mata. A barulheira da selva desmatada. A cabana cheia
com raios e nuvens negras, sempre que visitávamos a de frestas por onde podiam entrar animais venenosos. A
Vitoriosas. Isso quando o sol não estava escondido por perda do trem de pouso do avião arrancado pela copa
uma névoa que fazia lembrar a atmosfera de um planeta das árvores. A aterrissagem de barriga do avião.
inóspito em Perdidos no espaço ou em um filme de
ficção científica.” O narrador conclui não entender por que aqueles
índios foram parar no Xingu, antessala do inferno.
O pai pretendia abrir ali perto um latifúndio. O go-
verno vendia terras a preço de banana. Pegou dinheiro “Não pensei mais no assunto até o antropólogo que
“emprestado” com a prima com quem vivia, embora por fim me levou aos Krahô, em agosto de 2001, me
saísse descaradamente com outras mulheres. A prima esclarecer: “Veja o Xingu. Por que os índios estão lá?
amante o processaria para reaver o dinheiro. Porque foram sendo empurrados, encurralados, foram
Relembra que ficava aterrorizado com os voos sem fugindo até se estabelecerem no lugar mais inóspito e
segurança, no avião do pai, escandalizava-se com as inacessível, o mais terrível para a sua sobrevivência, e ao
aventuras e as promiscuidades dele, e detestava o con- mesmo tempo a sua única e última condição. O Xingu foi
tato com os índios. o que lhes restou”.
56 Extensivo Terceirão
Aula 27
Na pesquisa sobre a morte de Quain, iniciada depois O suicida mandou um dos rapazes levar um bilhete
de ler o artigo no jornal, o jornalista narrador descobriu a uma fazenda próxima pedindo pá e enxada para
alguns fatos. Um ano após o suicídio do etnólogo a cavar uma sepultura. Ao voltar sem as ferramentas João
aldeia onde ele vivera sofreu um massacre organizado Canuto o encontrou todo cortado de navalha e ensan-
por fazendeiros de quem os índios furtavam gado para
guentado, o outro rapaz já tinha fugido apavorado com
comer. Vinte e seis índios entre homens mulheres e
crianças foram assassinados. Conheceu um casal de a cena. No dia seguinte foi encontrado morto, enforcado
antropólogos que tinha estudado e vivido entre eles por com a corda da rede sobre uma poça de sangue. Pelo
mais de dois anos, e marcou um encontro em Carolina, que se sabe, nunca ninguém voltou lá.
onde organizavam uma convenção entre representantes
de vários grupos indígenas. Daí seguiriam até a aldeia da Continua o Narrador Repórter
Cabeceira Grossa.
A traição da mulher com o seu cunhado relatada por
Ao chegar a Carolina o jornalista reviveu emoções Quain fica prejudicada porque os termos irmão e cunha-
que sentiu quando começou a pesquisar a vida e a do, entre os índios, podem significar apenas amigo, e a
morte de Buell. Conheceu a casa de Manoel Perna, fez irmã do suicida já estava casada desde a adolescência
pesquisas inúteis nos arquivos do cartório e da polícia, do irmão. Das cartas que escreveu antes de se matar
subiu à torre da igreja e apreciou um panorama fantás- uma era para o cunhado, nada para a mãe ou para a
tico da cidade, do rio e da mata. À tarde, na reunião dos irmã; assunto só para homem? Já que não havia mulher,
representantes indígenas, conheceu o velho Diniz, único o fato de Buell declarar-se casado na chegada ao Brasil,
Krahô vivo que conhecera Quain, quando ainda era me- revelaria uma relação incestuosa com a irmã?
nino, e que podia falar sobre o local em que o etnólogo
Nas inúmeras cartas relacionadas à morte de Buell
fora enterrado.
há diversas referências ao destino de seu dinheiro, de
O velho Diniz disse que os índios chamavam Buell seus investimentos e de um seguro.
Quain de “Cãmtwyon”. Alguns índios disseram que
“Twyon” quer dizer lesma, o caracol e seu rastro. O antro-
pólogo, estudioso dos Krahôs, já havia dito que “cãm” era A Estada do Narrador na Aldeia Krahô
o presente, o aqui e o agora, mas a combinação das duas
palavras não apresentava um sentido. Foram cinco horas na carroceria de uma caminhone-
te, uma travessia de rio com a mala na cabeça e mais
“Decidi-me por uma interpretação selvagem e um
quinhentos metros de caminhada.
tanto moral: “Cãmtw`yon” passou a ser para mim, ao
mesmo temo a casa do caracol e o seu fardo no mundo, O narrador lembra a morte de índios causada pelas
a casca que ele carrega onde quer que esteja e que águas de um rio poluído com lixo hospitalar.
também lhe serve de abrigo, o próprio corpo, do qual Na aldeia krahô para onde foi levado pelo antropó-
não se pode livrar a não ser com a morte, o seu aqui e o logo, o narrador ficou hospedado na casa de José Maria
seu agora para sempre.” Teinõ.
“As crianças ficavam em redes na sala, onde também
O velho Diniz relembra que o americano fez as compras estavam pendurados os peixes secos com cheiro de
que levaria para a aldeia krahô, na loja do comerciante e podre. Sobravam mais dois quartos Num deles ficavam
fazendeiro Justino Medeiros. Diniz, ainda criança, seguia as duas filhas mais velhas com suas crianças de colo. Não
os passos do etnólogo, viu quando ele tomou banho no entendi direito onde estavam os maridos, se é que havia.
rio, cortou os cabelos e raspou as sobrancelhas. Pendurei a minha rede noutro quarto. O chão era de
O americano não comia a comida dos índios. Uma terra batida. As noites eram um festival de sons íntimos,
vez ajudou num parto. Fumava feito um doido. Não roncos, peidos e choros de criança. Na sala, os meninos
bebia. Tocava discos e cantava. Matou-se porque ficou nas redes se debatiam em pesadelos. Na última noite,
louco. Soube por carta da traição da mulher. Arrumou as outra filha do casal e o genro, que estavam em viagem
coisas e não falava com ninguém. Ele e os dois rapazes quando cheguei, juntaram-se às irmãs e seus filhos de
pararam num brejo. Buell estava muito cansado e achou colo, amontoados no quarto ao lado do meu. E ao choro
o lugar encantador para sua morada. O etnólogo se das crianças somaram-se os gemidos do sexo.”
cortou no pescoço e nos braços durante o dia e tocou Na convivência de três dias com os Krahô o repórter
fogo em dinheiro; estava louco. sentiu-se estranho, constrangido e ingênuo, tímido e
Na verdade, para não deixar pistas sobre os motivos amedrontado diante dos mesmos. Era vigiado, submeti-
de seu suicídio, Buell Quain queimara as últimas cartas do a perguntas insistentes, considerado o bobo a quem
que recebera, enquanto escrevia as de despedida. todos podiam mentir descaradamente. Os costumes
Português D 57
alimentares, peixes moqueados, batatas cozidas com nar, e você também pode imaginar, como imaginei
terra e outras “iguarias” provocaram febres e enjoos; os a cada vez que ele me contou as suas histórias, pela
cheiros e sabores eram asquerosos para ele, os rituais intensidade de sua solidão, que na noite do suicídio ele
de iniciação, o “batismo” como membro da tribo tudo o estivesse fugindo.”
deixava constrangido, temeroso, meio traumatizado e o Buell sentia-se inseguro, não confiava em ninguém a
levou à seguinte conclusão: não ser no sertanejo. Na segunda vinda a Carolina estava
“Se para mim, com todo o terror, foi difícil não me sujo, sem sapatos, inseguro e desconfiado. Visitava o
afeiçoar a eles em apenas três dias, fico pensando no amigo à tarde para falar, e conversavam noite adentro.
que deve ter sentido Quain ao longo de quase cinco Achava estar sendo perseguido ou vigiado onde quer
meses, sozinho, entre os Krahô.” que estivesse. Vivia em estado de paranoia. Imaginava
ser alvo de uma rede de informações no Brasil, da polícia
Um menino da aldeia cochichou-lhe durante o ritual
no Rio ou dos inspetores do SPI na selva. Todos os seus
da corrida de toras, eles estão mentindo para você.”
passos eram observados desde que havia pisado no
Mentindo sobre as atitudes que tomaram com ele ou em
Brasil.
relação ao passado e a morte de Quain?
“Muitas vezes não entendi o que dizia, mas ainda
De volta à “civilização” o jornalista passou a ser consi-
assim compreendia o que estava querendo dizer. Eu
derado responsável pela família que adquiriu na aldeia.
imaginava. Ele só precisava conversar com alguém.
Essa dependência fez com que os índios se dirigissem
Numa das vezes em que me falou de suas viagens pelo
ao novo “parente” para pedir o que quer que fosse, sem
mundo, perguntei aonde queria chegar e ele me disse
o menor constrangimento. Resolveu cortar as relações
que estava em busca de um ponto de vista. Eu lhe
com a aldeia como todos os brancos faziam, segundo os
perguntei: Para olhar o quê?. Ele respondeu: Um ponto
índios.
de vista em que eu já não esteja no campo de visão...
Via-se como um estrangeiro e, ao viajar, procurava
12. (Manoel) “Você quer saber o que o dr. Buell fez apenas voltar para dentro de si, de onde não estaria
na aldeia. É provável que nada. E se houvesse alguma mais condenado a se ver. Sua fuga foi resultado do seu
coisa, não seria dos índios que você iria arrancar uma fracasso. De certo modo, ele se matou para sumir de seu
resposta.Também não sei de nada. Mas posso imagi- campo de visão, para deixar de se ver.”
Testes
Assimilação
27.01. Assinale a alternativa que apresenta uma relação 27.02. Assinale a alternativa correta.
corretamente estabelecida entre as personagens de Nove
a) O autor da carta-testamento sabia exatamente quem era
noites e suas características principais.
o destinatário da oitava carta.
a) Manoel Perna – o silêncio do sertanejo era a prova de sua
b) Depois de ler a carta de Buell ao amigo, Manuel Perna
amizade que ia conquistando Quain.
resolveu guardá-la para entregá-la em mãos.
b) Buell Quain não confiava em ninguém, nem em Manuel
c) Imaginando o pior, o sertanejo achou por bem guardar
Perna.
a oitava carta.
c) A expressão “Isto é para quando você vier”, repetida no
d) Manuel acabou entregando a carta pessoalmente ao
início de cada carta, é dirigida ao narrador.
fotógrafo, amigo/amante de Buell.
d) A carta de Manuel Perna reproduz a mensagem de Buell
e) A carta-testamento do sertanejo foi enviada ao fotógrafo
ao fotógrafo.
três anos depois do suicídio do jovem etnólogo.
e) O sertanejo traduziu todas as cartas que Quain escreveu
antes de morrer.
58 Extensivo Terceirão
Aula 27
Português D 59
27.09. Assinale a alternativa correta sobre o livro Nove noites. 27.12. Avalie as seguintes afirmações a respeito da carta
a) Pessoa atormentada e inquieta, Buell Quain metia-se em testamento de Manuel Perna.
lugares distantes e isolados para fugir de si mesmo. 1. O sertanejo escondeu a carta que Buell escreveu para o
b) O cientista americano matou-se quando soube da morte amigo fotógrafo, com medo de que ela contivesse alguma
revelação comprometedora sobre o remetente ou sobre
da mulher e do filho em Nova Yorque.
os índios.
c) Manoel Perna encontrava-se para conversar com Buell
2. Manuel tinha certeza de que o fotógrafo viria buscar a
Quain na aldeia dos índios Krahô.
carta de Buell pois sabia que o amigo do morto havia
d) Quando conheceu Buell Quain, o repórter-investigador recebido seu bilhete cifrado.
propôs-se a escrever a história do jovem americano. 3. O autor da carta testamento sabia que o professor Pessoa
e) O motivo do suicídio do pesquisador foi a descoberta, pela era admirador de Buell e por ele era muito respeitado.
imprensa, de suas relações homoafetivas com os índios 4. Os tempos difíceis de que fala Manuel era a política do
que pesquisava. Estado Novo que exercia forte censura sobre todas as
comunicações na época.
27.10. Assinale a alternativa que traz uma afirmação de Buell
que pode explicar sua obsessão por aquele povo, apesar do Estão corretas apenas as afirmações
inferno que viveu com eles. a) 1 e 2; d) 2 e 4:
a) Os Trumai veem na morte uma saída e uma libertação b) 1 e 3; e) 3 e 4.
dos seus temores e sofrimentos. c) 1 e 4;
b) Entre os Trumai, as cicatrizes eram muito admiradas. 27.13. Avalie as afirmações sobre o enredo de Nove noites,
c) Mas também tinha horror da ideia de ser confundido com de Bernardo Carvalho.
as culturas que observava. 1. O antropólogo se cortou e se enforcou, sem explicações
d) Quando ele falava da coragem dos índios, eu só o ouvia aparentes. Diante do horror e do sangue, os dois índios
falar do medo. que o acompanhavam na sua última jornada de volta da
aldeia para Carolina fugiram apavorados.
e) Disse que os Trumai consideram o sonho uma forma de
2. Em uma das cartas que deixou, Quain demonstrou a
ver dormindo.
preocupação de isentar os índios de qualquer responsa-
bilidade sobre a tragédia.
Aprofundamento 3. Quain, antes do suicídio, alegou ter recebido más notícias
de casa e comunicou aos índios a sua decisão de não mais
27.11. Assinale a alternativa em que se pode notar no texto ficar na aldeia.
certa perturbação paranoica do doutor. 4. Quain, em momentos de maior distração e melancolia,
a) Quando voltou a Carolina, mais de dois meses depois de falava muito sobre a sua mulher e seus filhos.
ter partido com os índios e mais de dois meses antes de Estão corretas, apenas as afirmações
se matar, achava-se num estado deplorável. a) 1 e 2. d) 1, 2 e 3.
b) Estava envergonhado e intimidado pelos brancos que b) 2 e 3. e) 1, 3 e 4.
antes havia desprezado e aos quais já não ousava se dirigir
c) 3 e 4.
em português, com medo de não conseguir se expressar.
c) Numa das vezes em que me falou de suas viagens pelo 27.14. Assinale a alternativa correta.
mundo, perguntei aonde queria chegar e ele me disse a) Fica claro na carta-testamento de Manuel Perna que o
que estava em busca de um ponto de vista. doutor suicida sentia-se também atraído pelo sertanejo.
d) Achava que existia uma rede de informações no Brasil. b) Foi graças à influência do sertanejo que o etnólogo
Não era só a polícia no Rio ou os inspetores do SPI na conseguiu receber a missão de pesquisar os índios.
selva que o assombravam. Dizia que todos os seus passos c) Além de Manuel Perna, somente a professora Ruth
eram observados desde que havia pisado no Brasil. Benedict e a mãe de Buell sabiam da existência da oitava
carta.
e) O que eu ouvi, não sei se foi fato ou fruto de um conjunto
de imaginações, minha e dele, a começar das visões de d) A morrer num naufrágio Manuel levou consigo a carta
que guardava com tanto cuidado.
que me falava.
e) Buell passou uns dias em Carolina, além de outros motivos,
porque temia passar o aniversário sozinho na aldeia.
60 Extensivo Terceirão
Aula 27
27.15. Assinale a alternativa que apresenta um comentário 2. É justamente a indefinição das situações narradas que
INCORRETO sobre a narrativa de Bernardo Carvalho: faz com que a obra relacione-se com a ideia de “duplo”,
a) Em Nove noites, as ameaças de uma guerra prestes a além da dificuldade classificatória da narrativa, que oscila
acontecer, o arbítrio do governo de Vargas e, finalmente, a entre características do jornalismo e do ambiente policial,
intranquilidade dos tempos em que a narrativa é construí- porém conseguindo ultrapassá-las no sentido de exceder
da dão um tom de medo e opressão a circular no relato. as funções habituais de cada gênero.
b) Na construção desse relato ficcional de histórias reais, 3. A obra alinha-se à tendência metaficcional da literatura
aparece toda uma série de reflexões sobre temores e contemporânea que está repleta de livros sobre a vida de
culpas, sobre os mistérios da vida e da morte, sobre as celebridades, autobiografias e biografias, romances feitos
razões que tornam o viver muito perigoso. na expectativa de virar filmes, numa mistura de estilos,
metaficção e fragmentação do texto.
c) No decorrer da narrativa, feita a partir de dois pontos de
vista, os fragmentos de um e de outro relato vão se con- 4. Obra estruturada na conjunção de romance reportagem
figurando e se ajustando até que, ao final, uma espécie com narrativa surrealista baseada em certezas históricas
de quebra-cabeça é completado pelo leitor. tomadas como argumentos delineadores do processo
criativo.
d) A narrativa, sinuosa e repleta de ambiguidades, propõe
múltiplos graus de compreensão, oferecendo ao leitor Estão corretas apenas as afirmativas
várias camadas de leitura, convidando-o a completar o
a) 1 e 2;
texto com o seu próprio repertório.
e) A trama é desenvolvida através de emaranhados mentais b) 1, 2 e 3;
em que a realidade e a ficção, o fato e a suposição se c) 2 e 3;
alternam constantemente.
d) 2, 3 e 4;
27.16. Assinale a alternativa em que Manuel Perna confes- e) 1, 3 e 4.
sa o que mais o abalou e entristeceu na época em que se
passou a história. 27.18. Assinale a opção INCORRETA sobre Nove noites:
a) A destituição da função de encarregado do posto indí- a) Ao procurar traços da identidade de Buell Quain, o autor
gena. embarca numa expedição paranoica, expondo a própria
intimidade e os mecanismos da criação do próprio ro-
b) A humilhação a ele infligida pelo inspetor do SPI. mance.
c) O massacre da aldeia de Cabeceira Grossa preparado pelos b) Em busca de respostas, o autor entrevistou antropólogos
fazendeiros. e a própria família do suicida, pesquisou documentos e
d) A morte do doutor que não passava de um menino e arquivos, participando, inclusive, de uma expedição à
podia ser seu filho. aldeia dos índios Krahô.
c) Paralelamente ao relato do narrador, o romance apresenta
e) A desonra de ter sido expulso da cidade de Carolina.
uma espécie de carta deixada por um engenheiro, Manoel
27.17. Avalie as afirmações a seguir a respeito da obra Nove Perna, cujo destinatário, supostamente, estaria a par dos
noites, de Bernardo Carvalho. motivos do suicídio de Quain.
d) As personagens, na maioria das vezes, aparentam saber
1. A construção da obra é maquinaria destinada a des-
mais do que dizem; toda a investigação parece estar fada-
qualificar fronteiras entre identidades e discursos, dá
da a não descobrir, mas determinada a deliberadamente
simultaneamente ao leitor a sensação de estar numa encobrir.
casa de espelhos, cuja montagem inteligente permite
e) Ao ler o nome do antropólogo suicida numa reportagem,
criar um ponto simultaneamente central e cego — como
o narrador-repórter teve a nítida impressão de que já tinha
se Narciso, afinal, se contemplasse num espelho que não ouvido aquele nome.
reflete nada.
Português D 61
27.19. (UFPR) – O romance Nove noites apresenta o antropólogo Buel Quain como um aluno da antropóloga estadunidense
Ruth Benedict. Ambos são personagens reais e atuaram, efetivamente, como pesquisadores da área. A tentativa de representar
aspectos ligados aos povos indígenas retoma uma temática da Literatura Brasileira presente, ao menos, desde a poesia de
Gonçalves Dias e de outros indianistas anteriores e posteriores a ele. Considerando isso, leia o trecho abaixo, extraído de um
ensaio de Ruth Benedict, originalmente publicado em 1934:
Nem a razão para usar as sociedades primitivas para discutir as formas sociais tem necessária relação com uma volta român-
tica ao primitivo. Essa razão não existe com o espírito de poetizar os povos mais simples. Existem muitos modos pelos quais
a cultura de um ou outro povo nos atrai fortemente nesta era de padrões heterogêneos e de tumulto mecânico confuso.
Mas não é por meio de um regresso aos ideais preservados para nós pelos povos primitivos que a nossa sociedade poderá
curar-se de suas moléstias. O utopismo romântico que se dirige aos primitivos mais simples, por mais atraente que seja, às
vezes tanto pode ser no estudo etnológico, um empecilho como um auxílio.
BENEDICT, Ruth: “A ciência do costume”. PIERSON, Donald. 1970. Estudos de organização social: leituras de sociologia e
antropologia social. Tomo II. Tradução de Olga Dória.
São Paulo: Martins. p. 497-513.
Considerando a leitura integral de Nove Noites e a leitura do trecho extraído da obra da antropóloga, assinale a alternativa
em que a representação dos “povos primitivos” é condicionada pelo que a autora denomina de “utopismo romântico”, ou,
segundo definição dela mesma, o “espírito de poetizar os povos mais simples”.
a) “Não entendia o que dera na cabeça dos índios para se instalarem lá, o que me parecia de uma burrice incrível, se não um
masoquismo e mesmo uma espécie de suicídio”.
b) “São órfãos da civilização. Estão abandonados. Precisam de alianças no mundo dos brancos, um mundo que eles tentam
entender com esforço e em geral em vão. [...] Há quem tire de letra. Não foi o meu caso. Não sou antropólogo e não tenho
uma boa alma. Fiquei cheio”.
c) “Os índios costumavam beber aquelas águas, pescar e a se banhar nelas, até o dia em que começaram a cair doentes, um
depois do outro, e foram morrendo sem explicação. [...] Com o tempo descobriram a causa do envenenamento do rio
Vermelho. Um hospital, construído rio acima, [...] estava despejando o lixo hospitalar naquelas águas”.
d) “Tanto os brasileiros como os índios que tenho visto são crianças mimadas que berram se não obtêm o que desejam e
nunca mantêm as suas promessas, uma vez que você lhe dá as costas. O clima é anárquico e nada agradável”.
e) “Na primeira noite, ele me falou de uma ilha no Pacífico, onde os índios são negros. Me falou do tempo que passou entre
esses índios e de uma aldeia, que chamou de Nakoroka, onde cada um decide o que quer ser, pode escolher sua irmã, seu
primo, sua família, e também sua casta, seu lugar em relação aos outros [...] o sonho de aventura do menino antropólogo”.
27.20. (UFMG) – Todos os seguintes trechos, de “Nove noites”, de Bernardo Carvalho, são construídos com o recurso da
citação, EXCETO
a) Ele gritou com eles até se calar de repente, como se tivesse despertado aturdido de um sono profundo.
b) Segundo os Trumai, o sol criou todas as tribos, à exceção dos Suyá, descendentes das cobras.
c) Ele sorriu de novo e respondeu orgulhoso e entusiasmado: “Vou estudar os índios do Brasil”.
d) Não sabia, eu já disse, que naquela última correspondência vinha a sua sentença de morte.
Gabarito
27.01. a 27.08. c 27.15. c
27.02. c 27.09. a 27.16. d
27.03. b 27.10. a 27.17. b
27.04. b 27.11. d 27.18. b
27.05. d 27.12. c 27.19. e
27.06. c 27.13. d 27.20. a
27.07. d 27.14. e
62 Extensivo Terceirão
Português
Aula 28 6D
Nove Noites III
Bernardo Carvalho
13. (Repórter) “A saída de Buell Quain da aldeia pela ilhas da região, imaginando-se um desbravador pioneiro
última vez lembra uma fuga. Sua caminhada pela mata e solitário de regiões desérticas.
acompanhado de dois rapazes que havia contratado “Mas não foi de nenhuma dessas ilhas que ele me
para guiá-lo até Carolina se parece com uma luta contra falou quando voltou a Carolina descalço e humilhado no
o tempo ou contra alguma coisa no seu encalço.” final de maio. Foi de uma outra, à qual se chegava de
Fuga de quê? Fuga de quem? De um fantasma pes- balsa, depois de duas horas de trem, vindo da cidade.
soal ou de alguma coisa concreta, de alguém de carne Uma ilha que conheceu adulto. Falou de uma casa com
e osso? Não teria ele sido compelido ao suicídio, em vários quartos, todos ocupados por amigos.”
pânico, por entender que não conseguiria escapar não
só da culpa, mas de uma ameaça real antes que fosse
E Buell contou de uma tarde quando chegou de
assassinado? Ou sabia que sua doença (lepra ou sífilis)
um passeio solitário e foi surpreendido por um des-
não permitiria que ele chegasse nem ao Rio onde havia
conhecido que sacou de uma máquina fotográfica e
recursos, muito menos a Nova York. Contaminado pela
registrou a sua imagem talvez a mais verdadeira, com
loucura do suicida, o narrador passa a imaginar que
uma expressão de espanto diante do desconhecido.
Buell se matou por não conseguir fugir da culpa ou da
Tornaram-se amigos. Buell decidiu vir para o Brasil para
ameaça real de ser assassinado.
contrariar aquela “falsa imagem” de espanto diante do
A explicação só poderia estar numa outra carta que desconhecido.
escreveu antes de morrer. Numa oitava carta.
O desconhecido fotógrafo nunca mais conseguiria
Um poema de Carlos Drummond de Andrade fotografar o amigo, até que, um dia antes do etnólogo
despertou uma sensação estranha no narrador. embarcar para a selva da América do Sul, ele foi até seu
“Elegia 1938”: Trabalhas sem alegria para um mundo apartamento disposto a fotografá-lo novamente. Esse
caduco, / onde as formas e as ações não encerram fotógrafo era Andrew Parsons, destinatário oculto das
nenhum exemplo. / Praticas laboriosamente os gestos cartas de Buell e Manuel.
universais, /sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome
e desejo sexual. / [...] Coração orgulhoso, tens pressa
de confessar tua derrota, / e adiar para outro século a 15. (Repórter) “Em outubro de 1939, aos sessenta e
felicidade coletiva. / Aceitas a chuva, a guerra, o de- cinco anos, Fannie Quain mandou três fotos do filho para
semprego e a injusta distribuição / porque não podes, Heloísa Alberto Torres... “Um amigo, um artista de Nova
sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.” York que tinha como hobby esse tipo de coisas, fez Buell
prometer que um dia o deixaria fotografá-lo. O amigo se
cansou de esperar e foi ao apartamento de Buell sem lhe
14. (Manoel) “Isto é para quando você vier.” dar chance de se barbear ou trocar de roupa”.
Manuel relembra as histórias que o americano lhe Para a mãe, dona Heloísa passava uma imagem tran-
contou sobre aquela ilha no Pacífico Sul, onde os nati- quilizadora do filho, mas, quando escrevia ao próprio
vos, que viviam isolados no interior da ilha, escolhiam Buell dizia:
os próprios papeis dentro de uma estrutura fixa. Lembra
“Buell, sei que você não vai levar pinga para a aldeia.
Buell contando como, durante dez meses, adormecia
Sei que não vai beber demais quando estiver em Caroli-
sob as estrelas ouvindo as histórias que um nativo lhe
na. Sei que não vai tocar em nenhuma índia.”
contava. Manuel lembra como o etnólogo mais tarde lhe
mostrou a foto e o desenho de negros fortes e enormes Quain respondeu a dona Heloísa:
que fizera. “Pois esteja certa de que levo uma vida sexual impe-
Buell ainda lhe falou da época, quando tinha quinze cável e que a bebida está restrita entre um drinque ou
anos, e trabalhara como apontador na construção de outro, em encontros ocasionais”.
uma estrada de ferro no interior do Canadá. Os passeios Para outra professora, Quain reclamava da indiscipli-
que fazia nas folgas, principalmente pelas inúmeras na da própria cultura brasileira: a falta de cumprimento
Português D 63
das promessas, a anarquia generalizada, ninguém obe- Depois que os índios dormiram Manoel e o amigo
dece às regras e avisos de não fumar, confiam na sorte. continuaram a beber e ainda conversaram muito. Buell
Tanto brasileiros como índios não se cansam de pedir dizia estar muito doente, que estava esperando uma
favores, dinheiro, presentes a qualquer pessoa. carta muito importante e fez Manuel prometer que a
Na época em que o jovem antropólogo americano enviaria por um portador assim que chegasse. Manuel
morava numa pensão de quinta categoria na Lapa, viu mandaria o próprio irmão levar-lhe a correspondência,
muita coisa do Brasil: Carmen inspirou muitos folões sem saber que nela vinha a sentença de morte do ame-
a saírem fantasiados de baianas com uma penca de ricano.
bananas na cabeça. Um personagem da mitologia local, O doutor conta ainda sobre a noite de carnaval que
apelidado de Madame Satã expoente da homossexuali- passou quando chegou ao Rio de Janeiro, da enfermeira
dade, do crime e da malandragem, ganhava o concurso negra que, bêbado, levou para dormir com ele na pen-
do baile do teatro República. são. E como, de manhã, sem se lembrar de nada do que
acontecera, viu ao seu lado, não a enfermeira, mas um
negro forte e nu como aqueles nativos do Pacífico Sul.
16. (Manoel) “Isto é para quando você vier. O que
eu sei é o que ele me contou e o que eu imaginei. Você Nessa última noite o suicida contou também a
sabe de coisas dessa ilha que eu mesmo nunca poderei história de um chefe de Vuana Levu que se disfarçou de
saber. É por isso que me dou ao trabalho de contar o mulher, para dar uma lição num conquistador famoso
pouco que sei. Se as coisas que tenho a dizer estão todas de uma aldeia. Deixou-se “conquistar” pelo sedutor até
pela metade, e podem soar insignificantes aos ouvidos ser pedido em casamento. Ao descobrir que a “noiva” era
de outra pessoa, é porque estão à sua espera para fazer o chefe, o malandro fugiu perseguido pelo chefe que
sentido. Só você pode entender o que quero dizer, pois exigia que dormissem juntos.
tem a chave que me falta. Só você tem a outra parte da Na manhã seguinte despediram-se e Manuel Perna
história.” teve a sensação de que nunca mais veria o amigo.
Manuel Perna relembra as conversas com Buell em
que o antropólogo revelava, aos poucos, suas lembran- 17. (Repórter) Em fevereiro de 1939, aos trinta e sete
ças daquela ilha e daquela casa de praia. A lembrança anos, o antropólogo franco-suíço Alfred Métraux, espe-
de dois vultos discutindo por causa de uma mulher, cialista em América Latina, encontrou Charles Wagley a
com quem o etnólogo tinha um relacionamento. Buell bordo do navio que o trazia de Nova York para o Rio de
Quain sentiu-se traído pelo homem desconhecido, pois Janeiro.
o fotógrafo disse que sabia de tudo e que também tinha Wagley, de forma totalmente serena e desprendida,
um relacionamento com a tal mulher. Esperava que essa fala com Métraux a respeito de um irmão afeminado, so-
revelação levaria o amigo a abandoná-la para ficarem bre pederastia e revela seus casos amorosos. A conversa
juntos só eles dois. Mas o antropólogo sumiu naquela deixou o franco-suíço bem impressionado. Já no Rio
noite. Sabendo pelos amigos que Quain estava de par- esse novo amigo de Wagley conhece um tal de “Cowan”
tida para a América do Sul, Andrew Parsons foi à casa (Quain), totalmente bêbado e falando alto, relatando
de Buell na cidade, fazer os retratos que ficariam como a sua viagem ao Xingu e sobre sua sífilis.
única lembrança do amante. Oito anos depois em Nova York, Mishkin jovem
Em momentos de maior distração e melancolia, antropólogo de Colúmbia, rancoroso, pretensioso e
Quain falava muito sobre uma mulher, e Manuel, saben- fofoqueiro comentou sobre Wagley:
do que Buell não era casado, sempre associou essa mu- “Mãe divorciada, infância pobre e negligente”. Em
lher àquela que fora motivo da separação dos amigos na seguida, deu a ficha completa de Quain, morto havia
praia. Manuel acabou deduzindo que a mulher, de quem oito anos: Filho de pai alcoólatra, mas rico, e de mãe
o amigo falava sempre, era uma prostituta. neurótica e dominadora. Obriga-se à homossexualidade
Depois de passar o final e maio e início de junho de com negros, dos quais ele tem horror. Garoto de talento,
39 em Carolina onde comemorou o aniversário, Quain poeta.
preparou-se para voltar à aldeia dos Krahô. Métraux considerou que era tudo calúnia.
“Combinamos que eu o acompanharia a cavalo ao
longo do primeiro dia de sua jornada de volta para a 18. (Manoel) “O que ele queria dizer era outra coisa.
aldeia... Pernoitamos no mato... Naquela noite ele bebeu Não sei se você se dá conta das consequências do que
mais do que devia. Ficou embriagado muito depressa.” ele me contou, do que aquilo podia provocar se che-
À tarde, ao pararem para acampar Buell teve um gasse aos ouvidos das autoridades. Imaginariam o pior,
ataque histérico e tratou os índios com grosserias. tudo seria pretexto para concluir que ele teria cometido
64 Extensivo Terceirão
Aula 28
atos na aldeia que, contrários à natureza humana, “Nunca ninguém me perguntou. E por isso também
justificavam que os índios o matassem. O mais fácil era não precisei responder. Meu pai morreu há mais de onze
perseguir os índios.” anos, às vésperas da guerra que antecedeu a atual e que
Manuel Perna chega à conclusão de que as revela- de certa forma a anunciou. Hoje as guerras são perma-
ções do etnólogo era um peso enorme que lhe metia nentes. Eu não morava no Brasil. Minha irmã me ligou,
medo, porque tornava os índios suspeitos de um pre- pedindo que me preparasse para o pior.”
sumido crime de vingança ou autodefesa. Se os índios O velho começou a andar e a se expressar com
temiam tanto ser acusados, não era porque o mataram, dificuldade. Teve várias mulheres; o que tirou delas
mas porque podiam ter motivo para tanto. ao longo da vida ativa teve de pagar de volta às que
Era tempo da ditadura do Estado Novo, época de o cercaram na velhice. Perdeu o equilíbrio da sua
desconfiança. Manuel acha que Buell nada fez de errado, perversão, entre o sadismo e o masoquismo, ao se
mas poderiam pensar que sim, se conhecessem suas aproximar de gente pior que ele. Uma das mulheres
revelações. O que Buell contou ao longo das nove noites o difamou alardeando seus podres financeiros. Nos
foi uma confissão, uma preparação para a morte. Ele Estados Unidos, casou-se com sua agente financeira que
queria dizer ao amigo o que era capaz de fazer e que já ao se separarem ficou com todos os bens que ele tinha
não podia se controlar. lá. Uma libanesa com quem passou a viver no Rio tinha
uma procuração dele e começou a passar todos os bens
“Decidi dar um fim a esta carta que lhe pertence e para o nome dela.
cujo conteúdo desconheço, em parte por ignorância, em
O narrador e a irmã tiveram que entrar à força
parte por precaução (não podia pedir a ninguém que a
no apartamento do pai, tirá-lo da cama contra a sua
traduzisse), e que até agora tinha guardado com o único
vontade e levá-lo para São Paulo, de ambulância. Ficou
intuito de protegê-los, a ele e aos índios, fazendo-a
no quarto com outro paciente que estava à morte. O
chegar intata ao seu destinatário. Só podia entregá-la
narrador passou três dias com o pai antes de voltar a
em mãos. [...] No dia do seu vigésimo sétimo aniversário,
Paris.
ele me disse que sabia o que era a morte: um excesso
que se anula. É ficar mais cansado do que o cansaço “Meu pai dividia o quarto com um americano
permite,exceder as próprias condições, reduzir-se a de oitenta anos, que morava no Brasil havia muito
menos que zero, ultrapassar as vinte e quatro horas de tempo.. - Ele não tem ninguém aqui, nenhum parente,
um dia sem chegar ao dia seguinte” nenhum amigo. Estavam tentando encontrar o filho nos
Estados Unidos antes que ele morresse. O velho tinha
Os índios levaram o sertanejo até o local onde diziam sido mandado de um asilo para o hospital, quando
ter enterrado o corpo de Buell. Manuel não teve cora- começou a piorar. Estava com câncer. Seus dias estavam
gem de exumá-lo com medo de que ele não estivesse ali contados. Perguntei quem era o rapaz que eu tinha visto
e que tudo não passara de uma armação do americano, naquela manhã, se era da família. Tratava-se de um
para desaparecer. acompanhante, contratado pela instituição de caridade
“Peço que procure me entender e me perdoar assim que mantinha o asilo de onde viera o velho, uma
como entendi que você não podia imaginar os efeitos sociedade criada por missionários americanos.”
que, sua última carta, teriam sobre um homem naquele O pai morreria três meses após a internação. A irmã
estado de solidão e desamparo. assumiu sozinha o peso emocional e a responsabilidade.
O que lhe conto é uma combinação do que ele me O outro paciente também resmungava à noite. O
contou e do que imaginei. Assim também, deixo-o rapaz vinha de manhã, lia para o doente durante duas
imaginar o que nunca poderei lhe contar ou escrever.” horas, despedia-se e ia embora.
O velho ouvia em silêncio ou se debatia e dizia que
19. (Repórter) “Ninguém nunca me perguntou. Ma- esperava por uma pessoa que podia chegar a qualquer
noel Perna, o engenheiro de Carolina e ex-encarregado instante. Na terceira noite o narrador ouviu o americano
do posto indígena Manuel da Nóbrega, morreu em 1946, falar sozinho resolveu dar uma olhada e perguntou
afogado no rio Tocantins, durante uma tempestade, em inglês se ele necessitava de alguma coisa. Num
quando tentava salvar a neta pequena.” gesto compulsivo, o velho apertou a mão do narrador
e, alucinadamente começou a falar em inglês, feliz e
O engenheiro de Carolina e encarregado do posto
admirado com se tivesse encontrado um amigo:
indígena Manoel da Nóbrega, segundo seus dois filhos
mais velhos, não deixou nenhum papel ou testamento “Quem diria? Bill Cohen! Até que enfim! Rapaz,
sobre Buell Quain. Manoel Perna foi enterrado e você não sabe há quanto tempo estou esperando”. De
esquecido como o etnólogo, não tendo deixado nenhum repente começou a respirar de uma maneira estranha.
testamento. Eu estava nervoso com aquilo tudo que eu não entendia
Português D 65
direito. Continuava perguntando se ele precisava de e anotações de gente que não existia, eu precisava ver
alguma coisa, se estava se sentindo mal, se queria que um rosto, nem que fosse como um antídoto à obsessão
eu chamasse a enfermeira, e ele repetia: “Bill Cohen! Bill sem fundo e sem fim que me impedia de começar a
Cohen! Quem diria! Quanto tempo!” cada vez de uma escrever o meu suposto romance [...]. Porque agora eu
maneira mais rouca e ininteligível, como se a voz viesse já estava disposto a fazer dela (pesquisa) realmente
das entranhas, como se alguém falasse por ele. Apertava uma ficção.”
minha mão e repetia: Bill Cohen! Que peça você me Mesmo assim, o narrador temia que, depois de pu-
pregou! E ia falando cada vez mais ofegante. Eu sabia blicar o livro como uma história de ficção, viesse a saber
que você não estava morto!” que era tudo verdade o ele descobrira e imaginara.
O velho morreu instantes depois. O narrador viaja para Nova York e como sabia que
o filho do fotógrafo não pretendia recebê-lo, planejou
Após a morte do pai, o narrador ficou três anos fora pegá-lo desprevenido. Tocou o interfone do aparta-
e voltou para São Paulo. Ao ler o nome de Buell Quain mento e disse que tinha uma encomenda para Schlomo
num artigo de jornal e fazendo as devidas correções Parsons. Surpreendentemente o homem destravou
ortográficas, ele descobre que o velho americano ao a porta e mandou-o subir e entrar. Schlomo estava
chamá-lo de “Bill Cohen”, referia-se ao antropólogo encaixotando coisas e pensou que fosse o carregador
suicida por quem havia esperado tanto tempo. da transportadora que contratara. Admirou-se ao saber
que o narrador era brasileiro, convidou-o a tomar
Com as sondagens empreendidas no asilo e numa
um café. Em determinado momento o jornalista viu
conversa com Rodrigo, o rapaz acompanhante que lia
que Schlomo não tinha os olhos claros e aguados do
para o velho, o narrador ficou sabendo que o americano
fotógrafo e achou-o parecido com Buell. Inventando
chamava-se Andrew Parsons, um fotógrafo que tinha
desculpas e fazendo perguntas a esmo, ficou sabendo
vindo para o Brasil, por volta de 1940. O velho fotógrafo
que Schlomo estava arrumando as coisas de um velho
tinha deixado um único filho nos Estados Unidos,
amigo com quem vivera e que mudara. Devia ter sido
mostrara a Rodrigo diversas fotos de índios, de rapazes
um homem bonito. Disse que, quando saíra de casa dos
numa praia com panos na cintura, de um rapaz bonito
avós, passara a viver com um homem mais velho.
em calção de banho e olhos arregalados de susto e de
uma criança de colo. O filho viera dos Estados Unidos e Schlomo mostrou fotos do Brasil nos anos 50 e 60:
levara a mala e outros documentos do pai. balsas num rio que poderia ser o Tocantins; blocos do
“... escrevi uma carta ao filho do fotógrafo, em Nova Carnaval carioca; a festa de Iemanjá em Salvador, várias
York, na tentativa de esclarecer a relação entre o velho e outras de São Paulo e retratos de índios que poderiam
Buell Quain, se é que havia alguma, porque em momen- ser krahô. Diz que após a morte da mãe fora entregue
to nenhum deixei de desconfiar da possibilidade, ainda aos avós, pais do fotógrafo, que não gostavam de sua
que pequena, de uma confusão ou delírio de minha mãe nem dele, com poucos meses de vida.
parte.” A mãe morrera de leucemia (sífilis?), pela foto, era
O repórter ainda entrou em contato com uma amiga, uma mulher magra, com olheiras.
produtora de TV norte-americana, para ajudá-lo na “Meu pai me entregou aos pais dele e desapareceu.
busca de possíveis parentes com sobrenome Quain ou Sempre odiei meus avós. Quando fiz dezessete anos,
Kaiser, o contato foi interrompido por causa do atentado meu avô me chamou e disse que eu tinha que saber
contra as torres gêmeas do World Trade Center. Na algumas verdades. Minha avó era muito passiva. Ficava
sequência, redes de jornais e TV, deputados e senadores sempre à sombra dele, ouvindo o que o marido dizia.
passaram a receber cartas contaminadas por bactérias Meu avô estava com um papel na mão. Nunca entendi
mortais de Antraz. se tinham esperado até aquele dia para me revelar o que
Das mais de cento e cinquenta cartas enviadas aos sempre souberam ou se também tinham sido pegos de
Estados Unidos em busca de mais informações, o narra- surpresa como eu.
dor recebeu apenas algumas respostas, algumas desin- Meu avô chamou minha mãe de puta, disse que ela
teressadas e muitas devoluções. Numa última tentativa sempre tinha sido uma vadia, que eu não era filho do
escreveu outra carta ao filho de Andrew Parsons. Numa meu pai e que, portanto, não havia nenhuma razão para
resposta educada o destinatário disse pouca coisa além continuar vivendo com eles. Eu era o filho da puta. Podia
do que o narrador já sabia, finalizando que: esperar qualquer coisa deles, mas nunca teria pensado
“Não tinha mais nada a dizer e pedia que eu não numa história daquelas.”
mais o procurasse. Àquela altura dos acontecimentos, O papel que o avô tinha na mão era uma carta do
depois de meses lidando com papéis de arquivos, livros fotógrafo a primeira depois de dezessete anos. Na carta
66 Extensivo Terceirão
Aula 28
havia um pedido de desculpas. O pai de verdade do ra- Não consegui dizer mais nada. E, diante do meu
paz tinha morrido no coração do Brasil, quando tentava silêncio e da minha perplexidade, ele voltou ao livro
voltar para conhecê-lo. que tinha acabado de fechar, retomando a leitura.
O homem achou que os avós tinham forjado a carta Nessa hora, me lembrei sem mais nem menos de ter
para se livrarem dele, que o pai queria apenas dizer que visto uma vez, num desses programas de televisão so-
o esquecesse. Em seguida trouxe uma pasta cheia de bre as antigas civilizações, que os Nazca do deserto do
fotos de homens nus, brancos e negros, ao ar livre, numa Peru cortavam as línguas dos mortos e as amarravam
praia ou em estúdio. num saquinho para que nunca mais atormentassem os
vivos. Virei para o outro lado e, contrariando a minha
Ao descer com a caixa dos pertences do companhei-
natureza, tentei dormir, nem que fosse só para calar os
ro de Schlomo que se mudara e que o narrador havia
mortos.
ajudado a fechar, encontrou o verdadeiro homem da
transportadora e lhe entregou a caixa. Nos agradecimentos finais, o autor, Bernardo
No voo de volta ao Brasil veio ao lado de um rapaz Carvalho, declara: Este é um livro de ficção, embora
entusiasmado que, justamente quando sobrevoavam esteja baseado em fatos, experiências e pessoas reais.
a região onde Buell havia se matado, puxou conversa É uma combinação de memória e imaginação – como
dizendo com orgulho estar vindo para estudar os índios todo romance, em maior ou menor grau, de forma
do Brasil. mais ou menos direta.
Testes
Assimilação
28.01. Marque a alternativa correta sobre o livro Nove noites. 28.03. A obra Nove noites tem como tema central:
a) O único narrador é um jornalista, pesquisador e historia- a) A amizade entre um cientista americano e um sertanejo
dor. tocantinense.
b) Todos os acontecimentos narrados são produto da ficção b) Os estudos antropológicos de pesquisadores estrangeiros
do autor. no Brasil.
c) O ponto de partida para a narrativa foi um fato ocorrido c) A repercussão da ditadura Vargas nas relações Brasil-
há muitos anos. Estados Unidos.
d) O investigador, ao final, desvenda o mistério, objeto da d) O mistério que envolve o suicídio de um cientista ocorrido
narrativa. há mais de 60 anos.
e) O narrador evita basear-se em notícias e artigos da e) Os distúrbios psicológicos de um jovem cientista norte-
imprensa. -americano.
28.02. Avalie as prováveis causas do suicídio de Quain. 28.04. Assinale a alternativa correta a respeito de Nove
1. A suposta desilusão sofrida por uma traição amorosa. noites.
2. A suspeita de ter contraído uma doença contagiosa e a) A narrativa é marcada pela subjetividade, com excesso
incurável. de derramamentos emotivos, sentimentais.
3. O estado de desespero e de terror que dele parece ter b) Na narrativa há inúmeros comentários sobre o divórcio
tomado conta. dos pais de Quain, o que faz com que os conflitos conju-
4. A possível decepção com os resultados de suas pesquisas. gais tenham grande relevância na obra.
São plausíveis apenas c) Ao final da narrativa, os mistérios que cercam a morte de
Quain permanecem insolúveis.
a) 1, 2 e 3;
d) Uma característica do etnólogo era sua ganância e a
b) 1, 2 e 4;
importância exagerada que ele dava ao dinheiro.
c) 1, 3 e 4;
e) A insatisfação sobre o andamento de seus trabalhos é tida
d) 1 e 2; como forte motivo para o seu suicídio.
e) 2 e 3.
Português D 67
28.05. Pelas histórias do doutor Quain, reveladas pelo ser- 28.07. Avalie as passagens, do romance Nove noites.
tanejo, pode-se deduzir: 1. “Meu pai morreu há mais de onze anos, às vésperas da
a) O americano escondeu o fato de que costumava frequen- guerra que antecedeu a atual e que de certa forma a
tar prostitutas. anunciou. Hoje, as guerras são permanentes”.
2. “Mas a ideia de uma relação ambígua com a irmã, embora
b) O antropólogo sentia uma forte atração por homens
imaginária, nunca mais me saiu da cabeça, como uma
negros e fortes.
assombração cuja verdade nunca poderei saber”.
c) A casa de praia na ilha, a duas horas da cidade, era ponto 3. “Assim como o que tento lhe reproduzir agora, e você terá
de encontro do estudante com prostitutas. que perdoar a precariedade das imagens de um humilde
d) A traição da esposa foi a principal causa da vinda do sertanejo que não conhece o mundo e nunca viu a neve
etnólogo para o Brasil. e já não pode dissociar a sua própria imaginação do que
e) Buell, quando bebia muito, conseguia falar mais clara e ouviu”.
diretamente de suas aventuras. 4. “O que agora lhe conto é a combinação do que ele me
contou e da minha imaginação ao longo de nove noites”.
As alternativas que evidenciam uma combinação entre
Aperfeiçoamento memória e imaginação são, apenas,
28.06. Avalie as informações a seguir, sobre a situação dos a) 1, 2 e 3;
estrangeiros no Brasil do Estado Novo. b) 1, 3 e 4;
1. Ruth Landes foi a que mais sentiu na pele o clima de c) 1, 2 e 4;
ignorância e o horror, uma vez que estava envolvida d) 2, 3 e 4;
pessoal e profissionalmente com os intelectuais baianos
perseguidos, presos e intimidados pelo regime sob a e) 2 e 3.
acusação de serem comunistas. 28.08. O artigo que citava o nome do etnólogo suicida saiu
2. A expedição de Buell Quain aos índios Trumai no Xingu no jornal, na manhã de 12 de maio de 2001, um sábado,
terminaria com uma convocação expressa para voltar quase sessenta e dois anos depois de sua morte às vésperas
imediatamente ao Rio de Janeiro. da Segunda Guerra. O artigo saiu meses antes de outra guerra
3. Às vésperas da guerra, havia um forte sentimento antia- ser deflagrada.
mericanista no ar, e os jovens antropólogos de Columbia, Assinale a alternativa que indica a guerra a que se refere o
já muito desconfiados e suscetíveis aos métodos do texto.
regime, se sentiam ainda mais acuados, desamparados a) Guerra do Vietnã
e solitários.
b) Guerra dos Balcãs
4. Alguns pesquisadores americanos foram expulsos do
c) Guerra do Golfo
Brasil sob o pretexto de serem observadores a serviço
do governo norte-americano e de estarem passando d) Guerra Irã-Iraque
informações para as autoridades de lá. e) Guerra do Afeganistão
Estão corretas apenas as informações
a) 1, 3 e 4;
b) 3 e 4;
c) 1, 2 e 4;
d) 1 e 3;
e) 1, 2 e 3.
68 Extensivo Terceirão
Aula 28
Português D 69
28.14. Analise os comentários sobre Nove noites. 28.16. Avalie os seguintes comentários a respeito de Nove
1. A construção literária de Nove Noites está marcada por noites, de Bernardo Carvalho.
verdades sólidas e objetivas, uma vez que as cartas, os 1. No embaralhamento de fatos e relatos, a figura do
relatos encontrados são inteiriços e verossímeis. narrador-detetive ou narrador-jornalista se perde no
emaranhado de tais relatos, tentando seguir as pegadas
2. No resgate do passado, a plenitude e a neutralidade são
dos textos para reconstituir seu sentido.
sempre marcas precisas, são conclusões que não podem
2. No trabalho de reelaboração dos fatos e ideias, as lacunas
ser articuladas de acordo com a visão de um outro eu.
e vazios de palavras exigem uma complementação fan-
3. As vicissitudes individuais são passadas de um eu para tasiosa que desvirtua totalmente as pistas verdadeiras.
um outro. O olhar redator do presente capta interesses 3. A interpretação do sujeito detetive tenta resolver o pro-
passadistas que podem ser deturpados por uma visão blema ao incluir outras ideias julgadas como supérfluas,
que se justifica embaralhada a exausta com o fluir dos diante do discurso que se queira recuperar.
tempos.
4. No início da narrativa, o leitor ou o interlocutor, já se
4. As provas documentais ao chegarem às mãos dos narra- depara com uma advertência de que toda verdade é
dores encontram-se submetidas ao “saber”, ao olhar de movediça e incompleta, estando, portanto perdida em
um outro dono, de um outro proprietário. A objetividade contradições e disparates.
dos documentos torna-se “subjetiva” em mãos outros. Estão corretas somente os comentários
Estão corretos apenas os comentários a) 1 e 2;
a) 1 e 2; b) 1 e 3;
b) 2 e 3; c) 2 e 4;
c) 3 e 4; d) 2 e 3;
d) 1 e 3; e) 3 e 4.
e) 2 e 4.
28.17. Avalie as afirmativas a respeito de Nove noites.
28.15. Avalie as informações a seguir, a respeito de Nove 1. Nove Noites é uma narrativa inventada a partir dos inters-
noites, de Bernardo Carvalho. tícios de uma realidade dada (o suicídio do antropólogo).
1. No primeiro parágrafo da narrativa, há uma advertência ao 2. As vozes que articulam os relatos deparam-se com as
leitor ou ao pesquisador que decidiu investigar as razões verdades precárias, fragmentadas, errantes e, diante da
do suicídio do antropólogo: trata-se de um território do incerteza, a possibilidade de uma outra realidade torna-se
indiferenciado, em que falso e verdadeiro combinam. inevitável; realidade essa apoiada na ficção.
2. O narrador-repórter, em busca de respostas sobre a 3. O narrador-jornalista tem certeza de encontrar a verdade
morte de Quain, entrevistou familiares e antropólogos sobre a morte de Buell Quain, pois está consciente de que
contemporâneos do suicida, pesquisou documentos e os documentos e as cartas são suficientes na decifração
concluiu que imigrar do jornalismo para a ficção era uma do que teria levado o antropólogo a se matar.
saída honrosa. 4. Diante da impossibilidade de solução, a criação do ro-
3. O autor insere fotos e personagens da década de 30 na mance como ficção torna-se a saída para o enigma ainda
história, como pessoas reais e de um fato real e registrado. não solucionado. Entretanto, a publicação do romance,
4. As cenas que mostram Buell Quain convivendo com os sustentada por depoimentos e personalidades reais, corria
mais ilustres antropólogos que lhe foram contemporâ- o risco de cair no ridículo, caso surgisse algum parente de
neos, como o Professor Castro Faria e Lévi-Strauss, são Buell Quain com “a solução de toda a história, o motivo
pura especulação ficcional. real do suicídio”.
Estão corretas apenas as afirmações Estão corretas apenas as afirmativas
a) 1, 2 e 3; a) 1, 2 e 3;
b) 1 e 3; b) 1, 2 e 4;
c) 1, 3 e 4; c) 2 e 4;
d) 1 e 2; d) 1 e 4;
e) 2, 3 e 4. e) 3 e 4.
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Aula 28
Português D 71
Anotações
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Português
Aula Aula 29 6D 1B
29 Quarto de Despejo
Carolina Maria de Jesus
Português D 73
Obras Obra
• Quarto de Despejo (1960) Quarto de despejo é um diário autobiográfico e
um documento sobre a vida dos moradores de uma
• Casa de Alvenaria (1961) favela. São reflexões sensíveis e críticas. Todo o texto
é como se fosse um espelho através do qual a autora
• Pedaços de Fome (1963) olha a si mesma e, também, as pessoas que dividem
com ela o seu espaço. É um diário diferente dos outros
• Provérbios (1963) que são confidenciais. A autora procura denunciar
as condições miseráveis de vida em uma favela.
Obras póstumas O diário registra fatos importantes da vida social e
política do Brasil, iniciando-se em 1955 e terminando
• Diário de Bitita (1977)
em janeiro de 1960. Há no país uma grande euforia pelo
início da construção de Brasília, que seria inaugurada
• Um Brasil para Brasileiros (1982) em 21 de abril de 1960. O país se preocupava com a
nova capital, idealizada por um Presidente da República
• Meu Estranho Diário (1996) bem popular entre as classes mais baixas. Ainda assim, a
fome, a falta de saneamento básico e de moradia eram
• Antologia Pessoal (1996) graves problemas. Carolina menciona em seu livro Jânio
• Onde Estaes Felicidade (2014)
Quadros, Adhemar de Barros e Carlos Lacerda, este últi-
mo, de forma irônica. Artistas e diretores agitam a favela
• Meu Sonho é Escrever: contos inéditos e outros filmando um documentário sobre a vida de um famoso
escritos (2018) favelado, o Promessinha. Jornais como o Diário da Noite
e revistas como O Cruzeiro são lembrados pela autora,
por terem publicado documentários sobre ela.
Estilo
Com uma linguagem simples, mas contundente e
original, a autora comove o leitor pelo realismo e pela
sensibilidade na maneira de contar o que viu, viveu e
sentiu durante os anos em que morou na comunidade
do Canindé, em São Paulo, com seus três filhos.
O livro, Quarto de despejo, é o primeiro e maior
sucesso de Carolina Maria de Jesus. Neste diário,
a autora retrata em instantâneos o dia a dia dos
rejeitados, a vida na favela, e discute temas muito
pertinentes ainda hoje. Numa linguagem informal,
despojada e objetiva, narra acontecimentos chocantes
e absurdos como se fossem casos comuns e naturais.
A narração é feita em primeira pessoa. Os aconte-
cimentos são narrados e acompanhados da opinião e
reações subjetivas da autora. Os textos frequentemente
apresentam considerações sobre a vida dos pobres e
favelados, a atitude dos políticos, a exploração dos co-
merciantes e atacadistas e o desperdício de alimentos.
Carolina mostra hábitos e costumes do seu meio social,
observando fatos e atitudes das pessoas que conhece,
destacando-se, ela mesma, como um elemento impor-
tante nessa favela. Há um tempo exterior, quando ela
registra cronologicamente os fatos, e um tempo interior,
nos seus momentos de reflexão.
Ao ler este relato – verdadeiro best-seller no Brasil
e no exterior –, vamos acompanhar o duro dia a dia de
quem não tem amanhã. E vamos perceber que, mesmo
Carolina Maria de Jesus assinando seu livro “Quarto de Despejo”. tendo sido escrito na década de 1950, este livro jamais
Reprodução: Arquivo Nacional / Domínio Público perdeu sua atualidade.
74 Extensivo Terceirão
Aula 29
Português D 75
Violência / brigas Diário
Discussões, troca de socos, tapas e pontapés, mulher Diante de uma realidade hostil, miserável, violenta e
levando surra do marido ou companheiro são cenas do sem perspectiva de mudança, Carolina escreve. É a forma
cotidiano da favela. A luta pela sobrevivência, o deses- que encontrou de descarregar suas tensões, angústias e
pero das mães que não têm o que dar de comer aos raiva. Através da escrita pôde transformar sua vida. Por
filhos despertam nas pessoas a revolta, a raiva, os instin- intermédio da leitura adquiriu boas maneiras e formou o
tos violentos e a ideia de suicídio, por não suportarem seu caráter nobre e íntegro. Quando viu seu livro editado
mais aquela vida bruta, animalizada sem perspectiva. ela revelou que ao ler seu nome na capa, emocionou-se.
Normalmente é a bebedeira a desencadeadora de cenas Em outro depoimento a escritora revela: “Eu era re-
ridículas, deprimentes e escandalosas. voltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos
“Hoje é a Nair Mathias quem começou impricar e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre
com os meus filho. A Silvia e o esposo já iniciaram o não pode ter ideal nobre.”
espetáculo ao ar livre. Ele esta lhe espancando. Eu estou “Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito
revoltada com o que as crianças presenciam. Ouvem bem. Que sei atrair os homens. (...) Quando fico nervosa
palavras de baixo calão.” não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu
escrevo. Sento no quintal e escrevo.”
“Cheguei no inferno. Abri a porta e pus os meninos
para fora. A D. Rosa, assim que viu meu filho José Carlos “Sentei ao sol para escrever. A filha da Silvia, uma
começou impricar com ele. Não queria que o menino menina de seis anos, passava e dizia:
passasse perto do barracão dela. Saiu com um pau para – Está escrevendo, negra fidida!
espancá-lo. Uma mulher de 48 anos brigar com criança! A mãe ouvia e não repreendia. São as mães que
As vezes eu saio, ela vem até minha janela e joga o vaso instigam.”
de fezes nas crianças. Quando eu retorno, encontro os “As quatro horas comecei escrever. Quando eu
travesseiros sujos e as crianças fétidas. Ela odeia-me. Diz desperto custo adormecer. Fico pensando na vida atri-
que sou preferida pelos homens bonitos e distintos.” bulada e pensando nas palavras do Frei Luiz que nos diz
“Fui no Arnaldo buscar o leite e o pão. Quando para sermos humildes. Penso: se o Frei Luiz fosse casado
retornava encontrei o senhor Ismael com um faca de e tivesse filhos e ganhasse salario mínimo, ai eu queria
30 centímetros mais ou menos. Disse-me que estava a ver se o Frei Luiz era humilde. Diz que Deus dá valor só
espera do Binidito e do Miguel para matá-los que eles aos que sofrem com resignação. Se o Frei visse os seus
lhe expancaram quando ele estava embriagado.” filhos comendo gêneros deteriorados, comido pelos
corvos e ratos, havia de revoltar-se, porque a revolta
“... Durante o dia, os jovens de 15 e 18 anos sentam na
surge das agruras.”
grama e falam de roubo. E já tentaram assaltar o empório
do senhor Raymundo Guello. E um ficou carimbado com “Quando eu não tinha nada o que comer, em vez
uma bala. O assalto teve inicio as 4 horas. Quando o dia de xingar, eu escrevia. Tem pessoas que, quando estão
clareou as crianças catava dinheiro na rua e no capinzal. nervosas, xingam ou pensam na morte como solução.
Teve criança que catou vinte cruzeiros em moeda. E Eu escrevia o meu diário”
sorria exibindo o dinheiro. Mas o juiz foi severo. Castigou “Eu estava deitada. Era 5 horas quando a Teresinha e
impiedosamente.” o Euclides começaram a falar.
“... Tem um adolescente por nome Julião que as vezes – Adalberto! Levanta e vai comprar pinga.
expanca o pai. Quando bate no pai é com tanto sadismo O Euclides disse:
e prazer. Acha que é invencível. Bate como se estivesse – Você não vai escrever? Não vai catar papel? Levan-
batendo num tambor.” ta para você escrever a vida dos outros.
“E a Leila insultou um jovem e ele espancou-a. Lhe Eu levantei, peguei u pau de vassoura e fui falar-lhe
jogou no solo e deu um pontapé no rosto. O ato é sel- para não aborrecer-me que eu estou cançada de tanto
vagem. Mas a Leila quando bebe irrita as pessoas. Ela já trabalhar. E dei umas cacetadas no barraco. Ele calou e
apanhou até do Chiclé um preto bom que reside aqui na não disse mais nada.
favela. Ele não queria espancá-la. Mas ela desclassificou- “Seria uma deslealdade de minha parte não revelar
-lhe demais. Ele deu-lhe tanto que até arrancou-lhe dois que o meu amor pela literatura foi-me incutido pela
dentes. E por isso o apelido dele aqui na favela é Dentis- minha professora, dona Lanita Salvina, que aconselhava-
ta. A Leila ficou com o rosto tão inchado que precisou me para eu ler e escrever tudo que surgisse na minha
tomar penicilina.” mente.”
76 Extensivo Terceirão
Aula 29
“Eu pretendia conversar com meu filho as coisas Não dei margem ao assunto. Ele prosseguia:
serias da vida só quando ele atingisse a maioridade. Mas – O Chico fazia bobagem com a P. e a Vanilda estava
quem reside em favela não tem quadra de vida. Não tem perto olhando.
infância, juventude e maturidade.
A Vanilda tem 2 anos!”
O meu filho com onze anos já quer mulher.”
“A noite enquanto elas pede socorro eu tranquila-
“Eu fui falar com uma senhora que queria saber o mente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquan-
que ocorria com o João. to os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus
Ela perguntou ao João se ele sabia o que era fazer filhos dormimos sossegados. Não invejo as mulheres
porcaria. Ele disse que sabia. casadas da favela que levam vida de escravas indianas.
E se ele havia feito porcaria na menina. Ele disse que Não casei e não estou descontente. Os que preferiu
não. eram soezes e as condições que eles impunham eram
horríveis.”
Português D 77
“... A dona Alice contou-me que o Policarpo nortista Trambiques e bebida
que reside aqui na favela pois uma preta para residir na
sua casa. Disse para a mulher que ela era sua prima. E Pequenos furtos, trapaças, roubos, assaltos e violên-
a mulher é muito boa e aceitou a prima em casa com cia fazem parte do cotidiano dos moradores da favela.
prazer. E a prima ficou em casa vários dias. A mulher O alcoolismo degrada e imbeciliza as pessoas, que per-
do Policarpo saia e ele ficava com a prima. E um dia, a dem a compostura, a dignidade e a racionalidade.
dona Maria ao chegar em casa, encontrou o Policarpo
“Fiquei horrorizada com a maldade da Dona
e a prima, na copola. Ela não gostou e brigaram. E o
Rosa [...] Ela sabe que aqui na favela não pode alugar
Policarpo saiu de casa com a prima e foi para Descalvado.
barracão. Mas ela aluga. É a pior senhoria que eu já vi
Levou os móveis e deixou só a cama.”
na vida. Porque será que o pobre não tem dó do outro
“A I. separou-se do esposo e está morando com a pobre?”
Zefa. O esposo dela encontrou ela com o primo. Agora
I. veio comercializar o seu corpo na presença do esposo.” “O João perdeu os 11 cruzeiros que eu dei-lhe para
ir no Rialto. E levava o dinheiro na carteira e foi com
“Ablui as crianças, aleitei-as e ablui-me e aleitei-me.
os meninos da favela. E alguns deles já sabem bater
Esperei até as 11 horas, um certo alguém. Ele não veio.
carteiras.”
Tomei um melhoral e deitei-me novamente.”
*Eu estava chingando o senhor Manoel quando ele “Tem a Maria José, mais conhecida por Zefa, que
chegou. Deu-me boa noite. Disse-lhe: reside no barracão da Rua B numero 9. É uma alcoóla-
tra. Quando está gestante bebe demais. E as crianças
– Eu estava te chingando. O senhor ouviu?
nascem e morrem antes dos doze meses.”
– Não ouvi.
“Quando retornei vi varias pessoas as margens do
– Eu estava dizendo aos filhos que eu desejava ser rio. É que lá estava um senhor inconsciente pelo álcool
preta. e os homens indolentes da favela lhe vasculhavam os
– E você não é preta? bolsos. Roubaram o dinheiro e rasgaram os documen-
tos.”
– Eu sou. Mas eu queria se destas negras escandalo-
sas para bater e rasgar as tuas roupas. “Hoje a Leila está embriagada. E eu fico pensando
...Quando ele passa uns dias sem vir aqui, eu fico lhe como é que uma mulher que tem duas filhas em idade
chingando. Falo: quando ele chegar eu quero expancar- tenra pode embriagar-se até ficar inconciente. Dois
-lhe e lhe jogar agua. Quando ele chega eu fico sem homens vieram trazê-la nos braços. E se ela rolar na
ação. cama e esmagar a recém nascida?”
Ele disse-me que quer casar-se comigo. Olho e pen- “Assustei quando ouvi meus filhos gritar. Conheci
so: este homem não serve para mim. Prece um ator que a voz da Vera. Vim ver o que havia. Era o Joãozinho,
vai entrar em cena. Eu gosto dos homens que pregam filho da Deolinda, que estava com um chicote na mão
pregos, concertam algo em casa. e atirando pedra nas crianças. Corri e arrebatei-lhe o
Mas quando estou deitada com ele, acho que ele me chicote das mãos. Senti o cheiro de álcool. Pensei: ele
serve.” está bêbado porque ele nunca fez isso. Um menino de
*... Não estou gostaNdo do meu estado espiritual. 9 anos. O padrasto bebe, a mãe bebe e a avó bebe. E
Não gosto da minha mente inquieta. O cigano está ele é quem vai comprar pinga. E vem bebendo pelo
perturbando-me. Mas eu vou dominar esta simpatia. Já caminho.
percebi que el quando me vê fica alegre. E eu também. Quando chega a mãe pergunta admirada:
Eu tenho a impressão que eu sou u m pé d sapato e que
só agora é que encontrei o outro pé. – Só isto? Como os negociantes são ladrões!”
Ouvi falar de varias coisas dos ciganos. E ele não
tem as más qualidades que propalam. Parece que este
cigano quer hospedar-se no meu coração.”
78 Extensivo Terceirão
Aula 29
Português D 79
“... A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que Ela rejubilou-se e começou a dizer que o Dr. Ade-
sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim mar de Barros é um ladrão. Que só as pessoas que não
da vida e que sabemos como a nossa vida descorreu. A presta é que aprecia e acata o Dr. Ademar. Eu, e D. Ma-
minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. ria Puerta, uma espanhola muito boa, defendíamos o
Preto é o lugar onde eu moro.” Dr. Ademar. D. Maria disse:
“Fui torcer as minhas roupas. A D. aparecida – Eu sempre fui ademarista. Gosto muito dele e de
perguntou-me: D. Leonor.”
“Recebi outra intimação. Eu estava inspirada e os
– A senhora está grávida? versos eram bonitos e eu esqueci de ir na Delegacia.
Era 11 horas quando eu recordei do convite do ilustre
– Não senhora – respondi gentilmente.
tenente da 12ª Delegacia.”
E lhe chinguei interiormente. Se estou grávida não é “...O que eu aviso aos pretendentes a politica, é que
de sua conta. Tenho pavor das mulheres da favela. Tudo o povo não tolera fome. É preciso conhecer a fome
quer saber! A língua delas é como os pés de galinha. para saber descrevê-la.”
Tudo espalha. Está circulando rumor que eu estou grá-
vida! E eu, não sabia!” “Fui na delegacia e falei com o tenente. Que
homem amável! Se soubesse que ele ara tão amável,
eu teria ido na delegacia na primeira intimação. (...) O
Política / demagogia tenente interessou-se pela educação dos meus filhos.
Apesar da pouca escolaridade, Carolina sempre gos- Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que
tou de ler e, com a leitura, desenvolveu um tremendo as pessoas tem mais possibiidades de delinquir do
espírito crítico. Ela tem noção clara do que é a favela no que tornar-se útil a pátria e ao país. Pensei: Se ele
contexto urbano e por isso chama-a de quarto de des- sabe disto, porque não faz um relatório e envia para
pejo. Sabe perfeitamente o quão falsas são as promessas os políticos? O senhor Janio Quadros, o Kubstchek e o
dos políticos e como as autoridades utilizam a miséria Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou
para ganhar votos. A autora ironiza os políticos que só uma pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas
aparecem nas comunidades de quatro em quatro anos
dificuldades.
para pedir votos, dndo presentinhos aos mieráveis como
os portugueses faziam com os índios. O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já
passou fome. A fome também é professora.
“E falamos de políticos. Quando uma senhora
perguntou-me o que acho do Carlos Lacerda, respondi Quem passa fome aprende a pensar no próximo e
concientemente: nas crianças.”
“Tinha uma mulher com crianças que vieram de
– Muito inteligente. Mas não tem educação. É um
Santos e ganhou só um pão e um saquinho de bala
político de cortiço. Que gosta de intriga. Um agitador.
e uma régua escolar que estava escrito Lembrança do
Uma senhora disse que foi pena! A bala que pegou deputado Paulo Teixeira Camargo.”
o major podia acertar no Carlos Lacerda. “Eu estava escrevendo quando a Vera veio avisar-
– Mas o seu dia ... chegará – comentou outra.” -me que estavam dando cartões e que havia muitas
pessoas na rua. Fui correndo ver. Várias pessoas
“Assim que cheguei a Florenciana perguntou-me acompanhavam um senhor alto e loiro que conduzia
um menino de 10 anos pela mão. Ele usava calças cin-
– De que partido é aquela faixa? za claro e paletó azul anil. Passou por mim e deu-me
Li P.S.B. e respondi Partido Social Brasileiro. Passou um abraço. Fiquei perplexa com aquele abraço sem
o Senhor Germano, ela perguntou novamente: apresentação. É a prieira vez que vejo o homem.
A cunhada do Coca-cola disse-me:
– Senhor Germano, essa faixa é de que partido?
– Esse é nosso deputado. Dr. Contrini.
– Do Janio.
80 Extensivo Terceirão
Aula 29
Quando ela disse deputado federal pensei: é época “Eu estava pagando o sapateiro e conversando
de eleições, porisso é que eles está tão amável. com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava
revoltado com um guarda civil que espancou um
... O senhor Contrini veio nos dizer que é candidato preto e amarrou numa arvore. O guarda civil é branco.
nas eleições. Nós da favela não somos favorecidos E há certos brancos que transforma preto em bode
pelo senhor. Não te conhecemos.” expiatório.”
“Passei na sapataria. O senhor Jacó estava nervo- “O Arnaldo é preto. Quando veio para a favela era
so. Dizia que se viesse o comunismo ele havia de viver menino. Mas que menino! Era bom, iducado, meigo,
melhor, porque o que a fabrica produz não da para as obediente. Era o orgulho do pai e de quem lhe conhe-
cia.
despesas.
– Este vai ser um negro, sim senhor!
Antigamente era os operários que queria o comu- É que na África os negros são classificados assim:
nismo. Agora, são os patrões. O custo de vida faz o
– Negro tú.
operário perder a simpatia pela democracia.”
– Negro turututú.
“Comecei a ficar nervosa. Vi um jornal com o retra- E negro sim senhor!
to da deputada Conceição da Costa Neves, rasguei e Negro tú é o negro mais ou menos. Negro turututú
puis no fogo. Nas épocas eleitoraes ela diz que luta por é o que não vale nada. E o negro Sim Senhor é o da
nós.” alta sociedade. Mas o Arnaldo transformou-se em
negro turututú depois que cresceu. Ficou estupido,
“Quando Jesus disse para as mulheres de Jerusa-
pornográfico, obceno e alcoolatra. Não sei como é que
lem: - “Não chores por mim. Chorae por vós” – suas
uma pessoa pode desfazer-se assim.”
palavras profetisava o governo do senhor Juscelino.
Penado de agruras para o povo brasileiro. Penado que “... Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de
o pobre há de comer o que encontrar no lixo ou então circo. Eles respondia-me:
dormir com fome. – É pena você ser preta.
Esquecendo eles que eu adoro minha pele negra,
Você já viu um cão quando quer segurar a cauda
e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de preto
com a boca e fica rodando sem pegá-la?
mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o ca-
É igual o governo do Juscelino!” belo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de
branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do
“O açúcar aumentou. A palavra da moda, agora, é lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnações,
aumentou. Aumentou! eu quero voltar sempre preta.
... Um dia, um branco disse-me:
Isto me faz lembrar esta quadrinha que o Roque fez e
deu-me para eu incluir no meu repertorio poético e dizer – Se os pretos tivessem chegado ao mundo depois
que é minha: dos brancos, aí o brancos podiam protestar com razão.
Mas, nem o branco nem o preto conhece sua origem.
Politico quando candidato O branco é que diz que é superior. Mas que superio-
Promete que dá aumento ridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o
branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge
E o povo vê que de fato o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A
natureza não seleciona ninguém.”
Aumenta o seu sofrimento!”
“O preto é perseguido porque a sua pele é da cor da
noite. E o judeu porque é inteligente. Moyses quando
Negritude viu os judeus descalços e rotos orava pedindo a Deus
Carolina demonstra profundo conhecimento das para dar-lhe conforto e riquezas. É por isso que os
condições humanas, das relações sociais, do preconceito judeus quase todos são ricos.
racial e social. Mesmo assim, tem orgulho de ser preta e Já nós os pretos não tivemos um profeta para orar
valoriza sua cor e sua raça. por nós.”
Português D 81
Considerações finais
• O tempo passou, a cidade cresceu, mas a realidade mais do que isto, ganhara dinheiro, pairava a força
de quem vive na miséria não mudou muito. Isso faz do livro, sua importância como depoimento, sua
do relato de Carolina uma obra atemporal, sempre autenticidade e sua paradoxal beleza.
emocionante. • Segundo Manuel Bandeira, ninguém poderia inven-
• A história da favela, que o jornalista Audálio Dantas tar aquela linguagem, aquele dizer as coisas com
buscava, foi escrita em uns vinte cadernos encardi- extraordinária força criativa, mas típico de quem
dos que Carolina guardava em seu barraco. ficou a meio caminho da instrução primária.
• O tempo operou profundas mudanças na vida de • A Marginal do Tietê, passa por ali onde até meados
Carolina, a partir do momento em que seus escritos dos anos 1960 se erguia o caos semiurbano e subu-
– registros do dia a dia angustiante da miséria fave- mano, da favela do Canindé, em São Paulo.
lada – foram impressos que correram o mundo. • Mais de 30 anos depois, a favela do Canindé, onde
• Um livro assim, forte e original gerou muita polêmica viveu Carolina Maria de Jesus, na rua A, barraco nº. 9,
e atingiu no conjunto a edição de 100 mil exempla- multiplicou-se em centenas de outras. Assim Quarto
res. de despejo não é um livro de ontem, é de hoje. Os
• O sucesso pessoal da autora a transformou de um quartos de despejo, multiplicados, estão transbor-
dia para outro numa patética Cinderela, saída do dando.
borralho do lixo para brilhar intensamente sob as • O texto respeita fielmente a linguagem da autora,
luzes da cidade. que muitas vezes contraria a gramática, incluindo
• Mas acima da excitação dos consumidores fasci- a grafia e a acentuação das palavras, mas que por
nados pela novidade, pelo inusitado feito daquela isso mesmo traduz com realismo a forma de o povo
negra semianalfabeta que alcançara o estrelato e, enxergar e expressar o mundo.
Testes
29.03. Um dos problemas mais desgastantes, enfrentados
Assimilação por Carolina com a justiça, foi
29.01. A respeito da autora de Quarto de despejo, Carolina a) a tentativa do filho, de apenas 11 anos, de estuprar uma
Maria de Jesus, assinale a alternativa correta. menina de dois anos.
b) a agressão a uma mulher que acertou uma paulada num
a) Nasceu na década de 50.
dos filhos de Carolina.
b) Depois da edição de seu livro formou-se na faculdade de c) o processo que enfrentou por ter desmascarada um
letras. político por seu discurso mentiroso.
c) Frequentou a escola até o segundo ano do Ensino Fun- d) a constante briga judicial contra o pai de sua filha que
damental. frequentemente não pagava pensão.
d) Nasceu e criou-se na favela do Canindé. e) a questão de ter de explicar por que comprava barracos
para alugar, o que era proibido.
e) Era de temperamento irritadiço e intolerante.
29.04. Assinale a alternativa correta.
29.02. Assinale a alternativa que aponta corretamente o que a) Carolina resolveu mudar-se de Sacramento (MG) para São
se destacava no cotidiano de Carolina de Jesus. Paulo para fugir da prisão após ser acusada de roubo.
b) Quando chegou em São Paulo, Carolina Maria de Jesus co-
a) A frequência com que recebia homens em sua cama.
meçou imediatamente a trabalhar como catadora de papel.
b) A hora tardia em que saía da cama para escrever. c) Quando ficou grávida foi acolhida e amparada pelos
c) As discussões com outras mulheres na fila da água. patrões e continuou trabalhando como doméstica.
d) As horas de folga do trabalho de doméstica passava-as
d) As conversas com os vizinhos para criar uma convulsão
na biblioteca da casa, lendo.
social.
e) O hábito de leitura ela adquiriu por causa da facilidade
e) A luta diária para arranjar comida para os filhos. de acesso aos livros.
82 Extensivo Terceirão
Aula 29
29.05. Carolina conseguiu publicar seu livro e ficar conhe- 29.09. A obra Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus
cida no mundo literário, é escrita na forma de diário, que se inicia em 15 de julho de
a) porque enviou os originais para a revista “Reader’s Digest”, 1955 e termina em 1o. de janeiro de 1960. Sobre essa forma,
nos EUA, que aceitaram divulgar seus escritos. assinale a alternativa correta.
b) graças a um jornalista que queria fazer um documentário a) Remete aos cadernos da autora que registrava seu coti-
sobre as favelas para a revista O Cruzeiro. diano na favela.
c) depois de bater à porta de dezenas de revistas e jornais b) Mostra a preocupação de um narrador onisciente para
de São Paulo e Rio de Janeiro. organizar os fatos do cotidiano da favela.
d) com a ajuda de um padre, Frei Luiz, que dava aulas de c) Apresenta distanciamento dos fatos narrados.
catequese e passava filmes religiosos para os favelados. d) Pretende aproximar-se do relato jornalístico.
e) com a ajuda financeira de seu Manoel, comerciante rico, e) Corresponde à escolha de um narrador onisciente que
amante de Carolina. busca maior veracidade nas informações do relato.
c) linguagem padrão Eu deitei, mas não dormi. Estava tão cançada. Ouvi um
ruido dentro do barraco. Levantei para ver o que era. Era um
d) repetição da rotina da autora gato. Eu ri, porque não tenho nada para comer. Fiquei com
e) denúncia da política demagógica dó do gato.
Português D 83
29.12. TEXTO 29.14. (UEPG – PR) – Em relação a Quarto de Despejo, de
...Percebi que o povo continua achando que devemos Carolina Maria de Jesus, assinale o que for correto.
revoltar contra os preços dos gêneros e não atacarmos só a C.M.T.C. 01) Em Quarto de Despejo, os escritos de Carolina Maria de Jesus
Quem lê o que o Dr. Adhemar disse nos jornais que foi funcionam como veículo de denúncia social especialmente
com dor no coração que assinou o aumento, diz: em relação às condições sub-humanas vivenciadas pelos
moradores da antiga favela do Canindé, em São Paulo.
– O Adhemar está enganado. Ele não tem coração. Manifestações de violência graves ocorrem na comunidade
– Se o custo de vida continuar subindo até 1960 vamos e a personagem lamenta, sobretudo, o fato de as crianças
ter revolução. assistirem a tudo, aprendendo a proceder da mesma forma.
C.M.T.C.: Companhia Municipal de Transporte Coletivo Podemos verificar o que Carolina chama de “espetáculos da
favela” em inúmeros registros ao longo do diário.
Assinale a alternativa que interpreta corretamente o texto.
a) Há no texto uma crítica à hipocrisia dos cidadãos que 02) Observe um fragmento do diário de Carolina, referente ao dia
7 de janeiro de 1959:“[...] Hoje eu fiz arroz e feijão e fritei ovos.
criticam os preços do transporte coletivo, mas aceitam
Que alegria! Ao escrever isto vão pensar que no Brasil não há
os preços dos alimentos.
o que comer. Nós temos. Só que os preços nos impossibilita
b) A autora defende abertamente a atitude do Presidente de adquirir”(JESUS, 2014, p. 151). Essa anotação exemplifica
Adhemar de Barros, e acredita na sinceridade de seus uma opinião da personagem ressaltada de forma bastante
sentimentos. recorrente na obra: a de que o problema do Brasil não é
c) A autora acredita que em breve eclodirá uma guerra civil a escassez de alimentos, mas a distribuição desigual de
do povo contra as autoridades governamentais. renda, que culmina em uma divisão indevida de gêneros
d) O texto comprova o espírito de cidadania, a visão histórica alimentícios entre a população.
e a consciência política da autora. 04) A linguagem utilizada em Quarto de Despejo se aproxima
e) A população mais vulnerável e sem informações sempre da oralidade, traço que confere à obra uma maior aparência
acredita piamente nos discursos dos políticos. de realidade. Uma particularidade do estilo da escrita de
Carolina são as frases curtas que atribuem ao texto uma
29.13. Avalie as seguintes afirmações a respeito de Quarto fluidez natural e conferem um ritmo peculiar à leitura.
de despejo, de Diário da Favelada, autora-narradora Carolina Ademais, assuntos diversos são tratados em um mesmo
Maria de Jesus. registro, característica do gênero diário que também
1. Do diário da catadora de papel Carolina Maria de Jesus contribui com a aparência de um diálogo espontâneo com
surgiu este exemplo da literatura chamada de realismo o leitor. É o que podemos notar no fragmento a seguir, de 6
fantástico, de grande sucesso no Brasil e na América Latina. de dezembro de 1958: “Deixei o leito as 4 da manhã. Liguei o
2. Com uma linguagem torrencial, em frases e períodos radio para ouvir o amanhecer do tango. ... Eu fiquei horrorisada
longos a autora impressiona pelo realismo e pela sensi- quando ouvi as crianças comentando que o filho do senhor
bilidade com que narra o que viu, viveu e sentiu durante Joaquim foi na escola embriagado. É que o menino está com
os anos em que morou na comunidade do Canindé, em 12 anos. Eu hoje estou muito triste” (JESUS, 2014, p. 142).
São Paulo, com os três filhos. 08) A escrita do gênero diário consiste em uma atividade dialó-
3. Em “Quarto de Despejo”, percebe-se a presença de gica, ou seja, o texto pressupõe um interlocutor, ainda que
aspectos diretamente relacionados à estrutura social e virtual. Alguns diários íntimos somente dialogam com esse
política brasileira, isto é, nota-se uma crítica social quanto leitor potencial e não transparecem a intenção de serem
à realidade do Brasil na época, lidos de fato. No texto de Quarto de Despejo, todavia, é
possível detectar um projeto de escrita, o esboço de um
4. Um sentimento reiterado de forma insistente na obra texto que pretende ser publicado e lido por leitores reais.
Quarto de Despejo (1960) é o desgosto de Carolina
16) Rachel de Queiroz, em crônica para O Cruzeiro, em 3 de
em residir na antiga favela do Canindé, em São Paulo. dezembro de 1960, argumenta sobre Quarto de Despejo:
O texto retrata situações brutais de violência, miséria e “Anotando dia a dia os fatos e os comentários que lhe são
abandono, bem como o sofrimento dos moradores que sugeridos por aquela vida que a gente só imagina, mas
não se encontram ali por opção: “Aqui nesta favela a gente nenhum de nós conhece no seu brutal realismo, Carolina
vê coisa de arrepiar os cabelos. A favela é uma cidade consegue suscitar as reações mais diversas em cada leitor”.
esquisita e o prefeito daqui é o Diabo. E os pinguços que A escrita de Carolina possibilita a sensibilização do leitor
durante o dia estão oculto a noite aparecem para atentar. sobretudo pela realidade que transparece ao ser escrita por
Percebo que todas as pessoas que residem na favela, não alguém que ficcionaliza a partir de situações vivenciadas
aprecia o lugar” (JESUS, 2018, p. 91). de fato. O leitor acompanha a rotina sofrida da mulher
Estão corretas, apenas as afirmativas marginalizada por ser negra, pobre, favelada e mãe solteira
e se condói com as situações extremas enfrentadas por
a) 1 e 2. d) 1 e 3. ela. Ao final da obra, contudo, o leitor se deleita com o
b) 2 e 3. e) 2 e 4. registro do triunfo de Carolina, que obtém sucesso em suas
c) 3 e 4. publicações e consegue sair da favela, sua maior aspiração.
84 Extensivo Terceirão
Aula 29
29.15. (UEM – PR) – Sobre a obra Quarto de Despejo: diário protagonista vivenciar apenas alegria e esperança, mesmo
de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus (São Paulo: Ática, em ocasiões tradicionalmente marcadas por esses senti-
2014), assinale o que for correto. mentos e, naturalmente, isso transparece em seu texto.
01) A personagem-narradora assume uma perspectiva 08) Ao longo de Quarto de Despejo, os momentos de alegria
memorialista e autobiográfica para focalizar a vida na de Carolina, relativamente frequentes no início, tornam-se
favela. O livro, escrito em forma de diário, aborda diversas raros, e é possível perceber que a personagem deixa de
temáticas, entre elas o racismo, o preconceito, o descaso cantar e sorrir devido às incontáveis dificuldades enfrenta-
social, a mortalidade infantil e a violência. das em todos os planos. Um registro especialmente curto,
02) Para sustentar-se e aos seus três filhos, Carolina, mulher de 3 de setembro de 1958, denota falta de motivação
pobre, negra e semianalfabeta, via-se obrigada a catar pa- inclusive para escrever: ”Ontem comemos mal. E hoje
péis, metais, litros e outros objetos nas ruas de São Paulo, pior” (JESUS, 2018, p. 120). A protagonista parece pouco
em um cenário de desemprego, ainda mais perverso para ter a acrescentar ao que já está registrado em seu diário: o
mulheres negras e que criam seus filhos sozinhas. retrato de uma existência de sofrimentos aparentemente
infindáveis.
04) A fome, para a protagonista, adquiria a cor roxa, cor
esta visível nos rostos das crianças, que sofriam toda 16) “... As vezes mudam algumas familias para a favela, com
espécie de privação. A narradora, entretanto, conta que crianças. No inicio são iducadas, amaveis. Dias depois
as autoridades mantinham, na década de 1960, projetos usam o calão, são soezes e repugnantes. São diamantes
de inclusão social que atenuavam o desamparo dos que transformam em chumbo. Transformam-se em
favelados. objetos que estavam na sala de visita e foram para o
quarto de despejo” (JESUS, 2018, p. 38). No trecho acima,
08) O texto congrega metalinguagem, denúncia social podemos perceber um retrato do ambiente modifican-
e política, além de sequências poéticas, como no do a conduta moral das pessoas, o que transmite um
fragmento: “A noite está tepida. O céu já está salpicado ponto de vista determinista bastante presente na obra.
de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um A impressão geral, ao ler o diário, é que, uma vez inse-
pedaço do céu para fazer um vestido” (p. 32). rido naquele ambiente, não há como fugir ou resistir à
16) A narrativa conta a história de uma família que vive na influência do meio.
comunidade da Rocinha, em São Paulo, e que, após muita
luta, consegue frequentar círculos sociais compostos 29.17. Na obra Quarto de despejo: diário de uma favelada,
por novos ricos. Apesar de todo o sofrimento, Carolina Carolina Maria de Jesus retrata, em uma dimensão socioló-
sentia-se feliz no seu casamento com José Carlos. gica e literária, suas impressões sobre o cotidiano dos mora-
dores de uma favela. Para responder à questão, leia a seguir
29.16. (UEPG – PR) – Em relação a Quarto de Despejo, de dois excertos, transcritos integralmente, da referida obra.
Carolina Maria de Jesus, assinale o que for correto. TEXTO I
01) O título de Quarto de Despejo traz uma expressão
20 DE MAIO (...) Quando cheguei do palácio que é a
empregada em diversos momentos por Carolina como
sinônimo da favela. No texto da obra abundam metá- cidade os meus filhos vieram dizer-me que havia encontrado
foras e comparações, como no trecho a seguir, em que macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco do
a protagonista compara o barraco ruindo ao restante macarrão com feijão. E o meu filho João José disse-me: – Pois
de sua vida, igualmente destroçada: “Voltei para o meu é. A senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do
barraco imundo. Olhava o meu barraco envelhecido. As lixo. Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar. (...)
tabuas negras e podres. Pensei: está igual a minha vida!” TEXTO II
(JESUS, 2018, p. 175).
30 DE MAIO (...) Chegaram novas pessoas para a favela.
02) Quarto de Despejo retrata os personagens da favela
em diversas situações em que são alvo de preconceito, Estão esfarrapadas, andar curvado e os olhos fitos no solo
sobretudo devido à situação de extrema pobreza em como se pensasse na sua desdita por residir num lugar sem
que se encontram. Todavia, é possível também identi- atração. Um lugar que não se pode plantar uma flor para aspirar
ficar passagens em que o preconceito é exclusivamente o seu perfume, para ouvir o zumbido das abelhas ou o colibri
racial: “...Eu escrevia peças e apresentava aos diretores acariciando-a com seu frágil biquinho. O único perfume que
de circos. Eles respondiam-me: – É pena você ser preta” exala na favela é a lama podre, os excrementos e a pinga. (...)
(JESUS, 2018, p. 64). Situações como a relatada acima A noção de contexto e de repertório social sugerida pela
fazem com que Carolina sinta vergonha e desgosto por narradora-personagem revela o(a)
ser negra.
a) resistência de moradores ao novo ambiente.
04) No diário de Carolina, os apontamentos sobre o cotidiano
mesclam festividades à sofrível realidade da favela, como b) ambição de pessoas que residem em lugares insalubres.
podemos notar no registro a seguir, de 31 de dezembro c) impacto dos novos moradores a ambiente infértil.
de 1958: “Hoje uma nortista foi para o hospital ter filhos e
a criança nasceu morta. Ela está tomando soro. A sua mãe d) embate entre pessoas que residem em ambientes distin-
está chorando, porque ela é filha única. Tem baile na casa tos.
do Vitor” (JESUS, 2018, p. 149). Nem sempre é possível à e) visão de contraste entre o lugar ideal e o real.
Português D 85
29.18. TEXTO 29.20. TEXTO
“...Nas ruas e casas comerciais já se vê as faixas indican- 13 de maio
do os nomes dos futuros deputados. Alguns nomes já são [...] – “Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco
conhecidos. São reincidentes que já foram preteridos nas de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje
urnas. Mas o povo não está interessado nas eleições, que é choveu e eu não pude ir catar papel. Agradeço. Carolina.” ...
o cavalo de Troia que aparece de quatro em quatro anos.” Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente
Carolina Maria de Jesus, Quarto de come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era
despejo. São Paulo: Ática, 2014, p. 43. a reprise do espetaculo. Eu estava com dois cruzeiros. Preten-
O trecho anterior faz parte das considerações políticas que dia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui
aparecem repetidamente em Quarto de Despejo, de Carolina pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha
Maria de Jesus. Considerando o conjunto dessas observa- e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos. E assim no dia
ções, indique a alternativa que resume de modo adequado 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a
a posição da autora sobre a lógica política das eleições. fome!
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de
a) Por meio das eleições, políticos de determinados partidos
uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2018, p. 32.
acabam se perpetuando no exercício do poder.
b) Os políticos se aproximam do povo e, depois das eleições, Com base na leitura do texto e na leitura integral da obra
se esquecem dos compromissos assumidos. Quarto de Despejo: diário de uma favelada, publicada pela
primeira vez em livro em 1960, no contexto sócio-histórico
c) Os políticos preteridos são aqueles que acabam vencendo e literário e, ainda, de acordo com a variedade padrão da
as eleições, por força de sua persistência. língua escrita, é correto afirmar que:
d) Graças ao desinteresse do povo, os políticos se apropriam
do Estado, contrariando a própria democracia. 01) Quarto de despejo é uma coletânea de relatos pessoais
dedicados a narrar o dia a dia do ano de 1958 na vida de
29.19. Leia o trecho a seguir. Carolina Maria de Jesus, de sua família e da comunidade.
Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. 02) reforçando o mito do “homem cordial” na tradição literária
A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela brasileira, a obra revela como os moradores da favela do
é o quintal onde jogam os lixos. Canindé e arredores são acolhedores, solidários e solícitos
JESUS, C. M. Quarto de Despejo: diário de uma fa- com Carolina e com seus filhos.
velada. São Paulo: Ática, 1997. 04) há remissão ao dia em que se comemora oficialmente a
Sobre o fragmento destacado, considere as afirmativas a Abolição da Escravidão no Brasil, numa crítica ao controle
seguir. social exercido pela fome, que marca a existência de
I. Nesta descrição de São Paulo, é perceptível a visão crítica outro modo de escravidão.
da narradora a respeito dos políticos e da desigualdade 08) a autora emprega frases e orações curtas, o que confere
social. maior ênfase e ritmo ao texto, recurso linguístico utili-
II. A aproximação entre a favela e o quintal caracteriza o zado com frequência por autores da literatura brasileira
modo como a narradora se vê na sociedade. contemporânea.
III. Nota-se, neste fragmento, o desejo da narradora em se 16) o emprego de metáforas e comparações auxilia na re-
tornar escritora. criação ficcional do cotidiano da favela, como é o caso
IV. Percebe-se a preocupação da narradora em apresentar do adjetivo “acinzentado”, tomado como a cor da fome,
uma descrição objetiva das mudanças pelas quais passou numa clara alusão às casas sem reboco do entorno, e do
o espaço urbano. substantivo “corvos”, num comparativo com os favelados,
Assinale a alternativa correta. homens e mulheres sempre à procura de comida.
a) Somente as afirmativas I e II são corretas. 32) em “Dona Ida peço-te”, os termos em destaque servem
como vocativo, apesar da ausência de vírgula.
b) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
64) a obra tem sido revisitada por críticos contemporâneos
c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
em nova abordagem que confere ao texto valor literário,
d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas. superando uma leitura sociológica, pois reconhece nele
e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas. a existência de um projeto estético próprio da autora.
86 Extensivo Terceirão
Aula 29
Gabarito
29.01. c [02] Carolina, mulher negra, pobre, semianalfabeta e mãe solteira
29.02. e precisa manter-se recolhendo papéis e outros materiais pelas suas
29.03. a de São Paulo para sustentar a si e aos seus três filhos.
29.04. d [08] O texto, mesmo com seu teor social e político, não perde em
29.05. b poeticidade, como destacado pelo fragmento.
29.06. a As afirmativas [04] e [16] estão incorretas. A protagonista associa
29.07. c a cor roxa à fome, à agrura nos corações dos brasileiros famintos.
29.08. d Ademais, destaca o abandono do estado, ausência de preocupa-
29.09. a ção das autoridades com a condição social da população. A nar-
29.10. e rativa conta a história de uma mulher que luta trabalhando como
29.11. b catadora de materiais em São Paulo, uma mãe solteira na extrema
29.12. d pobreza.
29.13. c 29.16. 29 ( 01 + 04 + 08 + 16)
29.14. 15 (01 + 02 + 04 + 08). A afirmação [02] é incorreta, pois
[16] Incorreta: Quarto de Despejo apresenta um relato por meio [02] a obra apresenta passagens em que o preconceito vai além do
de diários da vida de Carolina Maria de Jesus, mulher marginalizada racial, como cultural e social, apresentado, por exemplo, na descri-
por ser negra, pobre, favelada e mãe solteira. Ela só consegue sair ção do momento em que Carolina sai da favela para morar na cida-
da favela e morar no subúrbio depois de publicar o seu livro. de e é apedrejada pelos vizinhos. Carolina Maria de Jesus não sente
29.15. 11 ( 01 + 02 + 08). vergonha pela sua condição, sua obra memorialista é um exemplo
[01] A personagem-narradora assume uma perspectiva memoria- de literatura de resistência da periferia urbana.
lista e autobiográfica. A obra “Quarto de Despejo” expõe registros 29.17. e
de diários de Carolina Maria de Jesus sobre sua vida na favela, abor- 29.18. b
dando diversas temáticas envolvidas do cotidiano de grupos mar- 29.19. a
ginalizados, como racismo, preconceito, descaso social e violência. 29.20. 44 (04 + 08 + 32)
Português D 87
Português
Aula 30 6D
O livro das semelhanças
Ana Maria Marques
Autora Obra
Em O livro das semelhanças, temos um exercício bem
História interessante de metapoesia, e que dialoga e até introjeta
várias influências poéticas, com a permanência de temas
subjetivos e objetivos.
Tenho 39 anos.
A poeta fala sobre seu processo de criação e sobre
Meus dentes têm cerca de 7 anos a menos. certa familiaridade e estranheza que o escritor precisa
ter com as palavras. Comenta sobre a leitura e a escrita
Meus seios têm cerca de 12 anos a menos. como forma de felicidade, que amplia as possibilidades
Bem mais recentes são meus cabelos de enxergar e compreender o mundo.
Na poesia de Ana Martins Marques, é fascinante a
e minhas unhas. longa conversa sobre a própria poesia, tema de muitos
de seus poemas, a metapoesia, muitas vezes disfarçada
Pela manhã como um pão.
em poemas que tratam do amor, ou sobre o mundo
Ele tem um história de 2 dias. circunstante.
Sua poesia autorreflexiva, oscila entre a frágil suavi-
Ao sair do meu apartamento, dade, a promessa de humor, e a perda, a solidão, a casa
que tem cerca de 40 anos, vazia. Poesia que pode ser amarga, e que visita sempre
o silêncio; que é sucinta, mas deixa no ar tanta coisa a
vestindo uma calça jeans de 40 anos ser dita, vício mineiro, de poetas mineiros, a quem Ana
Martins Marques se junta em diálogo e pertencimento.
e uma camiseta de não mais do que 3,
Vários poetas, mulheres e homens, perpassam sua
troco com meu vizinho poesia: a convivência com outros poetas, a conversa de
palavras escritas, as visitações e os convites para que os
palavras poetas venham falar um pouco de novo aqui, na página
do livro da poeta mineira constituem as semelhanças
de cerca de 800 anos
de que fala o título.
e piso sem querer numa poça Ana faz uma poesia que tematiza nossa vida em suas
pequenas histórias, os gestos que passam despercebi-
com 2 horas de história dos, mas que trazem em seus versos solidez e leveza. A
desfazendo poeta revela um olhar atento e inventivo sobre as coisas,
os objetos do cotidiano, e essas imagens articulam o
uma imagem concreto das coisas, dos objetos, com o abstrato dos
pensamentos, dos sentimentos, das percepções.
que viveu
Nas palavras da poeta: “Os poemas surgem para
alguns segundos. mim de muitas formas: às vezes de uma imagem, às
vezes de uma palavra escutada na rua, às vezes de
Mineira de Belo Horizonte, Ana M. Marques nasceu em 1977. outros poemas. Às vezes, o tema vem antes, às vezes
Graduada em letras, tem doutorado em literatura comparada são as palavras que “puxam” o assunto. De qualquer
pela UFMG. Entre outros livros, publicou: A vida submarina; modo, parece próprio da poesia poder se voltar para
Da arte das armadilhas; O livro das semelhanças; Risque esta qualquer objeto, mesmo os que parecem mais insig-
palavra e a reedição de. nificantes.”
IV
• TÍTULO
Uma antologia de poemas Suspenso
que atendam às condições II e III sobre o livro
como um lustre
V num teatro
Um livro de poemas
que sejam ideias para livros de poemas • DEDICATÓRIA
Ainda que não te fossem dedicadas
todas as palavras nos livros
VI pareciam escritas para você
Este livro
de poemas
Português D 89
Primeiro poema, exemplo de metapoema, faz pen- O encontro: o lugar marcado para esse encontro é
sar num livro de poemas como um convite para o leitor O livro das semelhanças. Encontro nos poemas da
fugir dos atropelos e problemas do cotidiano. Parte I: O livro, como indica a primeira estrofe.
Encontro marcado nos mapas da Parte II: Cartografias,
como indica a segunda estrofe. Encontro marcado nos
PRIMEIRO POEMA
lugares comuns do cotidiano da Parte III: Visitas ao
O primeiro verso é o mais difícil
lugar-comum e, por fim, neste poema, neste lugar.
o leitor está à porta
não sabe ainda se entra
ou só espia O ENCONTRO
se se lança ao livro
ou finalmente encara Combinamos de nos encontrar num livro
o dia na página 20, linhas 12 e 13, ali onde se diz que
privar-se de alguma coisa
o dia: contas a pagar também tem seu perfume e sua energia
correspondência atrasada
congestionamentos
xícaras sujas combinamos de nos encontrar num mapa
depois da terceira dobra
aqui ao menos não encontrarás,
leitor, entre as manchas de umidade
xícaras sujas e a cidade circulada de azul
90 Extensivo Terceirão
Aula 30
No poema “Papel de seda”, há uma reflexão sobre o BOA IDEIA PARA UM POEMA
sentido que outrora tinha o papel de seda nas divisões Anotei uma frase num caderno
entre imagem e texto.
Português D 91
POEMA DE VERÃO Parte II – Cartografias
Você está sob a luz
A seção “Cartografias” atende aos sentimentos amoro-
de certos poemas cheios de sol
sos, delineados como as próprias linhas do mapa, que cos-
sua mão faz sombra sobre a página turam as diferentes configurações do afeto. São imagens
encobrindo algumas palavras líricas bastante simples que a poeta constrói para externar
a palavra menina agora está à sombra a profundidade do lugar que o amor ocupa na existência.
a palavra retângulo
“Cartografias” – a poemas nos quais imagens
a palavra brinquedo
espaciais e seus mapas constroem suas metáforas e se
as outras palavras ficam pairando
refazem como recursos estéticos à poesia. Na seção em
no poema como partículas de poeira questão, há também uma espécie de narrativa para que
brilhando na luz os poemas possam ser lidos como retratos de encontros
você gostaria de escrever poemas assim e desencontros de um casal.
em que se encontrasse de repente
o esqueleto alvo de um animal pequeno
Combinamos por fim de nos encontrar
ou em que um jovem casal dormisse
na esquina das nossas ruas
dentro de uma picape vermelha
que não se cruzam
ou ao menos em que houvesse uma raposa
vinho de maçã, cadeiras desdobráveis
e onde as cervejas fossem postas para esfriar Sempre acabo tomando o caminho errado
dentro de um rio que falta me faz um mapa
que me levasse pela mão
você gostaria de escrever um poema
em que acontecessem tantas coisas
e as palavras vibrassem um pouco Quando enfim
num acordo tácito fechássemos o mapa
com as coisas vivas o mundo se dobraria sobre si mesmo
em vez disso você escreve este e o meio-dia
recostado sobre a meia-noite
POEMAS REUNIDOS iluminaria os lugares
Sempre gostei dos livros mais secretos
chamados poemas reunidos
pela ideia de festa ou de quermesse
como se os poemas se encontrassem Parte III – Visitas ao lugar-comum
como parentes distantes Na terceira parte, o afeto é ainda o leitmotiv da sua
um pouco entediados criação poética, onde rusgas e incertezas, com um certo
em volta de uma mesa pessimismo intravenoso, dominam quase todos os poemas.
como ex-colegas de colégio “Visitas ao lugar comum” não fica longe do bloco
como amigas antigas para jogar cartas anterior, embora aqui pareça se edificar um círculo vicioso
como combatentes do ir e vir, cortar e remendar, ficando no fim a existência
numa arena (corriqueira ou afetiva) marcada pelas cicatrizes.
galos de briga
cavalos de corrida ou 8
boxeadores num ringue Cortar relações
como ministros de estado e depois voltar-se
numa cúpula verificar se o que restou
ou escolares em excursão
suporta
como amantes secretos
num quarto de hotel remendo
às seis da tarde demorar-se
enquanto sem alegria apagam-se as flores do papel sobre a cicatriz
de parede do corte.
92 Extensivo Terceirão
Aula 30
10 O BEIJO
Amar Ao me beijar
Profundamente esqueceu uma palavra em minha boca
mas testar
Devo guardá-la
volta e meia
embaixo da língua?
se ainda engoli-la como um comprimido
dá pé a seco?
mordê-la até sentir
13 seu gosto de fruta
estrangeira, especiaria, álcool
Esperar junto àqueles
duvidoso?
que caíram em si
devolvê-la
que caíram na risada num beijo
que caíram no ridículo a ele?
que caíram do cavalo a outro?
que caíram das nuvens
É pequena e dura
que a noite caia
mais salgada que doce
e amarga um pouco
no fim
Parte IV – O livro das semelhanças
A parte final e mais extensa é O livro das A imagem e a realidade
semelhanças, que retoma o título do livro. Aqui se
A REALIDADE E A IMAGEM
adensam as experiências e se desconstrói a realidade
O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
e se expõe de forma mais pungente a situação do
E desce refletido na poça de lama do pátio.
indivíduo diante da vida.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as
Esse adensamento não hierarquiza as partes do livro.
separa,
Ana Martins é uma grande criadora de imagens rápidas,
Quatro pombas passeiam.
que dissolve as certezas sem que seja necessário precisar
Manuel Bandeira
o antes, o entre e o depois das ações. O corte é rápido.
Quase não dá tempo de perceber o tamanho do rasgo. Refletido na poça
Por isso voltamos aos poemas, precisando acreditar que do pátio
aquilo que se anunciava como um verso singelo, guarda, o arranha-céu cresce
na sua composição, o preâmbulo para o desalento. para baixo
O beijo faz transparecer a ausência de doçura que o as pombas — quatro —
reino dos afetos parece prometer, mas que não consegue voam no céu seco
cumprir: Ao me beijar/ esqueceu uma palavra em até que uma delas pousa
minha boca – Que palavra? – Amor? Dor? Saudade? na poça
desfazendo a imagem
Português D 93
O fascínio pelo mar certamente tem relação com o MAR
fato de que, por viver longe do litoral, o mar nunca se
Ela disse
tornou para Ana totalmente familiar, sempre se manteve
de certo modo enigmático, desconhecido. O poema mar
O que eu levo no bolso faz pensar num encontro ou disse
romance de verão na praia, a separação e, por fim, a às vezes vêm coisas improváveis
solidão. Não há ajustes que possam remediar perdas. não apenas sacolas plásticas papelão madeira
garrafas vazias camisinhas latas de cerveja
O QUE EU LEVO NO BOLSO também sombrinhas sapatos ventiladores
Um isqueiro e um sofá
amarelo ela disse
um pouco
é possível olhar
de areia
por muito tempo
moedas brilhantes
teu nome é aqui que venho
anotado limpar os olhos
num papel dobrado ela disse
minha praia aqueles que nasceram longe
de bolso do mar
aqueles que nunca viram
um isqueiro o mar
amarelo que ideia farão
um pouco
do ilimitado?
de areia
que ideia farão
moedas brilhantes
teu nome do perigo?
anotado que ideia farão
num papel dobrado de partir?
meu deserto pensarão em tomar uma estrada longa
de bolso e não olhar para trás?
pensarão em rodovias
O QUE EU SEI? aeroportos
Sei poucas coisas sei que ler postos de fronteira?
é uma coreografia quando disserem
que concentrar-se é distrair-se
quero me matar
sei que primeiro se ama um nome sei
que o que se ama no amor é o nome do amor pensarão em lâminas
sei poucas coisas esqueço rápido as coisas revólveres
que sei sei que esquecer é musical veneno?
sei que o que aprendi do mar não foi o mar pois eu só penso
que só a morte ensina o que ela ensina
no mar
sei que é um mundo de medo de vizinhança
de sono de animais de medo
sei que as forças do convívio sobrevivem no tempo
apagando-se porém
sei que a desistência resiste
que esperar é violento
sei que a intimidade é o nome que se dá
a uma infinita distância
sei poucas coisas
94 Extensivo Terceirão
Aula 30
Português D 95
É BOM LEMBRAR LEMBRANÇAS DOS OUTROS APARADOR
alguns de seus hábitos Sonho que estou de volta
usar à noite se possível ao primeiro apartamento
um de seus sonhos recorrentes quando erámos jovens e tínhamos
é bom encontrar uma vez ou outra pessoas muito menos coisas
que conhecemos na infância e nem sabíamos que já éramos
é bom nos esforçarmos por um tempo felizes como pensávamos que seríamos
para parecer com a lembrança delas estás na minha memória
é bom topar de repente com um tanto de areia jovem e alegre como numa fotografia
no bolso de uma calça jeans talvez ainda mais jovem e mais alegre
que há tempos não usamos mais jovem do que jamais foste
seguir as instruções do horóscopo de um signo e mais alegre
que rege um dia em que não nascemos usas uma presilha
vestir-nos de acordo com a previsão do tempo no cabelo castanho comprido
de uma cidade que nunca pensamos visitar invejo a presilha
que está mais próxima do que eu
é bom ao menos uma vez na vida fazer uma viagem
do teu pensamento
em companhia de um parente morto
e dos teus cabelos
é bom escrever de vez em quando poemas
da tua cabeça de cabelos e pensamento
com viagens por dentro
e invejo a fotografia
com cidades e memórias de paisagens por dentro
que se parece tanto contigo
que pareçam escritos
talvez ainda mais do que tu mesma
por outra pessoa
ouço as juntas que estalam
como portas batendo
sou hoje uma chaleira, uma pá, uns óculos
esquecidos sobre o aparador
sou o a aparador
esquecido de mim mesmo
sobre o aparador
está tua fotografia que nos sobreviverá
96 Extensivo Terceirão
Aula 30
Testes
30.02. Ainda sobre o poema da questão anterior, assinale
Assimilação o que for correto.
30.01. TEXTO a) O poema é todo escrito em quartetos.
b) Pela métrica, os versos são classificados como redondilhas
Três vezes tu maiores e menores.
Como as três cadeiras c) Esta forma clássica de poema, chamada de soneto é
de Joseph Kosuth reiterada na obra da poeta Ana Maria Marques.
eis aqui: d) Por causa da ausência de rimas, os versos são chamados
três vezes tu de versos livres.
e) A rigidez forma do poema aproxima Ana Maria Marques
na fotografia de João Cabral de Melo neto.
num vestido branco 30.03. Leia o poema a seguir extraído de O livro das seme-
saído do esquecimento lhanças, de Ana Maria Marques.
como do fundo de um armário COLEÇÃO
Para Maria Esther Maciel
Português D 97
30.04. CAPA Avalie a seguintes observações a respeito do poema.
Um biombo 1. No poema, dormir seria como esquecer parte do
entre o mundo
dia anterior, seria como apagar a consciência por
e o livro
um momento, para então, em seguida, despertá-la
O poema acima foi retirado da obra Livro das semelhanças.
novamente.
Sobre esse texto é correto afirmar:
2. Há, no poema, uma atmosfera de cansaço e desilusão em
a) trata-se de um hai-cai, modelo de poema japonês, reite-
ter que despertar do sono todos os dias para encarar a
radamente utilizado pela autora.
vida, mas, ao mesmo tempo, uma esperança na novidade,
b) revela a alienação da poeta e da sua poesia em relação à nas pequenas surpresas que o cotidiano resguarda.
realidade circunstante.
3. A irritação que circunda a ideia de despertar e ter a cada
c) faz parte da segunda série de poemas de que consta o
livro: cartografias. dia que escolher as calças / e a cara/ que poremos no
poema, poderia ser a irritação sentida por aqueles que
d) é o primeiro poema de Livro das semelhanças, cuja pri-
foram arrancados ao doce prazer do esquecimento, visto
meira série de poemas intitula-se Livro.
que a vida acordada (memória, consciência) não parece
e) o poema e composto de versos livres e brancos. algo tão encantador, sendo muitas vezes burocrático.
30.05. Assinale a alternativa correta sobre a poesia de Ana 4. Pelo contexto da obra e do poema à ironia cabe a
Martins Marques. clareza das ideias e a lucidez dos elementos e é usada,
a) A linguagem na poesia de Ana é como uma forma ardente principalmente, como elemento questionador que
do desejo que proclama sua entusiasmante possibilidade permite a parábase das discussões poéticas amorosas.
de concretização.
Estão corretas, apenas as observações
b) As temáticas de Ana revelam um retorno ao lirismo da poesia
concreta e a uma aproximação da geração marginal dos anos a) 1, 2 e 3.
1970.
b) 1 e 2.
c) É marcante na poesia de Ana Martins Marques a ausência de
temas gregos e mitológicos. c) 2 e 3.
d) A dimensão espiritual na poesia de Ana Martins Marques
surge nas diversas referências que seus poemas fazem a d) 2, 3 e 4.
suportes místicos – principalmente fetiches, religiosidade
e) 3 e 4.
e abstrações.
e) A poética de Ana Martins Marques marca um retorno ao eu 30.07. Leia o poema.
lírico, na versão do sujeito na poesia contemporânea, que não
cai em tentações melodramáticas. E então você chegou
como quem deixa cair
Aperfeiçoamento sobre um mapa
esquecido aberto sobre a mesa
30.06. TEXTO um pouco de café uma gota de mel
E no entanto cinzas de cigarro
a ideia geral do sono preenchendo
essa ilusão de recomeço por descuido
ter a cada dia que escolher as calças um qualquer lugar até então
e a cara deserto
que poremos
alguma coisa que se aprende Assinale a alternativa que assinala corretamente o tema
mínima que seja deste poema.
inútil que seja a) Sentimento de solidão.
uma pessoa vista pela segunda vez b) Saudade de um amor distante.
uma palavra desconhecida
c) Preenchimento de um vazio sentimental.
de repente encontrada
o fato de que amanhã virás d) Dor da despedida.
possivelmente e) Racionalização do amor.
98 Extensivo Terceirão
Aula 30
30.08. Ainda sobre o poema da questão anterior, avalie as c) O verbo quebrar tem sentido conotativo no primeiro
seguintes afirmativas. poema e denotativo no segundo.
1. O mapa sobre a mesa sugere uma inversão de expectativa: d) No primeiro poema recolher significa “catar”; no segundo
parado sobre uma superfície plana, um mapa só sugere tem sentido de introjetar.
a viagem para um eu-lírico estático, no conforto de sua e) Pedaços e cacos são elementos indistintos, quando se
intimidade, pois quem chega, aqui, é outro, como aponta leva em conta os dois poemas.
o primeiro verso.
2. A partir da leitura e análise vê-se no poema uma relação 30.10. TEXTO
com o corpo, que se apresenta como dardo e alvo, visões
díspares e complementares, em uma poética que traz o MINAS
lirismo amoroso como modo questionador de um amor Se eu encostasse
banalizado. meu ouvido
3. O poema nos oferece um olhar sobre um encontro que, a no seu peito
princípio casual, acaba ocupando, literalmente, um lugar
(“preenchendo / por descuido”) na vida do eu-lírico. No ouviria o tumulto
verso final, numa quebra proposital, sabemos que esse do mar
tal lugar estava vazio, ou “deserto”. o alarido estridente
4. Nessa cartografia emocional, o mapa sobre a mesa parece dos banhistas
um reflexo do eu-lírico, a ser preenchido pelas rasuras (um
pouco de café uma gota de mel / cinzas de cigarro) desse cegos de sol
outro que chega, que avança. o baque
Estão corretas, apenas as afirmativas das ondas
a) 1, 2 e 3. quando despencam
b) 1, 2 e 4. na praia
c) 1, 3 e 4.
d) 2 e 3. Vem
e) 3 e 4. escuta
30.09. Leia os poemas a seguir, que abrem e fecham a PARTE no meu peito
III de O livro das semelhanças, Visitas ao lugar-comum. o silêncio elementar
1 dos metais
Quebrar o silêncio
Avalie as seguintes observações sobre o poema e a obra de
e depois recolher
Ana Martins Marques.
os pedaços
1. Na poesia de Ana Martins Marques, a imagem do mar se
testar-lhes o corte coloca numa encruzilhada de ausências e presenças.
o brilho
2. Há sintomas de um distanciamento, de alguém que mora
cego longe do mar, a quem o mar não é propriamente familiar.
3. A obra de Ana Martins Marques estabelece ainda uma
14 relação com o mar que se dá pela perspectiva da ausência.
Quebrar promessas 4. O fato de ser mineira e não ter o mar geograficamente
e ao recolher os cacos próximo de si faz com que essa imagem se expresse sob
discerni-los um ideário romântico de saudade, construindo sobre esse
sentimento uma rota de sonhos.
entre aqueles
do silêncio Estão corretas
quebrado a) 1 e 2, apenas.
Assinale a alternativa correta. b) 1, 2 e 3, apenas.
a) Diferentemente desses poemas, os outros da série iniciam c) 2, 3 e 4, apenas.
todos com o verbo no pretérito perfeito.
d) Todas estão corretas.
b) Há um diálogo entre os dois textos a partir da ideia de
elementos estilhaçados. e) 3 e 4, apenas.
Português D 99
30.13. Leia atentamente o poema a seguir, tirado de O livro
Aprofundamento das semelhanças de Ana Martins Marques.
Pense em quantos anos foram necessários para chegar-
30.11. Os poemas a seguir correspondem ao primeiro e
mos a este ano quantas cidades para chegar a esta cidade e
último textos da PARTE I de O livro das semelhanças.
quantas mães, todas mortas, até tua mãe quantas línguas até
CAPA que a língua fosse esta e quantos verões até precisamente
Um biombo este verão este em que nos encontramos neste sítio exato à
entre o mundo beira de um mar rigorosamente igual a única coisa que não
muda porque muda sempre quantas tardes e praias vazias
e o livro foram necessárias para chegarmos ao vazio desta praia nesta
tarde quantas palavras até esta palavra, esta
CONTRACAPA Leia e avalie as afirmações sobre o poema.
Um biombo 1. O poema é carregado de melancolia e lembranças que
entre o livro transportam o eu lírico para além de sua realidade pre-
e o mundo sente, marcada pela solidão e abandono.
A leitura e interpretação dos poemas leva à percepção de que 2. O poema faz menção ao passado, reflete sobre as trans-
formações no tempo, na paisagem, na vida familiar, na
a) o conteúdo de um livro de poesia leva à alienação. comunicação e no relacionamento. Os anos, as cidades,
b) a leitura de obras poéticas torna-se cada vez mais rara no as mães, as línguas passaram e moldaram o momento
mundo. presente.
c) o vocábulo biombo remete à ideia de ignorância e ma- 3. As construções “até tua mãe, nos encontramos, para
terialismo. chegarmos supõem um “eu” que se dirige a um “tu”, a
d) o mundo globalizado e digital renega a arte literária. que o “eu” propõe uma reflexão filosófica sobre o tempo,
a história e o presente.
e) a leitura leva o leitor a mergulhar numa visão de mundo
nova e original. 4. Depreende-se do poema que a origem da identidade
pessoal está não apenas na memória ou nas experiên-
30.12. O QUE JÁ SE DISSE DO AMOR cias pessoais, mas também na memória dos outros, dos
Prisão antiga lugares das próprias palavras.
fábula somente Estão corretas, somente as afirmações
cogitação imoderada
contentamento descontente a) 1, 2 e 3.
viva morte b) 1, 3 e 4.
deleitoso mal c) 2, 3 e 4.
o tirano
d) 2 e 3.
beijo tácito &
sede infinita e) 3 e 4.
palavra inventada 30.14. TEXTO
para rimar com dor
coisa aprendida Podemos atear fogo
nos poemas de amor à memória da casa
Assinale a alternativa correta desaprender um idioma
a) O poema é composto por frases aleatórias que eliminam
palavra por palavra
qualquer possibilidade de entendimento do texto. podemos esquecer uma cidade
b) O ritmo e a musicalidade das frases apontam para uma suas ruas pontes armarinhos
analogia com os poemas simbolistas. armazéns guindastes teleféricos
c) A intertextualidade, presente na relação de versos de e se ela tiver um rio
outros poemas sobre o amor, concretiza o tema das
podemos esquecer o rio
semelhanças constantes da obra.
mesmo contra a correnteza
d) No poema destaca-se uma característica da poesia de
Gonçalves Dias, do amor impossível e idealizado. mas não podemos proteger com o corpo
e) A ausência dos sinais de pontuação aproxima o poema um outro corpo do envelhecimento
de Ana Martins Marques da poesia concreta. lançando-nos sobre a lembrança dele
Português D 101
30.17. Leia o poema a seguir, retirado da segunda série de 30.18. POEMA NÃO DE AMOR
O livro das semelhanças, de Ana Martins Marques. A partir de Zoo ou cartas não de amor,
Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem de Vitor Chklóvski
mas posso esquecer uma laranja sobre o México Não vou falar de amor, vou falar do tempo que faz
desenhar um veleiro sobre a Índia dos animais do zoológico
pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma de como eles não parecem tristes em suas jaulas
como se fossem unhas para onde os enviamos sem julgamento
duplicar a África com um espelho vou falar do urso, da girafa, da morsa, do falcão
criar sobre o Atlântico um círculo de água você me pede para não falar de amor
pousando sobre ele meu copo de cerveja eis que tenho agora uma ocupação
circunscrever a Islândia com meu anel de noivado não te ver, não te telefonar
não pensar em você
ou ocultar o Sri Lanka depositando sobre ele
tudo isso dá algum trabalho
uma moeda média não vou falar de amor
visitar os nomes das cidades vou falar do vento, das inundações,
levar o mundo a passeio do vinco das calças
por ruas conhecidas dos meus amigos exilados
abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse que viajam com malas cheias de livros
apenas para que tome e manuscritos
algum sol de modo que mal se distinguem
seus ensaios e suas cuecas
Analise os comentários a seguir sobre o poema vou falar sobre dançar
1. Objetos como o copo de cerveja, o anel de noivado ou num transatlântico
uma moeda média vão deixando os rastros dessas peças sobre esse livro que se escreve
cotidianas que impediriam o eu lírico de visitar todos esses à roda do seu nome
locais a partir apenas da interferência em um atlas, sobre todas essas coisas que não são o amor
uma mesa de jantar. Os mapas de um catálogo e os objetos não vou escrever cartas de amor
domésticos se unem para criar um plano de viagem para vou escrever cartas sobre cartas
além-mar que se realizará apesar dos temores do eu lírico. cartas sobre cartas nas quais irrompe às vezes
2. O fluxo sem pausas do primeiro verso, finalizado com a uma história de exílio
quebra na palavra “coragem”, convoca um tom confessional uma parábola antiga
do poema. Como se “não sei” ou “não tenho disposição”, porque eu sei como é feito Dom Quixote
verbalizadas num fluxo direto, sem pontuação, demarcasse mas não sei escrever uma carta de amor
um tom vacilante na voz do eu lírico, numa tentativa de você me pede para não falar de amor
explicação verborrágica para encobrir o real motivo da eu atendo porque devo te amar
impossibilidade de viagem: a falta de “coragem”, o medo. em lugar de amar o meu amor
3. O eu lírico diz, no terceiro verso, que “pode”. Ou seja, auto- porque no amor não deve valer a lei do mais forte
riza-se a viajar, ainda que dessa forma imóvel, de dentro nem mesmo a do mais forte amor
do lar, que pode “levar o mundo a passeio”, mas “por ruas porque é solitário estar sozinho num dueto
conhecidas”. O desejo do “outro”, do que está “lá fora”, de- não falar de amor me mantém ocupado
manda, através do poema, a segurança do que é conhecido, os animais do zoológico fazem isso melhor do que eu
do que promove conforto. eles não falam de amor, eles amam com suas plumas
e suas garras
4. Há o desejo de“levar o mundo a passeio”, inscrito aqui como
também te amo com minhas garras e minhas plumas
uma viagem solitária, em si. Esse desejo de deslocamento,
é o que eu diria se este fosse um poema de amor
de ânsia pelo mundo lá fora, vai sendo costurado por
este é um poema não de amor
vestígios da casa; elementos que permitem sonhar esse
deslocamento de forma segura, imóvel. Com um lápis é Analise os comentários a seguir, a respeito deste poema de
possível desenhar veleiros sobre a Índia e, com tinta, pode- Ana Martins Marques.
-se pintar as ilhas de Cabo Verde “como se fossem unhas”. 1. A epígrafe confirma a opção pela composição de poemas
O comentários corretos são que dialogam e introjetam várias influências poéticas
a) somente 2, 3 e 4. repercutindo temas e semelhanças com a obra de outros
b) somente 2 e 3. autores.
c) somente 3 e 4. 2. O eu lírico manifesta em seu desabafo sua incapacidade
d) somente 1, 2 e 3. de amar, relega o amor a segundo plano, revela-se um
adepto de uma relação puramente física e instintiva, não
e) somente 1, 3 e 4. admite, para si, a existência do sentimento amoroso.
102 Extensivo Terceirão
Aula 30
3. O poema explicita a natureza física atuando como locus pelo destino variado
do desenlace amoroso: nele ocorrem as modificações do que antes era um
tanto no agir como no pensar. Cabe ao leitor embarcar e por minha força morre múltiplo
nesta viagem pelo corpo em transformação pelas vias do tenho quebrado copos
desejo e descobrir como a poeta faz para entrelaçar amor, para isso parece deram-me mãos
corpo, natureza e poesia. tenho depois encontrado
4. Neste poema, exemplo típico da poesia contemporânea, o cacos que não recolhi
eu poético não é dado aos arroubos sentimentais de afetação e que identifico por um brilho súbito
romântica: aqui temos a sobriedade de um sujeito que atua no chão da cozinha de manhã
de modo discreto, a experiência do sujeito com o mundo e o
tenho andado com cuidado
amor.
com os olhos no chão
Estão corretos, apenas os comentários à procura de algo que brilhe
a) 1, 2 e 3. e tenho quebrado copos
b) 1, 3 e 4. é o que tenho feito
c) 2 e 4. Avalie a afirmativas a respeito deste poema, extraído de
O livro das semelhanças, de Ana Maria Marques.
d) 2, 3 e 4.
e) 1 e 4. 1. O poema Tenho quebrado copos é um dos exemplos do
espaçamento do sujeito e a sua associação com o lugar
30.19. TENHO QUEBRADO COPOS na poesia de Ana Martins. A paisagem manifesta o corpo;
Tenho quebrado copos desta forma, o ser que se sente natureza ao seu redor se
é o que tenho feito dissolve no mundo como se o universo o absorvesse.
raramente me machuco embora uma vez sim 2. O fato de quebrar copos e andar pelos cacos, recolhê-
uma vez quebrei um copo com as mãos -los, observá-los, embrulhá-los “para que ninguém se
era frágil demais foi o que pensei machuque” é uma noção de que o exterior foi absorvido
era feito para quebrar-se foi o que pensei pelo interior; quebrar copos é apenas a exteriorização da
e não: eu fui feita para quebrar ruptura interna, o mundo externo é um espelhamento do
em geral eles apenas se espatifam se passa por dentro.
na pia entre a louça branca e os talheres 3. Neste poema, Ana Martins Marques recupera o lirismo
(esses não quebram nunca) ou no chão amoroso e faz crítica ao amor banalizado, por vezes,
espalhando-se então com um baque luminoso toma a ironia como traço distintivo para questionar este
tenho recolhido cacos sentimento. O corpo, que está em transformação, seja
tenho observado brevemente seu formato pela ação do tempo, seja pela reação entre o ser amante
pensando que acontecer é irreversível e o ser amado, aparece nestes versos como condutor da
pensando em como é fácil destroçar trama amorosa.
tenho embrulhado os cacos com jornal
4. Neste poema, o objeto não é senão a representação do
para que ninguém se machuque
sujeito; por outro lado, o sujeito que se transforma no
como minha mãe me ensinou
objeto da intuição torna-se esse mesmo objeto. Essa fusão
como se fosse mesmo possível
resulta um duplo movimento pelo qual o objeto requisita
evitar os cortes
a atenção do sujeito que se abre para ele, sendo assim, a
(mas que não seja eu a ferir)
paisagem é o lugar que se processa a troca entre o eu que
tenho andado a tentar
se objetiva e o objeto que se interioriza, como nos versos
não me ferir e não ferir os outros
“tenho andado com cuidado/ com os olhos no chão/ à
enquanto esgoto o estoque de copos
procura de algo que brilhe/ e tenho quebrado copos/ é
mas não tenho quebrado minhas próprias mãos
o que tenho feito”.
golpeando os azulejos
não tenho passado a noite Estão corretas, apenas as afirmativas
deitada no chão de mármore a) 1 e 2.
estudando as trocas de calor b) 1, 2 e 3.
não tenho mastigado o vidro c) 1 e 4.
procurando separar na boca
d) 1, 2 e 4.
o sabor do sangue o sabor do sabão
nem tenho feito uma oração e) 2 e 4.
Português D 103
30.20. Ainda sobre o poema da questão anterior, avalie as observações a seguir.
1. Neste poema da mineira Ana Martins Marques, percebe-se que a poeta constrói um entrelaçamento entre o amor e o fazer
poético e seus poemas, direta ou indiretamente, falam sobre este assunto, conforme reitera nos versos: tenho embrulhado
os cacos com jornal / para que ninguém se machuque / como minha mãe me ensinou
2. No poema percebe-se o jogo que arma e desarma as palavras. Ao recuperar o lirismo amoroso em seus versos, vê-se, ao
mesmo tempo, a impregnação de ironia como traço distintivo com o intuito de refletir sobre aquela questão.
3. O poema apresenta uma segunda parte em que a presença da negação, a partir do 25o. verso, “mas não tenho quebrado
minhas próprias mãos” é uma tentativa de mascarar suas ações inconsequentes, como golpear azulejos, passar a noite
deitada no chão e mastigar vidro. O espaço e o eu lírico se fundem em ações contínuas, motivadas “por um brilho súbito/
no chão da cozinha”.
4. O chão da casa, repleto de cacos reluzentes, com pedaços espatifados em várias partes, é a representação metafórica da
persona lírica do poema, a paisagem bagunçada da casa é a expressão do corpo.
Estão corretas, apenas as afirmativas
a) 1 e 2.
b) 3 e 4.
c) 2, 3 e 4.
d) 1, 3 e 4.
e) 1, 2 e 4.
Gabarito
30.01. b 30.11. e
30.02. a 30.12. c
30.03. e 30.13. c
30.04. d 30.14. a
30.05. e 30.15. d
30.06. a 30.16. b
30.07. c 30.17. a
30.08. c 30.18. e
30.09. b 30.19. d
30.10. d 30.20. b
TA
GO
NI
ZE OBRAS LITERÁRIAS
VOLUME
6
LIVRO DIDÁTICO
AULAS 21 A 30