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ALUNAS: Gabrielly e Thamara

Como ataca a sucuri


O homem queria ir pescar? Pajão então levava-o ao certo lugar, poço bom, fundo,
pesqueiro. O resto, virava com Deus... Inda que penoso o caminhar, dava gosto guiar um
excomungado, assim, hum, a mais distante, no fechado da brenha.
E aquele nem estranhava o sujo brejão, marimbu de obrar medo. Sozinho chegara, na
véspera, a cavalo, puxado à-destra o burro cargueiro; tinha ror de canastras e caixas, disparate
de trens, quilos de dinheiro, quem sabe, até ouro. Falava que seus camaradas também ainda
vinham vir? Quê! Sem companheiro nenhum, parava era todo perdido, cá, nas santas lonjuras,
fora de termo.
Aqui, Pajão agora o largava, ao pé do poço oculto, quieto, conforme ele mesmo influído
pedira. Ife! pescasse. Entendia o mundo de mato, usos, estes ribeirões de águas cinzentas?
Drepes entendia, porém. Deixou passar tempo, não à beira, mas cauto encostado em árvore.
Deu tiro, para o alto, ao acaso. E escutou resposta: o ronco, quase gemer, que nem surdo
berro de gado. Ah, seu aleijado hospedeiro tivera manha e motivo, para o sorrisão com caretas!
Sim — serpente gigante ali se estava, saída de sob a água, sob folhas. Drepes ia esperar,
trepado à árvore, havia a ver.
À noitinha, um dos filhos de Pajão o veio buscar; taciturno, bronco, só matéria e eventual
maldade. — “De que jeito é que sucuri pega capivara?” — Drepes indagou, curioso, irônico. O
moço nem sacudiu cabeça, dado um hã, mastigado o nome do pai.
Na casa, que fedia a couros podres, à boca da floresta, Pajão caranguejava. — “Sucruiú?
Aqui nunca divulguei...” — e em roda tornava a coxear, torto, estragando muito espaço. Armou
o candeeiro, sem fitar Drepes; seu ódio se derramava pelos cantos.
— “Ela morde a presa, mas fica com o rabo enganchado num pau? Se aquela corre, larga-
lhe trela, estirada, afinada, depois repuxa e mata, tomando-lhe o fôlego das ventas?” — Drepes
insistia.
Pajão, de boca retorcida: — “O senhor está dizendo.”
O candeeiro era para Drepes, no apertado quarto, sua fortaleza. — “Você já viu sucuri?!”
Acolá, no escuro, os do Pajão, a família não se movesse.
O terrível homem cidadão, azougado da cabeça, xê, pensando ferros e vermelhos. Não
deixava mão da carabina e revólver, por entre o engenho de suas trenheiras malditas. A ele a
gente tinha de responder, ver ensinar o que vige no desmando, nhão, as outras coisas da
natureza. E não é que um repisa, e crê, é o que ouve contar, em vez do verdadeiro avistado?
— “De jeito nenhum. Não pode se esticar afinada, ela tem espinha, também... Adonde!
Quebra osso nenhum, do bicho que come. Pega boi não, só pato, veado, paca...” — a gente
emendava.
— “Pega homem?!” Desaforo. E o cujo, eh, botava para rodar os carretéis daquele cego
relógio.
Saía, aventado, no outro dia, para o dormido poço do marimbu, hum, com receio nenhum,
seguro de tudo. Sozinho, xê. Delatava a ele o caminho uma caixeta redonda, que tinha, boceta
de herege. Zanzava, mexia, vai ver não voltava! “Sucruiú come homem?” Deus querendo,
come. Mas o danado levara também o Pacamã, cachorro sério, decerto por trapaça cedia a ele
parte da matula, farinha e carne...
Voltaram, cão e homem. Drepes pisava forte. No prato de comer, esparziu pitada de um pó
branco: — “Instrui de qualquer veneno: formicida, feitiço, vidro moído. Tendo, o remédio fica
azul...” — falou, aquilo ainda oferecendo.
Pajão recuou cara, a ira enchia-o de linhas retas. Os filhos meio que comiam, os olhos tão
duros quanto os narizes e queixos. Drepes se palpava os joelhos, não ia relaxar sua cautela. A
velha, de pé, quase de costas, suspirou alto.
Drepes disse: — “Deus dê a todos boa noite!” — tinha pinchado também do pó na cuia de
água.
Aquele homem zureta, atentado! Agora dava corda no relógio sem números nem ponteiros,
a gente escutava: a voz guardada, dele mesmo, Pajão, depondo relato:
— “Sucruiú agride de açoite, feito o relâmpago, pula inteira no outro bicho... Aquilo é um
abalo! Um vê: ela já ferrou dente e enrolou no outro o laço de suas voltas, as duas ou três
roscas, zasco-tasco, no soforçoso... O bicho nem grita, mal careteia, debate as pernas de trás,
o aperto tirou dele o ar dos bofes. Sucruiú sabe o prazo, que é só para sufocar, tifetrije... Aí,
solta as laçadas de em redor do bicho morto, que ela tateia todo, com a linguazinha. Começa a
engolir...”
Drepes sabia, aprovava a desfábula. O ogro conhecia bem a cobra-grande! Aquele rude
ente, incompleto, que sapejava, se arrimando às paredes do casebre, no andar defeituoso, de
tamanduá, já pronto para pesadelo. Se de repente se apagasse o candeeiro, Drepes cerrava
com todos, disparava a pistola — em rumo, ruído e bafejo.
De manhã, quis partir dali, mesmo só. Deram porém o cavalo e o burro como fugidos,
disseram-lhe. O empulho. Pajão cravando-lhe os olhos como dentes, e os três filhos, à malfa,
com as foices, zarrões homens, capazes de saltarem com ele, ruindadeiros, de dar de garrucha
ou faca.
Drepes, descorado, sentou-se contudo a cômodo no jirau, pernas abertas. A carabina e, na
outra mão, o barômetro, dele saindo fio, que se sumia numa caixa. Com força de tom, começou
a falar — como se a um pé-de-exército — a inventados camaradas seus... — “...Aqui, no que é
de um Pajão, brejos da Sumiquara!”
Pajão rodava com o pescoço, jurava que os animais iam já aparecer. Os filhos,
simplesmente, saíam para cortar mato.
Eh, fosse embora! Pajão mesmo, ao entardecer, vinha ao poço, com o aviso, que cavalo e
burro estavam já achados. Ouviu os tiros! Viu o demo do homem, revólver na mão, a cara de
fera... O cachorro, salvo, tremia demais, deitado, babado, arrepiado. A sucuriju, cabeça
espatifada, movia corpo, à beira do aguaçal.
Pajão fez pé atrás. — “Acho razão no senhor...” — soava a oco. Ladino, avançou, quase
quadrumanamente, desembainhado o facão, feio, tão antigo, que parecia uma arma de bronze.
Ele queria o couro, do bicho dragonho.
— “P’ra a sucruiú, a gente não tem piedade!” — ringiu. A cobra, esfolada, ainda se mexia.
Drepes saiu-se indo, dali a hora, pagara-lhes bem a hospedagem. Acenavam - lhe vivo
adeus.
ENREDO:
O conto é bastante curto, apresenta apenas três páginas. Seu enredo consiste na história de
dois homens, e na tensão que existe na relação entre eles. Drepes, um homem que podemos
descrever como seguro de si, astuto, letrado e o que chamamos de homem cidadão, veio de
um centro urbano, para o brejo com o intuito de pescar. Se torna hóspede de Pajão, morador
desse brejão escuro, úmido e sujo. Pajão, homem primitivo, aleijado e estranho em todos os
sentidos, logo de início não gosta desse sujeito de fora, percebemos então essa antipatia e
esse jogo de poder entre o recém chegado e o sertanejo.
O forasteiro, a seu pedido, é levado a um local de pesca, lugar perigoso, e escuta o som do
que supõe ser a cobra-grande. A partir daí indaga a seu hospedeiro sobre os hábitos da
sucuri. Percebemos uma certa violência que sempre paira no conto. E que só vemos ao fim no
desfecho, quando a sucuri, que está presente em toda a narrativa no jogo da linguagem,
aparece morta por Drepes, o qual, após o fato, vai embora, deixando Pajão com o couro do
réptil.

PERSONAGENS: são essas as duas personagens centrais do conto e que contribuem para o
desenvolvimento da narrativa. E de personagens secundários temos os membros da família de
Pajão.

ESPAÇO: o espaço se passa todo no sertão mineiro, mais precisamente no local denominado
como Brejos da Sumiquara.

TEMPO: o tempo é cronológico e o conto se passa num período de dois dias e uma noite.

NARRADOR: o conto é narrado em 3° pessoa, o narrador é observador e faz bastante uso do


discurso indireto livre. Por muitas vezes o discurso do narrador ora se misturava com o
discurso do sertanejo e ora com o do homem letrado, e por isso conseguimos ver plenamente
nesse conto o ponto de vista dos dois personagens. Não dá para dizer que o narrador é
onisciente pois sua onisciência fica limitada às personagem que ele está representando no
momento.
Com isso, ao decorrer da narrativa temos algumas marcas de ambiguidades. Pensamos que o
narrador é um sertanejo, uma pessoa local, porém ele só está absorvendo as impressões do
personagem que ele está narrando.

"O homem queria ir pescar? Pajão então levava-o ao certo lugar, poço bom, fundo, pesqueiro.
O resto virava com Deus... Inda que penoso o caminhar, dava gosto guiar um excomungado,
assim, hum, a mais distante, no fechado da brenha.”

Temos então nesse único excerto marcas de oralidade, por meio de uma abreviação, elipses e
o uso do discurso direto, que transmite a emoção, e o pensar do personagem, o que causará
essa ambiguidade ao longo da narrativa a respeito a quem o discurso pertence.

“Seguindo a tônica da obra de Rosa, o narrador parece dotado de movimento,


modulando-se conforme o fluxo de qualquer um dos planos que compõem a narrativa .
Quando aproxima o relato do universo afetivo de Drepes, o narrador projeta no texto a
personalidade do estrangeiro e mesmo seu ódio pelo nativo: “À noitinha, um dos filhos
de Pajão o veio buscar; taciturno, bronco, só matéria e eventual maldade.” ; quando é
de Pajão que se aproxima a narrativa, o relato ganha os tons do nativo: “O terrível
homem cidadão, azougado da cabeça, xê, pensando ferros e vermelhos.”
Fabio Dias Leal. 2014

ANÁLISE DA LINGUAGEM:

Retiramos do conto uma passagem para exemplificar a presença dos aspectos fonológicos,
morfológicos, sintáticos e semânticos presentes na obra de Guimarães.

“E aquele nem estranhava o sujo brejão, marimbu de obrar medo. Sozinho chegara, na
véspera, a cavalo, puxado à-destra o burro cargueiro; tinha ror de canastras e caixas, disparate
de trens, quilos de dinheiro, quem sabe, até ouro. Falava que seus camaradas também ainda
vinham vir? Quê! Sem companheiro nenhum, parava era todo perdido, cá, nas santas lonjuras,
fora de termo.”

• Aspecto fonológico: aliteração, repetição da sílaba ra. - Sozinho chegara, na véspera


• Aspecto sintático: elipse, foi omitido o verbo estar. – a cavalo estava, puxado à-destra.
• Aspecto morfológico e semântico: o uso do verbo obrar com um caráter regionalista, em sua
definição obrar significa trabalhar, realizar ou fazer, porém nesse contexto tem o sentido de
evacuar, defecar.

Aspectos fonológicos:

1- "...dava gosto guiar um excomungado, assim, hum, a mais distante, no fechado da brenha." -
Onomatopeia

2- "Deixou passar tempo, não à beira, mas cauto encostado em árvore. Deu tiro, para o alto, ao
acaso." - Rima

3- "Deu tiro, para o alto, ao acaso." – Assonância – repetição da vogal A.

4- "O cachorro, salvo, tremia demais, deitado, babado, arrepiado." Eco.

Aspectos morfológicos:

1- "Drepes sabia, aprovava a desfábula." - Formação de palavra por derivação prefixal


2- "Os filhos, simplesmente, saíam para cortar mato." - Formação de palavra por derivação
sufixal.

3- "Pajão mesmo, ao entardecer, vinha ao poço, com o aviso, que cavalo e burro estavam já
achados." - Formação de palavra por derivação parassintética.

Aspectos sintáticos:

1- "Pajão então levava-o ao certo lugar…" – Anástrofe.

2- "Aqui, Pajão agora o largava, ao pé do poço oculto, quieto, conforme ele mesmo influído
pedira. Ife! pescasse. Entendia o mundo de mato, usos, estes ribeirões de águas cinzentas?" –
Elipse do pronome ELE.
Zeugma – Entendia.

Aspectos semânticos:

1- "Pajão cravando-lhe os olhos como dentes…" - Comparação

2- 'Se aquela corre, larga-lhe trela, estirada, afinada, depois repuxa e mata, tomando-lhe o
fôlego das ventas?” — Drepes insistia." - Gradação

3- "— “Sucruiú agride de açoite, feito o relâmpago, pula inteira no outro bicho…" - Metáfora

Neologismos:

E não podemos deixar de dar destaque para os diversos neologismos presentes na obra e tão
típico do Guimarães, tais como lonjuras, caranguejava, soforçoso, azougado,
quadrumanamente, sumiquara e dragonho, dentre outros, que permeiam a narrativa de
sentidos que se ultrapassam, completam-se e, por vezes, combinam-se para produzir novos
sentidos.

Regionalismos:

Sucruiú – nome da Sucuri modificado pela região onde se encontra.

Pontuação:
Ao longo do conto, encontram-se as pontuações referentes aos diálogos ocorridos para
mesclar com a percepção do narrador contando os fatos que acontecem.

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